O princípio da igualdade no concurso público PDF
RAQUEL DISCACCIATI BELLO
SUMÁRIO
- Introdução. 2. Considerações. 2.1. Sobre os princípios no direito. 2.1.1. Sobre o princípio da isonomia. 2.2. Sobre o concurso público. 3. Aplica- ção do princípio isonômico nos concursos públi- cos. 4. Conclusões.
Raquel Discacciati Bello é Mestranda em Direito Administrativo na Faculdade de Direito da UFMG.
- Introdução
Os princípios de direito desempenham função de essencial importância quanto à formação do ordenamento jurídico e no tocante à interpretação das leis. Não obstante seu valoroso papel, tem-se notado, na atuação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que nem sempre os princípios são observados. Muitas leis são elaboradas em completa dissonância com os preceitos basilares do direito, inseridos no Texto Constitucional. Por outro lado, há também uma tendência de se interpretar o direito de forma dirigida a uma lei específica. Curiosamente, deixam por último
– quando o fazem – o exame dos princípios
prestigiados na Constituição da República.
Àqueles que se dedicam ao estudo do direito público é maior a necessidade de conhecer o conteúdo normativo dos princípios constitucionais, dada a ausência de um código e a excessiva profusão de leis. Na verdade, o estudo do direito em geral, público e privado, deve ter início nos princípios, que são a base lógica do ordenamento jurídico.
O princípio da isonomia, em particular, pretende garantir que, na elaboração das leis, sejam respeitadas as diferenças entre as pessoas, fatos e situações, e que a interpretação seja feita dentro dos limites e possibilidades da lei. Este princípio é assegurador de um tratamento justo
e de proteção contra os eventuais abusos do Estado, em suas manifestações de poder.
No caso específico do concurso público, o princípio da igualdade é de ampla aplicação. Por meio dele, permitem-se aos candidatos iguais condições de concorrência, obedecidos os requisitos legais. Neste ponto, ou seja, na possibilidade de se estabelecer condições para a investidura em cargos, empregos ou funções públicas, residem muitas questões, que só podem ser respondidas após a análise do conteúdo jurídico do princípio da isonomia.
- Considerações
- Sobre os princípios no direito
Toda ciência é construída sobre princípios, que fornecem as bases para a sua evolução. De acordo com conceito de Cretella Júnior1, os
“princípios de uma ciência são as pro- posições básicas, fundamentais, típicas que condicionam todas as estruturações subseqüentes. Princípios, neste sentido, são os alicerces da ciência”.
A função inicial dos princípios, dentro do sistema jurídico, é a de permitir o ato de conhecimento. Parte daí a identificação do direito público e do direito privado. Eles permitem, ainda, o embasamento de decisões políticas fundamentais, que podem resultar na elaboração de novas normas.
O direito público, ao contrário do direito privado – que tem a maior parte de suas normas codificadas –, é de formação basicamente pretoriana, e suas normas encontram-se dispersas em um emaranhado de leis. Assim, torna-se imprescindível conhecer os princípios informadores do direito público e também aqueles afeitos somente ao direito administrativo. Os princípios, assim como as regras, integram o ordenamento jurídico. Mas, como idéias primordiais e nucleares de um sistema, estão em posição hierárquica superior a elas.
Segundo Sundfeld2, isso ocorre porque o princípio jurídico
“determina o sentido e o alcance destas, que não podem contrariá-lo, sob pena de pôr em risco a globalidade do
ordenamento jurídico. Deve haver coerência entre os princípios e as regras, no sentido que vai daqueles para estas”.
Mais adiante, afirma que
“aquele que só conhece as regras ignora a parcela mais importante do direito – justamente a que faz delas um todo coerente, lógico e ordenado. Logo, aplica o direito pela metade”.
No mesmo sentido, Bandeira de Mello3: “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas
a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão dos seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”.
