LIVRO DE GEOGRAFIA = PDF DOWNLOAD
COLEÇÃO TEMAS DE FORMAÇÃO
Geografia
Raul Borges Guimarães Antonio Cezar Leal Klaus Schlünzen Junior
Elisa Tomoe Moriya Schlünzen (Organizadores)
Acessibilidade: Vídeos com libras e legendas
Geografia
COLEÇÃO TEMAS DE FORMAÇÃO
VOLUME 2
Geografia
COLEÇÃO TEMAS DE FORMAÇÃO
VOLUME 2
COORDENADORES
Raul Borges Guimarães
Antonio Cezar Leal Klaus Schlünzen Junior
Elisa Tomoe Moriya Schlünzen
AUTORES
Eliseu Savério Sposito
Antonio Elisio Garcia Sobreira
Arthur Magon Whitacker
Paulo César Rocha
José Tadeu Garcia Tommaselli
Salvador Carpi Junior
Rosangela Ap. de Medeiros Hespanhol
Antonio Nivaldo Hespanhol
Luciano Antonio Furini Alexandre Bergamin Vieira
Regina Celia Correa de Araujo
Raul Borges Guimarães
Eduardo Augusto Ribeiro Werneck
José Tadeu Garcia Tommaselli
© BY UNESP – UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
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Geografia [recurso eletrônico] / Raul Borges Guimarães, Antonio Cezar Leal,
G345
Klaus Schlünzen Junior [e] Elisa Tomoe Moriya Schlünzen (Coordenadores). – São Paulo : Cultura Acadêmica : Universidade Estadual Paulista : Núcleo de Ensino à Distância, [2013]. – (Coleção Temas de Formação; v. 2)
Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web
Acesso em: www.acervodigital.unesp.br
Textos provenientes do Programa Rede São Paulo de Formação Docente (Redefor)
Resumo: Trata de aperfeiçoamento da formação em Geografia de docentes da rede pública estadual de ensino para ministrarem a disciplina no Ensino Fundamental II e Ensino Médio.
Acessibilidade: Libras e Legendas ISBN
1 Geografia – Estudo e Ensino. Professores – Educação Continuada. I. Guimarães, Raul Borges. II. Cezar Leal, Antonio, III. Schlünzen Junior, Klaus. IV. Schlünzen, Elisa Tomoe Moriya. V. Universidade Estadual Paulista. Núcleo de Educação a Distância da Unesp.
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Vera Reis
Aline Gama Gomes
Rebeca Naves dos Reis
Roseli Aparecida da Silva Bortoloto
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Apresentação
s materiais didáticos reunidos neste livro referem-se aos conteúdos das disciplinas dos cursos de espe- cialização a distância oferecidos pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) a educadores do Ensino Fundamental II e Médio da rede estadual de São Paulo, no âmbito do Programa Rede São Paulo de Formação Docente (Redefor).
Elaborado sob a responsabilidade de docentes douto- res da Unesp, com a devida consideração do projeto peda- gógico da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seesp) e fecunda colaboração da equipe pedagógica da Es- cola de Formação de Professores “Paulo Renato Costa Souza”, o conjunto destes materiais didáticos evidenciou-se suficien- temente amplo, rico, e capaz de fomentar a construção e a implementação de projetos pedagógicos próprios e diferen- ciados em escolas da rede pública.
Agora, o ciclo se completa: disciplinas aprimoradas em avaliação formativa nas duas edições concluídas do curso têm seus conteúdos estruturados no formato e-book, para
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consulta e download gratuito, com recursos de acessibilidade como libras e audiodescrição.
Com esta última iniciativa, a Unesp demonstra uma vez mais seu compromisso de sempre: democratizar o aces- so aos produtos intelectuais gerados em suas atividades, em prol da educação no Brasil.
Às equipes da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, do Nú- cleo de Educação a Distância, da Fundação para o Desen- volvimento da Unesp e da Fundação para o Vestibular da Unesp, bem como aos docentes unespianos engajados no Programa Redefor, o meu reconhecimento pelo competente trabalho. Não posso deixar de destacar, também, outros fun- damentais atores que contribuíram para transformar a ideia do curso em realidade: os orientadores pedagógicos e espe- cialistas em EaD especialmente contratados.
Colocamos este e-book à disposição da comunidade, no cumprimento de nossa missão institucional de gerar, di- fundir e fomentar o conhecimento, contribuindo para a su- peração de desigualdades e para o exercício pleno da cida- dania.
Marilza Vieira Cunha Rudge
Vice-Reitora
Coordenadora Geral dos Cursos – Redefor-Unesp
Sumário
Apresentação
6
Prefácio 11
Parte 1 – Caminhos do Pensamento Geográfico
1. O legado da Geografia
16
2. A formação do conhecimento geográfico
na Antiguidade e na Idade Média
21
3. A gênese da Geografia e da Ciência Moderna 28
4. Institucionalização da Geografia 32
5. A institucionalização da Geografia no Brasil 52
Referências bibliográficas 64
Parte 2 – Cartografia e ensino de Geografia 67
6. Introdução à Cartografia 68
7. Características básicas dos mapas e
comunicação cartográfica
80
8. Linguagem cartográfica e propriedades de
percepção
92
Referências bibliográficas 110
Parte 3 – Ciclos da natureza e dinâmica da paisagem
Apresentação
113
9. Noções preliminares de geodinâmica 115
10. O ciclo das rochas 131
11. O ciclo do carbono 139
12. O ciclo da água 151
13. Escalas de tempo natural e social e
as paisagens associadas
163
14. Paisagens humanas: da escala do lugar à escala planetária
194
Referências bibliográficas 219
Parte 4 – Fluxos e redes no campo e na cidade
Apresentação
229
Introdução 230
15. A propriedade da terra rural e urbana, trabalho e
renda fundiária 232
16. A formação das cadeias agroindustriais e os
circuitos econômicos globais
244
17. Fluxos de mercadorias, redes de circulação e
logística
259
18. Mobilidade populacional campo–cidade e
transformações recentes da rede urbana
271
Referências bibliográficas 292
Parte 5 – Geografia do Brasil: formação
territorial e padrões espaciais
19. A América Portuguesa e o Brasil
299
20. O Império e a construção da unidade 308
21. A República Federativa do Brasil: fronteiras e limites
317
22. Região e regionalização 324
23. A natureza na formação territorial do Brasil 333
Referências bibliográficas 342
Parte 6 – Geografia Regional: América Latina e África
24. As invenções da América 346
25. A formação dos Estados americanos 354
26. África: colonização e descolonização 364
27. As fronteiras da África 371
28. América e África no mundo globalizado 379
Referências bibliográficas 388
Parte 7 – Ordem geopolítica mundial:
atores e escalas de ação
29. Estado, Estado territorial e Estado Nacional
392
30. Relações estratégicas internacionais e a
estruturação da ordem mundial
407
31. A (des)ordem mundial 416
32. Novos atores e escalas de ação 429
33. A crise do mundo árabe 441
Referências bibliográficas 450
Parte 8 – Gestão do território: energia e meio am-
biente
34. As questões da gestão territorial e o Protocolo de Kyoto
455
35. Energias alternativas e desenvolvimento
sustentável
466
36. Os biocombustíveis – um à parte 485
37. Impactos sociais e econômicos dos
agrocombustíveis
496
38. Impactos ambientais dos agrocombustíveis e a segurança alimentar
501
39. Uma visão crítica sobre a questão ambiental 509
Referências bibliográficas 518
Créditos das imagens 526
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Prefácio
s textos didáticos reunidos neste volume são pra- ticamente os mesmos utilizados nas disciplinas do Curso de Especialização em Geografia “A sala de aula
no mundo”, ministrado nos anos de 2010 a 2012 no Programa Rede São Paulo de Formação Docente (Redefor). Foram feitos pequenos ajustes necessários para a adequação do material ao formato de um livro. Assim, o leitor terá a oportunidade de conhecer de que maneira os conteúdos disciplinares foram integrados, articulando temas clássicos da Geografia com novas questões fundamentais para a compreensão e ensino da realidade contemporânea, tendo como fio condutor os conceitos e categorias centrais da disciplina: espaço geográfico, paisagem, território, região e lugar.
De acordo com o geógrafo Milton Santos,
a ordem global busca impor, a todos os lugares, uma única racionalidade. E os lugares respondem ao mundo segundo os diversos modos de sua própria racionalidade […] A ordem global funda as escalas superiores ou externas à escala do cotidiano. Seus parâmetros são a razão técnica e operacio-
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nal, o cálculo da função, a linguagem matemática. A ordem local funda a escala do cotidiano, e seus parâmetros são a copresença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a coope- ração e a socialização com base na contiguidade [..] Cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente.1
Esta racionalidade atinge desigualmente os territórios
nacionais, regiões e lugares.
Por meio das aulas de Geografia, os alunos da escola básica podem ser desafiados a compreender essa realidade, comparando diferentes contextos geográficos e situações vi- vidas por eles mesmos. Tendo essa preocupação em mente, as partes do livro discutem diferentes aspectos que devem ser considerados pelo professor que pretende valorizar o es- paço da sala de aula para favorecer a leitura geográfica do mundo em transformação.
A parte 1 discute aspectos centrais do pensamento ge- ográfico, que embasam a relação entre as teorias e métodos da disciplina. Neste caso, os conteúdos foram articulados à reflexão da produção do conhecimento no contexto escolar.
Na parte 2, o foco é a importância da cartografia temá- tica para o processo de ensino-aprendizagem da Geografia. Os autores analisam os principais elementos da linguagem cartográfica e apontam caminhos para aplicação de ferra- mentas da cartografia na Educação Básica.
A integração de conhecimentos classicamente dividi- dos nas subáreas da Geografia e disciplinas afins foi a preo- cupação central das partes 3 e 4. No primeiro caso, por meio do estudo de diferentes ciclos da natureza (água, carbono, nitrogênio) foram integrados conhecimentos dos campos
1 Milton Santos. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e
emoção. São Paulo: Edusp, 2002, p.272-273.
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da Geologia, da Climatologia, da Hidrologia, dentre outros. O mesmo pode ser verificado na parte 4, quando os conteúdos de Geografia Urbana e Agrária foram abordados por meio da análise de circuitos e cadeias produtivas.
Além desse tipo de articulação, o leitor também en- contrará neste volume alguns conteúdos que estão sendo mais valorizados no currículo da rede pública do Estado de São Paulo, como a Geografia da África e da América Latina (estudos regionais, partes 5 e 6), a Geografia Política (parte 7), a questão ambiental e das alternativas energéticas (parte 8).
O ponto de partida das partes reunidas neste volume foi a convicção da equipe envolvida na contribuição da Geo- grafia para o processo de formação de cidadãos, produtores de seus próprios textos e leitores críticos. Acreditamos que, dependendo do trabalho que se faça com os conteúdos, pode-se transformar o temário da Geografia em um campo fértil para a reflexão docente e a sala de aula em um profí- cuo espaço de estudo e construção de conhecimentos. Afi- nal, a fragmentação e segregação social têm reduzido cada vez mais os espaços de socialização e de vida comunitária. A rua ou a praça há muito tempo deixaram de ser o lugar do encontro e da vivência social, embora recentemente redes- cobertas como espaço de manifestações públicas. A escola, portanto, deve manter e aprofundar seu papel de múltiplos aprendizados no qual se desenvolvem habilidades, compe- tências e valores necessários ao exercício da cidadania e ao aprimoramento da autoestima, da autoconfiança e da auto- nomia.
Tendo em vista esses novos desafios da escola brasi- leira, a Geografia pode se transformar numa disciplina cen- tral do currículo, desde que o professor trabalhe com vários temas inovadores e diretamente relacionados com os inte- resses dos jovens (ambiente, política, cultura). A Geografia
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também oferece o aprendizado de conceitos básicos para a leitura do mundo, assim como permite o contato com diver- sas linguagens e estabelece múltiplos canais de compreen- são por meio da interligação dos diversos saberes. O leitor irá encontrar essa perspectiva neste volume, uma vez que os capítulos integram diferentes tipos de textos, dados estatís- ticos e informações técnicas extraídas de mapas. Boa leitura!
Raul Borges Guimarães
Parte I
Caminhos do Pensamento Geográfico
ElisEu savério sposito
Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (1990) e professor titular da Unesp. Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em Geografia Urbana e Econômica, atuando principalmente nos seguintes temas: pensamento geográfico, industrialização,
território, dinâmica econômica e mundialização.
antonio Elisio Garcia sobrEira
Graduado em Geografia pela Universidade Federal da Paraíba (2001), mestre pela
Universidade Federal de Pernambuco (2003) e doutor pela Unesp de Presidente Prudente.
Tem experiência na área de Geografia, atuando principalmente nos seguintes temas:
pensamento geográfico, anarquismo, formação de professores, ensino e cidadania,
agrotóxicos e meio ambiente.
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Capítulo 1
O legado da Geografia
Introdução
ara começo de conversa, precisamos deixar claro o que estamos falando. O que é a Geografia? Para Nelson Werneck Sodré (1987), ela foi por muito tempo conhecida por seu caráter descritivo por causa de sua herança de
levantamento de dados e de se basear na observação. O horizonte geográfico, ampliando-se com as grandes navegações, foi responsável pela incorporação de elementos importantes para a Geografia. Desde as navegações dos gregos e romanos, ainda confinados ao Mediterrâneo e a algumas incursões por terra para a Ásia e o norte da África, e posteriormente com as investidas dos portugueses e espanhóis para o Atlântico, muitos geógrafos, como Alexander von Humboldt, puderam realizar viagens de observação e registro de fatos, descobrimentos e registros de espécies para consolidar o conhecimento dos lugares. Para Nelson Werneck Sodré (1987), o inventário de fatos e informações é importante para a ciência, mas não constitui a ciência em si. Assim, depois de observar os céus na Antiguidade e de catalogar espécies botânicas olhando para o solo, os geógrafos arrolaram informações para consolidar o conhecimento geográfico. Essas matérias-primas foram importantes para que os geógrafos pudessem passar das descrições à sistematização dos conhecimentos, definição
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do seu campo de atuação, escolha das técnicas e formulação de metodologias, embasados no método científico.
No entanto, a Geografia não conseguiu superar suas ambiguidades. Ela é dividida em inúmeras disciplinas que estão agrupadas em duas grandes ver- tentes, que se contradizem e se complementam: a Geografia Física, que está ligada às ciências da natureza, e a Geografia Humana, ligada às ciências do ho- mem. No passado, os conhecimentos da Geografia Física difundiram-se ampla- mente durante a expansão colonialista; enquanto que os da Geografia Humana expandiram-se com o imperialismo capitalista e sua consolidação nos séculos XIX e XX.
A Geografia praticada nas escolas é resultado do acúmulo de conheci- mentos. Você pode analisar os principais conceitos da Geografia contempo- rânea ao consultar os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), elaborados pelo Ministério da Educação (MEC). O PCNEM contém orientações curriculares para que profissionais que trabalham com o ensino da Geografia tenham condições de observar, comparar e definir seus temas e suas estratégias voltadas à prática docente. Segundo o PCNEM, é
necessário abandonar a visão apoiada simplesmente na descrição e memori- zação da “Terra e o Homem”, com informações sobrepostas do relevo, clima, população e agricultura, por exemplo. Por outro lado, é preciso superar um modelo doutrinário de “denúncia”, na perspectiva de uma sociedade pronta, em que todos os problemas já estivessem resolvidos. (Brasil, 1998, p.30)
Nesse documento, define-se o objeto de estudo da Geografia como sen-
do o espaço geográfico, definido como
o conjunto indissociável de sistemas de objetos (redes técnicas, prédios, ruas) e de sistemas de ações (organização do trabalho, produção, circulação, consumo de mercadorias, relações familiares e cotidianas), que procura revelar as práti-
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cas sociais dos diferentes grupos que nele produzem, lutam, sonham, vivem e fazem a vida caminhar. Nunca o espaço do homem foi tão importante para o desenvolvimento da história. Por isso, a Geografia é a ciência do presente, ou seja, é inspirada na realidade contemporânea. O objetivo principal destes conheci- mentos é contribuir para o entendimento do mundo atual, da apropriação dos lugares realizada pelos homens, pois é através da organização do espaço que eles dão sentido aos arranjos econômicos e aos valores sociais e culturais cons- truídos historicamente. (Brasil, 1998, p.30)
Continuando a olhar o mesmo documento, observamos que ele traz, como sugestão, os principais conceitos-chave da Geografia. Sem ordem hierár- quica, enuncia-se como o primeiro dos conceitos:
paisagem, entendida como uma unidade visível do arranjo espacial que a nossa visão alcança. A paisagem tem um caráter social, pois ela é formada de movi- mentos impostos pelo homem através do seu trabalho, cultura, emoção. A pai- sagem é percebida pelos sentidos e nos chega de maneira informal ou formal, ou seja, pelo senso comum ou de modo seletivo e organizado. Ela é produto da percepção e de um processo seletivo de apreensão, mas necessita passar a conhecimento espacial organizado, para se tornar verdadeiro dado geográfi- co. A partir dela, podemos perceber a maior ou menor complexidade da vida social. Quando a compreendemos desta forma, já estamos trabalhando com a essência do fenômeno geográfico. (Brasil, 1998, p.32)
O segundo conceito é o de lugar:
é a porção do espaço apropriável para a vida, que é vivido, reconhecido e cria identidade. Ele possui densidade técnica, comunicacional, informacional e nor- mativa. Guarda em si o movimento da vida, enquanto dimensão do tempo pas- sado e presente. É nele que se dá a cidadania, o quadro das mediações se torna
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claro e a relação sujeito-objeto direta. É no lugar que ocorrem as relações de consenso e conflito, dominação e resistência. É a base da reprodução da vida, da tríade cidadão-identidade-lugar, da reflexão sobre o cotidiano, onde o banal e o familiar revelam as transformações do mundo e servem de referência para identificá-las e explicá-las. (Brasil, 1998, p.33)
Por sua vez,
os conceitos de território e territorialidade enquanto espaço definido e delimi- tado por e a partir das relações de poder, ou seja, quem domina ou influencia e como domina e influencia uma área. Implica avançar da noção simplista de caracterização natural ou econômica por contiguidade para a noção de divisão social. Todo território, seja ele um quarteirão na cidade de Nova York, seja uma aldeia indígena na Amazônia, é definido e delimitado segundo as relações de poder, domínio e apropriação que nele se instalam. Desta maneira, a territoria- lidade é a relação entre os agentes sociais, políticos e econômicos, interferindo na gestão do espaço geográfico; não é apenas uma expressão cartográfica. Ela refere-se aos projetos e práticas desses agentes, numa dimensão concreta, fun- cional, simbólica, afetiva, e manifesta-se em escala desde as mais simples às mais complexas. (Brasil, 1998, p.33)
O PCNEM traz, também, um conjunto de conceitos que se articula em
diferentes escalas: globalização, técnica e redes. Nesse documento,
a globalização é um fenômeno decorrente da implementação de novas tecnologias de comunicação e informação, isto é, de novas redes técnicas, que permitem a circulação de ideias, mensagens, pessoas e mercadorias num ritmo acelerado, e que acabaram por criar a interconexão entre os lugares em tempo simultâneo. Neste processo, tiveram papel destacado a instalação de redes técnicas, incluindo-se a indústria cultural, a ação de empresas multinacionais e a circulação do capital, que intensificaram as relações sociais em escala mundial, interligando localidades distantes, de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorridos a milhares de quilômetros de distância. No que se refere à técnica, devemos ressaltar ainda a importância da compreensão
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do papel das inovações tecnológicas na esfera da produção de bens e serviços, engendrando novas formas de organização social no trabalho e no consumo, criando novos arranjos espaciais. Outra face da revolução tecnológica são as novas formas de apropriação da natureza, tais como as expressas na biotecnologia, em que a detenção do conhecimento e do domínio técnico são também um instrumento de poder que afeta os grupos sociais e exige modificações na organização espacial existente (Brasil, 1998, p.33-34).
Todos os conceitos apontados devem ser articulados segundo
diferentes tipos de escala: uma escala cartográfica e a outra geográfica. Na primeira, destaca-se o mapa como um dado instrumental de representação do espaço, num recurso apoiado dominantemente na Matemática. Na segun- da, a ênfase é dada ao fenômeno espacial que se discute. Esta é a escala de análise que enfrenta e procura responder os problemas referentes à distribui- ção dos fenômenos. A complexidade do fenômeno da cidadania, por exemplo, requer que se opere com diferentes escalas, articulando suas dimensões locais, nacionais e globais. Neste sentido, a cidadania não deve ser entendida ape- nas sob o aspecto formal do vínculo a uma nacionalidade, devendo apontar a dimensão vivencial de seu exercício, como um fenômeno do lugar. De forma inversa, não podemos compreender a poluição atômica só no lugar, mas deve- mos tratá-la enquanto fenômeno global. Assim sendo, a escala é uma estratégia de apreensão da realidade. Portanto, é importante compreendê-la não apenas como problema dimensional, mas também fenomenal, na medida em que ela é um instrumento conceitual prioritário para a compreensão da articulação dos fenômenos. (Brasil, 1998, p.33)
Podemos considerar que os conceitos-chave citados são, atualmente, os
elementos que constituem a espinha dorsal dos conteúdos da Geografia.
I II III IV V VI VII VIII 23
Capítulo 2
A formação do conhecimento geográfico na Antiguidade e na Idade Média
2.1. Antiguidade e Idade Média
Dando continuidade ao nosso debate, vamos fazer voltar ao passado para buscar, na medida do possível, informações, fatos e conteúdos que possam contribuir para a compreensão do conhecimento e do pensamento geográfico.
Para Nelson Werneck Sodré (1987), a Geografia talvez seja a ciência de história mais longa entre todas que conhecemos. Ela começa com as descrições das migrações e das diferenciações dos lugares, nas comunidades de tradição oral. Isso mostra que é importante que o conhecimento seja registrado e trans- mitido. Na Grécia Antiga, já com o domínio da escrita e em decorrência de sua posição geográfica privilegiada no Mediterrâneo em relação às outras partes do mundo conhecido, coube aos seus cidadãos coletar e sistematizar os conhe- cimentos de natureza geográfica. São os navegadores, militares e comerciantes, de um lado, e os matemáticos, historiadores e filósofos, de outro, que, ao longo do tempo, foram acumulando informações e conhecimentos que se tornaram importantes fontes de estudos e análises da sociedade e da natureza, interfaces importantes para a compreensão do temário geográfico.
Para se ter uma leitura da Geografia na Antiguidade, podemos selecio-
nar três pensadores que são identificados com a Geografia e com a História, e
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deixaram seus escritos contextualizados no mundo grego: Heródoto, Estrabão
e Ptolomeu.
Heródoto1 foi o primeiro a registrar, na tradição filosófica grega, o evento da invasão persa na Grécia, tendo como pressuposto que não apenas o registro dos fatos, mas também dos acontecimentos poderiam servir para compreen- der o comportamento humano. Ele sistematizou sua pesquisa e cunhou a pala- vra historie que, em grego, aproxima-se da palavra história, como conhecemos atualmente. Ao escrever sua história, ele sempre compunha a descrição dos fatos com os aspectos geográficos. Segundo Nelson W. Sodré (1976), ele pode ter sido o primeiro a expor as dependências deterministas entre o meio e o ho- mem, forma de compreender a relação sociedade-natureza antes mesmo do surgimento da Geografia de caráter científico. Os nove livros que compõem sua obra foram divididos em duas partes. O sexto livro, que finaliza a primeira parte, encerra-se com a derrota dos persas, em 490 a.C., na batalha de Maratona. Este é o fato marcante que mostra o início do retrocesso do Império Persa liderado por Ciro. Seu legado é importante para a Geografia porque se constitui meto- dologicamente, em forma de narrativa contínua, como resultado de pesquisa – pelo registro dos fatos – e de abordagem dos fatos como elementos que auxiliam na compreensão do comportamento humano.
Estrabão,2 outro geógrafo e explorador que pode contribuir nesta volta ao passado, é classificado como geógrafo, historiador e filósofo grego. É consi- derado um estoico, mas, ao mesmo tempo, um defensor do imperialismo ro- mano. Escrita na era cristã, sua Geografia, em 17 volumes, é considerada uma
1 Heródoto, geógrafo e historiador grego, nasceu em 485 a.C. em Halicarnasso (atualmente
Bodrum, na Turquia) e faleceu, possivelmente, na Ilha de Samos, em 420 a.C. Ele viajou pelas ilhas do Mar Egeu, esteve no Sul da Itália, na Mesopotâmia, no Egito (onde subiu o Nilo chegando ao Saara).
2 Estrabão nasceu na Amaseia (atual província da Amasya, na Turquia), então parte do
Império Romano (63 ou 64 a.C. a cerca de 24 d.C.). Originário de família rica, prosseguiu seus estudos em Roma, onde leu os filósofos e geógrafos que o antecederam. Fez viagens ao Egito e à Etiópia. Seu nome é um termo utilizado pelos romanos para designar aqueles que tinham os olhos deformados ou portadores de estrabismo.
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obra que contém inúmeros erros de descrição, principalmente sobre os Piri- neus, mas uma obra da Antiguidade que articula conhecimentos da Geografia, por meio das descrições dos lugares, da história, da religião, dos costumes locais e das instituições de diferentes povos. Ele registra os conhecimentos adquiri- dos pelos gregos e pelos romanos.
O terceiro geógrafo que apresentamos é Ptolomeu.3 Cientista grego, ele viveu em Alexandria, no Egito. Sua obra mais conhecida é o Almagesto, tratado que contém o conhecimento astronômico desde os tempos babilônicos até os tempos gregos. Nessa obra, ele apresenta o esquema de um sistema cosmoló- gico concêntrico, com a Terra no centro do universo, tendo-se os outros corpos celestes descrevendo a órbita ao seu redor. O Sol, os planetas e as estrelas des- creveriam epiciclos (círculos com centros em outros círculos) ao redor da Terra. Essa teoria é conhecida, comumente, como Teoria do Geocentrismo. Ptolomeu foi considerado o primeiro cientista a expor uma teoria universal do movimento dos astros, mesmo que, posteriormente, duramente criticada e invalidada pelas observações astronômicas de outros cientistas. Ele baseou sua obra em compi- lações anteriores e não fez nenhuma observação. Por outro lado, em sua obra Geographia há todo o conhecimento geográfico de gregos e romanos, em que se destaca o uso de coordenadas geográficas de latitude e longitude, mesmo que com deformações,4 nas áreas exteriores ao Império Romano.
3 Cláudio Ptolemeu (90-168 d.C) viveu em Alexandria, no Egito. Ele é conhecido por suas
obras na Geografia mas também, pelos trabalhos em outras ciências, como Matemática, Astronomia, Cartografia, Ótica e até Teoria Musical. Além de Almagesto e Geographia, escreveu Tetrabiblos, com o conhecimento de astrologia dos babilônios, gregos e egípcios, Optica, no qual mostra seus estudos sobre reflexão, refração, cor e espelhos, e Harmônica, um tratado sobre teoria matemática da música. Sua obra foi transmitida aos eruditos do Renascimento pelos árabes.
4 Toda representação da realidade transposta para desenho num plano ou mapa terá
algum tipo de deformação. Para cada mapa há uma distorção ou deformação que é corrigida parcialmente por técnicas cartográficas segundo a finalidade ou área que se deseja representar no mapa. Essas técnicas foram sendo desenvolvidas por matemáticos, astrônomos, geômetras e geógrafos ao longo da história do desenvolvimento da Matemática e da Geometria.
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Podemos resumir, baseados nesses três geógrafos – sem a pretensão de estabelecer uma relação linear direta entre eles – que o conhecimento geográ- fico na Antiguidade (que limitamos do século IV a.C. ao primeiro século da Era Cristã) tem características que vão ser importantes na constituição do pensa- mento geográfico posterior. Podemos lembrar que o conhecimento geográfico desse período baseia-se em elaboração teórica (geocentrismo), na necessidade de observação para consubstanciar a descrição dos lugares (aqui entendidos com seus costumes, instituições e crenças), nos resultados de narrativas e de pesquisas sistemáticas para o registro dos fatos. As palavras destacadas ainda hoje são fundamentais para a elaboração do conhecimento geográfico.
Dando um salto para a Geografia dos árabes, tomemos como exemplo
Ibn Khaldun.5
Início da descrição:
Fotografia colorida de homem de meia idade, com cabelo e barba, brancos. Usa óculos e traja calça e camiseta azuis. Está em pé, encostado em uma cerca de ferro decorada, que restringe o acesso a uma escultura, que está ao fundo. A escultura, está sobre um pedestal de mármore branco, é feita em bronze, e
representa o geógrafo Ibn Khaldun, em pé, segurando um livro na altura do peito, com a mão direita. Ele tem fartos cabelos e barba, e traja uma capa que vai até os pés. No pedestal, observam-se algumas inscrições em árabe.
Fim da descrição.
Monumento a IBN KHALDUN em Túnis, Tunísia. Créditos: Eliseu S. Sposito
5 Ibn Khaldun nasceu em Tunis (atual capital da Tunísia), em 1332.
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Como todos os geógrafos do mundo europeu, ele foi um viajante que conheceu inúmeros e distantes lugares em sua época. Na África, percorreu o Saara, indo do Egito a Tombuctu; na Ásia, foi à China, passando pela Índia e a Palestina; na Europa, foi até o sul da Rússia.
2.2. As grandes navegações
As grandes navegações (ou os grandes descobrimentos) foram funda- mentais para o alargamento do horizonte geográfico a partir da Europa. Para superar as dificuldades na busca de novas terras, os navegadores tiveram que aprimorar seus instrumentos de observação da natureza, e alguns deles servi- ram, portanto, como potencializadores da capacidade de observação e de re- gistro do que os homens conseguiam ver e conhecer. A combinação dos usos de instrumentos, resultado das invenções do ser humano, foi fundamental para que as navegações ocorressem muito além das proximidades dos continentes já conhecidos. Depois de ultrapassar o Cabo Bojador, no Marrocos, os portu- gueses foram além, acompanhando a costa oeste da África, até chegarem ao Oceano Índico depois de ultrapassarem o Cabo da Boa Esperança.
Cabo da Boa Esperança, África do Sul. Foto: Eliseu S. Sposito
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Daí, chegar à Índia, acertar o rumo para a América, ir além do Estreito de Magalhães, foi resultado de um passo arrojado e corajoso que os navegadores portugueses, depois os espanhóis, desafiando as condições naturais e adversas de correntes marítimas e de ventos, puderam alcançar, chegando assim a terras antes desconhecidas por eles.
Para que isso ocorresse, no entanto, foi necessário o desenvolvimento de outros conhecimentos. A elaboração de mapas com o domínio da linguagem matemática e das projeções cartográficas foi necessária para que as rotas fos- sem, ao longo do tempo, definidas com mais precisão.
Um novo desafio se colocava: a Terra, de formato esférico, precisava ser representada em um plano constituído pela folha que se colocava sobre a mesa dos cartógrafos. As medidas de latitude e longitude precisavam ser res- peitadas e, para isso, a precisão matemática se tornava cada vez mais necessária. A linguagem da ciência, no Renascimento, consolidava-se como sendo a ma- temática. Por meio de pontos, retas e ângulos, seria possível localizar qualquer ponto, pessoa, lugar etc. num sistema tridimensional de coordenadas. Cabia, com as mudanças paradigmáticas do Renascimento, compreender como o mundo funcionava, muito mais do que compreender por que ele foi criado. O ser humano emerge como centro do universo e sua posição geográfica nesse universo, mesmo tendo como referência a Terra, era importante para se ampliar os horizontes da ciência.
Para que isso ocorresse, os europeus foram responsáveis pela conquista de novas terras, associando-se ou dizimando outras populações que já aí viviam. Sua capacidade de conquista foi potencializada por alguns elementos: a cara- vela, mais leve e ágil e que podia ultrapassar cabos com ventos contrários, por causa das suas velas; a pólvora, elemento básico para a demonstração de pode- rio bélico, que possibilitou o avanço dos conquistadores sem se arriscarem no corpo a corpo das batalhas; e a bússola, instrumento que permitiu a orientação dia e noite nos deslocamentos pelos mares e pelas terras. A esses elementos, acrescenta-se a imprensa, invenção que permitiu o registro dos conhecimentos e sua divulgação em diferentes línguas para todos aqueles que pudessem deci- frar os códigos das letras e sílabas, e das representações cartográficas.
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Atitudes como a observação, a anotação, o uso de instrumentos, a descrição e a explicação foram incorporados pela Geografia e, ainda hoje, são importantes para a abordagem do temário geográfico. Para completar esse quadro, é importante lembrar o papel do método científico, que serviu para que os cientistas se orientassem, registrassem e transformassem a observação dos fatos em elementos científicos. O método científico, como foi organizado no Renascimento, continha alguns princípios que, quando seguidos, davam o estatuto de ciência ao que era enunciado. Observar sempre, experimentar, utilizar a linguagem matemática, decompor o fato estudado, não deixar de lado nenhum aspecto do fato para que ele tivesse todas as suas possibilidades esgotadas, eram os princípios que deviam ser seguidos por todos aqueles que tinham, como objetivo, fazer ciência.
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Capítulo 3
A gênese da Geografia e da Ciência Moderna
3.1. Ciência e sociedade
Os seres humanos compreendem o mundo de acordo com sua formação intelectual e sua capacidade de dominar o conhecimento. Neste processo, a história humana desenvolveu diferentes tipos de conhecimento. São eles: senso comum, religioso, científico e filosófico.
O senso comum é o nível básico de conhecimento que pode ser elabora- do ou incorporado por qualquer pessoa, independentemente de sua condição de letrado ou não. Ele é formado pelo domínio de informações corriqueiras, tácitas e que são elaboradas de acordo com o nível de desenvolvimento cogni- tivo da pessoa e como fruto da relação que ela estabelece com seu grupo so- cial. Assim, andar de bicicleta, nadar, elaborar uma roupa, praticar uma profissão com a agilidade de manusear uma máquina etc., são formas de conhecimento que todos podem dominar. O senso comum tem íntima relação com o sentido prático da vida; ele é o resultado extraído do erro e acerto que é generalizado para a orientação da relação social e das pessoas com a natureza.
O conhecimento religioso, por sua vez, depende da fé da pessoa e não é desenvolvido por nenhuma habilidade específica. Não se exige competência para atingir esse nível de conhecimento, mas a crença em algo abstrato, sub- sumido na explicação pelo outro que é, muitas vezes, situado fora da realidade objetiva. O conhecimento religioso é habitado por entes e criaturas resultantes
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de sua capacidade de abstração e de explicação para fatos que dependem apenas da fé e não da experimentação ou da normatização do conhecimento. É comum que o conhecimento religioso se aproprie do senso comum e dele crie condutas morais importantes para a civilização em determinadas circuns- tâncias da história. Em alguns casos, é difícil separar o senso comum do conhe- cimento religioso, porque um se utiliza do outro diante dos impasses morais e de limitações técnicas da sociedade.