Os princípios, como afirmamos, fazem parte do ordenamento jurídico, ou seja, não são idéia ou ideal de direito. Têm valor normativo, são fonte de inúmeras regras. Os princípios de direito público estão, em sua maioria, dispostos no Texto Constitucional, como, por exemplo, aqueles do art. 37, caput, que vinculam todos os atos da administração pública direta e indireta. Podem, ainda, estar implícitos no ordenamento jurídico, resultantes diretos de alguma norma, e deduzidos do sistema. Isso vem reafirmar que todo princípio está inserido na ordem jurídica.
Os princípios constitucionais podem ter conteúdo organizacional, relativos à forma do Estado, tipo e sistema de governo. Existem também aqueles de caráter programático, que estabelecem valores ou fins a serem perseguidos. Por derradeiro, há os princípios que estabelecem direitos, resguardam situações jurídicas e delimitam os poderes do Estado em relação aos administrados – como, por exemplo, o princípio da isonomia, nosso objeto de estudo.
Não podem os princípios ser desconhecidos pelo legislador, ao elaborar as normas, nem pelo administrador ou pelo juiz, ao aplicarem a lei in concreto. Ao legislador cumpre observar a
1 CRETELLA JÚNIOR apud DI PIETRO, Maria
Sylvia Zanella. Direito administrativo, 3. ed. São Paulo : Atlas, 1992.
2 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público, 2. ed. São Paulo : Malheiros, 1993.
3 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social, Revista de direito público, n. 57-58, p. 247, jan./ jun. 1981.
adequação entre a norma nova e os princípios já consagrados. O publicista Canotilho ensina, com propriedade, que a discricionariedade do legislador deve ser aferida dentro dos princípios abraçados pela Lei Máxima, porque são os “vetores” de todo o sistema normativo4.
O mesmo deve-se verificar quando da aplicação do direito, conforme valiosa lição de Sundfeld5:
“a) é incorreta a interpretação da regra, quando dela derivar contradição, explícita ou velada, com os princípios;
- quando a regra admitir logicamente mais de uma interpretação, prevalece a que melhor se afinar com os princípios;
- quando a regra tiver sido redigida de tal modo que resulte mais extensa ou mais restrita que o princípio, justifica-se a interpretação extensiva ou restritiva, respectivamente, para calibrar o alcance da regra com o princípio.”
2.1.1. Sobre o princípio da isonomia
O princípio da isonomia esteve sempre presente no constitucionalismo republicano do Brasil: na Constituição de 1891, art. 72, § 2º; na Constituição de 1934, art. 112, I; na Carta de 1937, art. 122; na Constituição de 1946, art.
141, § 1 º; na de 1967, art.150, § 1 º; na de 1969, art. 153, § 1 º; e agora, na Constituição de 1988, art. 5º, caput, ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei”.
O direito, como valor, deve buscar a realização de seu ideal máximo: a justiça. Os princípios jurídicos, da mesma forma, buscam este objetivo, e esta é a primeira vocação do princípio da igualdade: realizar a justiça. Por isso, a lei deverá buscar um tratamento eqüitativo, que não conceda vantagens indiscriminadas para uns e abusos injustificados contra outros.
O estudo sobre o princípio da isonomia tem
início na máxima de Aristóteles de que a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Deve-se partir daí, porque é nessa assertiva que surgem os primeiros questionamentos sobre o conteúdo jurídico do princípio em tela: quem são os iguais? E os desiguais? Qual é a medida exata
4 CANOTILHO apud FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. São Paulo : Malheiros, 1994. p. 41.
5 SUNDFELD, op. cit. p. 141-142, nota 2.
para tratá-los diferentemente, sem que sejam lesados em seus direitos? Em quais casos pode-se estabelecer diferenças, sem prejuízos ao princípio isonômico?
É fundamental dizer, de antemão, que o preceito isonômico deve servir como baliza tanto para o legislador, quanto para o aplicador da lei. Daí se traçarem diferenças entre as expressões “igualdade perante a lei” e “igualdade na lei”.