O conhecimento científico é considerado aquele decorrente dos prin- cípios de organização, registro, repetição e normatização da realidade, cuja principal linguagem é a matemática. René Descartes (1596-1650), por exemplo, deduziu que o mundo resume-se a pontos, retas e ângulos, estabelecendo os critérios para se localizar qualquer coisa no espaço tridimensional que se orienta por três ordenadas, podendo ser figurado em distância, altura e profundidade.
Assim, o conhecimento científico é, necessariamente, cumulativo, organi- zado, comparativo e possibilita a previsão de situações futuras que não serão, necessariamente, demonstradas. Podemos tomar como exemplo o fato de que a sucessão de tempos em um período determinado define o clima de um lugar ou área estudada, o que permite a previsão da tendência, em um tempo futuro, do que pode ocorrer. Não se trata de adivinhação, mas de imaginar o que pode acontecer a partir de modelos e ritmos elaborados com referência às medições, comparações e análises sobre dados obtidos com o auxílio de instrumentos que potencializam os sentidos humanos. A repetição de acontecimentos e a sucessão de fatos permite verificar regularidades com resultados imutáveis que inspiram leis sobre a matéria. Um conhecimento científico se baseia no fato concreto, naquilo que se apresenta do mesmo modo diante das mesmas cau- sas e do tempo de ação.
Finalmente, o conhecimento filosófico é racional e não necessariamente demonstrável, cabendo àquele que o domina avaliar os outros tipos de conhe- cimento. Ele condensa a posição do pensador que julga como e de que manei- ra a sociedade pensa e age.
Esses tipos de conhecimento foram se diferenciando a partir do Renas- cimento, período da humanidade no qual se configurou a ciência moderna. A invenção da imprensa permitiu o registro do conhecimento e sua disseminação
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em uma forma que se repete para todos que a ele tem acesso, o que também viabilizou a elaboração de diferentes interpretações para fatos e acontecimen- tos comuns.
3.2. Gênese da Geografia e da ciência moderna
Os marcos científicos da Geografia podem ser identificados por meio das obras de alguns autores6 e pelo conjunto de acontecimentos que marcou a ex- pansão do horizonte geográfico, principalmente as grandes navegações (que já foram descritas no item anterior), o aprimoramento da Cartografia e as grandes invenções.
Assim, a Geografia moderna se desenvolveu a partir da crítica dos conhe- cimentos do senso comum e do conhecimento religioso acerca do planeta Ter- ra, reunindo, desde o Renascimento,7 a descrição sistemática das características da superfície terrestre, da observação dos fenômenos naturais e humanos nas diferentes regiões do globo. Desta forma, a Geografia surgiu da necessidade de explicar o que existe, onde existe, a forma em que se apresenta e em que quan- tidade ou dimensão se apresenta esse elemento ou objeto da natureza (planta, rio, solo etc.), estabelecendo as leis gerais do cosmo. Assim como as demais ciências renascentistas, a razão de encontrar uma lei teve a função de auxiliar tecnicamente a sociedade em sua adaptação e aproveitamento dos recursos da natureza, vista como objeto de dominação das sociedades modernas.
Apesar desse desenvolvimento científico, as outras formas de conheci- mento não foram abandonadas. Assim, o senso comum incorporou o conhe- cimento geográfico, mesclando-o com o conhecimento religioso. Da mesma
6 Vários autores serão apresentados, resumidamente, no capítulo 4.
7 Renascimento: período que, na história europeia, transcorre, aproximadamente, do final
do século XIII a meados do século XVII. Tem esse nome por causa da releitura que os europeus fizeram dos principais filósofos da antiguidade clássica, reinterpretando-os dentro de ideais humanistas e naturalistas.
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forma, o conhecimento religioso admite a importância do conhecimento cien- tífico, da filosofia e apela ao senso comum. Vejamos alguns exemplos.
O conhecimento científico e filosófico busca na reflexão e na experiên- cia sistematizada e revisitada inúmeras vezes o aprofundamento de questões que não são objetivos do sentido prático do senso comum e das exigências da fé. Como exemplo mais atual, tem-se a possibilidade científica de clonar o ser humano, ainda que não estejam dominados todos os conhecimentos sobre isso. A técnica não é aceita pela Igreja para a reprodução humana, mas não é contestada para a reprodução animal. Filosoficamente, a mesma questão é vista como uma possibilidade que não traz o mesmo componente moral sobre a reprodução, mas sobre qual finalidade isso tem para a existência humana no futuro. A ciência não se ausenta do debate, mas precisa descobrir mais sobre essa possibilidade para a cura de doenças e para a superação dos limites da reprodução humana.
O resultado atual desse problema está sob um impasse se a pesquisa deve ou não continuar nesse sentido, e se seu avanço (ou não) está sob con- trole. Mesmo que a Ciência e a sociedade estabeleçam e consigam impedir a clonagem humana por lei e por diversos bloqueios disponíveis, a Filosofia não vai parar de refletir sobre o assunto. A simples possibilidade de uma doença destruir a fertilidade masculina em massa já colocaria uma questão para Igreja que obrigaria algumas delas a mudar de posição, pois o que estaria em jogo seria a existência humana. Algumas Igrejas não mudarão de posição, mas a Ci- ência irá lutar pela vida. A Filosofia continuará a provocar e a se contradizer, seja qual for o destino que prevalecer. Por sua vez, a Filosofia avançará mais que a Ciência quando esta não conseguir encontrar respostas, dando substância para o conhecimento científico encontrar novamente seu caminho.
Foi preciso distinguir essas formas de conhecimento para que você possa se colocar perante o tema que estamos estudando neste momento: o pen- samento geográfico. Para maior aprofundamento desse assunto, sugerimos a consulta da obra de Eliseu Savério Sposito (2004).
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Capítulo 4
Institucionalização da Geografia
Um início de conversa
Nosso convite aqui é para que você compreenda qual caminho a Geo- grafia percorreu, em seu desenvolvimento, e como a sociedade a compreen- deu no passado e a interpreta no presente. Como vimos nos capítulos anterio- res, a Geografia não surgiu como é conhecida hoje e os trabalhos de Heródoto, Estrabão e Ptolomeu são testemunhos desse acúmulo de conhecimentos. Da mesma forma, existiram expedições militares desde o mundo antigo, com o intuito de conhecer territórios e suas possibilidades e dificuldades de ocupação. Mas vejamos como na história8 desta ciência há um momento em que ela deixa de ser uma preocupação de pessoas isoladas com suas curiosidades sobre os fenômenos e passa a ser apropriada pelas instituições governamentais e em- presas. Vamos analisar a institucionalização da Geografia, processo pelo qual as informações, métodos e investimentos no conhecimento se tornam interesse
8 Em estudos sobre a construção da Geografia, é comum ver a palavra evolução do
pensamento geográfico. Preferimos falar de história do pensamento geográfico, que não cria confusão e elabora a geografia como um processo construtivo que tanto assume teorias antigas em suas perspectivas como trabalha com novas teorias. A ideia de evolução sugere uma superação e desgaste de uma ideia que nem sempre é o que ocorre.
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do Estado, de governos, de empresas e de associações com objetivos diversos. Esses atores institucionalizam a Geografia quando criam grupos de pesquisa, expedições e comitivas para investigar os territórios, as colônias, ou mesmo es- pionar outros países.
Assim, uma empresa pode criar suas expedições confluindo com interes- ses do Estado,9 sendo muitas vezes difícil de distinguir se buscam dominação política e/ou econômica. Por sua vez, uma associação de vários geógrafos e especialistas afins pode ser criada autonomamente por interesses científicos ou a serviço de um Estado e/ou investidores de variados interesses. Na medida em que as informações geográficas deixam de ser uma junção de informações feitas por entusiastas para se tornar conhecimento estratégico de Estados e em- presas, ela se institucionaliza dentro de um gabinete de governo, em reuniões de sociedades de pesquisa, nos debates em esferas intelectuais e na criação de universidades. Surgirão desse complexo de interesses a realização de expedi- ções científico-militares patrocinadas por alguns dessas instituições.
Foi da expansão colonial dos reinos europeus que surgiram os primeiros relatos oficiais, como aquele elaborado por Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal. Posteriormente aos relatos escritos, as principais viagens foram or- ganizadas pelos chamados naturalistas, homens que dominavam cartografia, botânica e zoologia, matemática e desenho, entre tantas outras habilidades que os fizessem comunicar aos seus financiadores as descobertas de suas investi- gações. Em outros casos, as expedições buscavam entender a extensão de um continente ou de um rio e, para isso, navegar era a forma mais fácil para se atin- gir o objetivo pretendido. Havia também as expedições que buscavam cidades ou lugares mitológicos com suas promessas de riqueza. Em todos esses casos, foram perdidas muitas vidas e pequenas fortunas dos financiadores.
9 A palavra estado pode ser grafada com letra minúscula quando se fala genericamente
de estados da federação, por exemplo, estado do Mato Grosso. Quando se fala em Estado com letra maiúscula é um nome próprio que designa a instituição que abriga governos, por exemplo, Estado Nacional ou o Estado é regido por leis. A palavra governo não recebe letra maiúscula. Essa distinção é importante para que se entenda os texto sobre o assunto.
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Geografia escolar
A institucionalização da Geografia se desenvolveu progressivamente, mas tem seu marco definitivo ao longo do século XIX , acentuadamente, na se- gunda metade e na virada para o século XX. O surgimento da Geografia escolar também faz parte do processo de institucionalização da ciência geográfica, que ocorre inicialmente nas nações industrializadas ou ricas. Posteriormente à inclu- são da Geografia nas cartilhas escolares, foram criados cursos universitários para formação de professores. Isso ocorreu inicialmente na antiga Prússia, império que se tornou pioneiro na institucionalização da Geografia escolar (Capel, 1991) e que é o exemplo mais citado na literatura, depois acompanhado pelos outros Estados Nacionais modernos.
Não se deve concluir, por essas afirmações, que a única função da Ge- ografia na escola foi de servir aos interesses expansionistas e colonialistas. En- tretanto, a estreita relação da Geografia escolar com os interesses do Estado Nacional foi fundamental para a delimitação e desenvolvimento de algumas teorias e metodologias geográficas.
A Geografia escolar na antiga Prússia iniciou a construção de identidade de pertencimento territorial ligada à cultura de suas populações. Antes disso, a Prússia era composta por ducados e pequenos territórios autônomos que não se constituíam em uma força organizada para defender um projeto nacional e consolidar uma indústria e um comércio com menor barreira entre os pe- quenos territórios. Esse exemplo será seguido mesmo por outros países que se poderia considerar Estados Nacionais modernos.
Não sendo suficiente apenas a educação básica para este fim, foi impres- cindível a construção de uma teoria nacionalista que fundasse seus pilares em um território ou espaço de identidades culturais e políticas. É nesse contexto que é elaborada a teoria do determinismo geográfico, demonstrando o papel da natureza na formação cultural de um povo. Um conceito central dessa teoria é o de “espaço vital”, que significa dizer que uma nação necessita de uma quan- tidade de espaço explorável correspondente ao seu contingente populacional.
Na prática, o conceito de espaço vital foi exacerbado para uma ação po-
lítica territorial expansionista prussiana, no caso da ocupação da Alsácia-Lorena
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em 1870 (Moraes, 1996, p.64). Há um pressuposto que procura explicar o pa- pel dos professores de Geografia: eles seriam os verdadeiros responsáveis pela vitória na anexação desse território porque os soldados do Exército prussiano haviam aprendido a interpretar mapas e estratégias militares espaciais por meio do ensino de Geografia. Essa teoria é apropriada pela elite da nascente nação alemã e explica, em parte, seus intentos expansionistas, que se estende no tempo (século XX) com as incursões nos países vizinhos durante as Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Tal tendência foi denominada determinismo pelo historiador francês Lucien Febvre .
A importância da escolarização nos feitos bélicos contra a França passou a ser considerada pelas nações como fundamental para a expansão alemã; por isso, a Geografia começou a figurar nas escolas com propósitos nacionalistas e não apenas informativos. Desde esse momento, a educação básica passou a incluir, com mais certeza, a Geografia em suas cartilhas e planos de estudos identificados com a unidade de cada Estado Nacional, fazendo parte, assim, da construção ideológica de seus povos.
No caso do possibilismo (denominação que se deu ao conhecimento geográ- fico produzido em território francês ou por influência de importantes autores france- ses), o conceito de gênero de vida criado por La Blache opôs-se ao conceito de espaço vital por estabelecer que é a cultura quem determina o uso do espaço e sua adaptação ao homem. Para La Blache, o território é repleto de possibili- dades e as técnicas podem auxiliar a superar as barreiras naturais, tornando-as favoráveis à sociedade.
Surgimento das universidades, das sociedades reais de Geografia e
do colonialismo
Para Horacio Capel (1991), o modelo universitário da Alemanha é impor- tante de ser analisado. Em primeiro lugar, pela liberdade de pensamento garan- tida ao corpo de teóricos, o que permitiu um impulso na construção de massa crítica independente nos quadros universitários, e pode ser considerado inova- dor até hoje. Essa liberdade de pesquisa e de pensamento foram instrumentos
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muito bem utilizados pela elite política desse novo Estado Nação na superação do seu atraso em relação aos outros países industrializados. Concomitantemen- te à Geografia universitária alemã, surgiram as sociedades geográficas, para via- bilizar o conhecimento espacial e territorial de diversos estados nacionais.
As sociedades geográficas foram, na maioria dos casos, criadas no século XIX, a saber: França (1821), Alemanha (1828), Inglaterra (1830), México (1833), EUA (1852), Portugal (1875), Espanha (1876), Canadá (1877), Brasil (1883).10 São conhe- cidas a investidas de outros países em territórios das Américas, da Oceania, da África entre outros com intuitos comerciais e expansionistas, colonialistas e ne- ocolonialistas.11 O papel dessas sociedades geográficas pode ser sistematizado da seguinte maneira: investigar os territórios de seus próprios países; fornecer uma base de informações para os objetivos expansionistas nacionais; criar expli- cações científicas que sustentem o papel de dominação das metrópoles sobre as colônias. As sociedades também são identificadas por suas características: es- tatuto ou organização interna próprios e que as diferenciam das outras; adoção de linguagem científica, principalmente aquela baseada nas comprovações dos
10 Confira o texto “Novos horizontes para o saber geográfico” (Cardoso, 2005).
11 O filme O homem que subiu a colina e desceu a montanha retrata como o Reino Unido
refazia suas medições no interior de seu reino através de levantamentos topográficos, estabelecendo códigos e medidas que se transformam em referências para todas as outras medidas. Neste caso, os cartógrafos do filme vão medir a altitude do monte Ffynnon Garw, limite entre o País de Gales e a Inglaterra, considerando que uma montanha, no reino, só poderia assim ser considerada se tivesse, no mínimo, mil pés de altitude. Outro filme que apresenta a mesma preocupação pode ser o épico Lawrence das Arábias, que retrata a época da independência da Arábia Saudita em relação ao Reino Unido e, mais recentemente, em O paciente inglês. Finalmente, o filme Montanhas da Lua conta a história de dois geógrafos exploradores que, em meados do século XIX, tentam descobrir as nascentes do Rio Nilo. No filme, destacam-se as formas como as caravanas são organizadas, como os geógrafos utilizam instrumentos para potencializar sua capacidade de observação, como são registrados os fatos observados e como o conhecimento é legitimado pela Sociedade Real Geográfica da Grã-Bretanha. Toda essa filmografia relata parcialmente o interesse em cartografar com maior precisão o espaço, seja para instalar vias férreas, seja para identificar riquezas e seus potencias de exploração, seja para fins de delimitação de territórios ou conhecer os terrenos para facilitar deslocamentos de forças militares.
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feitos em debates públicos; utilização de instrumentos que potencializam a ca- pacidade de observação dos geógrafos (bússola, termômetro, barômetro etc.) e legitimam as informações obtidas em campo; linguagem própria na descrição dos fenômenos estudados, inclusive com o recurso dos mapeamentos, cada vez mais precisos com o passar dos anos. Essas características são importantes para criar um ambiente de exposição e debates sobre os conhecimentos de novas áreas. Esse ambiente legitima as descobertas e dá estatuto científico aos escritos dos geógrafos. Finalmente, todo esse conjunto de aspectos positivos das associações lhes dão importância nos cenários políticos nacionais, fazendo com que os governos ou mesmo mecenas se mobilizem para financiar os pro- jetos de viagens de reconhecimento dos “novos continentes”.
A própria soberania dos países nas colônias não dependia mais apenas de uma ocupação que se fizesse pela força e pelas armas, mas pelo domínio de informações12 e de técnicas, e seu uso na ocupação ou exploração desses territórios. Associado ao interesse de dominação, as sociedades geográficas abrigaram personalidades com formações distintas para elaborar seus planos nacionais de viação, mapeamento político e topografia, além de outras infor- mações com embasamento científico que corroboraram para fortalecer a so- berania desses países, tanto internamente, como sobre as nações consideradas incapazes de realizar os próprios inventários ou explorar as suas riquezas. As so- ciedades geográficas têm como efeito formar investigadores e fornecer apoio
12 Saber é poder? Essa frase banalizada pelo senso comum ainda contém muito de
verdade para o bem e para o mal. O domínio de conhecimentos serve para controlar, embora sirva também para oprimir e destruir ideias, pessoas e obras humanas. Um dos papéis da educação é criar uma condição de que o cidadão supere a desinformação e os conhecimentos parciais ou superficiais para avançar para uma crítica qualificada. A escola não ensina ao cidadão a ser crítico ou revoltado com a injustiça, pois esse processo tem uma relação com o espírito de uma época. No entanto, a educação tenta fazer na medida do possível uma qualificação do discurso do cidadão que servirá a ele nos embates. A preocupação aqui contida é que o professor saiba de suas limitações e de suas potencialidades. Sem esse entendimento, o professor não encontrará nenhum sentido nobre em seu trabalho.
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aos seus construtos metodológicos e às suas teorias, assim como o engajamen- to destas aos interesses de seus patrocinadores.13
Tanto a identidade nacional14 como a ocupação por colonização ou ex- pansão dependem de informações consistentes sobre os territórios e espaços cobiçados. As empresas, por sua vez, também dependem de informações pre- cisas sobre a geografia de territórios para investir em estradas, portos e outras estruturas de extração de riquezas com menor investimento e maior veloci- dade de retorno. O século XIX é determinado pela mudança das técnicas para a ciência sistematizada. A Primeira Revolução Industrial ainda tem seus efeitos impressionantes, como o trabalho assalariado servir de base para o sistema capitalista ser preponderante.
O florescimento da ciência tem um papel pragmático crescente, e as universidades não ocupavam função tão relevante quanto tinham as grandes expedições patrocinadas pelas sociedades geográficas. A ciência irá progredir entre um processo de avanço capitalista em favor de suas necessidades e os desafios científicos que são impostos pelos avanços resultantes desse processo.
4.3. Os referenciais das escolas clássicas do pensamento geográfico
No final do século XIX e início do século XX, duas escolas de pensamento
geográfico poderiam ser distinguidas por suas bases e propostas teóricas: a es-
13 O filme Montanhas da lua (1990) é um registro artístico que serve para ilustrar como era o funcionamento de algumas dessas sociedades científicas. Ele adapta fatos da história real ocorrida em 1850 quando dois oficiais britânicos, capitão Richard Burton e tenente John Speke, realizaram expedições para descobrir a nascente do Nilo em nome do Império Britânico da Rainha Victória.
14 Identidade nacional se confunde com ufanismo ou um elogio exagerado,
preconceituoso, excludente, acrítico e parcial de algumas pessoas que se dizem amar um país. É fundamental que esses elogios sejam contidos pela realidade dos fatos e não por uma imagem ideal de um país. Os regimes ditatoriais colocam frases do tipo “Amem ou deixem”!, que resumem a ideia de que amar incondicionalmente um país justifica a injustiça, perseguição e assassinato de opositores à ordem vigente. No entanto, há que ter uma identidade cultural crítica que é a base do humanismo e respeito aos direitos universais.
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cola alemã e a francesa. Elas são responsáveis pelos debates mais enriquecedo- res da Geografia moderna. Os principiais nomes da escola alemã são Alexander Von Humboldt, Carl Ritter15 e Friederic Ratzel (1844-1904). Na escola francesa, Elisée Reclus e Vidal de La Blache tiveram grande influência, sendo este último o que obteve maior destaque.16 De maneira muito geral, reputa-se à escola alemã o que se chama determinismo geográfico e geografia geral. A escola francesa é citada como possibilista e utilizadora da abordagem da geografia regional.
Como vimos, o determinismo geográfico é explicado como sendo base- ado na força das características físicas para o comportamento, formação, evo- lução e progresso de uma sociedade. Por exemplo: países com litoral muito recortado favorecem as navegações, como as costas dos países banhados pelo mar Mediterrâneo. O possibilismo, por sua vez, é a tendência teórica que de- fende que um povo, dependendo do seu progresso técnico e cultural, pode conduzir mudanças e adaptar-se ao meio geográfico de forma a aproveitar-se dele e transformá-lo a seu favor. Sem reduzir a importância das condições físicas sobre a sociedade e sem exagerar na influência do aporte cultural na trans- formação do espaço natural, essas duas correntes fundam a discussão sobre a relação entre sociedade e natureza, que ainda é central na produção científica da Geografia.
A apropriação política das teorias para justificar o colonialismo foi comum entre ambas, tanto na depreciação de um povo e seu estágio de desenvolvi- mento técnico primário em relação aos colonizadores que defendiam o pos- sibilismo, quanto para justificar a dominação de um povo por estar fadado às
15 Carl Ritter (1779-1859). Geógrafo alemão que descobriu a existência dos raios ultravioletas em 1801 e é considerado, junto com Humboldt, um dos principais fundadores da Geografia moderna.
16 A influência da obra de Reclus na França foi enorme e suas obras tiveram alcance em
escolas do mundo todo. Reclus não teve um papel importante na geografia institucional por ser um anarquista e estar envolvido em questões contrárias ao Estado. La Blache teve um papel acadêmico e político sem oposição ao Estado e muito de sua obra esteve a serviço dele. A revista Hérodote publicou um número especial de comemoração dos 100 anos da morte de Reclus (1905-2005), contendo alguns textos em francês que descrevem o esforço de La Blache em apagar as fortes referências reclusianas na Geografia francesa.
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limitações impostas pelo meio em que vivem. No entanto, se fizermos uma lei- tura mais aprofundada dessas duas escolas e, principalmente, dos escritos dos teóricos citados, não será encontrada uma posição tão polarizada quanto se acredita, pois foi a apropriação política e as consequências dessa apropriação que deram uma ênfase superficial no pensamento desses pioneiros da Geogra- fia moderna.
A Geografia Geral é uma abordagem que parte do princípio que um fenômeno geográfico deve ser visto em escala mundial ou tomando-se como referências grandes superfícies. A compreensão metodológica, neste caso, baseia-se em fazer um inventário de tudo que engloba grandes superfícies e dados gerais que alimentem uma lei geral da natureza. A coleta de informações sobre flora, fauna, distribuição hídrica, tipo de relevo, distribuição populacional entre outras informações gerais do meio físico sustentam apreciações dessas grandes superfícies e de seus fenômenos. A demanda científica justificou ex- pedições investigativas por todo o mundo e tanto mais nos países colonizados. Conhecer a natureza e a sociedade desses países e continentes era determinan- te para se construir uma Geografia Geral e compreender a complexidade do mundo natural por meio dela. O tipo de trabalho derivado desses inventários era descritivo e sem ênfase na ação humana como agente transformador. É importante ressaltar que, embora procurassem paisagens e fenômenos que se repetissem para criar leis gerais, não possuíam, ainda, o que hoje se chama visão sistêmica (interação) ou a noção de natureza como fruto relacional de fenôme- nos que interagem e se retroalimentam.
A crítica ao descritivismo deve ser amenizada se levarmos em conta que os meios técnicos disponíveis e a linguagem daquele período não desfrutavam dos mecanismos que possuímos atualmente; por isso, retratar os fenômenos literariamente e detalhadamente era a forma adequada de lidar com as infor- mações coletadas. O correto é dizer que, após os progressos teóricos e tecnoló- gicos, a descrição detalhada pode ter sido uma herança de formação de alguns geógrafos que perdura em algumas produções científicas.
A geografia regional elaborada por Vidal de La Blache é considerada uma construção teórica importante e responsável pela manutenção da importância da Geografia como ciência. Capel afirma que após a morte de Humboldt e Rit-
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ter, em 1959, a Geografia tendeu ao esfacelamento em várias disciplinas e quase desapareceu, não fosse a necessidade de criar uma Geografia escolar. Do ponto de vista teórico, a Geografia Geral dava respostas para fenômenos amplos, mas esse nível de informação não produzia explicações das ações humanas em seu meio natural. La Blache conseguiu delinear que o propósito da Geografia era identificar em fragmentos do espaço uma regularidade de fenômenos naturais e sociais. A Geografia regional busca identidades em escalas médias e peque- nas. A divisão regional se fará por características naturais, pela composição téc- nica de seus habitantes na relação cultural e natural. Em algumas abordagens, é como se o geógrafo tivesse que descobrir a região por fenômenos específicos. Se ouvirmos alguém falar que existe a região Nordeste no Brasil, isso quer dizer que ela é composta por um tipo de natureza dominante, um história política e de desenvolvimento que a faz diferente da região Sul ou Centro-Oeste. O trabalho regional poderá produzir subdivisões e de uma forma geral serve para o planejamento territorial de uma região ou delimitação de uma região admi- nistrativa de interesse maior do Estado. La Blache salva a Geografia do desapa- recimento e recoloca uma função que a faz sobreviver ao desaparecimento. As metodologias mudam, ou mudam suas ênfases.
A Geografia regional depende de uma descrição, mas exige uma abor- dagem que crie a identidade regional. A comparação entre os fenômenos é importante, mas nas escalas regionais pode ser pouco expressiva para dar uma identidade natural particular. Exemplo prático disso é falar da região Nordeste como tendo uma única identidade e compará-la com a região de Provença, na França, que é menor (em superfície) que o estado de Sergipe. A caracterização regional é relativa ao país e suas pesquisas para a gestão política, administrativa e produtiva, e não à dimensão territorial.
A Geografia Geral, como foi praticada há um século, entrou em decadên- cia por não servir aos interesses do Estado Nacional moderno e, segundo vários autores, a Geografia regional lablachiana recolocou em cena a importância da Geografia e a impediu de sucumbir pela fragmentação em outras disciplinas, como Geologia, Climatologia, Biologia, entre outras.
A discussão entre Geografia nomotética ou geral (que busca leis gerais) e Geografia idiográfica ou regional (que busca identidades particulares) estará
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sempre ressaltada nos debates teóricos, metodológicos e epistemológicos, e também nos debates políticos e ideológicos. É importante enfatizar a influên- cia política e ideológica nesse debate, porque a informação científica tem uma vertente pura e objetiva pela busca do conhecimento da realidade e uma ob- jetiva e subjetiva associada aos interesses concretos dos governos, empresas e pessoas, que resultam em incompreensões e refutações por desconfiança dos interesses escondidos em alguns de trabalhos científicos.
A divisão entre Geografia Física e Humana também se faz importante en- tre essas correntes (alemã e francesa), dando a entender que a Geografia alemã seria determinista, descritiva, geral, nomotética e física, enquanto que a francesa seria possibilista sintética, regional, particular, idiográfica e humana. Não é tão simples assim e uma compreensão desse modo sobre o pensamento geográ- fico pode levar a entender que um trabalho em Geografia Humana esteja livre de descrição e das informações físicas, ou que um trabalho de Geografia Física pode eliminar a informação dos grupos e aglomerações sociais e a influência deles sobre a natureza. No entanto, esta não é uma verdade absoluta nem de- finitiva. Há diferentes possibilidades de se fazer trabalhos, em qualquer uma das vertentes, com qualidade e com abrangência suficiente para se descrever e explicar os territórios. Há trabalhos em Geografia Física de alta qualidade que não necessitam falar da sociedade e há trabalhos em Geografia humana de inestimável valor que não necessitam fazer inferência aos fenômenos físicos.
Na sequência, apresentamos um quadro que separa as relações entre as duas tendências. Esse quadro não deve ser seguido à risca nos dias atuais, já que as tendências metodológicas e teóricas se mesclam e oferecem elementos que explicam mais a realidade dos fenômenos do que na forma como estão expostos.
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Síntese comparativa, geral e parcial, dos marcos das escolas de
geografia francesa e alemã
Características
Geografia alemã
Geografia francesa
Teoria central
Espaço vital: equilíbrio entre uma popula-
ção e recursos naturais disponíveis Gênero de vida: a cultura de uma sociedade é capaz de se adequar às limitações naturais e transfor-
má-las em vantagens
Objeto da geografia Leis gerais da natureza Identificar a relação homem e
natureza
Conceituação
Ciência dos lugares, não dos homens
Ciência de síntese
Metodologia
Descritiva/inventário/causas/observação Relacional/imbricações/finalida-
de/
natureza
Caráter dos resultados
científicos Determinista
(homem produto do meio) Possibilista
(a cultura transforma o meio)
Apresentação dos resultados
Análise
Síntese
Escalas de abordagem Geral Regional
Forma do construto científico
Nomotética.
Leis gerais e normativas: regularidades de
fenômenos e suas causas
Idiográfica.
Encontrar uma identidade especí-
fica de uma parte do espaço
Primazia Fenômenos físicos Fenômenos sociais/ naturais
Propósito político expansionista Colonialista
O quadro comparativo apresentado é simplificador e contém uma distin- ção bastante superficial da sistematização da Geografia moderna. Essa tendên- cia que separa uma da outra desaparece em trabalhos elaborados no século XX e haverá muita proximidade entre o construto teórico dessas duas correntes que estão apresentados com muita generalidade. Nesse sentido, o quadro deve ser considerado apenas como uma sistematização geral de características mui-
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to amplas e deve ser considerado com cautela, a partir de seu objetivo mais pedagógico do que fiel ao fato científico que o inspirou.
Nas distinções entre geógrafos que veremos a seguir, será possível notar que há pensamentos de franceses que incorporam propostas de alemães e vice-versa. Tomar essas ideias de maneira simples pode levar ao estudo empo- brecido de cada um desses pensadores e fazer cair em erros como os que repu- tam ao historiador Lucien Febvre, que distinguiu a geografia em duas vertentes (determinista e possibilista). Em um estudo sobre a obra de Humboldt, Ritter e Ratzel, será possível verificar que eles reconheciam o elemento cultural na trans- formação do espaço. Do mesmo modo, a escola francesa não desconsiderava as influências do meio físico no desenvolvimento das sociedades (Moraes, 1989, 1990).17
Mediante o que foi exposto, é importante entender que as definições de determinismo e possibilismo servem mais aos interesses ideológicos do Estado Nacional moderno. Isso distorceu os conhecimentos elaborados por esses geó- grafos em favor dos objetivos colonialistas e expansionistas dos Estados-Nação sem qualquer compromisso científico com esses pensadores, embora alguns deles estivessem identificados com os interesses políticos de seus países.
4.4. O pensamento geográfico alemão (Humboldt, Ritter, Ratzel, Het-
tner, Richthoffen)
Alexander von Humboldt (1769-1859) é considerado um geógrafo “de campo”18 e seu objetivo era encontrar leis gerais sobre os fenômenos naturais. As regularidades dos fenômenos físicos forneceriam informações gerais sobre
17 Esse trabalho de Moraes,“A gênese da Geografia moderna”, que aprofunda o pensamento de Humboldt e Ritter, e a continuidade desse trabalho em outro livro intitulado Ratzel (1990) são caminhos que fazem justiça à amplitude do pensamento desses três geógrafos, superficialmente e injustamente chamados de pais do determinismo geográfico.
18 Entre os geógrafos, é comum se afirmar que um cientista é “de campo” quando se dedica à busca de dados primários em trabalhos diretamente voltados para atividades empíricas, em viagens, entrevistas, observações, anotações e descrições do que é observado.
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a dinâmica física global. Sua obra Cosmos tem o papel de identificar leis gerais com forte relação com a compreensão platônica.19 Desse modo, era importante conhecer as causas dos fenômenos físicos. As técnicas mais utilizadas foram a observação e a descrição (textual, cartográfica; inventários e desenhos). A proximidade entre o filósofo Kant e Humboldt não foi confirmada pelos registros históricos, mas o trabalho realizado pelo geógrafo é profundamente associável ao construto teórico elaborado pelo filósofo, principalmente em sua obra A crítica da razão pura. Por isso, o princípio de causalidade (segundo o qual todos os fenômenos na superfície da Terra têm uma explicação causal e não casual de sua existência) é fortemente ligado ao pensamento humboldtiano.
Carl Ritter (1779-1859), em vários aspectos de seu pensamento, aproxima-se das ideias de Humboldt. É possível simplificar afirmando que este último era um ge- ógrafo de campo, e Ritter um elaborador “de gabinete”.20 Ritter teve um papel pre- ponderante na construção dos cursos de formação de professores de geografia (Capel, 1991). Foi professor de Elisée Reclus e Karl Marx. Esse fato dá conta de como a profusão da Geografia moderna influenciou o pensamento científico da virada do século XIX para o XX. O princípio de analogia, sistematizado por Ritter, segue a intenção de descobrir leis gerais da natureza. Esse princípio tem como base a comparação entre os fenômenos para destacar suas particularida- des, destacando diferenças e semelhanças entre eles.
Ferdinand von Richthofen (1883-1905) segue por uma perspectiva que se pode denominar de humboldtiana de totalidade (harmonia natural). Von Ri- chthofen era empírico-naturalista e se servia das observações de campo e das formas de relevo. Esse tipo de trabalho reforça a geomorfologia no papel de descrição e compreensão das paisagens e seus relevos. Ele fez uma viagem
19 O cosmos platônico deve ser entendido como totalidade da expressão possível do ser, ou seja, expressão do bem. Platão não compreendia o todo por seu caráter corruptível, mas empreendia em seu método a concepção do sensível pelo sensível, uma vez que considerava que a realidade física nos engana.
20 Entre os geógrafos, afirmar que um geógrafo é“de gabinete”significa procurar demonstrar que seu trabalho privilegia fontes escritas produzidas por outros cientistas, cabendo a si o papel de ler, interpretar e sistematizar os conhecimentos produzidos por outrem.
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à China que durou cinco anos, de leste a oeste e de norte a sul, colhendo in- formações e mapeamentos sobre a rota da seda. Efetuou estudos geológicos e levantamentos topográficos completados com informações econômicas e sociais. Na Alemanha, passou sete anos elaborando o Grande mapa da China, tarefa que o notabilizou como um dos grandes geógrafos do mundo.
Alfred Hettner (1859-1941), por sua vez, é considerado neokantiano. Ele põe a Geografia no plano de encontro do nomotetismo e do idiografismo, cen- trando a referência unitária no conceito de região. Para ele, a região é a cate- goria universal da Geografia, o conceito portador da capacidade de oferecer uma visão de unidade de espaço que ele denomina corológica, a qual seria configurada através da pluralidade dos aspectos físicos e humanos. Desse pon- to de vista, o conceito auxilia a forjar a síntese do mundo, que seria a identidade metodológica e científica da Geografia. Assim, chega-se à síntese regional por intermédio da interação entre a Geografia sistemática, parte da Geografia en- carregada de realizar a análise dos fenômenos no seu plano tópico, e a Geogra- fia regional, a verdadeira Geografia, que se serve da primeira, ao mesmo tempo em que lhe impõe a necessária unidade sintética. Embora crítico de Kant ao realizar o esforço de unir a Geografia geral à regional, sua análise e síntese pare- ce buscar algo semelhante ao kantismo, quando une empirismo (observação) com racionalismo (razão) na busca da diferenciação das áreas ou para entender o porquê delas se diferenciarem.
Leo Waibel (1888-1951) tem sua elaboração teórica destacada por dois conceitos: o de Wirtschaftsformation (formação econômica) e o de Kulturlandschaft (paisagem cultural). Analogamente a uma formação vegetal, afirma Waibel, uma paisagem econômica contínua pode ser denominada de formação econômica. A agricultura emprega para essas unidades, sejam elas extensas ou reduzidas, geralmente a denominação de “zonas”. Ele fala, assim, de uma zona de cultura de hortaliças, uma zona triticultora, uma zona de lacticínios etc. Já a paisagem cultural, dentro da Geografia agrária, é entendida como resultante do uso do solo, ou seja, do tipo de cultivos, técnicas utilizadas, estradas e instalações, determinado pela Formação Econômica (Etges, 2000).
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4.5. O pensamento geográfico francês
Élisée Reclus (1830-1905) foi aluno de Carl Ritter e produziu uma Geografia com forte referência em Humboldt e Ritter. Sua obra teve impacto importante na educação da França, Espanha e outros países da Europa. De fato, foi essa referência que teve relevância para os geógrafos franceses que o sucederam, embora haja registros de que La Blache combateu essa influência na França. Seus livros, sua atividade política como anarquista e sua dedicação à educação fez Reclus ser popular e reconhecido. É possível afirmar que ele prenunciou as bases do geoambientalismo, da sustentabilidade e de uma geopolítica próxima da compreensão contemporânea. Sua formação pela escola alemã não o fez um determinista, e sua posição política deixou mais claro que a ação humana é responsável pela transformação do espaço reconhecendo a capacidade de poluição e a necessidade de uso adequado da natureza. A base metodológica que ele deixou para a Geografia impedia a separação dos fatos humanos e dos fenômenos naturais, trazendo conjuntamente a preocupação com a liberdade das nações e de seus povos.
Vidal de La Blache (1845-1918) foi responsável pelo conceito de gênero de vida e criou as bases metodológicas da regionalização que recolocou a Geografia como disciplina importante entre as demais ciências. A proposta vidalina serviu ao planejamento estatal e permitiu o desenvolvimento de monografias regionais que buscavam identidades espaciais ou idiográficas para espaços determinados por variáveis comuns, procurando superar as limitações que a Geografia geral, característica da escola alemã, tinha para a compreensão da organização espacial.
Jean Brunhes (1869-1930) preocupava-se com a política e tinha posições consideradas católico-sociais. Sua obra sobre os princípios da Geografia colocava a existência de vários níveis de percepção dos fenômenos. Primeiro, estaria a Geografia das necessidades vitais (exploração da terra), depois a Geografia social e, por fim, a Geografia histórica e política. O método proposto por ele considerava os seguintes feitos essenciais: a) a ocupação improdutiva (casas e vias); b) a conquista vegetal e animal (cultura e pecuária) e; c) a economia destrutiva (devastação dos animais, vegetais e exploração mineral).
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Nessa superfície seria encontrada a ação da sociedade e acresceria o nome da Geografia Humana como referência para escola francesa de geografia.
Max Sorre (1880-1962) elaborou o conceito de habitat que se refere à porção do planeta vivenciada por uma comunidade que a organiza. Trata-se da humanização do meio, que expressa múltiplas relações entre o homem e ambiente que o envolve. Aproxima-se do axioma vidalino de gênero de vida.
Emmanuel de Martonne (1873-1955) é conhecido por desenvolver, ao longo de sua vida, um amplo trabalho docente de difusão da Geografia como ciência experimental. Em suas duas visitas ao Brasil (1933 e 1937), realizou levantamentos morfológicos e ministrou cursos na Universidade de São Paulo. Seu estudo sobre problemas morfológicos do Brasil tropical-atlântico foi um dos primeiros trabalhos de geomorfologia climática no mundo. Para ele, tudo aquilo que existe na superfície terrestre e faz parte da paisagem pode ser considerado um fato geográfico. Um fato geográfico se caracteriza por ser um elemento tangível e é, de certo modo, permanente ou estável, como as montanhas, os rios, as comunidades humanas, um edifício, uma árvore etc. O fenômeno geográfico ocorre quando se pode observar uma mudança mais ou menos imediata na superfície terrestre, resultando em alterações no ambiente.
Pierre Deffontaines (1894-1978) iniciou seu contato com o Brasil na década de 1930 e, conjuntamente, com Pierre Monbeig, fundou a cadeira de Geografia na Universidade de São Paulo, em 1935. Foi, também, um dos principais responsáveis pela criação da Associação dos Geógrafos Brasileiros, do Conselho Nacional de Geografia e da Revista Brasileira de Geografia. Defontainnes foi for- temente influenciado por Jean Brunhes, por sua vez, discípulo de Vidal de La Blache. É considerado introdutor da “escola francesa de geografia” no Brasil e teve papel determinante na estrutura do curso de formação de professores de Geografia. Seus artigos, de cunho vidalino (ou lablacheano), descreviam a di- mensão continental do Brasil, onde a natureza definia a organização das ativida- des humanas. Como La Blache, ofereceu ao Brasil uma matriz de pensamentos ao dispor do planejamento estatal e com os projetos nacionais brasileiros da Era Vargas (Ferreira, 1998).
Pierre Monbeig (1908-1987), também influenciado pela geografia regional
vidalina, destaca a importância da cultura na transformação do espaço e se
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coloca em posição oposta ao determinismo econômico (Gaeta, 2007). Dantas (2005, p.30) afirma que sua ideia de complexidade em Geografia Humana co- loca a necessidade de ir além da descrição, indo buscar as contingências que cercam a relação entre o homem e a natureza. A Terra, para Monbeig, é um todo cujas partes se condicionam. O homem será o perturbador de um equi- líbrio complexo e o geógrafo deverá recolher como essas diversas influências contribuem para a formação espacial e adaptação humana. Como cofundador da cadeira de Geografia na Universidade de São Paulo, em 1935, irá influenciar a formação de geógrafos com forte cunho da Geografia regional francesa, que dará à escola de Geografia brasileira sua ênfase na Geografia Humana.
4.6. As abordagens de inspiração anglo-americanas
Ellen Semple (1863-1932) tem proximidade com a obra de Ratzel (antropo- geografia) e inspirou a produção de várias obras e artigos caracterizados como deterministas. Em seu pensamento, o meio físico tem papel mais preponderan- te do que a ação humana e a cultura na transformação espacial. Ou seja, o meio determina o homem, em palavras diretas. O determinismo geográfico, como se conhece hoje, foi mais influenciado por Semple do que por Ratzel, influência esta que deu um caráter próprio à Geografia anglo-saxônica com maior ênfase no empirismo e na descrição do meio físico. Semple, por exemplo, recorre à Bíblia, em alguns de seus escritos, para definir a importância da natureza sobre a sociedade. A finalidade de seus trabalhos é entender as vantagens ambientais e suas influências no desenvolvimento econômico.
Ellsworth Huntington (1876-1947) concluiu que as populações de regiões frias tinham desempenho econômico superior ao de países tropicais, fenôme- no que chamou de “paradoxo tropical”. De acordo com esse geógrafo, a influ- ência do clima no desempenho econômico também podia ser verificada nas estruturas políticas, pois os Estados tropicais tendem a ter uma história política instável. O determinismo climático que baseou a obra de Huntington passou a ser uma consideração exacerbada para outros campos e utilizado como expli- cação simplória para explicar a pobreza e o subdesenvolvimento.
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Richard Hartshorne (1899-1992) é conhecido por seu método de regio- nalização que, diferente do que propôs La Blache, seleciona elementos para se delimitar um espaço e não a totalidade de elementos que o compõe. A região, para Hartshorne, deve ser compreendida conceitualmente quando é especia- lizada por funções correlatas. Não quer dizer que ele negue a regionalização tradicional, mas aprofunda o pragmatismo da informação geográfica que deve ter finalidade para o planejamento e desenvolvimento humano. Seus trabalhos são influenciados pelo kantismo, e ele escreveu um texto importante sobre a relação entre as obras de Kant e de Humboldt (Hartshorne, 2006).
David Harvey (1935) tem sua formação na Geografia quantitativa, mas, aos poucos, foi se apropriando das bases epistemológicas marxistas. Por essa mu- dança de perspectiva, ele é considerado um dos pilares da Geografia radical. Os pressupostos de Harvey colocam a luta de classes no centro dos debates te- máticos da Geografia com uma qualidade que extrapola a ideologia que marca parte da corrente da Geografia crítica mundial. Seus escritos sobre a ação do capital na civilização servem de pilar para a construção de uma crítica à globa- lização e para a compreensão da ação das corporações na internacionalização do capital. A sociedade está no centro do debate geográfico e da esquerda política arrefecida no final da década de 1990, mas com mais aprofundamento após a crise econômica de 2008. Sua obra A condição pós-moderna é referência no Brasil, para se entender sua compreensão teórica da Geografia.
Os trabalhos de Edward William Soja (1940) são voltados para o planeja- mento urbano. Seus referenciais teóricos se baseiam no materialismo histórico e ele percorre um caminho mais eclético entre os geógrafos radicais estadu- nidenses. Sua obra Geografias pós-modernas é polêmica e teve enorme reper- cussão na década de 1990. Soja é considerado, por alguns críticos, como um geógrafo pós-moderno por sua aproximação com a Geografia cultural.
Doreen Barbara Massey (1944) é referenciada por produzir trabalhos in- fluenciados pelo materialismo dialético e por isso é definida como geógrafa marxista. Um dos seus campos de estudo é a globalização e suas relações com o desenvolvimento das cidades, a reconceitualização do espaço urbano e a divisão espacial do trabalho. Seu conceito de geometria do poder tem como aporte a compreensão das profundas divisões entre ricos e pobres e as desi-
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gualdades provocadas pelo capitalismo. Seus argumentos são que o espaço é composto por várias identidades que não estão congeladas, ou seja, o espaço é permeado por processos permanentes de múltiplas identidades e não é fecha- do, mas é consequência de superposições de ações humanas dinâmicas.
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Capítulo 5
A institucionalização da Geografia no Brasil
5.1. Introdução
No Brasil, há marcos importantes sobre a institucionalização da Geogra- fia, como a fundação do Instituto de História e Geografia Brasileiro (IHGB), primeiro no Rio de Janeiro, em 1838, e, posteriormente, em outros Estados do país. Inicialmente, o IHGB era ocupado por engenheiros militares, cartógrafos, advogados e historiadores. A criação do curso de formação de professores de Geografia com a fundação da Universidade de São Paulo é um marco impor- tante para a formação de uma massa crítica com base na Geografia. A criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) viabilizou a produção e divulgação de informações estratégicas para o Brasil.
Nos últimos cinquenta anos, o Brasil vivenciou a emergência de três ten- dências importantes no pensamento geográfico. Essas tendências são antagô- nicas quanto ao método, às temáticas e à componente ideológica.
A new geography, ou nova geografia, decorre de uma ruptura metodológi- ca, ideológica e epistemológica no fazer científico geográfico. De forma geral, essa mudança é feita, por um lado, adotando bases matemáticas e estatísticas para abordar o fenômeno geográfico e, por outro, pela consideração mais hu- manista centrada na percepção do indivíduo sobre o próprio espaço. Caberiam, nessa Geografia, outras novas forças teóricas e correntes ideológicas, porém, são as tendências citadas as que carregam essa denominação. Na perspecti-
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va matemática, estatística, quantitativa ou teorética (tradução equivocada do vocábulo inglês theoretical, que significa teórica), o pressuposto central é consi- derado neopositivista21 por defender a ideia de que o fenômeno geográfico é um fato verdadeiro se houver regularidade, forma específica e repodutibilida- de. Se o fato for propositivo para criar modelos teóricos matemáticos, por ser matematizável e mensurável, pode se tornar a base para a elaboração de uma informação, de um modelo e de uma teoria. A busca por modelos permitiu um desenvolvimento impressionante nessa tendência, acumulando a crítica de não ser capaz de tratar de questões sociais com qualidade ou de se propor a criar modelos infalíveis sobre a realidade geográfica de um fenômeno ou de um país.
No Brasil, a Geografia quantitativa teve como núcleo gerador de traba- lhos a Unesp de Rio Claro e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que ofereceram uma produção teórica e científica que legou uma tradição impor- tante. A Geografia quantitativa se enfraqueceu a partir da década de 1990, com o desaparecimento dos teóricos que formaram os pilares da defesa dos fenô- menos quantificados e de modelos derivados. O IBGE22 foi o berço da Geografia quantitativa, pois foi importante para esse órgão governamental fortalecer essa forma de abordar os fenômenos. Com o fim da ditadura militar, que definiu o regime político brasileiro no período entre 1964 e 1985, não se pode dizer que a mesma carga ideológica permaneceu no espectro da instituição. O IBGE notabilizou-se, também, por ser responsável por contribuições fundamentais para o planejamento das políticas públicas do país e de suas comparações em
21 Neopositivista: pessoa ou tendência que se identifica com o neopositivismo, doutrina
filosófica que se desdobra a partir dos ensinamentos da Escola de Viena, cujo objetivo principal foi restabelecer a linguagem matemática como linguagem genuinamente científica e o princípio da falseabilidade como possibilidade de se provar se o conhecimento é verdadeiro ou não.
22 O IBGE faz parte de uma história nacional de 191 anos de busca do registro estatístico do Brasil, iniciada em 1822. O IBGE foi fundado em 1936 e desde então tem servido como base para o planejamento político, administrativo e territorial, sendo o berço da profissionalização institucional da informação geográfica baseada em sensos de diversas naturezas.
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escala global, além da realização dos recenseamentos gerais decenais que per- mitem inúmeros estudos sobre população e economia, por meio de cálculos de inflação e PIB, por exemplo.
A Geografia humanista, ou da percepção, considera a percepção que o indi- víduo elabora do espaço, e percorre o caminho das emoções e representações subjetivas das populações. Ela constitui uma tendência também conhecida como fenomenológica23 e, por vezes, Geografia cultural. Essa tendência rece- be críticas tanto da Geografia quantitativa, por trabalhar com dados subjetivos, quanto pela tendência marxista, que a considera despolitizada.
A Geografia humanística teve seu desenvolvimento no Brasil principal- mente na década de 1990, quando geógrafos insatisfeitos com a produção científica quantitativa e marxista acusavam-nas de não darem importância à cultura e aos fenômenos da percepção do indivíduo. A polarização ideológica entre conservadores e revolucionários pode ser responsabilizada, em parte, por essa ausência nos estudos geográficos brasileiros, mas não deve ser excluído o fato de que a falta de um método confiável e sistematizado pode ter sido importante para seu lento progresso até a década de 1990. Outra fragilidade dessa tendência é o pouco domínio do método fenomenológico e da adoção de temas mais descritivos, pautando-se pelos estudos de espaços sagrados ou ritos religiosos, com pouca interdisciplinaridade com a Antropologia.
A Geografia radical (ou crítica, ou marxista) considera a luta de classes e as teorias marxistas como centrais para se abordar um fenômeno geográfico. A sociedade de classes é injusta e a desigualdade social responde por transfor- mações espaciais que desfiguram as nações e a paisagem natural em função da acumulação de capital e poder. Os espaços urbano e rural são pensados na perspectiva da expropriação das riquezas (sociedade e natureza) ou virtuali-
23 Fenomenologia é uma palavra que pode criar muitas confusões em decorrência de que tudo que é passível de acontecer é um fenômeno. Sendo um fenômeno, é algo observável e palpável. A fenomenologia como propósito e método trabalha com fenômenos de origem subjetiva das pessoas, percepções da mente, sensações e compreensões que têm origens no pensamento e que embora não sigam lógicas matemáticas e a razão ou pensamento reflexivo, tem o poder para delinear o comportamento e a ação individual ou coletiva em sua relação com o espaço e com a sociedade.
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dades espaciais. A insatisfação com as explicações por meio de modelos (ou pela linguagem matemática) e a necessidade de se abordar temas tangentes à assunção das desigualdades sociais “descobertas” nos países centrais, quando ficou evidente a distância entre as pessoas por meio da segregação social (gue- tos negros nos Estados Unidos) e a força geopolítica das grandes nações (guer- ras contra países colonizados, como o Vietnã), deram força para que as teorias marxistas emergissem como fontes de explicação do mundo capitalista. Um dos principais marcos dessa tendência foi a publicação de um livro intitulado A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, de Yves Lacoste, no final da década de 1970, na França. Nesse livro, o autor denuncia a existência de diferentes “geografias”, que seriam obstáculo para a compreensão da realidade. A Geografia dos professores esbarraria no conceito de região como obstáculo para a explicação da sociedade; a Geografia dos Estados-Maiores seria respon- sável pela definição da geopolítica mundial, expondo as disputas entre os paí- ses para o domínio dos menos desenvolvidos; e a Geografia do senso comum, aquela incorporada por todos com grande carga ideológica, legitimaria as duas anteriores. Esse livro teve repercussões importantes no Brasil e foi motivo para mudanças nos parâmetros curriculares, o que levou a mais um “cisma” entre a Geografia física e a Geografia humana, uma vez que se disseminou a ideia de que os aspectos físicos não seriam mais importantes para essa ciência.
As resistências contra a Geografia crítica são fundadas na carga ideológica que ela carrega, pela falta de um método específico (um “método geográfico”) e porque não se dá ênfase aos fenômenos naturais em suas construções. Além disso, as representações cartográficas como elemento importante na lingua- gem geográfica são negligenciadas. Mesmo assim, essa tendência não pode ser considerada como um movimento único que reuniu geógrafos que produ- ziam as mesmas ideias. Pelo contrário, os antagonismos entre os geógrafos foi marca importante na tendência.
As três vertentes conviveram desde o final da Segunda Guerra Mundial com avanços particulares e com críticas cruzadas durante a Guerra Fria, quando as disputas ideológicas entre o capitalismo e o socialismo real foram marcas de uma época conturbada e de polarizações.
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5.2. As rupturas epistemológicas
As rupturas epistemológicas entre as geografias realizadas até a década de 1990 são basicamente relativas ao objeto, ao sujeito, aos paradigmas24 e aos métodos adotados para abordagem e compreensão da realidade.
Há autores, como Milton Santos, que já defendiam, na década de 1970, a ideia de que não há um método quantitativo para avaliar o fenômeno geo- gráfico, mas sim uma metodologia para construir uma descrição mais fiel dos fatos geográficos. A matemática e o modelo são ferramentas e não métodos (Santos, 1980). O método é hipotético-dedutivo (sendo básico para as correntes positivistas) quando trabalha com dados objetivos e objetificantes da realidade (Sposito, 1994) que podem ser medidos, contados e consolidados com auxílio de ferramentas e técnicas estatísticas produzidas pela matemática. O método é identificado como positivista por seguir uma linha de raciocínio de que um co- nhecimento só é válido se tem um uso pragmático (Moraes, 1995). Isso significa que é possível produzir conhecimento que tenha uso e utilidade para proble- mas reais e imediatos enfrentados pela sociedade. Toda informação geográfica deve ter uma base quantificável precisa e livre de informações dos juízos de valores e crenças. Essa característica, que nega o componente ideológico do conhecimento geográfico já é, em si, uma postura ideológica.
A fenomenologia trabalha com um método subjetivo e o sujeito (ou gru- po social) é o centro da apreciação científica. Por apostar nessa subjetividade e na representação social ou naquilo que as pessoas explicam perceber, crer, imaginar, rememorar e usufruir de suas relações e interpretações espaciais, a fenomenologia não é compatível com o positivismo, cuja base material é pau- tada na realidade concreta, e não em crenças e sensações humanas.
24 Paradigmas são propostas, leis, axiomas, assertivas que a ciência se baseia para
desenvolver seus avanços e descobertas. Um paradigma pode ter validade ou se manter parcialmente no tempo. Por exemplo: a mecânica newtoniana é um paradigma que ainda serve como explicação para algumas leis da física que não desapareceram com a teoria da relatividade. Isso ocorre com todas as demais ciências e em alguns casos a mudança de um postulado ou ideia científica são tão severamente derrubados que esse processo recebe o nome de revolução paradigmática.
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Na Geografia crítica, a base concreta de abordagem é a desigualdade de acesso à transformação espacial e a injustiça social gerada por esse processo. A história25 auxilia a explicar como a sociedade de acumulação de capital repro- duz as condições de expropriação das classes trabalhadoras e as desvantagens espaciais criadas pela opressão, tecnologia e informação vinda das classes ricas.
As três proposições brevemente descritas acima romperam com estudos generalistas e não sistematizados, embora algumas de suas técnicas e metodo- logias estivessem presentes em trabalhos anteriores à mudança provoca pela new geography (Santos, 1980).
A new geography rompe definitivamente com a pura descrição de fenô- menos ao mesmo tempo em que oferece fundamento para as ideologias exis- tentes em seus campos, e para um fazer científico mais pautado na necessidade de planejamento e de organização social, sem se propor, no entanto, a transfor- mações das estruturas sociais.
No campo teórico, as rupturas são claras quanto ao método e à base teó- rica em que se assentam os frutos dos trabalhos produzidos e, para não se cair num relativismo de que todas são importantes, é preciso ter em mente que a questão central é qual resposta científica está à altura de explicar a sociedade em todas as suas contradições.
Hoje, as críticas que adeptos das três tendências fazem entre si persistem e formam tendências e agrupamentos de geógrafos, persistindo as polariza- ções e antagonismos conformados e cristalizados desde a década de 1990. Po- rém, há geógrafos teóricos com trabalhos respeitáveis por sua sistematização e compromisso social e técnico, ainda que seja comum encontrar conservadores com tendência positivista e revolucionários mais militantes que epistemologi- camente claros. O que se pode distinguir é a tênue linha que separa o fruto
25 Materialismo histórico é o conceito desenvolvido por Karl Marx que tem como
pressuposto que a realidade é historicamente modificada e os processos que explicam a transformação social podem ser compreendidos de maneira mais satisfatória se entendermos que a vida das classes trabalhadoras e sua condição de opressão e a expropriação de sua força de trabalho tem uma gênese ou história que deve ser rompida por processos revolucionários ou neles inspirados para que favoreçam a reapropriação do fruto do trabalho e do espaço produzido pelas classes trabalhadoras.
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das pesquisas nos dias atuais para dar respostas aos fenômenos que não foram total ou plenamente explicados e, por isso, há convivência de tendências nos mesmos corredores universitários, congressos, coletâneas e livros, mesmo que persista o antagonismo ideológico entre elas.
Não se pode dizer que há uma crítica surgida apenas dentro da Geografia crítica ou radical. Há críticas de diversas bases em relação aos modelos mate- máticos e a sua construção e, do mesmo modo, na Geografia da percepção e na Geografia crítica, há permanente questionamento de suas insuficiências e prevalências. Um afastamento para avaliar o que é de qualidade científica in- questionável depende de uma formação epistemológica que consiga analisar os trabalhos que realmente estão comprometidos com a sociedade e com seu futuro, no que tange à sua construção teórica e à sua transformação.
5.3. Como está a Geografia brasileira hoje?
O questionamento de perspectivas científicas dentro da Geografia é cor- reto, necessário e não elimina em nenhum caso o aporte ideológico dos críticos nem dos criticados, criando no ambiente científico o que pode ser chamado de escola de Geografia brasileira, a qual está entre as mais fervorosas e profícuas geografias trabalhadas no mundo.
O Brasil tem, por razões históricas próprias da dimensão territorial e sua complexidade, uma formação geográfica distinta e que, progressivamente, to- mou um rumo comprometido com o território e suas relações específicas com o espaço mundial. Isto quer dizer que há uma Geografia brasileira que assumiu sua própria identidade, desde o início do século XX, com acentuação nas últi- mas décadas. Na década de 1970, porém, as tensões políticas forçaram a pro- dução de um olhar científico mais específico para a realidade brasileira, e isso se materializou na obra de Milton Santos, que se tornou paradigmática e definitiva para se entender o pensamento geográfico brasileiro.
O risco até hoje assumido é que mesmo em trabalhos sem compromis- so com o materialismo histórico, verifica-se uma influência em relação ao que foi construído com base marxista. A Geografia brasileira vive em permanente
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alteridade entre o compromisso social e o compromisso com os interesses cor- porativos de toda ordem.
É possível falar de uma Geografia brasileira porque a sua institucionaliza- ção passou também pela criação de inúmeras universidades espalhadas pelo Brasil. A maioria dos corpos docentes surgiu da Universidade de São Paulo e, de lá, foi se disseminando por todo o país por meio da formação de pessoas, nos níveis de mestrado e doutorado. Essas pessoas, de volta às suas unidades universitárias, foram produzindo, modificando e disseminando conhecimentos que passaram a ter características próprias. Por isso, criaram-se novos corpos críticos no Sul, Nordeste, Sudeste e em outras partes do Brasil, que elaboraram importantes estudos para a compreensão das questões nacionais em todas as escalas.
As demandas específicas e a não adoção de apenas um método cientí- fico e um padrão metodológico permitiu delinear respostas para fenômenos repletos de variáveis, o que exigiu estudos com amplitude, intuição e esforço científico continuado na busca de respostas. O fruto desses fatores é que serve de base para se dizer que há uma heterogênea geografia brasileira com poten- cial de dialogar com pesquisadores tanto de países com grande tradição cientí- fica e considerados ricos, como com países que não possuem a mesma história e estrutura acadêmico-científica.
No entanto, não há um consenso sobre o que é a Geografia brasileira hoje por sua abrangência e amplitude. A forte referência em Milton Santos ain- da persiste, mas não é possível dizer que toda a Geografia nacional seja sua herdeira. Pode se afirmar, com propriedade, que ainda não se formaram meto- dólogos abrangentes como Santos, cuja contribuição está cristalizada nos Parâ- metros Curriculares Nacionais, mas não se pode afirmar que isso não ocorrerá.
A Geografia brasileira pode ser lida, atualmente, por diferentes prismas. Ela possui traços da escola francesa e suas diversas bases. Por outro lado, é an- glo-saxônica, mas há também influências das escolas de Geografia alemã e da italiana contemporânea. Todo esse mosaico é fruto de um dos grandes planos mundiais de formação em nível de pós-graduação para dentro e para fora do Brasil. O número de mestres, doutores e pós-doutores aumentou nas décadas de 1980 e 1990 e, de modo impressionante, a partir de 2000, fato decorrente da
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inversão de recursos públicos para a pesquisa, para a formação e para a criação de cursos de pós-graduação.
Embora na década de 1990 o corpo docente de universidades públicas tenha reduzido em seu crescimento, por outro lado, aumentaram as universi- dades privadas superando as primeiras em número, e criando um mercado de trabalho para aposentados oriundos das universidades públicas e para novos pós-graduados. Tais processos alimentaram a indústria de literatura geográfica e de eventos acadêmicos que levaram o discurso geográfico em primeira mão para lugares que antes não o recebiam.
Esse conjunto de ocorrências na década de 2000 pode assim ser resumi- do: aumento do poder aquisitivo de graduandos e pós-graduandos; aumento da empregabilidade dos que se formaram nesses níveis; aumento de pesqui- sadores que entendem, falam e produzem em mais de uma língua; abertura de novas universidades públicas, ampliação e renovação do corpo docente de universidades já estabelecidas. Tudo isso criou uma dimensão para a geografia brasileira que ainda está para ser estudada.
A apreciação justa da Geografia brasileira é que ela está situada entre as mais produtivas e variadas, capaz de compreender o conhecimento geográfico produzido em outros lugares do mundo e confrontá-lo nos eventos científicos nacionais e internacionais com inestimável proveito em todas as linhas de pes- quisa. A Geografia Urbana do Brasil, por exemplo, tem sido tanto copiada como reverenciada, com seus temas que vão das habitações precárias aos grandes investimentos na reestruturação das cidades. O mesmo se pode dizer da Geo- grafia Agrária, cujos temas são contraditórios, indo dos movimentos sociais que disputam a terra aos investimentos capitalistas no campo. A Geografia humana e física não param de trazer novos arcabouços para o Brasil e para o mundo.
A Geografia brasileira não se fechou para o mundo e não se permite acei- tar análises externas sem um grande embate no campo da pesquisa epistemo- lógica e do pensamento geográfico nos fóruns nacionais que estão se multipli- cando e especializando.
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5.4. O papel da Associação dos Geógrafos Brasileiros e dos progra-
mas de pós-graduação
A Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) foi fundada em 1934, em São Paulo, por quatro geógrafos, entre eles o brasileiro Caio Prado Júnior e o francês Pierre Deffontaines. Seus objetivos iniciais eram a organização de deba- tes quinzenais sobre temas atuais e a realização de trabalhos de campo. Nesses tempos, a associação tinha pouca diferenciação em relação às práticas do IBGE. No entanto, depois de várias mudanças estatutárias, que permitiram a adesão cada vez maior de geógrafos, nas décadas de 1960, 1970 e, principalmente, 1980, a AGB passou a ter um novo papel de interferência na Geografia brasileira que não existia até então.
Em 1972, em decorrência da revolução interna por que passou a asso- ciação, abrindo-se para que todos os profissionais e estudantes de Geografia pudessem votar e serem votados nos cargos de direção da entidade tanto em nível nacional quanto regional, ocorreu, em Presidente Prudente, o Primeiro En- contro Nacional de Geógrafos, com a participação de aproximadamente 600 pessoas. Aí se iniciou um percurso dos encontros que reúnem geógrafos do Brasil e do exterior, com a presença maciça de estudantes, chegando, na atu- alidade, a reunir mais de 3 mil participantes. Torna-se mais ampla a difusão do pensamento geográfico de várias partes do mundo, em confrontos teóricos e metodológicos, políticos e ideológicos, que retirou a Geografia de seu papel descritivo e a colocou numa frente comprometida com o povo brasileiro.
As seções locais da AGB se reproduziram, sempre, coladas ao corpo do- cente de alguma universidade. Com a polêmica entrada dos estudantes como sócios ao lado de geógrafos profissionais, as questões de formação dos gra- duandos recebeu uma tônica que não era preocupante anteriormente. O con- servadorismo de alguns cursos de graduação, fruto correspondente de corpos docentes sem pós-graduação, sem pesquisa, sem didáticas definidas e muitas vezes associada a gestões de reitorias desqualificadas das universidades públi- cas e privadas fez dos encontros de geografia promovidos pela AGB uma gran- de escola de formação científica, pedagógica e política.
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Há geógrafos que defendem e testemunham a AGB como a grande for- madora de um pensamento independente e engajado na sociedade brasileira que não era admitida, anteriormente, no nível da graduação. Muitos dirigentes, sócios e estudantes optaram pelo caminho político da AGB, uma parte apenas para a oportunidade formativa profissional ali oferecida; entretanto, são inúme- ros os nomes de geógrafos renomados que foram dirigentes da AGB e depois exerceram outras atividades na universidade, como chefes de departamentos, coordenadores de cursos de graduação e de programas de pós-graduação.
Guardadas algumas ressalvas, a AGB é o âmbito em que todo encaminha- mento de formação científica teve eco na política nacional, já que os debates no nível das coordenações de pós-graduação só se fortaleceram a partir da metade da década de 1990, e daí começaram a ser menos influenciados pela discussão interna da AGB. Nesse momento histórico, surgiram outros critérios de avaliação, que não eram unânimes, alguns contrários aos propósitos da AGB, outros que só apreciam a produção científica formal e numérica. De um modo geral, não se pode dizer hoje que AGB aponta caminhos para a produção cien- tífica de geografia no âmbito da pós-graduação.
O surgimento de um fórum constituído pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (Anpege), passou a ser o ambiente que responde pelo que está ocorrendo e pelos propósitos cobrados dos cursos de pós-graduação em Geografia no Brasil. Embora a Anpege abrigue, também, muitos, isso não permite dizer que a AGB tem hoje o mesmo papel.
5.5. Perspectivas e desafios para o século XXI
Em pesquisa e desenvolvimento científico, é sempre arriscado trabalhar com as previsões dos avanços. Não se pode falar do futuro sem se cair no mun- do da imaginação e da crença. As tendências podem apenas abrir frestas em janelas, mas não mostrar tudo que se aproxima.
Os fatos que não escaparão de nenhum pesquisador é o uso da tecno- logia que avança no campo do mapeamento genético e sua manipulação, da química inteligente, da nanotecnologia, das redes virtuais em todos os sentidos e dinâmicas, da computação quântica e, talvez, a imbricação de todos esses
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conjuntos de agrupados tecnológicos embutidos em artefatos, produtos e até novas formas de vida artificializada.
A Geografia é uma ciência do espaço e toda essa dimensão tecnológica que ora parece ameaçadora, ora libertadora, será a força motriz da transforma- ção, uso e abandono de espaços, de países e de parcelas da sociedade. Nisso, nada há de diferente, mas da mesma forma que se pode avaliar a transforma- ção do espaço como uma fatalidade de expropriação contínua e acelerada da maior parte da população mundial, é impossível afirmar que a sociedade se manterá como espectadora de acontecimentos tão radicais.
Não sabemos quais desafios deverão surgir, mas a fome e a alimentação inadequada, falta de acesso aos recursos naturais de qualidade, desemprego estrutural e conjuntural, perda de direitos e conquistas sociais, conflitos étnicos religiosos e destruição por crises econômicas, por exemplo, estarão em pauta em todas as frentes que a Geografia atuar nas próximas décadas. Entretanto, não há qualquer certeza sobre o agravamento, mudança ou desaparecimento de problemas que hoje são tão vigorosos.
A geopolítica, os modelos econômicos, a evolução dos eixos de mercado e poder estão sendo transformados, e países líderes nos últimos três séculos estão dividindo sua preponderância de forma muito acelerada. A matriz ener- gética que sustentou o século XX está sendo questionada, substituída ou con- sorciada por outras matrizes. Ações globais estão sendo tomadas para conter processos de destruição ambiental e seus impactos sociais e polemicamente tratados no campo da climatologia, recursos hídricos e dos bens comuns na- turais.