A igualdade perante a lei é dirigida ao aplicador do direito, que deve observar apenas as discriminações integrantes da lei. Ou seja, não cabe a ele criar outros critérios desigualadores. Para Kelsen6, o problema da igualdade perante a lei resume-se no princípio da regularidade da aplicação do direito em geral, segundo o qual “as normas devem ser aplicadas conforme as normas”.
A igualdade na lei, segundo lição de San Tiago Dantas7, deve fundar-se na razoabilidade da discriminação feita pela lei. Na falta dela, haverá um undue process of law, o que equivale dizer que as classificações legais hão de ser “lógicas, razoáveis, obedientes a discrímenes próprios”. É a igualdade, pois, um limite para a lei e para o poder discricionário do legislador. O jurista fala, ainda, da necessária observância dos princípios explícitos ou implícitos da Constituição, quando da elaboração da norma legal. As leis devem, portanto, nascer em acordo com os princípios e garantias valorados constitucionalmente.
Na verdade, é próprio da lei desigualar, discriminar situações, tratar diferentemente as pessoas no mundo objetivo. Kelsen8, sobre isso, lecionou:
“A igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devam ser tratados de forma idêntica nas normas e em particular nas leis expedidas com base na Constituição. A igualdade assim entendida não é concebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir exatamente os mesmos direitos sem fazer distinção alguma entre eles, como, por exemplo,
6 KELSEN apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3. ed. São Paulo : Malheiros, 1993. p. 10.
7 DANTAS apud FIGUEIREDO, p. 40, nota 4.
8 KELSEN, op. cit. p. 11, nota 6.
entre crianças e adultos, indivíduos mentalmente sadios e alienados, homens e mulheres.”
O que se examinará adiante é em quais casos as desigualdades violam o princípio da isonomia, ou seja, qual é o limite da lei na sua função desigualadora.
Alguns autores entre nós já se debruçaram sobre o tema, como Ferraz e Figueiredo9, ao tratarem de aspectos da licitação – procedimento em vários aspectos semelhante ao concurso público, principalmente quanto aos princípios informadores, dentre os quais o princípio da igualdade. São deles as considerações seguintes:
“Na verdade, se a lei desiguala, se a sentença desiguala, ao contrário do que pareça, deflui necessariamente do princípio constitucional de igualdade; a desigualdade não é repelida, o que se repele é a desigualdade injustificada.
Tudo está, portanto, em lançar com nitidez a razão de ser para um fator diferencial; e essa parece ser uma só: são válidas as eleições discriminatórias, quando signifiquem o caminho possível, de conexão lógica, para a realização do fim jurídico buscado, desde que esse fim, por seu turno, tenha agasalho no ordenamento jurídico”.
Para melhor exame da correlação lógica e da necessária compatibilidade com interesses juridicamente protegidos, valer-nos-emos das lições de Bandeira de Mello, brilhantemente expostas na obra O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade.
Ele estabeleceu três questões para o estudo das desequiparações permitidas: a primeira é o elemento usado para desigualar; a segunda é a conexão lógica e racional que justifique o tratamento diferenciado; por último, a existência de afinidades com o sistema normativo vigente. Adverte-nos, ainda, que é fundamental a coexistência dos três fatores, vale dizer: a falta de um deles é bastante para lesar o princípio da isonomia.
Sobre o fator de discriminação, o mestre nos ensina, em síntese, que a lei não pode erigir um critério de diferenciação que singularize o destinatário da norma, o que acarretaria obrigações ou vantagens incidentes sobre uma
9 FERRAZ, Sérgio, FIGUEIREDO, Lúcia Valle.
Dispensa e inexigibilidade de licitação, 3. ed. São
só e mesma pessoa, sem conseqüências para as demais. A norma pode até mesmo dirigir-se a uma certa categoria de pessoas, ou a um só sujeito, mas desde que sejam indeterminados e indetermináveis no presente.