Delongar nas variáveis não irá servir a muita coisa. O correto, parece, é as- sumir uma posição responsável sobre a óbvia esgotabilidade da natureza e da sociedade diante da força da vida humana e da natureza em moldes que não comprometam os limites das virtualidades espaciais. Habilitar a sociedade em bases políticas, técnicas, científicas e informacionais, resguardada pelos valores democráticos, é o desafio central das várias ciências e não será diferente para Geografia.
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Parte II
Cartografia e ensino de Geogra- fia
arthur MaGon WhitackEr
Doutor em Geografia. Professor assistente doutor junto ao Departamento de Geografia da
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, campus de Presidente Prudente
paulo césar rocha
Doutor em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais. Professor assistente doutor junto ao Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, campus de
Presidente Prudente.
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Capítulo 6
Introdução à Cartografia
ste texto tem como objetivo geral abordar as principais questões que norteiam a linguagem cartográfica no ensino da Geografia. Para tanto, serão aqui apresentados temas e procedimentos utilizados na Cartogra-
fia e na Geografia que conduzem ao aprendizado da linguagem cartográfica nas disciplinas de Geografia do ensino fundamental e médio nas escolas da rede pública do estado de São Paulo.
Nosso enfoque é, então, voltado àquilo que se denomina de Cartografia Escolar, abordando-se conteúdos próprios à Cartografia Geográfica, a fim de instrumentalizar o professor para compreender a cartografia e para ensiná-la no âmbito da Geografia.
A meta a ser atingida é fomentar o trabalho do professor de Geografia da rede pública com uma abordagem da Cartografia que permita a atualização e instrumentalização sobre os conteúdos apresentados em linguagem carto- gráfica e que possibilitem o desenvolvimento de práticas pedagógicas. Desse modo, espera-se que o professor de Geografia, nosso aluno, desenvolva a ha- bilidade de interpretação adequada de elementos gráficos, mapas e cartas nos diferentes temas da Geografia e tenha condições de promover sua transposição didática.
Representar os fenômenos estudados foi sempre uma necessidade bási-
ca em Geografia. Pode-se afirmar que a sua história está intimamente relaciona-
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da com a representação espacial; os progressos científicos e tecnológicos da ci- ência geográfica têm influenciado a Cartografia, ao mesmo tempo em que dela recebem influência (Oliveira, 1978). Complementarmente, pode-se compreen- der que a evolução do pensamento geográfico está intimamente relacionada à representação do objeto, dos temas e dos recortes, tanto quanto do método e das metodologias da Geografia. Daí a concepção desta parte II, apresentada sequencialmente à parte I “Caminhos do pensamento geográfico”.
Seguramente, o tema é de grande complexidade. Envolve a construção das representações espaciais pelo estudante e a construção do conhecimen- to e dos diferentes estágios cognitivos; engloba a compreensão da Cartografia como representação do espaço; permeia conhecimentos conceituais e técnicos da linguagem cartográfica. Essa abrangência, mais que uma limitação para tra- tar desse tema no curto espaço desta parte do livro, pode ser tomada como um desafio ao nosso professor-aluno e deve suscitar o aprofundamento posterior, tanto em questões relacionadas ao aprendizado e ensino do que se chama de alfabetização cartográfica, quanto à normatização da representação cartográ- fica em si.
6.1 Um pouco da história da Cartografia e um esforço para compre- ender sua definição
Compreender e conhecer a história da Cartografia pode ser considerado algo enciclopédico, uma curiosidade apenas. No entanto, é fundamental para o entendimento da construção social e histórica do conhecimento que se mate- rializa nos mapas e outras representações cartográficas. Essa compreensão pro- cessual é importante, pois ajuda a desmistificar a técnica envolvida na produção cartográfica, tanto quanto é um instrumento precioso para se desenvolver o processo de alfabetização cartográfica.
Assim, deve se compreender que o conhecimento e a compreensão da história da Cartografia possibilitam apresentar aos seus alunos a evolução pela qual passou um conhecimento paulatinamente sistematizado, com influên- cias de diversas culturas, com múltiplos objetivos e fruto de muitas conquistas científicas e tecnológicas ao longo do tempo. Não se trata, assim, nem de um
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conhecimento recente, nem de um conhecimento a-histórico, nem fruto de conquistas individuais.
Devemos compreender, também, que a evolução da linguagem car- tográfica pode ser tomada no processo de alfabetização cartográfica, pois as técnicas de representação, em boa medida, refletem estágios cognitivos dos alunos das séries do ensino fundamental e médio. Assim, um itinerário, por exemplo, como será visto mais adiante, possui muito daquilo que um aluno das séries iniciais do ensino fundamental consegue produzir, enquanto representa- ção do espaço.
O primeiro elemento considerado é que o mapa, assim como outros pro- dutos cartográficos, é um instrumento de comunicação que deve ser decodi- ficado, como veremos adiante. Por isso, vários autores falam em “alfabetização cartográfica” (Simielli, 2009) como um processo que possui similaridade à alfa- betização tradicional. Ou seja: ler um mapa requer um processo de codificação e decodificação, como a leitura de um texto escrito.
A comunicação entre os seres humanos permite que eles compartilhem informações, ideias, emoções e habilidades. Para tanto, utilizam palavras, ima- gens, figuras, gestos, gráficos, dentre outros, para alcançar tal propósito (Barbo- sa; Rabaça, 2001 apud Nogueira, 2008). O desenvolvimento dos códigos gráficos que traduzem a linguagem trouxe um progresso decisivo para a comunicação do conhecimento acumulado. Contudo, cada uma das formas de comunicação exige do indivíduo capacidades específicas para que a comunicação ocorra. Na linguagem escrita, deve-se ter a aptidão para a leitura e a escrita, na fala, a capa- cidade de articular as palavras; na matemática, é preciso reconhecer os modelos das relações entre conjuntos, números, magnitudes e abstrações. Na quarta for- ma de comunicação, usando gráficos, é preciso saber construir e interpretar pla- nos e diagramas a partir da observação de números, desenhos e imagens, ou mesmo do próprio ambiente. Ao estudar o progresso da civilização, o homem se depara com esforços nesse sentido, como procurar representar, por gráficos, elementos importantes do mundo (Nogueira, 2008).
Para Maria Elena Simielli (2009, p.72-73), a compreensão de que a Carto- grafia deve se preocupar com o usuário do mapa ganha corpo a partir da déca- da de 1990 e “a comunicação cartográfica é analisada basicamente pelo tripé:
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cartógrafo, mapa e usuário”, de onde se extrairia o “sistema do processamento cartográfico” e o “sistema de comunicação cartográfico”. Nessa compreensão, a imagem do mapa, tomada pelo seu leitor, assim como o próprio mapa, repre- senta menos que o dado bruto, pois há um processo de escolha daquilo que se vai representar, tanto quanto há uma perda de eficiência entre o real e sua representação, cartográfica no caso.
Nesse “sistema de comunicação cartográfica” há uma primeira interme- diação entre o real e o mapa, estabelecida por aquele que o produz. O mapa, por sua vez, funciona como mais uma intermediação entre o mundo real e o lei- tor do mapa, o “percipient”.1 Portanto, a compreensão do mundo real por meio do mapa estabelecida pelo usuário passa por mediações estabelecidas pelo mapeador e pela própria capacidade de leitura do mapa por seu usuário.
Há, assim, duas instâncias importantes que devem ser compreendidas pelo professor de Geografia, objetivando o ensino de Cartografia: capacidade de produzir e de ler o mapa e capacidade de ensinar a produzir e a ler o mapa. Por isso, o processo de ensino da Cartografia exige de seu sujeito, o professor, essa dupla competência: saber fazer e saber ensinar Cartografia; por esse motivo, nossa proposta procura contemplar estas duas dimensões.
Podemos compreender que conhecer e representar a Terra foram os primeiros objetivos da Geografia, tanto quanto da Cartografia. Os homens sempre procuraram conservar a memória dos lugares e caminhos úteis às suas ocupações. Aprenderam a gravar os seus detalhes em placas de argila, madeira ou metal, ou a desenhá-los nos tecidos, nos papiros e nos pergaminhos, utilizaram-se dos instrumentos construtivos ou pictóricos de que dispunham, em diferentes culturas e em distintos momentos históricos, para registrar territórios.
Acessando os links a seguir é possível conhecer os primeiros esboços car- tográficos sobre a representação de localidades do mundo, por exemplo, do Egito Antigo, da Assíria, da Fenícia e da China. Muitos desses mapas não eram
1 Percipient é aquele que percebe, mas tem o sentido de discernimento. Assim, a percepção,
nesse caso, não é passiva, ela é fruto de reflexão e de escolhas por parte daquele que percebe.
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sequer produzidos em papel, tendo se utilizado também a pele de animais, per- gaminhos, argila e pedra. Veja também o chamado mapa de Ga-Sur, considera- do um dos mais antigos de que se tem notícia e ao qual se supõe representar a Mesopotâmia.
Os gregos são tomados por muitos autores como aqueles que fornece- ram os primeiros elementos de projeção dos mapas, sem dogmas religiosos e mistificações comerciais, em bases matemáticas cada vez mais seguras (Joly, 1990). Por exemplo, podemos considerar o trabalho de Eratóstenes de Cirene (276-196 a.C.), que apresenta uma construção cartográfica pautada em obser- vação empírica e cálculos bastante precisos. Atribui-se a ele o experimento que teria permitido o cálculo da circunferência da Terra, quando obteve valor muito próximo ao real, e algumas das primeiras construções cartográficas com um sis- tema rudimentar de coordenadas geográficas. Observemos uma reconstrução do mapa do mundo a ele atribuído neste link.
Como podemos ver, a cartografia como atividade já aparece nas desco- bertas pré-históricas, como apresentamos no caso do mapa de Ga-Sur, antes mesmo da invenção da escrita. Como vocábulo, o termo Cartografia foi criado pelo historiador português Visconde de Santarém em carta de 8 de dezembro de 1839, escrita em Paris e dirigida ao historiador brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen. Antes da consagração deste termo, o vocábulo usado era cosmo- grafia.
Comerciantes e militares logo compreenderam a importância de tais documentos para os seus deslocamentos, como os catálogos “périplos”2 dos navegadores gregos e fenícios, os “itinerários” dos romanos e aqueles com re- presentações artísticas mais elaboradas dos chineses e japoneses. Entre muitos simples esboços, grandes esforços de representação e o mapa, tal qual o co- nhecemos hoje, um longo caminho foi percorrido.
2 Os périplos significam, literalmente, navegar ao redor, ou circum-navegação. Tratava-se de
documentos manuscritos, usados para navegação ao longo das costas, com a descrição sequencial de acidentes geográficos, de características morfológicas ou paisagísticas, de informações sobre os diferentes portos, sempre com as distâncias registradas entre cada ponto ou porto registrado. Assim, eram “mapas” sem ilustração, apenas com descrições de características e distâncias.
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6.2 A cartografia e o mapa
As informações cartográficas constituem bases sobre as quais se podem tomar decisões e encontrar soluções para problemas socioeconômicos e téc- nicos e se constitui, assim, em importante ferramenta para o planejamento e a gestão. Não é difícil, portanto, compreender que o conhecimento cartográfico fora e é, em certa medida, um conhecimento estratégico, como já apontou o geógrafo francês Yves Lacoste em seu livro A Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra.
O mapa descreve uma porção do espaço geográfico com suas caracte- rísticas qualitativas3 e/ou quantitativas4. A referência está assegurada por uma rede de coordenadas5 em que se relacionam todos os pontos do campo ob- servado. As características do sistema de projeção (que será abordado adiante) permitem saber com quais propriedades geométricas podemos contar.
A escala formula a relação existente entre o mapa e o terreno. A mensa- gem cartográfica é antes de tudo uma mensagem de localização e de avaliação das distâncias e das orientações. Através de um sistema de símbolos mais ou menos complexos, o mapa é também uma mensagem de informação sobre os objetos, as formas, os fatos e as relações contidas no espaço estudado. Alguns desses símbolos são tão claros ou de uso tão corrente que são quase instintiva- mente percebidos por todos. Outros, mais sutis, devem ser explicitados através de uma legenda (Joly, 1990). Ainda, segundo o autor, esses símbolos podem ser agrupados entre si de maneira significativa.
Essas combinações obedecem a regras semiológicas6 (que serão abor-
dadas adiante) que as tornam inteligíveis aos que se esforçaram para assimilar
3 Quando diz respeito à apresentação de diferentes tipos de dados geográficos diversos
entre si.
4 Quando diz respeito à apresentação de dados que variam seus valores no mapa.
5 Diz respeito a um sistema de coordenadas espaciais. Por exemplo, latitudes e longitudes
(no caso, em graus).
6 As regras semiológicas compreendem a observância de um conjunto de práticas e
procedimentos que levam em conta os valores de percepção para a produção cartográfica.
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bem a legenda. O cartógrafo dispõe, assim, de um meio para mostrar ou para sugerir ao leitor a diversidade das relações visíveis ou invisíveis que são a própria essência das realidades geográficas. Portanto, a mensagem cartográfica tam- bém pode ser uma mensagem de interpretação e de comunicação científica.
O produto cartográfico atende a uma necessidade quando o documento cartográfico elaborado garante características que vão ao encontro da necessi- dade que o originou. Dentre elas estão: escala, público alvo, projeção, custo, exati- dão, tempo, representação, tipo de produto, apresentação do produto (mídia). Além disso, o mapeamento de uma determinada região ou área deve responder a algumas questões como: quais são os objetivos do mapa; os modelos de proje- ção que podem ser utilizados; processos e meios que a Cartografia utilizará para produzir esses documentos. Assim, é importante que o interessado conheça os elementos de um mapa e dos processos utilizados em sua elaboração, de forma que possa encontrar a melhor solução para a necessidade apresentada (Albuquerque, 2002).
A Cartografia é a arte de conceber, levantar, redigir e divulgar os mapas (definição adotada na reunião da Unesco em 1966). Segundo a Associação Car- tográfica Internacional, a Cartografia compreende “o conjunto dos estudos e das operações científicas, artísticas e técnicas que intervêm a partir dos resul- tados de observações diretas ou da exploração de uma documentação, em vista da elaboração e do estabelecimento de mapas, planos e outros modos de expressão, assim como de utilização”. Engloba, portanto todas as atividades que vão do levantamento do campo ou da pesquisa bibliográfica até a impressão definitiva e à publicação do mapa elaborado (Joly, 1990).
Para Maria Elena Simielli, é a partir das definições propostas naquela reu- nião da Unesco em 1996 que a preocupação com o usuário do mapa se torna explícita (Simielli, 2009, p.72). Essa preocupação torna ainda mais importante o trabalho do professor de Geografia, ao reconhecer que o mapa deve ser com- preendido por seu usuário – para um educador, o usuário é também seu aluno.
Observe o desenvolvimento desse assunto ao tratarmos da linguagem cartográfica.
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6.3 Geografia e Cartografia: relações topológicas e o mapeamento
A representação, as localizações e a distribuição numa superfície plana dos fenômenos sociais sempre foi uma preocupação dos geógrafos. Os com- putadores e os sensores remotos tornaram essa tarefa mais fácil, embora se deva compreender que a representação do globo numa superfície bidimen- sional como um mapa, ou uma tela de computador, sempre trará distorções ou deformações da superfície representada. Ainda assim, podemos considerar que hoje praticamente não há mais vazios e pontos não conhecidos nos ma- pas; questões que diziam respeito à forma e ao tamanho da superfície terrestre têm sido bastante diminuídas. Com meios acurados de se localizar eventos e acontecimentos naturais e sociais e de representá-los com relativa precisão não podemos nos esquecer da necessidade crescente de se procurar estabelecer, ou compreender, uma ordem cartográfica que o mapa permite visualizar. Essa ordem cartográfica permite, basicamente, que compreendamos princípios ele- mentares da Geografia que se materializam na concentração ou dispersão de objetos, fenômenos e processos espaciais, como veremos mais adiante.
Desta maneira, uma das preocupações originais da Geografia, que fora registrar e mensurar as diferentes porções do globo, ou este como um todo, evolui para questões mais complexas, como compreender o porquê de deter- minada distribuição espacial e as possíveis relações entre os elementos cons- tituintes dessa distribuição, como se pode depreender de obras como Spatial Organization, The Geographer’s View of the World [Organização espacial, a visão do mundo do geógrafo] (Abler; Adams; Gould, 1971).
Notemos que há uma dimensão cartografável7 em ambos os momentos da Geografia, sendo que no primeiro essa dimensão parece se limitar, ou se mostrar mais próxima, àquilo que chamamos de Cartografia Topográfica, ou Cartografia Sistemática: mensurar e registrar o globo, ou porções dele e se esta-
7 Ao compreendermos que há uma dimensão cartografável, entendemos que a realidade,
como um todo, não é passível de ser cartografada, como já discutimos, mas também estamos afirmando que há diferentes escolhas feitas para se produzir um mapa. Essas escolhas são arbitrárias e/ou se encerram em questões técnicas de representação.
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belecer as técnicas e procedimentos necessários à representação bidimensional da Terra.8
No segundo momento, já se nota que, além do registro e da mensuração da Terra, há a explícita preocupação com a distribuição espacial e as relações estruturais expressas por tal distribuição. Os elementos daquilo que se compre- ende como Cartografia Temática estão, nesse caso, mais explícitos.
Para autores como Milton Santos, devemos compreender que a organiza- ção espacial pode ser analisada à luz de dois processos intimamente relaciona- dos e fundamentais à Geografia: concentração e dispersão.9 Todos os fenômenos geográficos podem ser observados por esse prisma. A concentração e a dis- persão ocorrem por que na Geografia o espaço não é compreendido como na Física ou na Matemática, por exemplo. O espaço não é homogêneo e também não é apenas palco do desenvolvimento humano. Por conta disso, os diversos processos operam por uma seletividade espacial,10 tomando, mais uma vez, Mil- ton Santos como referência.
A Cartografia incorpora essa complexidade, do ponto de vista geográfico, passando a se preocupar, como dissemos, em representar temas e correlações entre temas, processos, fenômenos e objetos geográficos, além de sua posição, dimensão e distribuição.
8 Todo mapa é uma representação bidimensional, ou seja, só possui duas dimensões, no
caso, aquelas próprias aos eixos x e y. A Terra é um sólido, com a forma denominada de geoide e, assim, possui três dimensões (x, y e z).
9 Diz respeito à concentração ou dispersão dos objetos ou fenômenos no espaço geográfico
e, em certa medida, também dos processos. Sugerimos, como uma primeira leitura, a obra A natureza do espaço, de Milton Santos (1996), para aqueles que se interessem pela concepção dos objetos, fenômenos ou processos geográficos.
10 Trata-se de importante concepção na Geografia. Os processos de concentração e dispersão, já apresentados anteriormente, dão ao espaço geográfico uma característica heterogênea. Ou seja, o espaço geográfico se caracteriza por diferenças entre os distintos lugares, áreas, regiões. Essa heterogeneidade se dá em função da seletividade espacial. Ou seja: não é qualquer ponto do território que reúne todas as necessidades, ou possibilidades, para que determinado objeto geográfico seja localizado, que determinado fenômeno geográfico seja observado, que determinado processo geográfico se materialize.
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Desta maneira, há uma profunda relação entre a evolução do pensamen- to geográfico e a evolução da Cartografia. De outro modo, entre as necessi- dades e possibilidades de se conhecer a Terra e de se reconhecer territórios que influenciaram a Cartografia e as possibilidades técnicas crescentes de se registrar e representar o mundo que influenciaram o pensamento geográfico.
A comunicação é fruto de um relacionamento social entre sujeitos que dividem o mesmo espaço, ou que nele podem operar, seja ele escolar, profissio- nal, familiar ou outro. Essa comunicação se estabelece por uma linguagem, que pode ser escrita, falada ou visual. Utilizam-se sons, imagens, gestos. A comuni- cação cartográfica, como abordamos no item anterior, estabelece uma relação entre o mundo e seu leitor, o homem.
Para alguns autores, enquanto a Geografia analisa a organização dos ele- mentos humanos, físicos e biológicos no espaço, a Cartografia pesquisa e ave- rigua a disposição desses elementos (Pissinati; Archela, 2007) através de uma linguagem gráfica.
Podemos ir além dessa definição se compreendermos que a Cartografia se inscreve em dois momentos distintos, mas complementares, da Geografia. O primeiro é que o mapa é uma representação de um objeto (ou sistema de objetos), de um fenômeno (ou um conjunto de fenômenos) ou de processos geográficos, podendo, também, retratar a combinação entre objetos, fenômenos e processos. Essa representação pode ser o resultado de uma análise, num primeiro momento, e nela se encerrar.
Mas pode o mapa também ser instrumento de análise (e esse é o segundo momento de que falamos antes), uma vez que a distribuição espacial de um determinado elemento, nele representada, pode apresentar uma ordem implí- cita e não observável a não ser a partir da ordem geográfica demonstrada pelo mapa, como já abordamos.
O espaço geográfico é o espaço constituído pela superfície terrestre in- teira, compreendidos os oceanos e as regiões inabitadas. Além disso, ele possui certa espessura, pois diz respeito, ao mesmo tempo, ao meio sólido (litosfera), líquido (hidrosfera) e gasoso (atmosfera), e engloba o meio biótico (biosfera). Esse espaço geográfico é concretamente percebido através dos objetos ma- teriais, visíveis e mensuráveis que o compõem: rochas, montanhas, vales, rios,
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florestas, campos, edificações etc. Engloba, também, uma larga gama de outros conceitos ou de relações invisíveis de ordem física, biológica ou humana.
O espaço geográfico é, com efeito, um “sistema” complexo de equilíbrios móveis que, num dado lugar e momento, são regulados por causas múltiplas, interdependentes e interativas, elas próprias portadoras de consequências para o futuro. Ele integra, assim, não apenas certo volume, mas, ainda, certa duração sob a forma de heranças e de potencialidades. Para Milton Santos (1996), esse sistema é constituído, em verdade, por um sistema de objetos e por um sistema de ações. É sobre essa análise e explicação que se baseia a Geografia e, por consequência, a Cartografia Temática, que é sua expressão gráfica (Joly, 1990).
Segundo Lívia de Oliveira (1978), o espaço convencionalmente represen- tado no mapa é contínuo, isotrópico e bidimensional.11 Mas o homem, de fato, não se movimenta num espaço com essas propriedades. O espaço humano é descontínuo, anisotrópico e tridimensional.12 Mapear esse espaço vivo e dinâmico para descrevê-lo e explicá-lo vem se tornando um desafio para a Geografia e para a Cartografia.
Estudos têm confirmado que o espaço em que vivemos é muito mais relativo, ou relacional, que absoluto. O que seria mais relevante para um sujeito tomar decisões para comprar mercadorias ou realizar viagens, entre três cidades, por exemplo, seria conhecer as distâncias em termos de custo, tempo, acessibilidade, e não em quilômetros. Nesse exemplo, as decisões são tomadas considerando as coordenadas espaciais relativas e não as absolutas (Oliveira, 1978).
Em qualquer um dos casos, o mapa deve ser tomado como representa-
ção do real, mediada por quem o produz.
11 No mapa se reproduz uma noção de continuidade dos fenômenos no espaço, de características físicas idênticas, independentemente da direção considerada, e em um plano espacial com apenas dois eixos, x e y.
12 Neste caso, os fenômenos humanos são descontínuos no espaço geográfico, as características dos processos antrópicos variam em intensidade e qualidade conforme a direção, cuja representação exige um raciocínio tridimensional.
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Assim, além de registrar e permitir mensurar, além de representar os obje- tos, fenômenos e processos geográficos e além de ser o resultado de uma aná- lise, tanto quanto instrumento de análise, o mapa é, também, objeto de análise. Todas essas possibilidades de compreensão e de leitura do mapa se inscrevem na Geografia que se ensina.
Os conteúdos a serem apresentados pretendem, assim, corroborar o pro- cesso de ensino-aprendizagem, discutindo temas relevantes para o professor de Geografia, no sentido de construir com seus alunos habilidades de compre- ender o significado da seletividade, da ordenação e da quantificação na repre- sentação cartográfica e a distinção entre os mapas e as imagens de satélite. Tal situação deve possibilitar a habilidade de leitura e análise de mapas e imagens ao longo das séries.
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Capítulo 7
Características básicas dos mapas e comunicação cartográfica
7.1. Características básicas dos mapas
O mapa, considerando toda a complexidade discutida no item anterior, é, preliminarmente, um instrumento criado para responder a questão “onde es- tou?” ou “onde está tal objeto?”. Assim, a localização deve ser enfocada com precisão e fidelidade. Você deve atentar para o fato de que essa foi uma das maiores preocupações dos cartógrafos, em todos os tempos.
Esse problema pode ser resolvido de duas maneiras: determinando cada ponto sucessivamente, a partir de um ponto de origem conhecido, ou deter- minando seu lugar numa rede coerente de coordenadas. A primeira solução é adotada para o levantamento de mapas em grandes escalas. Podemos perce- ber que essa é também a solução que se aplica, empiricamente, na reparação de itinerários e périplos, e nos mais antigos mapas de navegação, como já dis- cutimos antes. A construção de quadrículas ou sistemas universais de referência data de cerca de 200 a.C., com Hiparco, após a divisão da circunferência terrestre em 360 graus, cobrindo o globo com uma rede de meridianos e paralelos equi- distantes. Ele desenvolveu, assim, a primeira quadrícula para mapas planos em coordenadas retangulares (Joly, 1990). Qualquer ponto da superfície terrestre pode ser definido com relação ao sistema de referência fixas que se chamam
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coordenadas terrestres ou coordenadas geográficas (conforme imagem a seguir). Essas coordenadas compreendem, segundo Joly (1990):
Os meridianos: grandes círculos da esfera cujo plano contém o eixo de rotação, ou eixo dos polos. A longitude de um lugar (x) é a distância, expressa em graus e minutos, tomando Greenwich (perto de Londres) como origem. A longitude se mede de 0o a 180o L (Leste) ou O (Oeste).
Os paralelos: círculos da esfera cujo plano é perpendicular ao eixo dos polos. O Equador, que divide a Terra em dois hemisférios, é o único paralelo cujo centro é o centro da Terra. A latitude (y) é a distância, expressa em graus, minutos e segundos de arco, entre o paralelo de um lugar e o Equador, tomado como origem. A latitude é medida de 0o a 90o N (Norte) ou S (Sul).
Início da descrição:
Desenho esquemático do globo terrestre, dividido pelos paralelos e meridianos, ou seja, linhas imaginárias que marcam os graus de latitude e longitude. Ao centro, a linha do Equador, marca o grau zero de latitude, e divide a terra em dois hemisférios – norte e sul. Logo abaixo dela, um corte dimensional, apresenta o centro da circunferência do Equador, que coincide com o centro da Terra.
Fim da descrição.
As coordenadas terrestres
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Os levantamentos executados na superfície terrestre por meio da geodésia,13 fotogrametria14 e sensoriamento remoto15 geram dados de diversos interesses e para serem visualizados espacialmente são representados no plano, de forma gráfica e bidimensional. Essa representação se traduz nos mapas e cartas.16 Um mapa apresenta características próprias, sendo diferente de ou- tros tipos de representações gráficas (Nogueira, 2008). Nesse sentido, torna-se importante o entendimento básico das formas de representação da Terra e de especificidades dos mapas.
Assim, segundo Nogueira (2008), os mapas têm como características bá-
sicas: localização e atributos; escala; e projeção cartográfica.
Localização e atributos: os mapas são elaborados a partir desses dois ele- mentos da realidade. A localização é dada por suas posições no espaço (coor- denadas geográficas) bidimensional ou tridimensional. Os atributos são as qua-
13 O termo geodésia, usado pela primeira vez por Aristóteles (384-322 a.C.), tem como
significado as divisões geográficas da Terra ou o ato de dividir a Terra. A geodésia é um ramo das Geociências que trata do levantamento e da representação da forma e da superfície da terra, global ou parcial.
14 A fotogrametria é a técnica de extrair a forma, as dimensões e a posição dos objetos
contidos nas fotografias aéreas métricas.
15 O sensoriamento remoto pode ser entendido como o conjunto de técnicas que
permitem observar e obter informações sobre a superfície terrestre (ou de outro astro) a partir de sensores instalados em satélites artificiais, aeronaves ou balões. Os primeiros satélites usados para essa finalidade foram lançados na década de 1970, como o Landsat 1, lançado em 1972 pela Nasa (National Aeronautics and Spaces Administration).
16 O termo mapa tem, no Brasil, utilização mais genérica que carta. Também no Brasil,
normalmente, se utiliza o termo carta para mapas de média escala e com informações mais detalhadas, seja do ponto de vista topográfico, seja do ponto de vista de sua construção projetiva. Em países de língua inglesa, o termo mapa é utilizado com mais frequência que carta, este último termo destinado a mapas para navegação, como as cartas náuticas e aeronáuticas. Já na França, o termo carta é o usado normalmente, e indistintamente. Para obter outras informações sobre esses termos, inclusive com opiniões distintas, vale consultar um dicionário apropriado, como o Dicionário de Cartografia, de Cêurio de Oliveira (1988).
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lidades ou magnitudes, ou ainda, uma variável temática, como temperatura, solo, religião, aspecto econômico etc.
Duas dimensões privilegiadas do plano, perpendicular uma à outra, de- terminam as coordenadas geográficas, ou componentes de localização: x, a longitude, e y, a latitude. O produto das grandezas em x e y determina uma su- perfície. Dessa maneira, o plano cartográfico é uma figura do espaço que pos- sui propriedades métricas consideráveis. É o que faz a superioridade do mapa sobre o simples quadro numérico: ele dá uma visão global, localizada e men- surável dos fenômenos, sugerindo ele mesmo novas medidas, novos dados e novos desenvolvimentos (Joly, 1990). Ainda segundo esse autor, um terceiro componente, z, é chamado de componente de qualificação. É uma modulação do fundo do mapa por uma mancha (cor, símbolo ou sinal) que é uma caracte- rística do lugar: qualitativa, quantitativa ou ambas. Conforme o caso, essa man- cha ocupa uma superfície mais ou menos extensa: é o que se chama modo de implantação da mancha sobre o plano.
Escala: os mapas são representações reduzidas e simplificadas do mundo real. Ao se definir a relação dimensional entre a representação gráfica e a realida- de, caracteriza-se a escala. Toda vez que se decide fazer a representação gráfica de uma porção do ambiente, a primeira coisa a ser feita é escolher a escala do mapa. Tecnicamente, a escala é definida como a razão entre a distância gráfica (d) e a distância real (D), em que cada distância é expressa na mesma unidade de medida, com o numerador representado pela unidade. Escala 1:20.000, sig- nifica dizer que cada 1cm no mapa equivale a 20 mil cm na realidade, ou ainda a 200 metros. É importante compreender que qualquer medida pode ser toma- da. Nesse exemplo de escala 1:20.000 (lê-se um para vinte mil), um centímetro equivale a 20 mil centímetros, tanto quanto uma polegada equivale a 20 mil polegadas e assim por diante.
As escalas podem ser representadas graficamente. Neste caso, a relação que indica a escala é transformada em uma régua, ou ábaco, onde as distâncias são lidas diretamente (Albuquerque, 2002), como mostrado a seguir.
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Escala numérica
1:25.000
Escala gráfica
Projeção cartográfica: é tanto mais relevante quanto maior for a área re- presentada do globo no mapa. Em função da forma do planeta Terra, esférica17 ou elipsoidal18, não é possível sua representação em um plano sem dobras ou rasgaduras. Portanto, nenhum mapa será exato, geometricamente semelhante à figura que se deseja representar. Sempre haverá deformação. Assim, nas pro- jeções cartográficas são estudadas as soluções para melhor aproximação (No- gueira, 2008).
17 Uma esfera é um objeto tridimensional perfeitamente simétrico.
18 Os elipsoides são utilizados como aproximação da forma irregular da Terra, pois
representam o achatamento nos polos, ao contrário das esferas.
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Quadro de figuras tridimensionais, que apresentam Superfícies de Projeção desenvolvidas em um plano. O quadro tem três linhas e três colunas, cujos tópicos são: planas, cônicas e cilíndricas. Linha um:Planas – Polar – plano tangente no pólo.Cônicas – Normal – eixo do cone paralelo ao eixo da TerraCilíndricas – Equatorial – eixo do cilindro paralelo a eixo da TerraLinha dois:Planas – Equatorial – plano tangente ao equadorCônicas – Transversa – eixo do cone perpendicular ao eixo da TerraCilíndricas – Transversa – eixo do cilindro perpendicular ao eixo da TerraLinha três:Planas – Horizontal – plano tangente em um ponto qualquerCônicas – Horizontal – eixo do cone inclinado em relação ao eixo da TerraCilíndricas – Horizontal – eixo do cilindro inclinado em relação ao eixo da TerraAbaixo do quadro, um cilindro, uma fecha para direita,
e um retângulo – representação do cilindro aberta em um plano.E abaixo do cilindro, um cone, uma flecha para a direita, e um quarto de circunferência – representação do cone aberto em um plano.
Fim da descrição.
Superfícies de projeção desenvolvidas em um plano
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Figura das Superfícies de Projeções secantes. Três Figuras em um fundo branco.Primeira figura: Plano secante a esfera. Uma esfera, com uma forma oval em cima e um losango envolvendo metada da esfera.Segunda figura:Cone secante a esfera. Um cone em riscos e pontilhados com uma esfera ao meio.Terceira figura:Cilindro secante a esfera. Um ciindro em riscos e pontilhados com uma esfera ao meio.
Fim da descrição.
Superfícies de projeção secantes
Os sistemas de projeção referem-se a modelos geométricos ou analíticos adotados para representar em um plano horizontal a superfície total ou parcial da Terra. As projeções cartográficas possuem características que garantem a elaboração de mapas para todos os tipos de uso e aplicação, conforme propos- to por Albuquerque (2002).
Quanto ao modelo de desenvolvimento, podem ser:
cilíndricas – normais, transversas, oblíquas; cônicas e ou policônicas – normais, transversas; planas – polares, equatoriais, oblíquas.
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Quanto aos atributos:
equidistantes – a distância sobre um meridiano medido no mapa é igual à distância medida no terreno; a distância sobre um paralelo medido no mapa é igual à distância medido no terreno;
equivalentes – a área no mapa é igual à área do terreno; conformes – a forma no mapa é igual à forma do terreno;
azimutais – a direção azimutal no mapa é igual à direção azimutal no
terreno.
A escolha do modelo de desenvolvimento e dos atributos de uma proje- ção é função do uso que será dado ao mapa, da dimensão, da forma e posição geográfica da área e do alvo a ser mapeado. A projeção, face à forma da Terra, é também responsável pelas deformações em escala que os mapas apresentam (Albuquerque, 2002).
A abstração: também é uma característica dos mapas e neles está embu- tida, pois estes são abstrações da realidade. Contudo, o mundo real é complexo para ser representado totalmente num mapa, que representa apenas parte da realidade, como já dissemos. Portanto, os mapas mostram somente as informa- ções selecionadas do mundo real para serem representadas. Essa informação depende de uma variedade de operações, tais como classificação e simplifica- ção que procuram facilitar o seu entendimento (Nogueira, 2008).
Simbologia: devemos atentar que um mapa é um conjunto de sinais e de cores que traduz a mensagem expressa pelo autor. Os objetos cartografados, materiais ou conceituais, são transcritos através de grafismos ou símbolos, que resulta de uma convenção, proposta ao leitor pelo redator, e que é lembrada em um quadro de sinais ou legenda do mapa (Joly, 1990). Todos os símbolos usados para representar dados consistem em vários signos ou traços, tais como linhas, pontos, cores, tons, padrões e assim por diante. Por isto, a legenda e/ou as convenções cartográficas19 são necessárias num mapa. Elas revelam o signi- ficado dos signos, trazendo a ideia do que eles representam, e a idealização
19 São os símbolos cartográficos reconhecidos internacionalmente.
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desses signos para construir um mapa, sua seleção e arranjo afetam fortemente a visualização e a comunicação do mesmo (Nogueira, 2008). Esse assunto será detalhado a seguir.
1.2. Comunicação cartográfica e cognição
Segundo Nogueira (2008), a cognição é o ato ou processo de conhecer. Inclui a atenção, a percepção, a memória, o pensamento, a imaginação, o juízo e o discurso. O termo cognição tem origem na Filosofia e é observado nos escri- tos de Platão e Aristóteles. Com o passar do tempo, a Psicologia separou-se da Filosofia, passando a se preocupar com a cognição, que vem sendo tratada de diversos pontos de vista. Um campo de estudo da cognição é a organização da informação cognitiva, em que é estabelecido um paralelismo entre o cérebro humano e os conceitos utilizados nos computadores, tais como armazenamen- to, codificação e memorização da informação. As imagens mentais têm sido um dos tópicos centrais nos estudos de cognição.
A cognição visual, por sua vez, é o uso de imagens mentais no pensa-
mento. É importante para se realizar diversas atividades, como:
raciocínio: combinação de elementos familiares para novos procedimentos ou como linha de partida, usando somente componentes elementares;
aprender uma habilidade: a imagem é usada para definir movimentos físicos, como o treino de esportes;
aprender descrições verbais de lugares geográficos: a imagem mental parece ser vital para a interpretação de uma descrição espacial. A cognição também é usada para o entendimento dos nossos movimentos no espaço, a partir da interpretação de um mapa;
criatividade: imagens que podem estimular a descoberta de novas invenções e criar novos conceitos.
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A cognição cartográfica pode ser então entendida como um processo que envolve o uso da mente no reconhecimento de padrões e suas relações no contexto espacial. Contudo, é uma função analítica que não pode ser facil- mente replicada pelos software de Sistemas de Informação Geográfica (SIG)20 devido ao seu processamento analítico linear. Contudo, pode ser realçada pela visualização cartográfica (Taylor, 1994 apud Nogueira 2008).
As imagens mentais do espaço geográfico, formadas na mente humana, são denominadas de mapas mentais ou cognitivos e são usadas na cartografia com os seguintes objetivos:
verificar a relação entre imagens e mapas; usar imagens como mapas;
estudar imagens mentais derivadas de mapas;
estudar como as imagens mentais, em forma de mapas cognitivos, são usadas para estimar distância e direções.
Assim, podemos dizer que os mapas mentais ou cognitivos são a imagem de uma área ou lugar que uma pessoa constrói na mente e derivam da experi- ência nesse local ou da informação que se tem do local por vários meios, como filmes, livros, jornais etc. Na maior parte dos casos, o mapa mental é substan- cialmente diferente dos mapas reais dos atlas: as distâncias e as direções estão distorcidas, as partes bem conhecidas da área são representadas em detalhe no
20 Sistemas de Informação Geográfica (SIG) ou em inglês GIS (Geographic Information
Systems) é um sistema de hardware e software de informação espacial e procedimentos computacionais que permitem a análise e representação do espaço e dos fenômenos presentes em determinada área.
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mapa, enquanto outras, menos conhecidas, são apenas esboçadas ou vagas (Small, 1992 apud Nogueira, 2008).
7.3. A semiologia gráfica
Em função da extensão do objeto ou do fenômeno tal como ele existe na realidade, há três modos de implantação do componente de qualificação: im- plantação pontual, quando a superfície ocupada é insignificante, mas localizável com precisão; implantação linear, quando a largura é desprezível em relação ao seu comprimento, o qual, apesar da redução da escala, pode ser traçado com exatidão; implantação zonal, quando cobre no terreno uma superfície suficiente para ser representada sobre o mapa por uma superfície proporcional homólo- ga (Joly, 1990).
A elaboração de um mapa, em geral ou temático, significa desencadear um processo de comunicação, no caso, comunicação cartográfica (Martinelli, 1991, p.37). No sentido da valorização do aspecto cognitivo do mapa, à somató- ria da metodologia da representação cartográfica e sua respectiva linguagem obtém-se um acréscimo de informação. Na utilização do mapa, há um estímulo da operação mental, através da interação entre o mapa, como produto con- creto e os processos mentais do usuário. Esse processo não se limita somente à percepção imediata dos estímulos, envolve também a memória, a reflexão, a motivação e a atenção (Martinelli, 1991).
Como linguagem exclusivamente visual, devemos entender que a lingua- gem cartográfica é submetida às leis fisiológicas da percepção das imagens.21 Conhecer as propriedades dessa linguagem para melhor utilizá-la é o objeto da semiologia gráfica, discutida por Bertin (1973). A semiologia gráfica está ao
21 Para citarmos dois exemplos, podemos, primeiramente, compreender que a percepção visual das imagens depende de características fisiológicas de nossa visão. Ou seja, enxergamos um determinado espectro da radiação eletromagnética, a chamada luz visível. Não enxergamos, por exemplo, a radiação infravermelha e a ultravioleta (sobre essa questão, cf. próximo capítulo). Dependendo da distância que nosso olho se encontra de determinado objeto, também tendemos a associar ou a dissociar imagens, o que influenciará os valores de percepção, que serão apresentados a seguir.
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mesmo tempo ligada às diversas teorias das formas e de sua representação, de- senvolvidas pela Psicologia contemporânea, e às teorias da informação. Permite avaliar as vantagens e os limites das variáveis visuais empregadas na simbologia cartográfica e formular regras de uma utilização racional da linguagem carto- gráfica, auxiliada hoje por métodos eficientes da informática e automação (Joly, 1990).
As representações gráficas fazem parte do sistema de sinais que o ho- mem construiu para se comunicar com os outros. Compõem uma linguagem gráfica, bidimensional, atemporal, destinada à visão. Devemos levar em consi- deração sua supremacia sobre as demais, pois demanda apenas um instante de percepção. Elas são expressas mediante a construção da “imagem” (forma de conjunto captada num instante mínimo de percepção) e integra o sistema semiológico monossêmico,22 porém distinta da imagem figurativa, como a fo- tografia, de características polissêmicas.23 A imagem visual é construída modu- lando-se as duas dimensões do plano (X e Y), as duas dimensões da folha de papel usada para desenhar, variando-se visualmente as “manchas” em terceira dimensão visual (Z), que atraem a atenção do leitor, cada uma delas inscrita em dada posição no referido plano. Portanto X, Y e Z são os três componentes da imagem, conforme Martinelli (1991, p.10).
22 A definição do sinal (signo) precede a transcrição. A leitura se dá entre significados. Não
há ambiguidades (ex.: equação matemática).
23 O significado do sinal (signo) sucede à observação. A leitura se dá entre o significante e o significado. É o domínio dos códigos (ex.: sinais de trânsito) (Martinelli, 1991).
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Capítulo 8
Linguagem cartográfica e propriedades de percepção
8.1. Linguagem cartográfica
Um dos grandes desafios do ensino da Geografia é a construção da al- fabetização cartográfica com os alunos. O sucesso dessa empreitada permite a formação de leitores do mundo, visto que saber ler o espaço geográfico expres- so nas representações é um importante elemento para o conhecimento.
O uso de mapas como meio de comunicação é muito difundido em nos- so cotidiano. Por exemplo, ao observarmos em revistas e jornais anúncios de publicidade de empreendimentos imobiliários, geralmente há a representação espacial da localização no imóvel na cidade. Contudo, os mapas muitas vezes não cumprem seu papel de comunicação, colaborando para isso o desconhe- cimento das formas de representação cartográfica e do processo de alfabetiza- ção cartográfica.
Para Nogueira (2008, p.27), “a função de um mapa quando disponível ao público é a de comunicar o conhecimento de poucos para muitos, por conse- guinte, ele deve ser elaborado de forma a realmente comunicar”. Os mapas são veículos de transmissão do conhecimento. Eles são representações gráficas de determinado espaço geográfico.
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Outra ponderação importante que deve ser retomada é que o desenvol- vimento tecnológico permitiu um incremento no armazenamento, organiza- ção, produção e aplicação de dados para a geração de mapas que, combinado aos SIG e produtos do Sensoriamento Remoto, têm criado novas fronteiras à análise espacial por meio dos mapas.
O histórico de confecção de mapas pela cartografia de base, ou cartogra- fia sistemática, permitiu uma maior normatização e consolidação das simbolo- gias para representação cartográfica; já para os mapas temáticos, produzidos pela cartografia temática, muitas vezes se requer uma simbolização específica para representar diversos temas, e recorre-se à área da semiologia gráfica, como já tratamos.
Partindo do trabalho inicial de Bertin (1962), percebemos que a semiologia gráfica procura tratar os preceitos que a linguagem cartográfica deve transmitir para estabelecer a comunicação e compreensão através de mapas (Girardi, 2008).
Para a Archela e Thery (2008, p.3) a semiologia gráfica permite avaliar as vantagens e os limites da percepção empregada na simbologia cartográfica e, portanto, formular regras de uma utilização racional da linguagem cartográfica, reconhecida, atualmente, como a gramática da linguagem gráfica, na qual a unidade linguística é o signo ou o símbolo. Essa semiologia gráfica lança mão das chamadas variáveis visuais, que veremos a seguir.
8.2. Variáveis visuais
Dentre as variáveis visuais, ou variáveis gráficas, distinguidas por Bertin para a construção de mapas temáticos que atendam aos objetivos da comuni- cação e, portanto, úteis encontram-se a variação visual: de forma; de tamanho; de orientação; de cor; de valor; e de granulação. Estas são utilizadas, cada qual com suas especificidades, para representar fenômenos qualitativos ordenados ou quantitativos nos modos de implantação pontual, linear ou zonal. Veja neste link um modelo.
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A variável visual forma
A variável visual forma é a característica gráfica mais comum em mapas. As formas normalmente empregadas se utilizam de figuras geométricas ou símbolos pictóricos como: árvore, avião, campo de futebol, bomba de combus- tível, dentre outros. As bibliotecas de símbolos existentes e convenções utiliza- das são diversas, sendo que seu emprego deve estar atento ao tamanho dos objetos e sua distribuição no mapa. Essa variável é ideal para indicar qualitativa- mente informações pontuais, assim como a diferenciação de informações.
A variável visual tamanho
A variável visual tamanho é indicada para representar dados quantitati- vos. Sua implantação pontual ou linear permite a observação das quantidades expressas e a comparação num mesmo mapa ou num conjunto de mapas. O exemplo mais comum de uso dessa variável é a representação por círculos proporcionais que, associada a uma legenda, permite rapidamente o entendi- mento das grandezas da representação.
A variável visual cor
A variável visual cor é bastante seletiva, permitindo que se distinga rapida- mente uma área de outra, um ponto de outro, ou, mesmo, uma linha de outra no mapa. Para seu uso efetivo, é necessário que se recorra adequadamente às suas três dimensões (brilho, saturação e matiz). Na natureza, a cor é a proprieda- de que os objetos possuem de refletir a luz num comprimento de onda domi- nante. O emprego das cores nos mapas temáticos requer um estudo complexo e importante, visto que todas as informações e valores representados devem ter uma reflexão sobre a cor empregada.
A utilização das cores no mapa é cada vez mais comum, sobretudo, pelas possibilidades técnicas de produção e reprodução dos produtos cartográficos. No entanto, sua utilização recorrente não significa que seja um elemento de fácil resolução. Muitos autores e professores consideram a cor a variável visual de uso mais complexo.
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No conjunto do espectro eletromagnético, as radiações visíveis, isto é, aquelas sensíveis ao olho humano, têm comprimentos de onda que vão de 380 até 760 nanômetros (10-9m). Cada faixa dessas radiações corresponde a uma luz de determinada cor (Martinelli, 1991), conforme gráfico a seguir.
As cores do espectro do visível.
As cores apresentam três dimensões, que podem ser utilizadas nos pro- dutos cartográficos, como mapas e gráficos. São elas o matiz, o brilho (valor) e a saturação, conforme exposto por Martinelli (1991) e Nogueira (2008):
O matiz é o espectro da cor descrita pelos nomes como amarelo, ver- melho e verde. O comprimento de onda dominante é a correlação física do matiz. É a cor pura, uma radiação espectral pura, na faixa do visível para os seres humanos.
O brilho (valor) é a quantidade de energia refletida. Uma série de valores pode ser comparada a uma sequência de cinzas, indo desde o preto até o bran- co, com equidistâncias perceptivas. Muitos termos diferentes são usados para a dimensão brilho, tais como valor, escuridão, luminosidade, intensidade, clari- dade e tonalidade. Algumas vezes, aparece o termo valor, sempre esclarecido como luminosidade. Porém, o uso deste é impróprio, na maioria das vezes, por
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causa de discussões simultâneas de valores de dados e valores de cor. Alguns autores preferem o termo tonalidade, principalmente por estarem se referindo a tintas de impressões gráficas.
A saturação pode ser pensada como sendo uma quantidade de matiz na cor. Varia desde um neutro absoluto (cinza) até a cor pura. Por exemplo, verme- lho de luminosidade constante pode se estender do acinzentado ao vermelho puro. Termos alternativos de saturação são cromo, intensidade, pureza e colori- do total, nos quais a intensidade tem sido usada de forma confusa tanto para o brilho como para a saturação.
O sistema RGB (Red, Green, Blue) é o sistema da cor-luz, e CMY (Cyan, Ma-
genta, Yellow) é o sistema da cor-pigmento.
No sistema RGB as cores primárias são vermelho, verde e azul e as secundá- rias são ciano, magenta e amarelo. Também conhecido como síntese aditiva ou sistema aditivo (luminoso). A junção de todas as cores-luz resulta na luz branca. Já no sistema CMY as cores primárias são ciano, magenta e amarelo e as secun- dárias, vermelho, azul e verde. Também conhecido como síntese subtrativa ou sistema subtrativo (refletor). A junção de todas as cores-pigmento resulta na cor preta, como apresentado a seguir.
Início da descrição:
Sistema RGB e CMY escrito em preto grande em um fundo branco. Dividido em dois quadrados, um ao lado do outro.No quadrado do lado direito : A RGB em preto com três círculos envolvidos nas cores azul,verde e vermelho.No outro quadrado em branco a CMY: com três cículos envolvidos nas cores azul,pink e amarelo.
Fim da descrição.
As cores primárias e secundárias. Sistema RGB e CMY
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Outro sistema é o sistema CMYK, que é usado pela indústria gráfica em
vários processos de impressão. Usa o preto (Black, K) e as cores do CMY.
Para entendimento, a cor terciária é uma cor composta por uma primária e uma secundária.
Podemos apresentar uma variação de cores a partir de uma cor central, baseada no espectro eletromagnético, como disposto no círculo das cores ou círculo psicométrico das cores.
Início da Descrição:
Imagem representativa do Círculo Psicométrico das cores. Pequenos círculos coloridos pintados, no sentido horário, com as cores: Oliva, Verde, Turquesa, Ciano, Celeste, Azul, Púrpura, Magenta, Rosa, Vermelho, Laranja e Amarelo. Abaixo, outro círculo colorido, desenhado no sentido horizontal, setorizado em doze partes, pintadas com as cores citadas acima e que demonstra a saturação e valor das cores. Gradualmente, quanto mais próxima do centro, mais escura é a cor de cada setor. Ao meio, perpendicularmente, há uma coluna em formato de retângulo dividido em cinco partes, passando do tom preto, mais abaixo, para o branco, mais acima.
Fim da descrição.
Exemplo do círculo das cores (círculo psicométrico das cores)
I
II
III
Início da Descrição:
IV
V
VI
VII
VIII
100
Gráfico de linha das precipitações registradas em uma estação climatológica da Cidade de São Paulo pelo Instituto Nacional de Meteorologia. Título: Gráfico das Normais Climatológicas. No eixo vertical, está a indicação da variação pluviométrica, que vai do zero ao duzentos. No eixo horizontal, está a indicação dos meses do ano, que vai de janeiro à dezembro. O registro dos dados, no gráfico, é feito por meio de bolinhas verdes, que marcam a quantidade de precipitação ocorrida a cada mês. Abaixo do gráfico, há uma legenda na qual há uma bolinha verde com as indicações – São Paulo – 1961 a 1990 – Precipitações em milímetro cúbico. Unindo as bolinhas verdes dispostas no gráfico, há uma linha. Podemos observar que o mês com maior precipitação é fevereiro, e o com menor é agosto.
Fim da descrição.
Exemplo de indicação de valor e saturação das cores
As cores são sempre as mesmas, e com as mesmas combinações. Inde- pendem de o caso ser aditivo (luminoso) ou subtrativo (refletor). Laranja (ver- melho e amarelo); oliva (verde e amarelo); turquesa (verde e ciano); celeste (azul e ciano); violeta/púrpura (azul e magenta); cor de rosa (vermelho e magenta).
Duas cores são denominadas complementares se, ao serem mescladas, produzem o preto, o branco ou alguma gradação de cinza. Uma cor primá- ria sempre terá uma cor secundária como complementar e vice-versa, sendo sempre contrastantes. A cor secundária complementar de uma cor primária é formada pelas outras duas cores primárias do sistema. Cores terciárias sempre têm outra cor terciária como complementar. As cores complementares são as que mais diferem umas das outras, pois a secundária não possui sua cor primá- ria complementar.
Assim, deve se levar em conta na aplicação das cores as suas três dimen- sões (matiz, brilho/valor e saturação). Devemos ainda ter em mente as proprie- dades perceptivas que melhor são ajustadas às cores, como menciona Marti- nelli (1991):
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– cores puras (saturadas) oferecem a melhor seletividade;
– cores puras (saturadas) não possuem o mesmo valor. De um lado e do ou- tro do amarelo, na sequência espectral, existem sempre duas cores de mesmo valor visual, percebidas mais como semelhantes do que como diferentes. Ade- mais, percebemos que as cores das extremidades são escuras, enquanto que as centrais são claras;
– a percepção dos valores prevalece sobre a percepção dos matizes. Um ver- de e um vermelho de mesmo valor visual mais parecem semelhantes do que diferentes. Assim sendo, podemos ordenar, num crescente, todas as cores do espectro: amarelo, verde claro, laranja, vermelho, azul, violeta.
Desse modo, podemos considerar que:
– a seletividade das cores varia com o valor, nos grupos de cores claras e escuras;
– as cores criam duas ordens visuais opostas, a partir do amarelo (ao centro): cores quentes em direção ao vermelho e cores frias em direção ao violeta (púr- pura).
– as cores de mesmo valor não se ordenam visualmente. Não devemos usá-las para uma representação ordenada.
A variável visual granulação
A variável visual granulação permite separar os dados num mesmo pla- no de visibilidade (Nogueira, 2008). Sua organização permite uma percepção seletiva, ordenada ou associativa. A representação de informações lineares por diferentes espessuras ou espaçamentos de linhas numa mesma direção atribui um resultado visual de diferenciação.
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A variável visual orientação e arranjo
O emprego dessas variáveis geralmente descrevem aspectos qualitativos, no sentido da distinção dos objetos representados. A variável visual orientação é a aplicação de formas pontuais, lineares ou zonais em diversas direções e ân- gulos. Já a variável visual arranjo refere-se às diferentes configurações e formas de linhas, pontos e símbolos utilizadas para distinção de áreas; os padrões de pontos e linhas podem ser do tipo randômico ou sistemático. Esses recursos são utilizados em mapas coropléticos e corocromáticos.
A variável visual de valor
Essa variável visual permite que se observe, sobretudo, a ordenação de valores, normalmente expressos em índices ou percentuais, mas também pode representar uma ordenação qualitativa, como do mais próximo ao mais distan- te, do melhor ao pior.
Utiliza-se o preto, todas as variações de cinza e o branco. Uma maneira de expressar ordenação é, também, utilizar-se do princípio da saturação, como apresentado na variável visual de cor.
8.3. Propriedades de percepção
Segundo Martinelli (1991, 2003), as seis variáveis visuais mais as duas di- mensões do plano (x e y) têm propriedades perceptivas que toda transcrição gráfica deve levar em conta para traduzir adequadamente as três relações fun- damentais entre objetos: de similaridade/diversidade, chamada de percepção seletiva (≠); de ordem, chamada de percepção ordenada (O); e de proporciona- lidade, chamada de percepção quantitativa (Q). As variáveis visuais apresentam propriedades perceptivas intrínsecas diante do nosso olhar.
As relações de similaridade/diversidade podem levar a três tipos de per- cepção – dissociativa, associativa e seletiva –, somando-se às propriedades de percepção ordenada e quantitativa:
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– percepção dissociativa ( ) – a visibilidade é variável. Afastando da vista tama- nhos diferentes, eles somem sucessivamente;
– percepção associativa ( ) – a visibilidade é constante. As categorias se confun- dem; afastando-as da vista, elas não somem;
– percepção seletiva ( ) – o olho consegue isolar os elementos;
– percepção ordenada (O) – as categorias se ordenam espontaneamente;
– percepção quantitativa (Q) – a relação de proporção é imediata.
Quanto ao relacionamento com as variáveis visuais, tem-se o seguinte
aspecto:
– percepção seletiva – cor, tamanho, valor, granulação, forma;
– percepção ordenada – valor, tamanho, cores na ordem natural do espectro visível;
– percepção quantitativa – somente a variável visual tamanho.
Neste link, já indicado, temos um resumo das variáveis visuais e as pro-
priedades de percepção mais adequadas.
A fim de representar o tema do mapa, seja no aspecto qualitativo (≠), or- denado ou quantitativo (Q), tem-se que explorar variações visuais sensíveis com propriedades perceptivas compatíveis; o aspecto qualitativo responde à ques- tão: “O que?”, caracterizando relações de diversidade entre lugares. O aspecto ordenado responde à questão: “Em que ordem?”, caracterizando relações de or- dem entre lugares. E o aspecto quantitativo responde à questão: “Quanto?”, ca- racterizando relações de proporcionalidade entre lugares (Martinelli, 1991, 2003).
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8.4. Leitura, análise e interpretação de mapas temáticos
A leitura, análise e interpretação dos mapas temáticos fazem parte do que se chama “comentário” do mapa. Primeiramente, servem para responder às questões acima expostas (“O que?”, “Em que ordem?”, “Quanto?”). Segundo Martinelli (2003), para cada um desses itens que compreendem o comentário, são necessárias as seguintes observações:
– Leitura: nesta primeira atividade, deve-se verificar o que foi colocado no mapa e como. Para tanto, é preciso atentar para o título para saber do que se trata, onde está o acontecimento e em que data: “O que?”, “Onde?” e “Quando?”
Em seguida, o leitor deve examinar o método de representação escolhido e decifrar a respectiva legenda, avaliando se foram os mais adequados para o tema em questão. Deve ser observado se foi correto o emprego das variáveis visuais, tendo em vista as respectivas propriedades perceptivas utilizadas. Caso contrário, deve-se fazer as críticas necessárias, corrigindo ou sugerindo soluções alternativas.
– Análise: nesta etapa, observamos o que existe em cada lugar, em que or- dem se manifesta, e em que quantidade aparece. Em seguida, verificamos onde está cada atributo que nos interessa e avaliamos como se distribui no espaço. Assim, o leitor pode aprofundar essa abordagem ao: delimitar zonas com esta ou aquela característica; marcar áreas díspares; atentar para as evidências con- trastantes (como, por exemplo, o máximo, o mínimo, verificar a situação média e as transições); avaliar agrupamentos e dispersões, regularidades e irregularida- des; notar sítios ou eixos preferenciais; observar correlações direta, inversa ou in- diferenciada entre os fenômenos expostos, tendências; observar polos e redes de interligações e relacionamentos, centros de dispersão, direção e magnitude de movimentos e transformações.
– Interpretação: ao interpretar, devemos buscar as explicações a partir do que se vê no mapa. Para isso, devemos lançar mão dos conhecimentos já ad- quiridos. Portanto, passaremos a levantar as questões e a aventar hipóteses que possam explicar não só os “porquês?”, mas também os “como?” (ex.: Por que tal configuração é regular? Por que é irregular? O que justifica certa distribuição dos
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fenômenos? Que elementos ambientais, sociais, políticos, culturais ou ideológi- cos intervieram e de que maneira?).
Dessa forma, o comentário do mapa deve reunir o comentário metodo- lógico (sobre a linguagem cartográfica utilizada) e o comentário interpretativo (o que nos diz o mapa?).
8.5. Representações gráficas
Na Cartografia, tem-se observado o emprego de gráficos junto aos ma- pas ou intercalados a estes, como em alguns atlas, para completar informações sobre determinado tema, sendo assim considerados uma forma de comunica- ção. Mapas que em sua construção são sobrepostos por gráficos, numa única representação, são chamados de cartogramas. As sobreposições mais comuns são de gráficos de barras e setogramas (erroneamente chamados de gráficos pizza, por serem circulares e subdivididos em setores do círculo, como se fosse uma pizza dividida em pedaços).
Segundo Nogueira (2008), uma série histórica ou temporal é constituída pelo registro de uma série de observações colhidas em instantes distintos ao longo do tempo. Varia o tempo da observação e são mantidos fixos o lugar e a categoria observados. Por exemplo, a variação da precipitação em uma deter- minada cidade, considerando cada mês de um ano determinado.
Para melhor entendimento desse exemplo, o professor pode consultar a base de dados disponível no Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e terá a possibilidade de construir gráficos e mapas com informações climatológi- cas para apreender e aplicar atividades durante sua prática docente.
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Representação gráfica das precipitações em uma estação da cidade de São Paulo
A série geográfica é aquela constituída pelo registro de uma série de ob- servações colhidas em lugares distintos. Portanto, variam os lugares geográfi- cos das observações e são mantidos fixos o tempo e a categoria observados. Por exemplo, a temperatura média nas capitais da Região Sudeste do Brasil em 2005: são mantidos fixos o tempo (ano 2005) e a categoria (temperatura média anual). Varia o lugar: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Vitória.
Uma série é dita categórica quando mostra o registro de dados diversos, mantendo fixos o lugar de observação e o tempo (data). Por exemplo, a produ- ção agrícola em São Paulo em 2006. São mantidos fixos o tempo (ano 2006) e o lugar (São Paulo). Variam as categorias (soja, cana, laranja, milho).
Uma série é mista quando associa dois tipos de séries. São enquadra- dos aqui dados com variação de lugar e tempo, mantendo fixa a categoria. Por exemplo, a variação das temperaturas médias mensais nas capitais da região Sudeste em 2006. É mantida fixa a categoria (temperatura) e variam o lugar (capitais dos Estados) e o tempo (meses do ano), conforme a tabela a seguir.
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Séries de dados
Tipo de série Organização dos dados
Tempo Espaço Categoria
Histórica ou temporal varia fixo fixa
Geográfica fixo varia fixa
Categórica fixo fixo varia
Mista varia varia fixa
Fonte: Nogueira (2008, p.267).
O uso de gráficos vinculado a mapas temáticos refina a comunicação da informação e permite ilustrar e relacionar as informações contidas no mapa e os elementos inspecionados nos gráficos. Alguns cuidados devem ser tomados durante a confecção de tais produtos. Assim como em mapas, na representa- ção em gráficos deve ser considerado o contraste das linhas, textura, cor e texto (Nogueira, 2008).
Para a expressão de conjuntos numéricos, normalmente são construídos a partir de eixos cartesianos os seguintes gráficos: de linhas, de barras ou colu- nas, histogramas, de setores e ainda os triangulares e pirâmides. Cabe lembrar que elementos de visualização são importantes para seu entendimento como os rótulos dos eixos, legenda, título, escala, fonte de dados, região dos dados e quadro. A seguir, veremos alguns tipos de gráficos mencionados.
Os gráficos de linhas
A representação das ocorrências de uma variável discreta pode ser con- venientemente representada por um gráfico de linha, o qual dispõe dos valores possíveis da variável em um eixo horizontal, enquanto os correspondentes nú- meros de ocorrências são representados pelas alturas das linhas verticais. Um exemplo típico do emprego desse gráfico é a apresentação de uma frequência acumulada, em que os valores observados inseridos no eixo horizontal são acu- mulados até atingir uma frequência de 100% no eixo vertical.
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O gráfico de linhas também permite comparar e acompanhar a evolução no tempo das variáveis representadas, sendo a comunicação visual dos dados facilmente perceptível. O site do Programa das Nações Unidas para o Desen- volvimento (PNUD) dispõe de um conjunto de dados e informações sobre vá- rios países do mundo. Certamente, você encontrará diversas representações em gráficos, dos mais variados temas, conforme o gráfico de linhas a seguir sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de alguns países.
Início da descrição:
Gráfico de linhas faz a correspondência entre a evolução do Índice de Desenvolvimento Humano, durante os anos de 1975 e 2004, nos seguintes países americanos: México, Brasil, Colômbia, Venezuela e Peru. Para cada país há uma linha personalizada registrando os dados de evolução. O Ìndice de Desenvolvimento Humano varia de zero vírgula seiscentos e trinta, à zero vírgula oitocentos e trinta. O país com maior índice em 2004 é o México, e o menor é o Peru.
Fim da descrição.
Gráfico de linhas, com variação espacial e temporal
Os gráficos de barras ou colunas
Os gráficos de barras ou colunas permitem a comparação quantitativa de um determinado dado ou de diversos grupos. Esse tipo de gráfico também é utilizado para representar variações ao longo do tempo. Observe o gráfico de coluna a seguir extraído do site do IBGE. Nele é possível comparar a evolução
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do número de pessoas que declarou professar determinada religião ao longo do tempo.
Gráfico de colunas mostrando variação quantitativa dos temas em dois períodos distintos no tempo em um
determinado local
Histogramas
As informações contidas em representações por histograma são resulta- do da organização/classificação de dados em subconjuntos, de acordo com a análise dos dados em questão. O histograma procura representar a frequência das ocorrências, ou porcentagem das frequências de um determinado conjun- to de dados na ordenada de um eixo cartesiano. Por exemplo, nos produtos do sensoriamento remoto é possível observar a frequência de ocorrência de um pixel num determinado nível de cinza, por meio da visualização de um histo- grama da imagem.
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Gráficos de setores ou setograma
São utilizados quando se pretende comparar cada valor com a série total. A construção de gráficos de setores é feita pela divisão de um círculo em partes, ou setores, de tal forma que cada parte tenha uma distribuição proporcional com os valores da série. No sítio da EM-DAT sobre banco de dados de desastres é possível obter mapas associando gráficos de setores sobre esses eventos em escala mundial, conforme exemplo abaixo.
Início da descrição:
Ilustração de um cartograma, unindo um mapa-mundi e gráfico de setores, mostrando a proporção dos tipos de desastres em sub-regiões do mundo entre 1974 até 2003. Mapa-mundi planificado com matizes de cores avermelhadas. Espalhados por diversos países, desenho de mini gráficos de setores com as seguintes cores e seus significados. Dados pela legenda: Marrom: Secas; Verde claro: Terremotos; Roxo: Inundações; Azul claro: Avalanches e deslizamentos; Amarelo: Vulcões; Azul escuro: Tempestades de ventos; Verde: Outros.
Fim da descrição.
Cartograma, unindo um mapa-múndi e gráfico de setores, mostrando a proporção dos tipos de desastres em
sub-regiões do mundo entre 1974-2003
Gráficos triangulares
A organização de dados em barras justapostas de forma a construir uma pirâmide produz um tipo de gráfico específico para análise da dinâmica da po- pulação (Nogueira, 2008). Para o IBGE, a pirâmide da população é uma repre- sentação gráfica da distribuição de uma população, segundo idade e sexo. A organização de dados nesse tipo de gráfico permite a comparação entre os grupos de idades e sexo da população de acordo com intervalos considerados.
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No site do IBGE, você pode acessar diversos exemplos desses dados e utilizar no seu dia a dia e em suas análises e estudos.
Gráfico triangular tipo pirâmide mostrando variação quantitativa em classes etárias considerando 3 períodos
distintos no tempo para homens e mulheres
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Parte III
Ciclos da natureza e dinâmica da paisagem
José tadEu Garcia toMMasElli
Professor doutor do Departamento de Geografia, Unesp (Presidente Prudente). Professor das
disciplinas de Climatologia, Hidrologia, Meteorologia e Ciências do Ambiente.
salvador carpi Junior
Profissional de pesquisa no Departamento de Geografia, Instituto de Geociências, Unicamp, e pós-doutorado na Unesp (Presidente Prudente).