Na correlação lógica entre o fator de diferenciação e a desequiparação está, para o jurista, a chave para se analisar a validade ou invalidade do discrímen levado a efeito. Observa, a princípio, que tanto a aceitação quanto a rejeição à norma discriminadora ocorrem de forma natural, são perceptíveis mesmo ao leigo. Algumas normas nos parecem prima facie absolutamente agressivas à isonomia, pela inexistência de lógica que as justifique. Outras, ao revés, mostram-se racionais, plenamente viáveis, por guardarem lógica, ou seja, por serem justificáveis.
Para se chegar à análise pretendida, é necessário examinar o que se estabeleceu como critério de discriminação e se há uma razão lógica que o justifique. Na hipótese de inexistência de correlação lógica entre ambos, tem-se violado o princípio da isonomia.
É importante observar que o reconhecimento desta pertinência pode sofrer variações no tempo e no espaço, já que essa análise não escapa de fatores culturais próprios de uma época. O que era considerado inaceitável por determinada sociedade pode, hoje, ser admitido como valor absoluto. Assim, certos discrímenes podem vir a ser aceitos ou repugnados pelas pessoas, conforme o momento histórico.
A adequação com os interesses absorvidos constitucionalmente significa que
“as vantagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interesses acolhidos no sistema constitucional”10.
Deve haver, portanto, além de razões de ordem fática ou racional, um fundamento adequado aos interesses acolhidos constitucionalmente, que legitimem a diferenciação.
- Sobre o concurso público
O vocábulo “concurso” deriva-se do latim concursus, formado pelo verbo con, que significa convergência, e do nome curso, que quer dizer corrida, carreira. Etimologicamente,
Paulo : Malheiros, 1994. p. 21-22. 10 MELLO, op. cit. p. 40, nota 6.
significa carreira para determinado lugar. Tem sentido analógico a concorrência, onde várias pessoas participam de um mesmo ato. Pode significar, além de disputa, a simples conjunção ou integração de coisas ou pessoas.
No Direito Administrativo, “concurso” tem o significado amplo de processo de seleção.
De acordo com Cretella Júnior11, concurso é “a série complexa de procedimentos para apurar as aptidões pessoais apresentadas por um ou vários candidatos que se
empenham para a obtenção de uma ou mais vagas e que submetem voluntaria- mente seus trabalhos ao julgamento de uma comissão examinadora”.
Para Oswaldo Aranha Bandeira de Mello12, “os concursos, sejam eles internos ou externos, constituem procedimentos
administrativos, isto é, sucessão itinerária e encadeada de atos tendendo todos a um resultado final e conclusivo”.
No dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello13, “concurso, em rigor técnico, é um processo de seleção em que se enseja disputa, competição, entre os candidatos”.
Dallari14 define concurso público como “um procedimento administrativo, aberto a todo e qualquer interessado que preencha os requisitos estabelecidos em
lei, destinado à seleção de pessoal, mediante aferição do conhecimento, da aptidão e da experiência dos candidatos, por critérios objetivos, previamente estabelecidos no edital de abertura, de maneira a possibilitar uma classificação de todos os aprovados”.
A Constituição Federal de 1988 trata da acessibilidade aos cargos, empregos e funções públicas no art. 37, incisos I a V. No inciso I
11CRETELLA JÚNIOR., José. Tratado de direito administrativo. São Paulo : Forense, 1967. v. 4, p. 276-277.
12 MELLO, O. apud CAMAROSSANO, Márcio.
Concurso interno para efetivação de servidores, Revista de direito público, n. 92, p. 193-196, out./ dez.1989.
13 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Regime constitucional dos servidores da administração direta e indireta. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1990. p. 44.
14 DALLARI, Adilson Abreu. Regime constitu- cional dos servidores públicos. 2. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1992. p. 36.
está presente princípio assente em todas as Constituições brasileiras: o do amplo acesso. Este princípio remonta à Carta de 1824, art. 179, n. 14, que dizia que “todo cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos ou militares, sem outra diferença que não seja a de seus talentos e virtudes”.
A exigência de concurso público para provimento de cargos públicos, por sua vez, consta de todas as Constituições deste século: na de 1934, art. 170, § 2º; na de 1937, art.156,
b; na de 1946, art. 186; na de 1967, art. 95, §
1º; na de 1969, art. 97, § 1º; e na Constituição de 1988, art. 37, II.
O concurso público tem como finalidade última selecionar os melhores candidatos para provimento dos cargos, empregos ou funções públicas, mediante aferição do mérito de cada um e de acordo com requisitos exigidos no interesse da administração. Dessa afirmação surgem alguns elementos que merecem esclarecimento.
Primeiramente, é necessário conceituar o que vem a ser provimento. De maneira geral, define-se provimento como preenchimento de cargo público. Sob esse ângulo, o cargo é considerado um lugar que está vago e que deverá ser ocupado. O provimento está, portanto, relacionado ao cargo vago. Quanto à natureza do provimento, alguns entendem ser ato administrativo, e outros, procedimento.
Camarossano15 elenca algumas dessas opiniões: para Masagão, provimento é “o ato administrativo pelo qual se designa titular ao cargo público”; Meirelles conceitua-o como “o ato pelo qual se efetua o preenchimento do cargo público, com a designação do seu titular”; na lição de Cintra do Amaral, “o provimento é o ato pelo qual um cargo é preenchido, completando-se com a investidura, que é a aquisição, pela pessoa escolhida, da titularidade do cargo”; Moreira Neto diz que “provimento é, na realidade, um procedimento administrativo que culmina com a integração de relação jurídica funcional – a investidura”; finalmente, José Afonso da Silva afirma que o provimento é “o procedimento mediante o qual se atribui cargo público a um titular”.
O provimento pode ser originário ou derivado. O primeiro é aquele que vincula inicialmente a pessoa ao cargo, emprego, ou
15 CAMAROSSANO, Márcio. Provimento de cargos públicos no direito brasileiro. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1984. p. 24.
função, mediante nomeação ou contrato. Já o provimento derivado impõe que haja vínculo anterior da pessoa com a administração, estando bastante reduzido seu âmbito de aplicação com o advento da Constituição de 1988, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o disposto no art. 37, II.
Ao contrário do provimento, que se refere ao cargo, a investidura está relacionada com a pessoa que irá ocupá-lo. Daí a afirmação de Cintra do Amaral16 de que “há completa impropriedade, porém, em dizer-se que essa pessoa é provida no cargo. Provido é o cargo. A pessoa escolhida é investida nesse cargo”.
O concurso pode ser de provas ou de provas e títulos (CF, art. 37, II). Por meio delas, afere-se a capacidade do candidato, o mérito de cada um. O julgamento há de ser objetivo, mediante criteriosa correção dos exames de conhecimentos e análise dos títulos relativos à experiência e qualificação do interessado. Isso decorre diretamente dos princípios da publicidade e da motivação dos atos administrativos, e só assim admitir-se-á uma avaliação justa sobre o merecimento e permitir-se-á o adequado controle dos atos praticados.
A norma constitucional do art. 37, inciso I, refere-se a requisitos legais para a acessibilidade, que deverão ser preenchidos pelos candidatos. Inicialmente, cumpre que tais requisitos sejam estabelecidos por lei, em sentido formal, ou seja, a lei enquanto ato normativo votado pelo Poder Legislativo e sancionado pelo Chefe do Executivo. Nenhum outro ato, ainda que próprio da administração, como editais, resoluções ou portarias, poderá fixar tais exigências para provimento de cargo público. A lei será federal, estadual, municipal ou distrital, conforme o cargo pertença aos quadros de uma dessas entidades políticas. Há de ser lembrado, ainda, princípio constitucional segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II).