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Apresentação
esta parte, serão abordados vários temas sobre o ambiente, partindo de definições básicas importantes para o entendimento dos demais temas, desde a origem do universo até a origem e formação da
Terra, onde ocorrem os ciclos que nos interessam. Considerando os aspectos dinâmicos do ciclo das rochas, é importante entender a estrutura interna da Terra e a escala geológica, para termos noção da escala de tempo dos ciclos e dos fenômenos associados. Também é introduzida a teoria da deriva continental e da tectônica terrestre, para se ter um entendimento claro do ciclo das rochas. Portanto, são abordados os princípios para o entendimento da dinâmica das placas litosféricas, desde as forças que as movem até as feições geradas com novas paisagens que surgem para, então, introduzir o ciclo das rochas e associá- lo aos processos que a tectônica impinge ao sistema terrestre. Na sequência, mostraremos o ciclo do carbono, em suas escalas geológica e biológica, e a sua importância como pedra fundamental das estruturas orgânicas e também como regulador climático, como componente dos gases do efeito estufa e seu papel nas mudanças climáticas, assim como suas interações antropogênicas. A seguir mostramos o ciclo da água apresentando os caminhos por ela percorridos e mostrando que todos eles interagem e fecham em um único ciclo. É importante mostrar o papel dos oceanos como regulador desse ciclo e, fundamentalmente, como regulador do clima e sua importância nas mudanças climáticas (ou alteração de um ciclo climático estabelecido). Finalmente, o ciclo do nitrogênio, pouco conhecido, mas importante, principalmente nos dias atuais, quando muito nitrogênio está se depositando em locais atípicos alterando o
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ciclo estabelecido e criando um cenário de poluição extremamente delicado, pois seus ciclos são, ainda, pouco compreendidos. Aqui tentamos mostrar como funciona esse ciclo e como as novas atividades antrópicas podem alterá- lo com consequências nefastas para o ambiente. A presença das atividades antrópicas nos leva a refletir sobre a presença de tempos rápidos que se juntam aos tempos lentos, predominantes nos ciclos da natureza. Ambos os tempos, rápidos e lentos, podem estar em descompasso ou desequilíbrio e podem se configurar como problemas ambientais. A dinâmica das paisagens surge, então, como elemento fundamental na compreensão do espaço geográfico. Para isso, são abordados temas como as características da paisagem, suas componentes naturais e sociais, suas modificações e interferências nos limites da adaptação humana. Abordamos também as variações de escala de vínculo com a paisagem, entre o lugar e o mundo. Na questão do lugar, nota-se um riquíssimo campo de estudos e de aplicações didáticas, pois é nessa categoria que se concentram as possibilidades de percepção, leitura e interpretação da paisagem. Em relação ao mundo, poderá ser notada a importância da utilização de satélites orbitais na produção de imagens a serem interpretadas, mas que também apresentam excelentes recursos em escalas menores. Por último, encerramos esta parte com o tema mais complexo, relacionado à crise ambiental e sustentabilidade em nosso planeta. Trata-se quase de uma síntese, pois se de um lado temos a natureza e seus ciclos, do outro temos a ação humana cada vez mais intensa e rápida, incrementando o dinamismo da paisagem. Como alguns dos resultados dessa crise ambiental, temos problemas ambientais cada vez mais globais, o que levou a um aumento da preocupação internacional sobre o tema, acompanhada de uma série de esforços ou omissões coletivos e individuais.
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Capítulo 9
Noções preliminares de geodinâmica
9.1. Introdução
A natureza é regida por vários ciclos, em escalas de tempo tão distintas que podem abranger tempos da ordem de segundos, ou menos, passando por séculos e chegando até milhões de anos, ou mais.
A quantidade de ciclos que a natureza apresenta é imensa, e a ciência humana já identificou vários desses ciclos, mas à medida que o conhecimento e a tecnologia nos provêm de novos “olhos” percebemos que pouco se conhece a respeito dos ciclos já estabelecidos e que muitos outros ciclos existem, mas ainda não conseguimos identificá-los. Também devemos sempre ter em mente que muitos ciclos nunca perceberemos ou veremos, apenas saberemos que existem, porque estão muito além de nossa escala de tempo.
Eleger quais os ciclos mais importantes da natureza não é tarefa fácil, nem elementar, mas em razão do que a ciência já sabe a respeito da natureza, alguns ciclos devem ser mencionados e entendidos com mais profundidade, pois o conhecimento deles e de suas variações nos fornecerá uma maior gama de subsídios para entendermos como a natureza age e, quando necessário, saber interferir sem obstruir seus caminhos e sem alterar seus ciclos. Esse modo de in- teração com a natureza é fundamental e compõe o novo paradigma ambiental, normalmente mencionado como “sustentabilidade”.
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Apenas para nos localizarmos, em linhas gerais, alguns ciclos que serão abrangidos aqui devem ser mencionados, a saber: o ciclo geológico (ciclo das rochas), o ciclo da água, o ciclo do carbono e por fim, mas não menos impor- tante, o ciclo do nitrogênio.
Independente do que será abordado nos próximos tópicos, é fundamen- tal entendermos como se formou o nosso sistema solar e a Terra. Depois, é importante entendermos a evolução histórica do planeta e os ciclos inerentes. Por fim, veremos os ciclos mais externos do planeta.
9.2. Algumas definições importantes
Ao se tratar de um assunto envolvendo o ambiente terrestre, é importan- te que sejam definidos alguns elementos que compõem toda a estrutura desse ambiente. Assim, é fundamental entender as diferenças entre biosfera, geosfera, litosfera, hidrosfera, criosfera e atmosfera.
Em 1875, Suess, um geólogo austríaco, cunhou o termo biosfera, em uma analogia com os demais termos já existentes, utilizado para se referir aos demais sistemas terrestres, como, por exemplo, a atmosfera. Assim ficou definido que biosfera (do grego: bios = vida) designa o conjunto de todos os seres vivos e seus habitats no planeta Terra.
A litosfera (do grego: lithos = pedra) é, por definição, a camada rígida mais externa do planeta e compreende a crosta e a parte superior do manto. É um dos principais ambientes físicos da Terra, pois é base de boa parte da vida terrestre e juntamente com a hidrosfera e a atmosfera, principalmente, com- põem a biosfera, pois são os suportes de vida. A litosfera compõe toda a super- fície da Terra, desde os topos do Everest até as mais profundas fossas oceânicas.
A atmosfera (do grego: atmos = vapor, ar) é uma “camada” relativamente fina de gases e de pequeníssimas partículas (aerossóis) que envolve a Terra. Os gases se mantêm presos ao planeta graças à ação da gravidade. Na realidade, cerca de 99% de toda a massa atmosférica está contida em uma estratificação de espessura aproximada de 32 quilômetros. A atmosfera determina a vida e o funcionamento dos processos físicos, químicos e biológicos, e protege os organismos da exposição às radiações nocivas do Sol (por exemplo, a
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ultravioleta). Também contém os gases necessários aos processos de fotossíntese
e respiração.
A hidrosfera (do grego: hidro = água) é o sistema terrestre que é com- posto por todos os corpos de água do planeta. Por esse motivo, ela não é con- tínua, como a atmosfera, por exemplo. As águas que compõem a hidrosfera são oriundas das seguintes fontes: rios, lagos, lagoas, mares, águas subterrâneas (solo e rochas), águas marinhas, águas salobras, águas glaciais, “lençóis” de gelo e vapor d’água do ambiente. Esses reservatórios representam 71% da superfí- cie terrestre. A hidrosfera é um dos sistemas que compõem a biosfera sendo representada pelos organismos vivos que dependem da água para habitá-la e também pelos habitats aquáticos.
A criosfera (do grego: crios = frio, gelado ou gelo) representa a parte da Terra que é água no estado sólido permanente, incluindo grandes massas de gelo, tais como: gelo do mar, dos lagos e dos rios; cobertura de neve, geleiras, capas de gelo, calotas polares e a água congelada nos solos (permafrost). É o maior reservatório de água doce do planeta, com cerca de 80% do total. A crio- sfera é fundamental no equilíbrio climático do planeta e na dinâmica atmosfé- rica e oceânica da Terra.
A geosfera (do grego: geo = terra) se refere, em geral, às partes mais den- sas da Terra que são compostas por rochas e regolito. Na concepção aristo- télica, o termo era empregado aos quatro locais naturais da Terra, cujo ponto comum era algo próximo ao centro da Terra e supunha-se que poderia explicar os movimentos dos quatro elementos: água, ar, fogo e terra. Por outro lado, os textos mais atuais relacionam a geosfera com as partes sólidas da Terra e o termo é utilizado juntamente com atmosfera, hidrosfera e biosfera para descre- ver os sistemas terrestres. Entretanto, às vezes, utiliza-se o termo “litosfera” para designar a geosfera, o que pode levar a alguns erros conceituais, pois litosfera se refere apenas às camadas mais externas da Terra (especificamente as camadas sólidas, crosta e manto superior).
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9.3. A estrutura interna do planeta Terra
No sistema solar, o planeta Terra é o único comporta vida e que apresen- ta características específicas em seu interior. Nenhum planeta do sistema solar tem as características dinâmicas do interior rochoso como a Terra. Alguns deles, tais como Marte, já tiveram passados geológicos semelhantes, mas em deter- minado momento desse passado geológico reduziram a sua dinâmica interna e se tornaram planetas inertes.
Durante muito tempo, pouco se soube sobre o interior do planeta Terra. Mas com o advento dos equipamentos sísmicos e conhecendo-se as proprie- dades de propagação das ondas sísmicas no interior dos objetos sólidos ficou plausível inferir a estrutura interna do planeta Terra. Foi possível também elabo- rar várias teorias e modelos que descrevem o interior da Terra e tentam avaliar como é essa dinâmica interna e como ela influi na paisagem da superfície do planeta.
Estrutura interna da terra
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Um dos primeiros cientistas a estudar esses dados sísmicos foi o croata Andrija Mohorovicic (1909), que percebeu várias alterações nos padrões das ve- locidades das ondas sísmicas. Entre essa camada superficial, chamada crosta, e a camada sobre a qual ela jaz, havia uma descontinuidade, que mais tarde pas- sou a ser denominada de descontinuidade de Mohorovicic, ou simplesmente Moho. Essa descoberta foi peça fundamental para as análises posteriores que levaram à conclusão de que todo o interior da Terra era extremamente dinâmi- co com forças que arrastam continentes.
9.4 A escala geológica da Terra
Desde o surgimento da Terra, ela sofreu, e continua sofrendo, alterações geológicas profundas. Entretanto, as alterações mais antigas são mais difíceis de perceber, pois suas evidências já foram destruídas pela própria dinâmica ex- terna do planeta. Esse é um problema típico dos geólogos, que para facilitar o entendimento da evolução geológica do planeta resolveram criar uma escala de tempo específica para marcar todas as eras geológicas e os eventos associa- dos. Como os eventos mais antigos já estão mais “mascarados” pelas transfor- mações ao longo do tempo, as divisões das eras iniciais são bem mais amplas e conforme avançamos no tempo os intervalos vão ficando menores, gerando uma escala de tempo geológico bem mais detalhada.
A história geológica da Terra mostra que desde o seu princípio há a presença de ciclos. Deve-se observar que sempre há surgimento e extinção de espécies vegetais e animais no decorrer do tempo, como, por exemplo, os dinossauros. Assim, supondo-se essa escala de tempo, devemos esperar que no futuro as espécies atuais estejam extintas ou evoluídas para novas formas, repetindo esse ciclo de evolução. Não se deve esquecer que isto ocorre numa escala de tempo de milhões de anos, o que não está ao alcance de nossa per- cepção direta. As figuras e textos que se referem ao tema de tempo geológico têm pequenas diferenças nos inícios e finais das eras geológicas, devido a im- precisões das datações.
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9.5 A tectônica global e a deriva dos continentes
9.5.1 Introdução
A palavra tectônica é derivada do grego e significa “aquilo que é rela- cionado a construir”. Esse termo é muito apropriado se pensarmos que são os processos tectônicos que constroem o relevo do planeta, como se verá a seguir.
A teoria da tectônica global descreve os movimentos da litosfera terrestre, que acontecem em escala global e ao longo de milhões de anos. Essa teoria foi construída com base no conceito de deriva continental, o qual foi desenvolvi- do entre os anos de 1912 e 1915, por Wegener e, posteriormente, foi incorpo- rado o conceito de expansão do assoalho submarino, desenvolvido nos anos 1960, com base nos dados do assoalho do Oceano Atlântico, obtidos logo após a Segunda Guerra Mundial.
Em síntese, de acordo com a teoria da tectônica global, a litosfera ter- restre está subdividida em várias placas litosféricas, que são mais conhecidas como placas tectônicas, ou seja, a parte mais externa da Terra, a sua “casca”, está toda fraturada e forma algumas placas, em número que pode variar de 7 a 12, dependendo de como se classifica as divisões. Independente do número de placas, não há nenhuma dúvida de que elas existem, e o mais espantoso é que elas se movem, conforme já havia afirmado Wegener.
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Placas litosféricas
As placas litosféricas estão apoiadas sobre uma camada mais interior da Terra com característica de ser mais quente e mais maleável: a astenosfera. Essas placas se movem, uma em relação à outra, e formam regiões de contato de três tipos: convergentes (colisão), divergentes (dispersão) e transformantes (cisalhamento). É ao longo dessas regiões de contato que acontece a construção das montanhas, as atividades vulcânicas, os terremotos e a formação das fossas oceânicas. Em um intervalo de tempo bem longo, da ordem de milhares de anos, embora essas placas se movam, elas o fazem em velocidades imperceptíveis ao ser humano: da ordem de dezenas de milímetros por ano. Atualmente, esses movimentos são facilmente comprováveis pelas medidas feitas pelas estações de monitoramento e controle dos satélites da constelação GNSS.1 Esse tipo de
1 GNSS (Global Navigation Satellite Systems): é um termo genérico para se referir aos
Sistemas Globais de Navegação por Satélite. Atualmente, dois deles estão em operação, o GPS (norte-americano) e o Glonass (russo). Encontra-se em desenvolvimento o Galileo (europeu) e o Compass (chinês).
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comprovação praticamente tira a tectônica global do universo da teoria e a coloca no universo do real.
Esse movimento das placas litosféricas é possível porque elas têm um caráter de maior rigidez e menor densidade em relação à astenosfera, que fica logo abaixo delas (mais densa e plástica). Atualmente, as conjecturas sobre as forças que impulsionam esse movimento apontam para a movimentação do material quente do manto terrestre (lembrar que a astenosfera é a parte supe- rior a esse manto). Por razões ainda não bem esclarecidas, o manto costuma ge- rar variações laterais de densidade (mais provavelmente, por causa de variações de temperatura) que normalmente, por sua vez, geram células de convecção, as quais são transformadas em movimentos das placas, por intermédio de com- binações de arrastes, de sucção para o interior do manto e, também, variações na topografia e densidade da crosta terrestre, que resultam em diferenças na força gravitacional. Ainda não há clareza e nem consenso geral sobre o grau de importância de cada uma dessas componentes no processo de movimentação das placas litosféricas.
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9.5.2 Princípios e fundamentos
Como já visto, o interior da Terra é todo estratificado. As camadas (ou es- tratos) mais exteriores são a litosfera e a astenosfera. A diferenciação entre essas duas camadas é feita com base na diferença de propriedades mecânicas e da maneira de transferir calor de cada uma delas. Em termos mecânicos, a litosfera é mais fria e rígida, e a astenosfera é mais quente e plástica, o que torna mais fácil a presença de fluxos. Em termos de transferência de calor, a litosfera perde calor pelo processo de condução,2 enquanto a astenosfera perde calor por con- vecção.3 Embora haja uma divisão entre litosfera e astenosfera, dependendo das condições de temperatura e pressão uma determinada quantidade de material do manto terrestre pode fazer parte tanto da litosfera quanto da astenosfera em tempos distintos, ou seja, há um equilíbrio dinâmico entre as camadas.
O principal fundamento da tectônica de placas é que a litosfera é com- posta de placas litosféricas, ou tectônicas, distintas e separadas que se movem sobre uma astenosfera, composta de um material plástico (ou visco-elástico). Os movimentos dessas placas oscilam entre valores típicos da ordem de 10 a 40 milímetros por ano (Cadeia Mesoatlântica; valor igual, por exemplo, ao cresci- mento das unhas humanas), até valores extremos da ordem de 160 milímetros por ano (típico da placa de Nazca, valor igual, por exemplo, à velocidade de crescimento do cabelo humano).
2 Condução é o processo físico em que a transferência de energia se dá pela vibração dos
átomos que compõem a substância.
3 Convecção é o processo físico em que a transferência de energia se dá pelo transporte
de matéria.
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Cadeia Mesoatlântica
Placa de Nazca
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As placas tectônicas são compostas pelo manto litosférico sobreposto por dois tipos de material crustal: crosta oceânica e crosta continental. A camada litosférica oceânica típica tem espessura da ordem de 35 quilômetros
– a espessura depende da idade da placa. Como as placas são formadas nas
dorsais meso-oceânicas e se expandem divergindo da dorsal, a espessura de
uma placa é função de sua distância da dorsal onde ela se formou. As espessuras
típicas das placas oscilam entre 6 quilômetros, nas zonas das dorsais, a 100
quilômetros, nas zonas de subducção, podendo ser mais ou menos espessa
dependendo da distância entre as dorsais e as zonas de subducção. A litosfera
continental, por sua vez, tem espessura da ordem de 200 quilômetros, embora
isso varie significativamente entre bacias, montanhas e interior dos continentes.
Outra variação significativa é a diferença entre as crostas continentais e as
oceânicas, as primeiras com espessuras médias de 35 quilômetros e as segundas,
6 quilômetros.
A região de contato entre as placas é chamada de limite entre as placas e estão sempre associadas com eventos geológicos, tais como terremotos e eventos criadores de feições topográficas como: montanhas, vulcões, dorsais meso-oceânicas e fossas oceânicas. A maioria dos vulcões ativos da Terra está nessas regiões de limite entre as placas tectônicas, sendo que a região vulcânica mais ativa e mais conhecida é o chamado Cinturão de fogo do Pacífico. Na sequência do texto isto será visto com mais detalhes.
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Limites entre as placas
Cinturão de fogo do Pacífico
As placas tectônicas podem conter crosta continental ou crosta oceânica, ou ambas, como é o caso da Placa Africana, constituída por parte do assoalho atlântico e parte do assoalho índico.
A distinção entre crosta oceânica ou continental é feita com base na geologia de suas formações. As crostas oceânicas são formadas nos centros de expansão dos assoalhos marinhos (por exemplo, Cadeia Mesoatlântica) e as crostas continentais, através do vulcanismo e da acresção levada a cabo pelos processos tectônicos. As crostas oceânicas são mais densas que as continentais devido à sua composição distinta, por possuir menos silício e maior quantidade de elementos mais pesados (magnésio e ferro). As crostas continentais são ricas em materiais mais leves (silicatos). Por causa dessa diferença de densidade, as crostas oceânicas geralmente estão abaixo dos mares (caso típico da Placa do Pacífico) e as continentais se projetam acima do nível do mar, por terem mais flutuação (isostasia)4. Isso também favorece a subducção das placas oceânicas nas regiões de convergências com as placas continentais.
4 Isostasia é o estado de equilíbrio gravitacional e as suas alterações, entre a litosfera e
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9.5.3 Os limites entre as placas litosféricas
Quando as placas litosféricas se encontram elas geram regiões especí- ficas, com características próprias de relevo e paisagens. Em tese, existem três tipos de limites que são caracterizados pela maneira como uma placa se move em relação à outra. Esses limites estão associados com fenômenos que ocor- rem na superfície.
Os limites divergentes ou construtivos ocorrem onde uma placa está se afastando em relação à outra. Os locais onde isso acontece no planeta são, basicamente, as dorsais meso-oceânicas (por exemplo, a Mesoatlântica) e as zonas ativas de abertura, ou rifting (Vale Rifte, na África). A terminologia ingle- sa rift (fenda, fratura, abertura) foi aportuguesada pelos geólogos para “rifte” e expressa todas as características dos vales formados no processo de abertura ou rifteamento.
Os limites convergentes ou destrutivos, também denominados de margens ativas, ocorrem nas regiões de encontro entre duas placas tectônicas que se movem em sentidos contrários e se chocam. Nessa região de choque costu- mam se formar zonas de subducção, se uma das placas entra por debaixo da outra; ou colisões continentais, se as duas placas forem continentais. As zonas de subducção são características por apresentarem fossas marinhas profundas. A placa que está sofrendo subducção (mais densa) normalmente é rica em mi- nerais hidratados (com água em sua estrutura) que liberam a água quando se aquecem. Esse vapor d’água dissolvido no manto favorece seu derretimento, produzindo material magmático, que é a matéria prima geradora de eventos vulcânicos. A cadeia montanhosa dos Andes e as ilhas japonesas são exem- plos clássicos de encontro de placas litosféricas.
a astenosfera da Terra. As placas tectônicas “flutuam” sobre o material mais denso da astenosfera e o equilíbrio depende das suas densidades relativas e do peso da placa. Se houver aumento de peso (sedimentos, gelo ou água sobre a sua superfície) há o afundamento, se o peso diminuir há uma ascensão.
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Os limites transformantes ou conservativos ocorrem nos locais onde as placas escorregam uma em relação à outra, num processo semelhante ao se atritar um corpo contra o outro. A região de contato entre essas duas placas geram as falhas transformantes. Nessas regiões são muito comuns os tremores, mas não há ocorrência de eventos vulcânicos, pois não há movimento de ma- terial entre a superfície e o manto (veja, por exemplo, a Falha de San Andreas, na Califórnia).
9.5.4. As forças que movimentam as placas litosféricas
As placas litosféricas podem se mover por causa da maior densidade das placas oceânicas e da relativa plasticidade da astenosfera. Atualmente, a comunidade científica aceita que a fonte de energia para impulsionar as placas litosféricas é a dissipação de calor dentro do manto terrestre, gerando fluxos verticais de material magmático, denominado convecção do manto.
A visão mais atual, embora ainda seja assunto de debate, é que as densi- dades elevadas das placas litosféricas oceânicas afundando nas zonas de sub- ducção é a fonte mais poderosa de energia para movimentar as placas. Quando elas se formam nas cadeias meso-oceânicas, as placas litosféricas oceânicas são,
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inicialmente, menos densas que a astenosfera subjacente, mas se tornam mais densas com o passar do tempo e paulatinamente frias e espessas. A maior den- sidade da antiga placa, em relação à astenosfera logo abaixo, possibilita que as placas litosféricas afundem e mergulhem no manto nas zonas de subducção, fornecendo a maior parte da força impulsionadora do movimento das placas. A plasticidade da astenosfera é que possibilita que as placas se movam com relativa facilidade em direção a essas zonas de subducção.
Embora se acredite que a subducção seja a força impulsionadora mais ativa, ela não pode ser a única, pois existem placas litosféricas se movendo e que não estão sofrendo nenhum processo de subducção (como, por exemplo, a Placa Norte-Americana e a gigantesca Placa Eurasiana).
Em última instância, pode ser dito que a fonte de energia responsável pela movimentação das placas ainda é matéria de pesquisa e de discussões acaloradas entre os geólogos e cientistas das áreas correlatas.
As imagens que são feitas do interior da Terra, por uma técnica chamada tomografia sísmica, mostram que o manto apresenta regiões com variações de densidade geradas, talvez, por variações térmicas. Mas o que nos interessa é: são essas diferenças que criam forças de flutuação e geram as convecções do man- to? Embora a teoria afirme que essas correntes de convecção são fundamentais na movimentação das placas litosféricas, ainda é matéria de futuras pesquisas e de muita discussão em geodinâmica se essas correntes estão relacionadas de modo direto ou indireto com o movimento das placas litosféricas. De qualquer modo, essa energia tem que ser transferida do interior da Terra (manto) para o exterior (litosfera) para mover as placas. Essencialmente, aceita-se que dois tipos de forças influenciam o movimento das placas: atrito (fricção) e gravidade.
O atrito pode ser pensado de dois modos: (1) o arrasto basal, em que as correntes de convecção do manto chegam até a astenosfera, que se movimen- ta friccionando a litosfera, arrastando assim as placas sobrejacentes; (2) sucção da placa, em que as correntes de convecção “empurram” para baixo as pontas das placas nas zonas de subducção. A diferença é que nesse último caso o pro- cesso de arrasto pode ocorrer dos dois lados da placa em subducção.
No deslizamento gravitacional, o movimento das placas é impulsionado
pela maior elevação das placas nas regiões das dorsais oceânicas. À medida
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que a litosfera oceânica se forma nas regiões das dorsais meso-oceânicas, com o material novo proveniente do manto, ela gradualmente se esfria e fica mais espessa, assim, fica mais distante da região da dorsal. A litosfera oceânica é bem mais densa do que o material do manto do qual ela derivou e, desse modo, com o aumento de espessura gradualmente ela sofre subsidência para compensar o aumento de carga (peso). O resultado é uma ligeira inclinação de modo que a placa fica mais baixa à medida que fica mais longe da dorsal.
Como ainda não há uma definição muito clara de quais forças são mais importantes no movimento das placas litosféricas, novas ideias são apresenta- das, como a possível influência da Lua.
Embora haja tal indefinição, já se sabe que as placas litosféricas se movem
e também qual o sentido atual de seus movimentos. Isso é feito monitorando- -se as variações anuais das coordenadas geográficas, efetuadas por responsá-
veis pelo monitoramento do GNSS. Já é fato o acompanhamento em tempo quase real desses movimentos da crosta, como no caso do último terremoto que ocorreu no Chile e que afetou profundamente a cidade de Concepción.
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Capítulo 10 O ciclo das rochas
Em Geologia, há um conceito fundamental denominado “ciclo das ro- chas”. Este conceito descreve, numa escala de tempo geológica, as transições dinâmicas entre os três principais tipos de rochas conhecidos: ígneas, metamór- ficas e sedimentares.
Todas as rochas podem ser alteradas ou destruídas quando submetidas às condições que as tirem de seus estados de equilíbrio. Por exemplo, uma ro- cha ígnea do tipo do basalto pode ser desestruturada e dissolvida se exposta às condições de intemperismo da atmosfera, ou pode até mesmo ser novamente fundida se sofrer um processo de subducção sob uma placa tectônica.
Considerando que o planeta Terra tem uma “tectônica de placas” ativa e dinâmica e possui um ciclo hidrológico vigoroso, é praticamente impossível que as rochas consigam manter-se em equilíbrio, o que faz com que elas sofram mudanças durante o tempo em que vão sendo expostas às diferentes condi- ções de ambiente.
O “ciclo das rochas” normalmente é representado em um diagrama em forma de triângulo, tendo em seus vértices os três tipos fundamentais de rocha, com setas indicando os possíveis processos de transformação (veja diagrama do ciclo das rochas), mas, para efeitos didáticos, costuma-se representá-lo de outra forma (veja a representação).
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O ciclo das rochas
Originalmente, o conceito de “ciclo das rochas” foi atribuído a James Hut- ton, considerado o pai da Geologia, no século XVIII. Esse conceito fez parte do uniformitarismo5 de Hutton e de sua ideia de nenhum vestígio do começo e nenhum prospecto do fim, aplicada ao ciclo das rochas e à natureza cíclica dos processos geológicos. Contudo, esse conceito de um ciclo repetitivo e não evolucionário caiu por terra quando se embasou a revolucionária teoria da tec-
5 O uniformitarismo (teoria atribuída a Hutton) advoga que distintos aspectos geológicos
podem ser interpretados segundo processos naturais análogos aos que ocorrem atualmente, ou seja, o presente é a chave do passado. Ele baseia-se em três princípios: das causas atuais, do gradualismo e de que as leis naturais são constantes no espaço e no tempo.
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tônica das placas litosféricas, nos idos dos anos de 1960, já vislumbrada muito antes por Wegener em 1915.
10.1 Rochas ígneas
Quando as rochas são aprofundadas para o interior da Terra, bem abaixo da superfície, elas sofrem pressões imensas e se aquecem de tal modo que derretem formando uma massa fluida denominada magma. Se essas condi- ções deixarem de existir, o magma será resfriado, deixará a sua condição de fluído e se solidificará em uma nova rocha, que será denominada de rocha íg- nea (do latim, ignis = fogo). Se esse processo de resfriamento e solidificação ocorrer dentro da Terra, abaixo da superfície, a rocha receberá o nome de ígnea intrusiva ou plutônica; esse resfriamento se dará muito lentamente e produzirá uma textura granulada grosseira. Por outro lado, se o magma for resfriado na superfície, como acontece quando ele é expelido por atividade vulcânica, re- ceberá o nome de lava; seu resfriamento se dará bem mais rapidamente do que no caso anterior, devido à exposição atmosférica. A rocha gerada por esse processo receberá a denominação de rocha ígnea extrusiva ou vulcânica. Como essas rochas se resfriam muito rapidamente, e não há possibilidade de arranjo de cristais (como acontece nas intrusivas), elas se formam com uma textura mui- to fina e apresentam um aspecto similar a um vidro natural.
Qualquer tipo de rocha, seja ígnea, metamórfica ou sedimentar, pode sofrer o processo de fusão no interior da Terra, se transformar em magma e, posteriormente, em uma rocha ígnea.
10.2 Rochas metamórficas
Quando as rochas ficam expostas a altas temperaturas e/ou pressões elas podem sofrer algumas mudanças físicas e/ou químicas e se transformarem em outro tipo de rocha. Quando essas mudanças ocorrem por meio da fusão (der- retimento), as novas rochas geradas serão ígneas, mas se elas apenas se defor- marem (processo físico) ou alterarem sua constituição mineralógica ou química (processos químicos), a nova rocha gerada será denominada metamórfica.
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O metamorfismo regional está relacionado aos efeitos sobre imensas massas rochosas distribuídas em uma área muito ampla, tipicamente associado ao processo de criação das montanhas. Esses eventos ocorrem dentro de uma região que denominados “cinturões orogenéticos”. As grandes cadeias monta- nhosas, como Himalaia, Andes, Alpes etc., são exemplos claros de regiões de orogênese e ali se encontram muitas rochas metamórficas.
Outro tipo de metamorfismo ocorre quando as rochas entram em conta- to com as rochas ígneas, ou com o magma, sofrendo um aquecimento muito grande, mas sem sofrer fusão, alterando a estrutura dessa rocha.
10.3 Rochas sedimentares
Quando as rochas ficam expostas ao ambiente externo do planeta elas se instabilizam e ficam sujeitas a dois processos: intemperismo e erosão. O intempe- rismo quebra a rocha em fragmentos menores ou partículas que serão depois transportados pela água ou pelo vento para as regiões mais baixas do relevo. Esse material fragmentado, na presença de condições favoráveis, é depositado e sedimentado, sendo posteriormente coberto por mais material, proveniente da mesma rocha matriz, ou de outras, dependendo das alterações do ambien- te. Embora esses pequenos fragmentos ou partículas que deram origem àquele sedimento possam ser de rochas ígneas, metamórficas ou sedimentares, a nova rocha formada pela acumulação desse material desgastado é uma rocha sedi- mentar.
Os ambientes mais propícios para a formação de rochas sedimentares são lagos calmos, pois além de favorecem a deposição dos materiais que são drenados até eles, também contribuem com a presença dos agentes cimentan- tes, que darão as características de rigidez da rocha formada.
10.4. As forças que impulsionam o ciclo das rochas
No final da década dos anos de 1960, Wilson publicou um artigo descrevendo a abertura e o fechamento alternado das bacias oceânicas, mais especificamente sobre o caso da atual área do Oceano Atlântico. Wilson afirmava
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que havia um movimento milenar cíclico de abertura e fechamento formando e destruindo as bacias oceânicas. Esse conceito, incorporado às ideias de Hutton e de Wegener, alteraram as bases da tectônica e foi denominado “Ciclo de Wilson”. Além disso, aconteceram profundas implicações para a interpretação do ciclo das rochas depois que se admitiu que a tectônica das placas litosféricas era a principal força impulsionadora desse ciclo.
As dorsais divergentes
Apenas para facilitar o entendimento, digamos que o ciclo se inicie nos limites divergentes das placas oceânicas, onde o manto produz magma novo e num movimento de ressurgência (do interior do manto para a superfície) gera câmaras magmáticas bem próximas à superfície. Essa recém-formada câmara magmática é a primeira fase da formação das novas rochas ígneas e do ciclo das rochas. Deve ser notado que a parte menos densa desse magma tende a ser expulso para a superfície em erupções. À medida que a dorsal se abre e se expande essas novas rochas se afastam da região mais alta da dorsal e, depois, a circulação das águas oceânicas aquecidas, por entre as novas fendas abertas, dispara o processo de metamorfismo dessas novas rochas. Apenas para reforçar essa questão, esses processos ocorrem numa escala de tempo geológica, da ordem de milhões de anos.
As zonas de subducção
À medida que a nova crosta oceânica vai incorporando o novo material que surge na região das dorsais divergentes, o outro extremo dessa mesma crosta irá encontrar uma região de afundamento denominada “zona de sub- ducção”. Essa zona é uma região onde se encontram duas placas litosféricas e a que for mais densa tende a se aprofundar e vai sendo empurrada para o interior da Terra e absorvida.
A partir do momento em que a crosta passa a se aprofundar no interior
da Terra, há um aumento significativo nas condições de pressão e temperatura,
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o que causa profundas alterações nas rochas, tanto no aspecto estrutural como no aspecto mineralógico, gerando rochas metamórficas muito densas.
Na sequência desse processo, a placa crustal e os sedimentos inclusos vão se aprofundando mais e mais e a água e outros materiais mais voláteis são expulsos e começam a subir pela borda da cunha da placa reentrante, bem acima da zona de subducção, que está numa condição de pressão mais baixa. Esse material que está sob pressões menores, temperaturas elevadas e é volátil tende a se fundir e formar magma que ascende e aflora na superfície produzin- do ilhas (em forma de arco, como no caso do Japão) ou vulcanismo à margem do continente (como no caso dos Andes).
Os materiais vulcânicos que sofreram erupção recente estão sujeitos aos processos de erosão cuja velocidade depende das condições climáticas reinan- tes, ou seja, a erosão é mais efetiva nos locais de climas mais chuvosos. Esses sedimentos, resultantes da ação dos processos erosivos, são transportados para as regiões de relevo mais baixo. À medida que novos sedimentos vão se acu- mulando, os mais antigos vão se aprofundando e sofrendo pressões maiores e, junto com os elementos cimentantes, formam as rochas sedimentares.
Colisões continentais
Na fase final do clássico Ciclo de Wilson, duas regiões continentais come- çam a se deslocar para as zonas de convergências impulsionadas pelos movi- mentos tectônicos gerados pelas zonas de divergência das placas. À medida que essas duas massas imensas de crostas continentais se encontram, as forças tectônicas, na forma de imensas forças compressivas, deformam as rochas en- volvidas no processo e as modificam. O resultado disso é um metamorfismo no interior da região orogenética, em outros termos, a região onde acontecem os eventos de formação de montanhas. Enquanto as duas massas continentais vão se comprimindo, há formação de uma região montanhosa e acontecem os do- bramentos e falhas. Todas as rochas presentes, quer sejam ígneas, metamórficas ou sedimentares, estarão sujeitas a esse novo evento metamórfico. A seguir, um esquema simples dessas colisões.
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Processos erosivos acelerados
Assim que os maciços montanhosos são produzidos pelas zonas de con- vergência (ou zonas de colisão), eles já estão sujeitos à ação dos processos ero- sivos que desgastam as montanhas e os processos de transporte empilham os sedimentos nas margens dos oceanos adjacentes, normalmente em ma- res rasos e na forma de depósitos continentais. À medida que essa carga de sedimentos fica soterrada e mais profunda, começa o processo de litificação (transformar os sedimentos não coesos em um material coeso e rígido denomi- nado rocha) criando as novas rochas sedimentares. Para a composição desses sedimentos são utilizadas todas as rochas precedentes (ígneas, metamórficas e sedimentares).
Um processo sempre em evolução
O ciclo das rochas das placas litosféricas (ou tectônicas) é um processo
dinâmico, portanto, em constante evolução. A criação do magma, quer seja no
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ambiente da dorsal divergente, quer seja dentro da cunha logo acima da zona de subducção, favorece a erupção dos materiais mais leves e mais voláteis da parte superior do manto terrestre. Este material mais leve tende a ficar na crosta e não volta de novo para o manto e vai se acumulando na crosta e, futuramen- te, dará origem às massas continentais, menos densas e com mais capacidade de “flutuação”, com uma tendência de permanecerem sempre superficiais.
O papel da água
A presença da água em quantidades abundantes na Terra é fundamental para o desenvolvimento do ciclo das rochas. Talvez o mais óbvio sejam os pro- cessos de intemperismo e erosão que, invariavelmente, são impulsionados ou potencializados pela água.
A água, na forma de precipitação, solução de solos (ácida) e subterrânea, é muito efetiva em dissolver minerais e rochas, especialmente as rochas que es- tão na superfície, pois elas ficam sob condições instáveis, sobretudo as atmosfé- ricas. A água ajuda tanto nas reações químicas que desgastam as rochas como a transportar os materiais retirados das rochas (fragmentos). A água corrente carrega com ela quantidades imensas de sedimentos que serão depositados nos cursos d’água, lagos (interior dos continentes) e oceanos. Esses sedimentos serão gradualmente soterrados por novos sedimentos e se tornarão rochas e assim sucessivamente.
Outra parte muito importante do ciclo das rochas é o papel da água e de outros compostos voláteis na ação de fundir o material rochoso na cunha sobre a zona de subducção das placas litosféricas. Juntamente com a água, a presença dos compostos de carbono, incluindo o CO2, ambos oriundos das ro- chas carbonatadas dos oceanos, também ajudam no processo de volatilização quando há subducção das placas litosféricas. Esse processo envolve o ciclo do carbono, que veremos no próximo capítulo.
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Capítulo 11
O ciclo do carbono
Para termos uma rápida percepção da importância do carbono (C) para a vida, como a conhecemos, basta lembrar que todos os corpos orgânicos apre- sentam esse elemento. Se há um “tijolo da vida” ele é o carbono. Ele é um dos elementos mais abundante conhecido no Universo, sendo apenas superado pelo hidrogênio (H), hélio (He) e oxigênio (O).
O carbono pode se apresentar, basicamente, em duas formas: orgânica, como constituinte fundamental dos corpos dos organismos vivos e mortos (não decompostos); inorgânica, como constituinte dos materiais que compõem as rochas e os sedimentos.
Na Terra, o carbono circula entre os principais sistemas: biosfera, atmos- fera etc. O ciclo do carbono ocorre em duas escalas temporais distintas: o ciclo geológico, que é muito lento; e o ciclo biológico, que é rápido.
11.1. Ciclo geológico do carbono
Desde que a Terra e o sistema solar se formaram, há aproximadamente 4,6 bilhões de anos, começaram a acontecer os ciclos geoquímicos do planeta, incluindo-se aí o ciclo do carbono. Segundo as teorias mais aceitas, os primeiros lotes de carbono chegaram à Terra, ainda em formação em seu processo de acresção, por intermédio dos meteoros.
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No ciclo biogeoquímico do carbono ocorrem fluxos entre a biosfera, litosfera, hidrosfera, criosfera e atmosfera que possibilitam sua reciclagem e reu- tilização por todos os organismos da biosfera.
No atual nível de conhecimento a respeito desse ciclo, sabe-se que exis- tem cinco principais depósitos de carbono, que são interconectados: a atmosfe- ra, com o gás carbônico; a biosfera, com as moléculas orgânicas dos organismos vivos e mortos; os solos, com a matéria orgânica; a litosfera, com as rochas sedi- mentares e os combustíveis fósseis; os oceanos, incluindo carbono dissolvido e carbono da biota marinha; o interior da Terra, pois os sistemas vulcânicos e geo- térmicos expelem carbono, proveniente do manto e da crosta, para a atmosfera e hidrosfera. O quadro a seguir apresenta uma estimativa dos montantes de carbono de cada um desses grandes reservatórios.
Estimativa dos maiores reservatórios de carbono da Terra (dados de 1999)
Reservatório Montante (bilhões de toneladas)
Sedimentos marinhos e rochas sedimentares 66.000.000 a 100.000.000
Oceanos 38.000 a 40.000
Depósitos de combustíveis fósseis 4000
Matéria orgânica nos solos 1500 a 1600
Atmosfera 766
Plantas terrestres 540 a 610
Fonte: Adaptado de Pidwirny (2009).
A litosfera é o maior depósito de carbono da Terra e contém cerca de 99%
do total. A maior parte desse carbono é de origem inorgânica, ou mineral, e está armazenado nas rochas sedimentares ou, também, em grande quantidade, nas rochas calcárias. O carbono orgânico está armazenado na forma de com- bustíveis fósseis (petróleo e carvão). Independente de sua origem, mineral ou orgânico, o carbono raramente se encontra em forma pura, mas sim composto com outros elementos. Por exemplo, nas rochas calcárias ele aparece sob a for- ma de carbonato de cálcio (CaCO3); na atmosfera ele pode aparecer na forma
de gás carbônico (CO2) ou metano (CH4). Todos também podem estar diluídos na água dos oceanos.
As trocas de carbono entre esses grandes reservatórios acontecem por via de processos físicos, químicos, geológicos e biológicos. Em termos gerais, os oceanos possuem o maior reservatório de carbono próximo à superfície, mas
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a parte mais profunda dos oceanos não efetua trocas rápidas com a atmosfera, pois há ausência de uma influência externa.
O balanço global de carbono é a representação das trocas (perdas e ga- nhos) de carbono entre os grandes reservatórios, ou em algum ramo específico do ciclo de carbono, como, por exemplo, atmosfera–oceano. As análises dos balanços de carbono são fundamentais para avaliar se um determinado reser- vatório funciona como fonte ou sumidouro.
A interação entre os vários sistemas do planeta tais como a litosfera, a at- mosfera e a hidrosfera, colocam em ação vários agentes dinâmicos que geram alterações, reações e fluxos de energia e matéria pelo planeta. Nesse processo dinâmico está incluído o carbono. E não apenas ele, mas também outros ele- mentos tais como o nitrogênio e oxigênio.
O ciclo geológico do carbono envolve a litosfera terrestre (mais espe- cificamente a crosta), a atmosfera e a hidrosfera (com papel dominante dos oceanos). A dinâmica desse ciclo se inicia quando o dióxido de carbono (CO2)
atmosférico, diluído na água da chuva, se combina com ela formando o ácido
carbônico (H2CO3). Ao entrar em contato com a crosta terrestre começa seu pro- cesso de reação química com o cálcio e o magnésio, abundantes, formando os carbonatos. Posteriormente, através dos processos de desgaste da superfície terrestre, ou processos erosivos, impulsionados pelas chuvas, os carbonatos são transportados para os oceanos.
Nos oceanos, esses carbonatos vão se acumulando nos leitos em forma de camadas (estratificações) ou podem ser incorporados ou assimilados por organismos marinhos (por exemplo, corais e conchas), que depois de determi- nado tempo também serão incorporados ao fundo do mar (quando morrerem). Esses sedimentos, que vão se acumulando ao longo dos milhões de anos, as- sociados às imensas pressões que são geradas pelo peso das camadas sobreja- centes, transformar-se-ão em rochas sedimentares.
Depois que se formarem essas rochas sobre o leito marinho, elas podem voltar à superfície do planeta ou ser absorvidas pelo interior do mesmo através dos processos tectônicos. Assim, se por ventura a placa oceânica se elevar e formar uma nova região emersa, essas rochas sedimentares voltarão ao ciclo de erosão e retornarão como novos sedimentos ao fundo dos oceanos. Por outro
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lado, se a placa tectônica sofrer subducção, as rochas sedimentares estarão su- jeitas a pressões enormes e temperaturas elevadíssimas, em regiões profundas da litosfera, que fundirão essas rochas, facilitando o processo de reações quí- micas com outros minerais e liberando o dióxido do carbono (CO2) através de
eventos de erupções vulcânicas. Desse modo, o CO2 que estava na atmosfera, após centenas de milhões de anos, retorna.
O ciclo desse carbono, de dinâmica geológica extremamente ativa, pode variar de acordo com o tempo e depende da intensidade dos processos envol- vidos. Em última instância, isso controla as concentrações de CO2 da atmosfera
ao longo das centenas de milhares de anos. Apenas para exemplificar, os se- dimentos geológicos mais antigos, datados de épocas anteriores ao apareci- mento da vida sobre a Terra, mostram concentrações de CO2 a partir das quais
podem ser inferidas concentrações atmosféricas da ordem de uma centena de
vezes superior aos níveis atuais (cerca de 380 ppmv de CO2, em 2010). Por outro lado, medidas feitas em núcleos de gelo, retrocedendo até 800 mil anos, mos-
tram que durante o último período glacial da Terra, as concentrações de CO2 atmosférico eram aproximadamente metade da atual.
O carbono de origem orgânica anaeróbica (matéria orgânica decompos- ta na ausência de oxigênio), que deu origem aos combustíveis fósseis, move-se entre os reservatórios numa escala de tempo geológica. Entretanto, desde a Re- volução Industrial, com incremento acentuado da exploração dos combustíveis fósseis (primeiro o carvão e depois o petróleo), ocorre um desajuste no balanço de carbono da Terra, resultando em um acúmulo progressivo de CO2 na atmos-
fera, da ordem de 30%. Há estimativas de que no futuro, por volta do ano 2100, esses valores possam ser quase o dobro dos valores atuais, se nada for feito para diminuir esse ritmo de emissões.
As maiores fontes de gás carbônico resultantes das atividades antrópicas se devem à queima de combustíveis fósseis e à alteração da paisagem natural, em que são substituídas as grandes áreas florestadas por espécies vegetais de menor poder de sintetizar o CO2. As pesquisas mais recentes demonstram que
os ecossistemas naturais florestados armazenam de 20 a 100 vezes mais CO2 do que os sistemas agropastoris.
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Embora o teor de dióxido de carbono atmosférico sofra oscilações no desenrolar da história geológica da Terra, algumas medidas paleoclimáticas su- gerem que esse conteúdo diminuiu de forma constante. Há teorias de que isso se deve a um aumento da luminosidade solar desde que a Terra foi criada. À medida que o Sol se tornou mais luminoso, houve um aumento da eficiência fotossintética da maior parte dos mecanismos biológicos o que, gradualmente, aumentou o sequestro do carbono atmosférico na forma de combustíveis fós- seis e rochas sedimentares.
Em síntese, foi esse processo regulador foi manteve a constância da tem- peratura global média durante os milênios. Acredita-se que esse tipo de fenô- meno seja uma evidência muito forte a favor da hipótese de Gaia.
11.2 Ciclo biológico do carbono
As estimativas mais confiáveis a respeito do ciclo biológico do carbono
afirmam que, na atmosfera, ele se renova a cada vinte anos.
Do ponto de vista do ciclo biológico pode-se dizer que há três grandes reservatórios de carbono na natureza: o terrestre, com cerca de 20.000 bilhões de toneladas; a atmosfera, com cerca de 750 bilhões de toneladas e os oceanos, com 40.000 bilhões de toneladas. O carbono se desloca entre esses reservató- rios através dos processos biológicos (rápidos) da fotossíntese e da respiração.
A maior parte do dióxido de carbono que alimenta os ecossistemas pro- vém da atmosfera e é incorporado pelos organismos autotróficos. Esses orga- nismos que têm mecanismos para absorver o CO2 diretamente em suas células
e, com a adição da água e da radiação solar, através do processo da fotossínte-
se, convertem quimicamente o CO2 em moléculas de açúcares que podem ser quimicamente modificadas para a produção de outros compostos mais com- plexos, tais como, aminoácidos, proteínas e celulose. Uma parte dessa matéria orgânica é transportada para os organismos heterotróficos através do consumo (por exemplo, quando um boi come a grama).
Tanto os animais como as plantas queimam esses compostos orgânicos
(produção de energia) através do processo da respiração e emitem CO2. Assim, a respiração, juntamente com a decomposição orgânica (respiração das bactérias
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e fungos), devolve à atmosfera o carbono fixado nos reservatórios terrestres (biota, solo e litosfera). A cadeia alimentar contém vários tipos de organismos que tem como atividade ecológica básica a decomposição da matéria orgânica em seus componentes abióticos.
Em termos químicos, apenas para se entender as trocas químicas, as rea-
ções que controlam esses processos são:
Fotossíntese: 6CO2 + 6H2O + luz solar (energia) à C6H12O6 + 6O2
Respiração: C6H12O6 (matéria orgânica) + 6O2 à 6CO2 + 6H2O + energia
Outro fator importante a ser considerado nas trocas de carbono entre o reservatório atmosférico e o reservatório terrestre é o clima. Nas épocas de grande aporte de radiação solar, típicas de primavera e verão, há um decrésci- mo significativo do CO2 atmosférico, pois há uma maior eficiência dos processos
fotossintéticos e os vegetais estão em pleno crescimento, incorporando ma- téria orgânica e, por conseguinte, carbono. Nas épocas de menor intensidade de radiação solar ou nas épocas secas, típicas de inverno ou outono, há um decréscimo significativo do processo de fotossíntese, o que implica em maior quantidade de carbono, na forma de CO2, retido na atmosfera.
Considerando a sazonalidade climática do ano e a distribuição desigual da vegetação terrestre, principalmente nas altas latitudes, há uma variação sa- zonal na concentração de CO2 na atmosfera, ou seja, quando é primavera e
verão no Hemisfério Norte há uma queda significativa nas concentrações de
CO2. Esse fato foi constatado a partir das medidas de CO2 atmosférico efetuadas por Charles David Keeling no Monte Mauna Loa, no Havaí, a partir de 1958. Essa relação ficou conhecida como curva de Keeling e é obrigatória em qualquer dis- cussão sobre os assuntos relativos ao carbono atmosférico.
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Curva de Keeling
Embora a quantidade de carbono armazenado na atmosfera seja bem
menor que nos demais sistemas, as concentrações de CO2 atmosférico têm re- lação direta com as condições climáticas do planeta, através do efeito estufa. Além disso, os fluxos de carbono entre a atmosfera e os sistemas terrestres e oceânicos são da ordem de 25% da quantia armazenada na atmosfera. Isto im- plica em grande sensibilidade em relação às alterações ou mudanças de fluxos.
O dióxido de carbono se mescla às águas dos oceanos por um processo físico denominado “difusão simples”. Uma vez dissolvido na água, o CO2 pode permanecer como está ou pode ser convertido para carbonatos (CO3-2) ou bi- carbonato (HCO3-), que pode ser biologicamente fixado com cálcio (Ca) por al- guns tipos de organismos marinhos para produzir carbonato de cálcio (CaCO3), que é a substância fundamental para produzir conchas e outras partes do cor- po desses organismos, como o fazem as ostras, os corais, alguns protozoários e algumas espécies de algas. Com a morte desses organismos criam-se imensos depósitos de carbonato nos fundos dos oceanos. Após longo período de tem- po, esses depósitos sofrem alterações físicas e químicas e são incorporados nas rochas sedimentares. Aqui se nota a interação entre o ciclo biológico e o ciclo geológico do carbono.
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As transferências de carbono entre os oceanos e a atmosfera se dão por intermédio de processos químicos que geram um equilíbrio dinâmico entre as camadas superficiais dos oceanos e as concentrações no ar sobrejacente. As quantidades de CO2 que os oceanos podem absorver dependem da tempera-
tura deles e das concentrações já presentes. A razão de absorção de CO2 pelos oceanos é tanto maior quanto menor forem as suas temperaturas.
Se considerarmos a escala geológica de tempo e isolarmos a interferência antrópica, veremos que os fluxos de carbono entre os vários reservatórios são quase equivalentes e variam muito lentamente. Por outro lado, os fluxos de car- bono do ciclo orgânico (fotossíntese e respiração) são muito rápidos, por causa da velocidade do ciclo entre a fotossíntese e a respiração, embora os oceanos consumam grandes quantidades de CO2. Os zooplânctons consomem os fito-
plânctons em questão de dias, e assim, apenas pequenas quantidades de car-
bono são acumuladas no fundo do mar (na forma de CaCO3), quando morrem os zooplânctons. Se considerarmos um longo período de tempo, esse efeito remove carbono da atmosfera em quantidades significativas.
Outra interação entre os processos biológicos e geológicos é o caso típi- co de quando a fotossíntese é mais intensa que a respiração e, de forma grada- tiva, a matéria orgânica forma depósitos sedimentares, que sem a presença de oxigênio (anaeróbico), associado a grandes pressões e ao longo dos milhões de anos, são transformados em combustíveis fósseis (petróleo, carvão).
Outro elemento do ciclo rápido que adiciona CO2 à atmosfera são os
incêndios, que consomem a matéria orgânica e provocam a morte de outras
plantas que, no seu processo de decomposição, também liberam CO2 à atmosfera.
11.3. Influências antrópicas sobre o ciclo rápido do carbono
Em tese, o carbono armazenado nos depósitos fósseis pressupõe uma redução dos níveis de dióxido de carbono atmosférico e não fazem parte do ciclo rápido do carbono. Entretanto, as atividades antropogênicas atuais, princi- palmente a queima de combustíveis fósseis e a alteração do uso da terra (com a destruição de florestas), incorporam um carbono de origem geológica em
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um ciclo rápido, com alterações significativas no ciclo global, e afeta, de modo mais direto, a atmosfera, que não consegue assimilar esse excesso na escala de tempo das vidas humanas. A intensidade desse processo pode ser facilmen- te avaliada se considerarmos que nos últimos duzentos anos os níveis de CO2
na atmosfera aumentaram em 30%. Alguns dados científicos mostram, com certeza, que as concentrações atuais, da ordem de 380 ppmv, são superiores às concentrações dos últimos 800 mil anos e, hipoteticamente, superiores às concentrações registradas há 20 milhões de anos.
A atmosfera retém apenas parte do CO2 emitido pelas atividades antrópi- cas. Nos anos da década de 1990, as emissões anuais de origem antrópica eram da ordem de 6,3 bilhões de toneladas e nesse mesmo intervalo de tempo a concentração atmosférica aumentou em aproximadamente 3,2 bilhões de to- neladas por ano. Parte disso é devido ao aumento das taxas de difusão do CO2
pelos oceanos, que passaram a absorver aproximadamente 1,7 das 6,3 bilhões de toneladas emitidas por ano. O 1,5 bilhão de toneladas restantes pode estar relacionada aos processos na superfície em terra, dividida em duas componen- tes: a alteração na utilização dos solos, essencialmente a remoção das florestas, que reduz substancialmente a taxa de absorção de CO2 pelos solos; a outra
componente, ainda sendo estudada, parece ter origens distintas, entre elas um
possível aumento da taxa de absorção de CO2 pelas plantas em resposta ao au- mento da concentração atmosférica. Outro cenário viável é a recomposição de parte das florestas do Hemisfério Norte (especialmente a Floresta Boreal) que havia sido parcialmente dizimada no século passado. Entretanto, isso ainda está no campo da especulação, sendo necessário pesquisas para melhor explicar esse fenômeno.
Independente da variável que se analise dentro do ciclo global do carbo- no, todas devem ser ainda estudadas para melhorarmos a precisão dos mode- los, que apontaram melhores estimativas da verdadeira magnitude da influên- cia antropogênica nesse ciclo.
Mesmo com todas as incertezas, temos possibilidade de extrair uma conclusão importante e quantificada: todos os índices atuais mostram que as atividades antropogênicas afetam o ciclo global do carbono. A utilização do carbono armazenado nos depósitos geológicos do planeta (petróleo, carvão)
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ocorre a uma razão muito superior à capacidade de sua absorção pelo ciclo do planeta e, assim, as atividades antrópicas implicam em aumento das concentra- ções de CO2 na atmosfera e podem influir no sistema climático global, em um
grau ainda não possível de ser avaliado, mas apenas estimado.
Segundo os estudos mais atuais do IPCC (Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas), dependendo do nível de aumento das concentrações de CO2 nos próximos cem anos, a Terra poderá ter elevação média de tempera-
tura de 1,8 oC a 4oC.
A análise do ciclo de carbono leva, indubitavelmente, à conclusão de que
as florestas têm potencial elevadíssimo de captura de CO2 da atmosfera, tanto na forma da parte aérea vegetal, como na forma de matéria orgânica no solo. Assim, a manutenção, ou até mesmo o aumento dos ecossistemas com bio- massa significativa e solos estáveis é fundamental para os projetos de sumidou- ros/reservatórios de carbono a longo prazo.
As preocupações com as consequências do aumento da concentração
de CO2 na atmosfera (mudanças climáticas, intensificação do efeito estufa e de- sertificação) foram traduzidas em um convênio de caráter global, aprovado e assinado por diversos países, desde o ano de 1992, durante uma conferência das Nações Unidas para o meio ambiente, e que resultou no Protocolo de Kyoto.
11.4. Importância do ciclo do carbono para o ambiente
Não há como não perceber a importância do ciclo do carbono, se for le- vado em consideração tudo o que foi dito até agora. O carbono, em suas mais variadas formas, participa de todas as etapas da vida no planeta Terra, desde a menor de todas as formas de vida (organismos unicelulares) até as imensas florestas. Mas, talvez o mais importante desse ciclo, se pensarmos de maneira sustentável, são os chamados “serviços ambientais” associados a ele.
Dentre os vários serviços ambientais do ecossistema terrestre, um dos
mais importantes é a captura do CO2 pelos diferentes elementos componentes da biosfera, pois são eles o elo fundamental de transferência de carbono entre os vários subsistemas desse imenso ecossistema terrestre.
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Serviços ambientais mais importantes do ciclo de carbono
Serviço ambiental Referências
Captura de carbono A biosfera captura mais de 4 bilhões de toneladas de carbono por ano divididas por: (a) oceanos, principal serviço da captura de carbono; e (b)
florestas (biomassa), que funcionam como sumidouro de carbono através da
fotossíntese.
Regulação do ar
Regulação da composição química da atmosfera através do balanço CO2/O2.
Regulação do clima O CO2 é o principal elemento do efeito de estufa, que permite a manutenção
da temperatura média da superfície terrestre (15ºC).
Fornecimento de combustíveis
fósseis O carbono contido na litosfera está armazenado em depósitos de combus-
tíveis fósseis. O processo de origem está integrado no ciclo geológico do
carbono.
Fornecimento de cimento Originário dos sedimentos que foram formados no ciclo geológico pela
deposição de organismos marinhos mortos no leito do mar.
Turismo O CO2 contribui para o crescimento dos vegetais (fotossíntese) e dos corais.
Áreas com vegetação exuberante são aptas para o lazer e o turismo.
Produção de peixes Associado ao desenvolvimento das zonas de corais, onde prolifera a vida
aquática, contribuindo para os estoques de pesca e para a biodiversidade.
Produção de madeira (efeito
“fertilizante”) Sendo um dos principais elementos da fotossíntese, o CO2 pode ter um efeito
positivo no crescimento das plantas.
Produção de alimentos Produção de alimentos, diretamente consumidos pelos humanos, ou indire-
tamente, através dos herbívoros.
Fonte: Adaptado de Portal São Francisco.
A elevação dos níveis de CO2 das emissões antropogênicas é absorvida pelos oceanos, pela atmosfera e pelos vegetais. Entretanto, nos dois últimos séculos, devido à redução do corpo vegetal do planeta, coube à atmosfera uma maior fatia dessas emissões, o que levou ao aumento dos índices de CO2
(veja a curva de Keeling), análogo à elevação média da temperatura mundial, incrementada pela intensificação do efeito estufa, que levou às atuais alterações climáticas. Entretanto, não é só a atmosfera que sofre com esse aumento de CO2, pois os oceanos também absorvem mais CO2 e como consequência se aci-
dificam, alterando as condições e a diversidade da biota marinha (peixes, corais, algas, fitoplâncton etc.). Restam então as florestas (biomassa) para absorver o
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excedente atmosférico através da fotossíntese. Este talvez seja o maior serviço ambiental prestado pelas florestas.
Em síntese, a grande preocupação do mundo hoje, demandada pelo pro-
tocolo de Kyoto, é a redução dos níveis de CO2 atmosférico, que pode ser feita por intermédio da redução das emissões ou da captura do excedente.
Considerando a hipótese de um projeto global amplo que priorize a ma- nutenção e plantio/recuperação de florestas é possível reduzir as atuais con- centrações acima de 370 ppmv para valores próximos ou inferiores a 300 ppmv. Mas se considerarmos o nível de crescimento das emissões, mesmo adotan- do essa estratégia de recuperação/manutenção das florestas nos próximos 50 anos, só seriam reduzidos, no máximo, 30 ppmv, conforme o relatório de 2000 do IPCC. Assim, é fundamental e necessário complementar esse serviço am- biental com um serviço de capital humano, através de sistemas de captura e armazenamento de CO2, melhoria da eficiência dos equipamentos emissores e
alteração gradual do sistema energético baseado em carbono.
Com base no critério de sustentabilidade, ela será forte se a solução adotada eliminar os efeitos do desequilíbrio (no caso, emissões antropogênicas de CO2). Se os esforços forem apenas no sentido de compensar os efeitos
causados pela destruição do capital natural (destruição de vida vegetal) pela ação humana, então a sustentabilidade será fraca.
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Capítulo 12 O ciclo da água
A característica mais marcante de nosso planeta, se comparado aos de- mais do sistema solar, é a água, nos estados líquido e sólido, que cobre três quartos (75%) da superfície terrestre. As evidências geológicas sugerem que a água surgiu no nosso planeta por intermédio das erupções vulcânicas e ela vem fluindo pelo planeta em grande quantidade nos últimos 3,6 bilhões de anos, ou seja, na maior parte de sua existência.
Como substância vital que diferencia a Terra dos demais planetas do sis- tema solar a água é o ingrediente fundamental para desenvolvimento e susten- tação da vida.
O ciclo da água, ou ciclo hidrológico, envolve o movimento da água so- bre e abaixo da superfície terrestre. Nesse movimento, a água pode mudar de fase entre sólida, líquida e gasosa, em qualquer local do ciclo hidrológico. A água é a única substância que pode ser encontrada nas três fases da matéria nas condições naturais de pressão e temperatura da Terra.
Embora o balanço de água da Terra permaneça praticamente constante com o passar do tempo, as moléculas de água não ficam estáticas mas são ex- tremamente dinâmicas e se alternam entre os sistemas terrestres em escalas de tempo que variam de segundos a milênios.
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Tempo de residência da água nos diferentes reservatórios da Terra
Reservatórios Tempo de residência
Solos com água congelada (permafrost) 10.000 anos
Águas permanentemente congeladas 9.700 anos
Oceanos 2.500 anos
Geleiras nas montanhas 1.600 anos
Água subterrânea 1.400 anos
Lagos 17 anos
Pântanos 5 anos
Umidade dos solos 1 ano
Rios 16 dias
Vapor d’água atmosférico 8 dias
Biomassa algumas horas
Fonte: Adaptado de Shiklomanov (1997).
Se considerarmos a escala de tempo geológica, os corpos hídricos têm tendência em perder hidrogênio, o que pode reduzir o efeito estufa. Este efeito acelera o processo de perda de hidrogênio e, consequentemente, água da at- mosfera terrestre (pois água = H2O).
As mais modernas estimativas apontam que o volume total de água da Terra é da ordem de 1,39 bilhões de quilômetros cúbicos (1,39 x 109 km3) sendo que cerca de 96,5% dela se encontra nos oceanos do planeta. Dos restantes 3,5%, cerca de 1,7% está armazenado nas capas de gelo dos polos, nas geleiras e nas neves permanentes e os outros 1,8% estão armazenados como água sub- terrânea, nos lagos, rios, cursos d’água e solos. Finalmente, menos de 0,001%
existe como vapor d’água na atmosfera (veja uma distribuição mais detalhada na tabela a seguir). As proporções volumétricas da água da Terra mostram por- que devemos nos preocupar com o seu ciclo.
Embora á água cubra 75% da superfície terrestre, na realidade o seu vo- lume total é insignificante se comparado ao volume da Terra (1,1 trilhões de quilômetros cúbicos ou 1,1 x 1012 km3): apenas 0,11%.
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Estimativa da distribuição global da água
Reservatório
Volume
(1000 km3)
Percentual do
total de água
Percentual da
água doce
Oceanos, mares e baias 1.338.000 96,5 —–
Capas de gelo, geleiras e neve permanente 24.064 1,74 68,7
Água subterrânea 23.400 1,7 —–
Doce (10.530) (0,76) 30,1
Salgada (12.870) (0,94) —–
Umidade do solo 16,5 0,001 0,05
Gelo no chão e permafrost 300 0,022 0,86
Lagos 176,4 0,013 —–
Água doce (91,0) (0,007) 0,26
Água salgada (85,4) (0,006) —–
Atmosfera 12,9 0,001 0,04
Água dos pântanos 11,47 0,0008 0,03
Rios 2,12 0,0002 0,006
Água biológica 1,12 0,0001 0,003
Total 1.385.984 100,0 100,0
Fonte: Adaptado de U.S. Geological Survey.
As estimativas mais difíceis de mensurar são as da água subterrânea e por isso há grande variação entre as fontes de dados. Aqui adotamos um valor mais elevado, pois as observações, análises e prospecções mais atuais parecem indicar que as estimativas anteriores eram baixas.
Com base na última tabela, a água subterrânea responde por quase 30%
da água doce, ao passo que o gelo (inclusos as capas de gelo, o gelo do chão, as geleiras, o permafrost e a neve permanente) constitui cerca de 70% da água doce. De qualquer modo essa estimativa não é absoluta. Uma revisão nas fon- tes bibliográficas irá mostrar diferentes valores para essa componente do ciclo hidrológico.
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12.1 A jornada incessante da água
O ciclo hidrológico descreve as andanças da água à medida que as molé- culas de água traçam seus caminhos da superfície da Terra para a atmosfera e vice-versa, e também seus caminhos subterrâneos. Esse sistema gigantesco, cuja dinâmica é alimentada pela energia proveniente do Sol, é uma troca contínua de umidade entre a hidrosfera, a atmosfera e a geosfera, com interações com a biota6 terrestre. No ciclo hidrológico, como um todo, as moléculas de água trafegam entre os oceanos, como vapor d’água na atmosfera, como água e gelo sobre a terra e como água subterrânea.
Ciclo hidrológico
6 Biota é o conjunto de seres vivos de um ecossistema, o que inclui a flora, a fauna, os
fungos e outros organismos vivos. A biota da Terra abrange a biosfera.
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Ciclo da água subterrânea
Os estudos mais atuais mostram que os mares, oceanos e outros corpos d’água (lagos, rios e cursos d’água) fornecem quase 90% da umidade atmos- férica. A água líquida abandona esses corpos por intermédio do processo de evaporação quando absorve grande quantidade de energia do Sol. Além disso, uma porção minúscula do vapor d’água chega à atmosfera por meio de um processo chamado sublimação, quando a água passa diretamente da forma só- lida (gelo) para a forma de gás (vapor d’água). Por exemplo, o afundamento gra- dual dos bancos de neve, mesmo com a temperatura abaixo do ponto de con- gelamento (0oC) é resultado desse processo de sublimação. Os 10% restantes da umidade atmosférica são fornecidos pelas plantas através da transpiração. As plantas absorvem a água por intermédio de seus sistemas radiculares para o transporte de nutrientes para suas demais partes. As folhas, através de peque-
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nos poros denominados estômatos (na parte de baixo das folhas), transpiram a água para a atmosfera. O total de vapor d’água atmosférico é fornecido através dos processos de evaporação, sublimação, transpiração, além das erupções vul- cânicas. Embora a evaporação dos oceanos seja o principal motor do ramo do ciclo hidrológico superfície–atmosfera, a transpiração também é significativa. Por exemplo, uma área vegetada de milho de um hectare pode transpirar algo em torno de 20 a 30 mil litros de água por dia.
Assim que o vapor d’água entra na atmosfera inferior, ele é levado pelas correntes de ar ascendente para os níveis mais altos da atmosfera. Ele se resfria e se condensa (isto é, transforma-se de gás em líquido) e forma gotículas de água das nuvens, que eventualmente podem se desenvolver e formar precipitação (chuva, neve ou granizo), que é o principal mecanismo para trazer a água de volta para a superfície terrestre.
Quando a precipitação cai sobre as superfícies de terra, pode seguir vá- rias rotas em sua jornada. Parte dela evapora e retorna à atmosfera e parte infil- tra o solo, na forma de umidade do solo ou de água subterrânea.
A água subterrânea é encontrada em duas camadas do solo: (a) a zona de aeração ou zona vadosa, que são os vazios (ou poros) do solo preenchidos por água e ar; (b) e mais abaixo, a zona de saturação, onde os vazios são preen- chidos apenas de água. A fronteira entre essas duas zonas é chamada de nível freático, que sobe ou desce em função do aumento ou diminuição do volume da água subterrânea.
O restante da água escoa para os rios ou cursos d’água e praticamente toda essa água escoa para os oceanos ou outros corpos d’água, onde o ciclo é retomado. Em etapas diferentes do ciclo, parte da água é interceptada pelos humanos e outras formas de vida (veja animação).
Embora a quantidade de água da atmosfera seja apenas 12.900 km3 (uma parcela minúscula do suprimento total da Terra, que se chovesse sobre o pla- neta formaria uma lâmina de apenas 25 mm de altura em sua superfície), cerca de 495 mil km3 são reciclados pela atmosfera a cada ano, quantidade suficiente para criar uma lâmina de água de 970 mm, se fosse espalhada por toda a super- fície da Terra.
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Como a água evapora, condensa e precipita, e a evaporação global ocor- re a uma taxa muito próxima à da precipitação global, a atmosfera sempre mantém praticamente a mesma quantidade de vapor d’água. Entretanto, no dia a dia, sobre os continentes, a precipitação excede a evaporação, e sobre os oceanos, a evaporação excede a precipitação. No caso dos oceanos, se a evapo- ração fosse sistematicamente maior que a precipitação, isto deixaria os oceanos vazios, caso eles não fossem reabastecidos por fluxos adicionais. Porém, os oce- anos são reabastecidos pelos escoamentos provenientes das áreas continentais, e nos últimos 100 anos eles estão sendo superabastecidos, o que tem levado a uma ligeira elevação do nível médio dos mares no planeta.
O nível dos mares sobe por causa do aquecimento dos oceanos, que causa uma expansão volumétrica das moléculas de água e, consequentemente, aumento do volume de todo o oceano. Além disso, há mais entrada de água que saída por evaporação ou outros meios. Uma das principais causa de au- mento desse influxo de água nos oceanos é o derretimento das águas congela- das em terra (capas de gelo e geleiras).