É essencial, entretanto, que a lei que estabeleça requisitos respeite e observe os princípios e interesses protegidos pela Constituição. Como exposto, os princípios, que são a base de todo o sistema normativo, estão em posição hierárquica superior às leis. O estabelecimento de requisitos para preenchimento de cargos, empregos ou funções
16 AMARAL apud CAMAROSSANO, p. 25, nota 15.
públicas gera muitos conflitos, principalmente quando parecem transgredir ou quando efetivamente desobservam o princípio da igualdade.
- Aplicação do princípio isonômico nos concursos públicos
Os princípios do concurso público e da acessibilidade estão normatizados no Texto Constitucional para permitir a todos igualdade de condições para concorrer a cargos, empregos ou funções na administração pública direta e indireta. A Constituição da República, além de prestigiar esses princípios, assegura outros, de importância fundamental.
Conforme o disposto no art. 7º, XXX, é expressamente vedado estabelecer discrimi- nações por motivos de sexo ou idade para fins
de admissão em emprego, estendendo-se a exigência para provimento de cargos, empregos e funções públicas, ex vi do art. 39, § 2º.
Também o art. 5º, segundo o qual “todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza”, firma outro princípio basilar – o da
isonomia.
Em outra passagem, afirmamos que o princípio isonômico deve assegurar tratamento justo. Em algumas hipóteses, serão legítimas restrições ou limitações desde que não violem o princípio da isonomia, melhor dizendo, desde que sejam justificáveis. A isto, retomemos os três requisitos necessários: análise do elemento usado para desigualar; conexão lógica que justifique o tratamento diferen- ciado; existência de afinidades com o sistema normativo vigente.
Entre os estudiosos que já trataram do tema, repousa unânime a idéia de que a Constituição pretendeu vedar as discriminações injustificadas, que favoreçam uns em desfavor de outros. Nesse passo, admitem a exigência de qualidades específicas para preenchimento de cargo, emprego ou função, sem as quais ficaria prejudicado seu perfeito exercício. Então, conforme o caso, poderá a lei estabelecer como requisito de provimento condições relativas a idade ou sexo, por exemplo.
Tais exigências são relativas ao provimento
– por isso, próprias do cargo, dadas as atribuições da função a ser exercida. Outras poderão existir para fins de investidura – ou seja, relativas à pessoa –, como boa saúde, quitação com o serviço militar e eleitoral, etc.
Para Themístocles Cavalcanti17,
“nada justifica, no momento presente, distinções baseadas na diferença de sexo, na determinação dos direitos de acesso às funções públicas (…); exceções devem, entretanto, ser abertas a essa regra, não somente atendendo a peculiaridade do serviço que, pela sua natureza, só pode ser exercido por pessoas de um dos sexos (especialmente cargos de natureza militar), mas ainda tendo-se em consideração a incompatibilidade decorrente da organi- zação da família”.
Di Pietro18 também afirma que
“embora o objetivo do constituinte tenha sido o de proibir o limite de idade, a proibição não pode ser interpretada de modo absoluto; primeiro, porque o artigo 37, I, deixa para a lei ordinária a fixação dos requisitos de acesso aos cargos, empregos e funções; segundo, porque, para determinados tipos de cargos, seria inconcebível a inexistência de uma limitação, quer em relação a sexo, quer em relação a idade”.
Quanto ao requisito de idade no concurso público, Bandeira de Mello19 leciona:
“Observou-se que tal requisito como regra não pode ser exigido. Isto porque haverá hipóteses nas quais o fator idade pode resultar uma específica incompati- bilidade com algum determinado cargo ou emprego, cujo satisfatório desempenho demande grande esforço físico ou acarrete esforço excessivo, inadequados ou impos- síveis a partir de certa fase da vida. Não se tratará, pois, de uma pretendida limitação indiscriminada e inespecífica – inadmitida pelo Texto Constitucional – mas, pelo contrário, da inadaptação física, para o satisfatório desempenho de certas funções como conseqüência natural da idade.
Tais hipóteses serão raras e excepcionais, mas não são de se excluir.”
Sobre o requisito sexo, Bandeira de Mello tece as mesmas considerações, ou seja, justifica-se desde que para o fiel desempenho da função pública.
17 CAVALCANTI apud DALLARI, p. 33, nota
14.
18 DI PIETRO, op.cit., p. 316-317, nota 1.
19 MELLO, op. cit. p. 51, nota 13.
Dallari20 diz que
“a Constituição veda restrições estabele- cidas por mera discriminação, por puro preconceito. A enumeração de alguns fatores de discriminação no texto do dispositivo não significa que outros sejam tolerados. A relação é meramente exemplificativa, pois dela não consta a distinção por motivo de raça (implicita-
mente contida no inciso XLII, do art. 5º) (…)
Assim sendo, tanto o estabelecimento de condições referentes à altura, à idade, bem como ao sexo, poderão ser lícitos ou não, caso respeitem ou violem o princípio da isonomia, isto é, caso sejam ou não pertinentes, o que se verificará em cada caso concreto. Condição pertinente será somente aquela ditada pela natureza da função a ser exercida, ou seja, circunstância, fator ou requisito indispensável para que a função possa ser bem exercida, o que não se confunde com a mera conveniência da administração, nem com preferências pessoais de quem quer que seja.”
Vê-se, com isso, que aos princípios também se admitem restrições, sob pena de tornarem-se injustos ou inaplicáveis. A intelecção inflexível dos dispositivos pode vir em direção contrária ao interesse público que se pretende proteger. Ao promover o concurso público, a administração deve atender esses interesses e buscar a seleção dos melhores candidatos para o serviço público.
Em síntese: é razoável que a administração pública, dadas as peculiaridades de certas funções públicas e em atenção aos requisitos de proteção ao princípio da isonomia, estabeleça condições de provimento. Na inexistência dessas razões justificadoras, incumbe ao Poder Judiciário o exame da legalidade e da
moralidade dos atos praticados, consoante o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que proíbe a lei de excluir deste Poder a apreciação de lesão ou ameaça a direito.
- Conclusões
- Os princípios são os pilares de todas as ciências, os responsáveis pela coerência e lógica das idéias No direito, os princípios exercem as funções de conhecimento
20 DALLARI, op. cit. p. 32, nota 14.
e de formação do sistema normativo. Assim como as regras, os princípios também participam do ordenamento jurídico, mas estão hierarquicamente superiores a elas, por serem fundamento da ordem jurídica. O desatendimento aos princípios é das mais graves ilegalidades.
- Os princípios são dotados de valor normativo e estão, em sua maior parte, inseridos no Texto Podem, entretanto, ser extraídos de outras normas. O conteúdo dos princípios jurídicos pode ser organizacional, programático ou de proteção e defesa de direitos e interesses.
- A igualdade perante a lei é dirigida àqueles que a aplicam e significa que deve ser executada conforme ela é, ou seja, não cabe ao aplicador da lei estabelecer outras discriminações que não as nela mesma
- Quando a lei finca diferenças, três questões devem coexistir para que se aceitem essas desequiparações: o elemento desigualador; a correspondência lógica e racional entre a
diferença existente e o tratamento diferenciado que lhe é proporcionado; e, por derradeiro, a necessária afinidade com o sistema norma- tivo vigente. A inobservância de qualquer dos três elementos é causa de violação do preceito.
- Concurso é um processo de seleção que permite a concorrência entre os candidatos interessados; sua finalidade é selecionar os melhores candidatos para provimento dos cargos, empregos ou funções públicas, após comprovado merecimento, e de acordo com os requisitos exigidos em
- Provimento é o preenchimento de cargo público Difere-se da investidura, que está relacionada com a pessoa que irá ocupá-lo.
- Havendo requisitos para provimento, de- vem os mesmos estar previstos na lei (em sen- tido formal) e consoantes com os interesses pro- tegidos constitucionalmente. No que toca ao princípio da isonomia, as exigências devem acatar os três requisitos de validade das desequiparações