Por intermédio do ciclo hidrológico, uma molécula de água pode seguir inúmeros caminhos. Por exemplo, a água evaporada no lago da Represa de Itai- pu poderia precipitar sobre a cidade de São Paulo. As águas que escoam do Rio Paraná e deságuam no Oceano Atlântico poderiam parar nas regiões geladas da Islândia ou serem destinadas a placas de gelo, ou também poderiam preci- pitar como neve e compor alguma geleira. As moléculas de água podem tomar tantas rotas, ou derivações, e há a possibilidade, nesse percurso, de alteração de sua fase, oscilando entre os estados sólido, líquido e gasoso à medida que se desloca pelo planeta.
12.2. O ciclo hidrológico e as mudanças climáticas
Entre as maiores prioridades das ciências da Terra e das políticas ambien- tais, os assuntos que confrontam as sociedades são as mudanças potenciais no ciclo da água na Terra em resposta às mudanças climáticas. Nos dias atuais, a maior parte da comunidade científica concorda, em termos gerais, que o clima da Terra passará por mudanças em resposta às variabilidades naturais, incluindo
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a solar e o aumento das concentrações dos gases do efeito estufa e dos aeros- sóis. Além disso, há uma concordância geral de que essas mudanças afetarão radicalmente as concentrações de vapor d’água e por conseguintes as nuvens e os padrões de precipitação. Por exemplo, uma situação de um clima mais quente leva diretamente a uma condição de aumento de evaporação, e isto pode acelerar ou intensificar o ciclo hidrológico resultando em um aumento da quantidade de umidade circulando pela atmosfera. Ainda existem muitas incertezas, tendo em vista que os modelos climáticos atuais mostram respostas variadas para uma mesma alteração, principalmente para a precipitação, posto que, em condições normais, ela é um dos elementos climáticos de maior varia- bilidade intrínseca.
O planeta Terra é único em termos de abundância de água, que é neces- sária para sustentar a vida e fundamental para manter conectados os oceanos, as terras e a atmosfera em um sistema integrado. Precipitação, evaporação, con- gelamento, derretimento e condensação fazem parte do ciclo hidrológico – um processo que não tem começo e nem fim e, também, não acaba, fazendo a água circular das nuvens para as terras, depois para os oceanos e de volta para as nuvens. É esse ciclo de água, intimamente ligado com as trocas de energia entre a atmosfera, o oceano e as terras, que determina o clima da Terra e que causa a maioria da variabilidade climática natural.
Os impactos das mudanças e das variabilidades climáticas sobre a quali- dade de vida humana ocorrem principalmente por intermédio das mudanças do ciclo hidrológico. Em síntese, a água está no centro das causas e efeitos das mudanças climáticas.
12.3. O ciclo hidrológico e o papel dos oceanos
Os oceanos têm papel fundamental no ciclo de água vital. E não poderia ser diferente, pois representam cerca de 97% da água do planeta. Além disso, 78% da precipitação global ocorrem sobre os oceanos (que representam 75%
da área do planeta) e eles são responsáveis por 86% da evaporação global. Some-se a isso o fato de que eles afetam a quantidade total de vapor d’água
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atmosférico e, por conseguinte, a precipitação e, assim, a evaporação das águas dos oceanos é fundamental para o movimento do calor no sistema climático.
A maior quantidade de água evaporada das superfícies dos oceanos pro- vém dos mares subtropicais quentes e com céus claros. Esse processo de eva- poração ajuda a resfriar as superfícies dos oceanos. Em função da grande quan- tidade de calor absorvido, os oceanos amortecem parcialmente o efeito estufa ao aumentar o seu conteúdo de dióxido de carbono e outros gases. O vapor d’água levado pela atmosfera se condensa como nuvens e precipita, sendo a maior parte na zona de convergência intertropical. No processo de condensa- ção o vapor d’água libera o calor latente (calor adquirido durante a evaporação) que é o combustível da circulação tropical. Essa liberação de calor latente é fundamental no balanço de energia da Terra e acopla os ciclos de energia de água do planeta.
As maiores componentes físicas do ciclo hidrológico global incluem a evaporação dos oceanos e das superfícies de terra, o transporte de vapor d’água pela atmosfera, precipitação sobre as terras e oceanos, o transporte lí- quido de água das áreas de terra para os oceanos e o retorno de água doce das áreas de terra para os oceanos. As componentes adicionais do transporte de água oceânica são poucas, incluindo a mistura de água doce na camada limite superior dos oceanos, o transporte pelas correntes oceânicas e os processos associados ao gelo marinho.
Em terra, a situação é bem mais complexa por causa da heterogeneidade da paisagem. Inclui: a deposição da chuva e da neve sobre as terras; o escoa- mento superficial da água; a infiltração da água no solo e as águas subterrâneas; armazenamento de água no solo, lagos, cursos d’água e aquíferos; gelo polar e glacial; uso da água pela vegetação e pelas atividades antropogênicas.
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Ciclo hidrológico
A evaporação controla a perda de água doce, e a precipitação governa a maior parcela do ganho de água doce. Os institutos de pesquisa monitoram as relações entre esses dois processos fundamentais nos oceanos. As vazões dos rios e do gelo derretido também contribuem para esse ganho. A diferença entre a evaporação e a precipitação representa o fluxo líquido de água para dentro ou para fora dos oceanos. Essa diferença também determina a salinida- de superficial dos oceanos, o que ajuda a determinar a estabilidade das águas oceânicas, porque tanto a salinidade como a temperatura dessas águas deter- minam a sua densidade, fator determinante da circulação oceânica.
A superfície do oceano é constantemente estimulada pelos ventos e por alterações de densidade (também referida como alterações de flutuação). As características físicas do oceano são diferentes de acordo com a sua profundi- dade. À medida que a profundidade aumenta, há um decréscimo de tempe- ratura porque o sol aquece mais as águas superficiais. A água quente é menos densa (tem mais flutuação) que a água fria, de modo que a primeira permane-
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ce próxima à superfície. Essa água superficial está mais sujeita à evaporação, e quando isso acontece o sal permanece na superfície deixando uma água mais salgada. Essa água mais quente e mais salgada tem maior poder de flutuação e é aquela que fica na superfície.
Nas latitudes mais elevadas, a água do mar tende a ser mais salgada, em primeiro lugar, por causa do transporte de água mais salgada a partir do Equador em direção aos polos (veja ilustração da circulação termo-halina) e, em segundo lugar, devido à formação do gelo marinho. Quando a água congela entra em uma forma chamada cristalina, o que restringe a presença do sal, que não se cristaliza, ou seja, permanece na água líquida do mar, tornando-a ainda mais salgada. Como perto dos polos a temperatura é muito baixa, a água do mar é mais fria e mais densa.
Circulação termo-halina
A combinação entre os efeitos da temperatura e da salinidade afeta a densidade da água, que é determinante para gerar uma circulação oceânica global (denominada circulação termo-halina), ou, também, “a esteira rolante global” ou “cinturão transportador global”.
O “cinturão transportador” é um processo de circulação oceânica em escala global que fecha o seu ciclo em uma escala de tempo da ordem de mais de um século. A água do mar, mais fria e mais salgada, afunda no Atlântico Nor-
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te, viaja para o Sul contornando a África, ressurge no Índico, ou mais a frente já no Pacífico e retorna no sentido do Atlântico sobre a superfície para afundar de novo no Atlântico Norte, recomeçando o ciclo.
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Capítulo 13
Escalas de tempo natural e social e as paisagens associadas
13.1. Tempos rápidos e tempos lentos: tempo da natureza versus
tempo social
13.1.1. Tempo da natureza e tempo social
Nos capítulos anteriores, o leitor teve um contato inicial com o tempo da natureza, ao ler sobre a evolução da vida e a medida do tempo geológico, e também com o ciclo da água, que apresenta processos rápidos ou lentos. No início desta parte do livro, foi observado que as escalas de tempo da natureza são muito distintas e que podem abranger tempos desde a ordem de segun- dos, ou menos ainda, passando por séculos até milhões de anos e chegando ao ponto de que muitos ciclos nunca sejam percebidos ou vistos, mas apenas saberemos que existem, porque estão muito além de nossa escala de tempo.
Não há dúvida que esses elementos temporais devem ser tratados como fundamentais para a compreensão da dinâmica da paisagem, principalmente a natural, mas, como será visto no próximo capítulo, a paisagem é composta também por objetos sociais. Assim, a dinâmica da paisagem deve ser estudada
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sob o viés de ambas as temporalidades, humana e natural, que se diferem pelo seu ritmo e velocidade.
Mas, em qual momento da história das transformações da paisagem o
tempo humano e o tempo da natureza passam a se diferenciarem entre si?
Quando o homem deixa de ser nômade e começa a ter residência fixa, ele rompe com as leis da natureza e passa a imprimir ao meio natural seu ritmo de apropriação, iniciando uma nova era de transformações na paisagem. Nes- se momento histórico, o tempo humano e o tempo da natureza passam a se diferenciar.
Uma das características dessa diferenciação é colocada por Suertegaray e Nunes (2001 apud Nunes et al., 2006), em que o ritmo das temporalidades da natureza está vinculado ao tempo longo, ao tempo que escoa, enquanto a dinâmica da sociedade se conecta aos ritmos dos processos históricos, cujas relações estão vinculadas à noção de tempo histórico.
De acordo com as fases de desenvolvimento humano, ora temos o pre- domínio do tempo social, ora do tempo natural, ou então certo equilíbrio en- tre ambos. Santos (2002) explica que existiram momentos históricos nos quais ocorreu um equilíbrio entre o tempo da natureza e o da sociedade, por exem- plo, quando o território, mais como algo natural, se impunha sobre a sociedade, em virtude do baixo desenvolvimento técnico.
Com a queda do Império Romano e, então, início da Idade Média, as cidades perdem importância para o campo. Nesse período, marcado pela prevalência do modo feudal de produção, as cidades do interior da Europa perdem popula- ção, ao passo que apenas as cidades litorâneas, por causa da ligação com outras áreas pelo mar, conseguem se manter. O que é importante nessa contextuali- zação histórica, realizada de forma sucinta, é que a cidade, além de surgir por causa da divisão social do trabalho, é o palco da dominação política e religiosa […] O descompasso entre os tempos da natureza e da sociedade decorre, na verdade, do maior desenvolvimento técnico e da separação, cada vez mais evi- dente, entre a sociedade e a natureza. Isso vai ocorrer, inegavelmente, a partir do momento em que a cidade deixa de ser o espaço de dominação política
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e religiosa apenas e passa a ser o espaço da dominação econômica. (Santos, 2006, p.183)
Bergamaschi (2000), a partir de Thompson (que faz um histórico das re- lações estabelecidas com o tempo, o uso do relógio e o disciplinamento tem- poral imposto pelo capitalismo industrial), analisa vários exemplos do que ele chama de “povos primitivos”, em que o tempo está relacionado com o ciclo de trabalho e tarefas domésticas, desenrolando-se em torno da sucessão de tarefas pastoris.
A autora também apresenta mais exemplos que permitem analisar as di- ferentes compreensões e vivências de tempo dentro do contexto de um mes- mo grupo social, e enfatiza que a ideia de tempo relacionado à natureza, ou nela referenciado, ainda persiste em vários grupos sociais, porém está cada vez mais difícil estabelecer tais relações, já que a ação humana intervém intensa- mente na própria natureza, produzindo novas relações espaço-temporais.
Citando Elias (1998), a autora comenta que os relógios exercem as mesmas funções que exerciam os fenômenos naturais em outra época, ou seja, orientar as pessoas que estão inseridas numa sucessão de processos, bem como harmo- nizar os diferentes comportamentos, situá-los e avaliar a duração dos mesmos. Mesmo os artefatos mecânicos que supostamente medem o tempo são inspi- rados na natureza.
Essas sequências recorrentes, como o ritmo das marés, os batimentos dos pul- sos, ou o nascer e o pôr do sol ou da lua, foram utilizadas para harmonizar as ati- vidades dos homens e para adaptá-las a processos que lhes eram externos, da mesma maneira que foram adaptadas, em estágios posteriores, aos símbolos que se repetem no mostrador de nosso relógio. (Elias, 1998 apud Bergamaschi, 2000, p.5)
Na natureza, predominam os processos de longa duração, embora tam- bém possa apresentar eventualmente rápidos processos de curta duração, como no caso de deslizamentos de terra, erupção vulcânica ou ação de ventos de um tornado. Tais fenômenos são aqueles que mais chamam a atenção do homem, pois colocam os sentidos em estado de alerta, podem causar mais
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impactos ou danos naturais e sociais, e estão dentro da escala de tempo de vida humana.
Deslizamento de terra
Erupção vulcânica
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Em relação ao tempo social, os processos geralmente são mais curtos e rápidos, e devem ser compreendidos mediante uma escala de tempo diferenciada em relação ao tempo natural, ainda que ocorram situações de convergências entre ambos, como mostrado anteriormente.
Garimpo de Serra Pelada (PA). Exemplo atual de transformação rápida da natureza no tempo social
A identificação de diversas noções de tempo nos remete à importância de considerar o caráter intimamente integrado entre a Geografia e a História, no qual espaço e tempo são dimensões indissociáveis, que acompanham o homem em todos seus aspectos, e são fundamentais, sobretudo, nos estudos relativos às ciências humanas e naturais. Uma determinada paisagem poderá ser mais bem estudada e compreendida se traçado um panorama histórico-
-geográfico, e se considerar suas dimensões de espaço e tempo de maneira interligada. Quando falamos em História, estamos nos referindo a um sentido amplo, que inclui tanto a história social como natural, pois ambas podem ser
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consideradas como uma só, utilizando uma noção de continuum, em que a his- tória social é parte integrante da dimensão histórica de desenvolvimento da Terra.
Como salientam Krajewski, Guimarães e Ribeiro (2000), as diferentes socie- dades vão transformando o espaço geográfico ao longo do tempo, imprimindo nesse espaço as marcas do presente, que são produzidas sobre as heranças do passado. As novas formas, portanto, não podem ser entendidas se deixarmos de lado a interpretação do passado, isto é, se for deixado de lado o entendi- mento do processo histórico.
Entretanto, o que se passa é que nem sempre conseguimos presenciar tais transformações ao ponto de se tornarem evidentes para nossos sentidos, principalmente no caso de alterações naturais. Um exercício de imaginação in- teressante seria pensarmos numa borboleta quando ela pousa sobre o tronco de uma árvore. Em sua percepção do mundo, ela certamente não conceberia a possibilidade de que a árvore fosse um ser vivo, que se transforma com o tempo, pois seu tempo de vida é muito pequeno em comparação com o da ár- vore… Da mesma forma, o homem também tem um tempo de vida muito curto em comparação com outros processos de formação da Terra, tendo em vista o tempo geológico – por exemplo, não nos parece que a Terra seja tão dinâmica.
Sabemos que, na natureza, os elementos mais estáveis são os abióticos7, representados pelo relevo, pelos solos e pelas rochas. Grande parte das altera- ções que ocorrem no meio abiótico é pouco perceptível ao ser humano, com seu tempo de vida ínfimo em comparação com o tempo de existência das ro- chas, do relevo e do solo. Quanto às alterações na flora e fauna, que compõe o meio biótico8, elas são mais facilmente percebidas em função de sua maior dinamicidade.
Entre os enfoques e métodos da análise da paisagem analisados por Ro- driguez, Silva e Cavalcanti (2007), o princípio dinâmico-evolutivo é o que mais se aproxima da dinâmica de paisagens, estabelecendo como conceitos básicos a dinâmica temporal, os estados temporais, a evolução e o desenvolvimento. Os
7 “Abiótico: elemento do ecossistema que não possui vida” (Dicionário…, 2005, p.1).
8 “Biótico: elemento do ecossistema que tem vida” (Dicionário…, 2005, p.10).
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métodos associados a esse enfoque são o retrospectivo, o estacional, o evolu- tivo e o paleogeográfico, e entre os índices utilizados estão os ciclos anuais, os regimes dinâmicos, a idade e as tendências evolutivas.
A paisagem, como qualquer sistema material, é propícia a mudanças. O en- foque evolutivo-dinâmico consiste em esclarecer as leis e regularidades do desenvolvimento do território. As mudanças dinâmicas caracterizam-se pela periodicidade e reversibilidade provocadas como consequência do conjunto de processos que ocorrem no interior das paisagens e em partes da autorregu- lação. A autorregulação é a propriedade da paisagem, no processo de funcio- namento, de conservar, em um determinado nível, a forma do estado típico, o regime e o caráter das relações entre os componentes. (Rodriguez; Silva; Caval- canti, 2007, p.142)
Os autores enfatizam que para reconhecer as características de qualquer território é necessário estudar seu desenvolvimento e sua paleogeografia, pois os estados atuais e futuros das paisagens, em termos de maior ou menor grau, determinam-se pelas mudanças do passado.
Sales (2004, p.134) defende, inclusive, o uso da geocronologia como um importante instrumento de apoio à análise física do espaço, baseando-se na adoção do princípio do atualismo9, com a recomposição da longa história das paisagens naturais. Aí estariam incluídos
a decodificação da monumental história dos continentes, o desvendamento dos processos de nascimento e extinção de oceanos e mares, a identificação da origem e evolução dos grandes volumes de relevo, a compreensão da estrutu- ração espacial de bacias hidrográficas, a reconstituição dos climas do passado, inclusive daqueles que subsidiaram o alvorecer da sociedade humana em seus
9 “O atualismo constitui um princípio básico da Geologia, formulado por K. A. V. Hoff, em
1826, e depois por Charles Lyell, segundo os quais os processos geológicos passados devem ter-se realizado com a mesma intensidade que assistimos hoje. Por conseguinte, as modificações teriam sido lentas, ou melhor, semelhantes às que conhecemos atualmente” (Guerra, A. T.; Guerra, A. J. T., 1997).
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primeiros e ulteriores passos históricos. Ela comporta ainda as análises sobre a capacidade das ondas marinhas em modelarem a costa, a renovação constante do solo pela intemperização das rochas, o transporte de sedimentos pela ação do gelo, as variações eustáticas cenozoicas. (Sales, 2004, p.134)
A Terra é o palco principal da história humana e também dos proces- sos relacionados às alterações impostas pelo homem à natureza. Temos que aproveitar e conhecer o máximo possível o funcionamento da natureza para que possamos viver da melhor maneira possível em nosso planeta, dentro da pequena escala de tempo que nos foi reservada.
Sugestões de complementação do conteúdo:
Na revista Decifra-me há um texto em linguagem simples que trata do
tempo, principalmente sob uma perspectiva filosófica.
O artigo de Maria Aparecida Bergamaschi (2000) aborda a questão do tempo histórico no ensino das séries iniciais, com exemplos de diferentes com- preensões e vivências de tempo num mesmo grupo social. Também faz indica- ções de atividades com alunos sobre a existência de diversidades na forma de pensar e sentir os tempos, tratando do tema inclusive no ensino de Geografia.
Veja a letra e ouça a música “Oração ao tempo”, de Caetano Veloso.
13.1.2. Conflitos entre tempo da natureza e tempo social
No tópico anterior, acompanhamos como os tempos da natureza e da sociedade possuem características diferentes entre si, mas que podem até apre- sentar alguma harmonia conforme o contexto espacial ou histórico. Entretanto, para o estudo da paisagem, é muito importante conseguirmos identificar os descompassos ou conflitos entre ambos os tempos, pois estes trazem variadas implicações para a compreensão da paisagem.
A identificação da diferenciação ou dos descompassos entre ambos os tempos possui diversas aplicações práticas. Uma delas corresponde ao próprio estudo das paisagens, ao serem caracterizadas em termos de formas, processos
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e tendências futuras. Consideremos uma determinada paisagem urbanizada. Podemos identificar as tendências de urbanização ao notarmos o avanço do tempo rápido da expansão de loteamentos sobre o tempo lento da regene- ração da vegetação que foi suprimida para a “limpeza” de terrenos e posterior construção de casas.
Paisagem típica de área de expansão urbana, com descompasso entre os tempos da
sociedade e da natureza. Monte Mor (SP)
Ou então, observarmos a acumulação desigual de tempos nas cidades, onde formas mais antigas de construção convivem com objetos e artefatos so- ciais mais recentes, de épocas diferentes.
Paisagens urbanas onde é observado o convívio de objetos mais antigos com mais recentes.
Lisboa (Portugal) e Itu (SP)
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Outro exemplo pode ser resgatado a partir do capítulo anterior, relacio- nado aos ciclos da natureza e as alterações antropogênicas. Trata-se da queima de combustíveis fósseis e destruição de florestas, que incorporam um carbono de origem geológica em um ciclo rápido, com alterações significativas no ciclo global, afetando, de modo mais direto, a atmosfera, que não consegue se livrar desse excesso, pelo menos na escala de tempo das vidas humanas.
Nos estudos ambientais, frequentemente são observadas situações em que os conflitos entre tempo da sociedade e tempo da natureza estão implíci- tos nos processos de contaminação ou poluição do ar, água e solo através de ações do homem.
Neste link, é representado algo desse tipo, e que possui relação com outro exemplo citado no capítulo anterior, quando foi abordado o ciclo hi- drológico. Uma determinada porção do solo e a água subterrânea subjacente são atingidas por substâncias contaminantes resultantes da sua disposição ou manuseio inadequado praticado pelo homem (tempo social). Os solos e água subterrânea, formados em longa duração (tempo da natureza), passam a incor- porar rapidamente esses contaminantes, o que traz graves impactos de difícil recuperação.
Em outra situação, o tempo lento da natureza proporcionou a presença de solos em seu estado natural, que passam a ser recobertos e afetados por uma camada de entulhos para construção de aterro em área de várzea.
Vamos tomar mais um exemplo: a destruição de florestas que ocorreu no Estado de São Paulo através do desmatamento. Sabemos que uma floresta demora bastante tempo para se formar e ocupar uma área extensa, pois depende do tempo da natureza, com a influência do clima, do relevo, do solo. Entretanto, ela pode ter sua área bastante reduzida no decorrer de um século ou de décadas, pois o homem se utiliza de recursos tecnológicos para intervir na natureza, como máquinas e ferramentas. O que o tempo natural levou milênios para produzir, o homem leva um tempo bem menor para destruir ou transformar (cf. Victor et al., 2005, em particular os mapas que comparam a cobertura vegetal no Estado de São Paulo em diversas datas).
E os exemplos não acabariam por aqui! Muitos outros casos de conflitos
entre os dois tempos poderiam ser mencionados, em grande parte configu-
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rando-se como problemas ambientais e sociais. Podemos até afirmar que os descompassos ou conflitos entre os tempos da natureza e da sociedade estão no cerne da identificação das alterações ambientais negativas.
Tais reflexões podem nos estimular a estudar e pesquisar ainda mais o as- sunto. Diante disso, seguem algumas sugestões de abordagem desse assunto, conforme diferentes contextos e formas de expressão.
Sugestões
O periódico Formação, publicado pela Unesp (Presidente Prudente), pos- sui vários trabalhos que compreendem o estudo das dimensões tempo e espa- ço, incluindo aqueles que discutem os descompassos entre tempo da natureza e tempo social. Ver, por exemplo, Santos (2006).
Leia as reportagens sobre a escassez da água, intituladas “Água contami- nada mata mais do que guerras, diz ONU” (2010), e “Vai faltar água? Por que o Brasil precisa acordar para a crise hídrica mundial. Antes que seja tarde”, de Renata Leal e Luciana Vicária (2008).
Ouça a música “Saga da Amazônia”, de Vital Farias, que trata das trans- formações sofridas pela natureza e pelas populações amazônicas nas últimas décadas.
13.2. Paisagens naturais e humanizadas: os limites da adaptabilidade
humana
Após conhecermos como se processa a interação entre tempo da natureza e tempo da sociedade e algumas implicações nas transformações ambientais, agora nós teremos contato com um dos temas mais importantes na moderna Geografia: a dinâmica da paisagem. De fato, o conceito de paisagem, que por certo tempo foi deixado um pouco de lado por várias correntes do pensamento geográfico, tem sido resgatado por inúmeros geógrafos da atualidade, que também têm desenvolvido uma série de aplicações pedagógicas associadas a essa importante dimensão do espaço geográfico.
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Assim, esperamos que seja compreendido o papel da paisagem, de suas transformações, suas distintas escalas de abordagem, o descaso ou o esforço em sua definição tendo em vista a qualidade de vida. É o que você vai ver a seguir!
13.2.1. Paisagem e espaço
Paisagem… Uma palavra tão comum… Mas o que realmente significa? Te- ríamos que recorrer a um grande número de autores para conseguir compre- endê-la? Ou basta observá-la ou utilizar nossos sentidos para captar o que ela representa em nossa vida?
De cara, já podemos notar que a noção de paisagem pode ser definida de forma mais objetiva, analisando a produção bibliográfica daqueles que se debruçaram sobre o assunto, ou então, de forma mais subjetiva, se desejarmos pensar na paisagem como algo que é formado na mente de cada pessoa que tem contato com ela. Um grande desafio seria trabalharmos de maneira con- junta essas duas formas de estudar a paisagem: uma construída socialmente (ou coletivamente), e outra individualmente.
Entre algumas conceituações de paisagem temos as seguintes:
A paisagem geográfica é a unidade visível do real e que incorpora todos os fatores resultantes da construção natural e social. A paisagem acumula tem- pos e deve ser considerada como tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, ou seja, corresponde à manifestação de uma realidade concreta, tornando-se elemento primordial no reconhecimento do espaço geográfico. (São Paulo, 2008, p.45)
A paisagem pode ser concebida como o local onde as pessoas vivem e se iden- tificam, onde está seu patrimônio, sua identidade e suas histórias. Ao mesmo tempo, a construção da paisagem é realizada a partir da relação histórica-dialé- tica, em que ocorrem continuidades e descontinuidades no processo de estru- turação do território, onde ocorre a interpenetração das dinâmicas da natureza e da sociedade. (Nunes et al., 2006)
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A paisagem não é simples adição de elementos geográficos disparatados. É, numa determinada porção do espaço, o resultado da combinação dinâmica, portanto instável, de elementos físicos, biológicos e antrópicos que reagindo dialeticamente uns sobre os outros, fazem da paisagem um conjunto único e indissociável, em perpétua evolução. (Bertrand, 1972, p.141)
Diante dessas definições e outras que você pode encontrar na literatura sobre o tema, quais elementos as inúmeras definições existentes acerca da pai- sagem apresentam em comum?
Mesmo não havendo um consenso em torno desse conceito, as distintas correntes teóricas e abordagens apontam para a concepção da materialização das relações do ser humano e da natureza no espaço geográfico. Ou seja, a materialidade está sempre presente através de elementos observáveis da reali- dade, embora a paisagem também assuma uma dimensão sensível e simbólica.
Entretanto, embora a materialidade da paisagem ocorra no espaço geo- gráfico, o conceito de paisagem não pode se confundir nem ocupar o lugar do espaço geográfico, tal como explicado na seguinte assertiva:
A paisagem compõe-se do conjunto de objetos naturais e sociais que podemos abarcar com a visão; portanto, é a dimensão do espaço geográfico que pode ser diretamente apropriada pelos sentidos. O espaço geográfico, porém, possui outras dimensões, pois abrange não apenas objetos naturais e artefatos naturais e artefatos humanos, mas também a rede de relações criada pelo fluxo de pessoas, mercadorias, capitais e informações. Ele surge da interação, mediada pelas técnicas, entre as sociedades humanas e a superfície terrestre. (São Paulo, 2009)
Essa definição nos faz lembrar Santos (1996), quando esclarece que a paisagem é o conjunto de formas que, em um dado momento, exprime as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais a vida que as anima.
Diante disso, Castillo (2009) adverte que a paisagem é somente um ponto de partida para uma análise de compartimentos do espaço geográfico. Apoian- do-se em Santos (1988), o autor justifica que
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a paisagem é compreendida como materialidade congelada e parcial do espa- ço geográfico, como fração da configuração territorial. Sua importância reside no fato de que a paisagem é a única expressão geográfica que se apresenta diretamente aos sentidos (ou aos sensores) e, assim, sensibiliza o geógrafo para importantes questões que devem ser enfrentadas. (Castillo, 2009, p.66)
Outro ponto em comum entre as variadas noções de paisagem é o fato de ser composta de objetos naturais e objetos sociais. Aqui, novamente a ideia de paisagem se aproxima do espaço geográfico e do objeto central do ensino da Geografia, ao compreender “o conjunto de relações que se estabelece entre os objetos naturais e os construídos pela atividade humana, ou seja, os artefatos sociais”. Assim,
o ensino de Geografia na educação básica deve priorizar o estudo do territó- rio, da paisagem e do lugar em suas diferentes escalas, rompendo com uma visão estática na qual a natureza segue o seu curso imutável e irreal enquanto a humanidade é vista como uma entidade a ser estudada à parte, como se não interagisse com o meio. (São Paulo, 2009)
Algo que pode ser discutido é se existe algum local ou área da superfície terrestre que não foi afetada pelas atividades humanas. Ainda existe espaço na- tural, aquele que é produzido somente pela natureza?
Para Bernardes e Ferreira (2003), as relações entre a sociedade e a natureza são dialéticas, cujas imbricações geram o que o pensamento marxista denomi- na de intercâmbio orgânico, no qual “o homem enforma a natureza ao mesmo tempo em que esta o enforma”. Nesse processo de interação metabólica, ocor- re uma interpenetração entre natureza e sociedade, pois “a natureza se huma- niza e o homem se naturaliza, estando a forma historicamente determinada em cada situação” (Guerra; Cunha, 2003, p.19).
Podemos encontrar uma extensa lista de exemplos de como o homem modifica a natureza. Temos as formas mais evidentes, tais como alterações no relevo, nas águas, na cobertura vegetal, no microclima, no solo. As mais sutis frequentemente deixam de ser percebidas em função das mudanças dos há- bitos cotidianos. Exemplificando, podem ser notadas as diferenças no gosto
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ou tamanho de frutas e verduras que foram modificadas pelo uso de produtos agroquímicos ou por alterações genéticas. O mesmo vale para os animais que servem de alimento ao ser humano, quando são utilizados hormônios, rações especiais, técnicas de confinamento, “melhoramento” genético, para atender a determinados padrões de qualidade ou quantidade para o uso pelo homem. E há ainda outros exemplos de humanização dos animais e plantas. Você já observou a tentativa de tornar os animais mais parecidos com o ser humano através das técnicas de adestramento, treinamento e tratamento estético? E no caso das plantas de jardim e parques, que são podadas e manejadas para pro- duzir formas artificiais, como objetos, letras do alfabeto, figuras humanas, e mais uma porção de outros exemplos.
A ação humana é uma ação direta e contínua sobre a natureza, promo- vendo com isso a chamada paisagem humanizada. Essa ação vai alterando gra- dativamente a natureza, direta ou indiretamente, dependendo do grau de tec- nologia de que a sociedade dispõe, que pode alterar a velocidade/intensidade das transformações.
Porém, temos que identificar em quais situações ocorre o predomínio dos objetos naturais ou quando os objetos sociais são os dominantes na paisagem, assim como aquelas situações de certo equilíbrio entre ambos.
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Exemplo de paisagem com presença de objetos naturais e sociais em cidade de pequeno porte.
Milagres, sertão da Bahia
Geralmente, vamos encontrar um domínio dos objetos naturais nas áreas rurais menos tecnificadas, em áreas de preservação natural, em espaços menos acessíveis em função dos obstáculos naturais, em locais mais inóspitos ou isola- dos, em áreas de menor desenvolvimento tecnológico.
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Exemplo de paisagem com predomínio de objetos naturais. Parque Estadual do Jalapão (TO)
Paisagem rural pouco tecnificada. Ingaí (MG)
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A paisagem cultural ou humanizada predomina nas cidades, principal- mente nas de maior porte, em áreas industriais ou de grandes instalações de serviços, energia ou transportes, em áreas agrícolas mais tecnificadas e em paí- ses ou regiões com grande utilização de tecnologia.
Exemplo de paisagem com predomínio de objetos sociais em grandes cidades:
João Pessoa (PB) e Lisboa (Portugal)
Na paisagem cultural ou humanizada é onde podemos encontrar de for- ma mais visível as contradições socioeconômicas, materializadas na forma da diferenciação de objetos sociais conforme o nível de pobreza ou riqueza, como bem ilustrado na qualidade das habitações que fazem parte dessa paisagem.
A observação dessas diferenciações espaciais é muito importante para evitarmos a frequente associação que se faz entre paisagem e beleza estética, equivocada pelo fato de que a paisagem inclui também os objetos que nos trazem sensações desagradáveis.
Nas paisagens predominantemente naturais, os fatores responsáveis por sua formação e desenvolvimento são também geralmente naturais. Entre esses fatores, podemos utilizar como exemplo o clima, ao qual Ab’Sáber (1970) atribui grande importância na formação dos grandes domínios paisagísticos brasilei- ros. Ao explicar a origem das províncias ou domínios morfoclimáticos do Brasil, ora do tipo zonal, ora do tipo azonal, Ab’Sáber esclarece que estes não depen- dem somente da zonação climática atual, mas também dos efeitos acumulados
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de uma série de flutuações climáticas pretéritas que atuaram no território brasi- leiro, sobretudo a partir do período Terciário.
A extensa e variada gama de domínios paisagísticos brasileiros trazem também uma implicação muito importante para nosso país, que é a diversida- de cênica e estética, que tanto é ou pode ser aproveitada para o lazer e turismo. De fato, o Brasil é dotado de numerosos espaços de grande beleza, que é cap- tada muito bem pelos nossos sentidos.
Sintetizando o conteúdo deste tópico, devem-se destacar alguns aspec-
tos básicos relacionados à paisagem:
– o conceito de paisagem pode variar entre um pesquisador e outro, con- forme sua linha teórico-metodológica, e também entre um indivíduo e outro, segundo a percepção de cada um. Essa variedade tem implicações importantes na leitura e interpretação de paisagens, um dos temas que serão abordados no próximo capítulo;
– embora existam algumas divergências nesses conceitos, todos con- cordam que a paisagem é dotada de uma materialidade, que pode ser apreendida pelos sentidos, com destaque para o papel da visão na ob- servação de seus componentes;
– a paisagem é dotada de objetos naturais e sociais, com predominância de um ou de outro segundo a intensidade da intervenção humana sobre a natureza.
Por se tratar de um assunto extremamente complexo, não é objetivo deste tópico esgotar as possibilidades de conhecer o que é paisagem e o que representa seu dinamismo. Portanto, os demais tópicos deverão complementar o assunto, bem como você poderá obter informações adicionais nos seguintes materiais.
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Sugestões
O livro de Rodriguez, Silva, e Cavalcanti (2007), que trata da geoecologia das paisagens, apresenta elementos conceituais teóricos, metodológicos e prá- ticos a respeito da paisagem.
Vídeo: “Montanhas do Rio”, de Ricardo Hanszmann (2008), para abordar a relação entre potencial turístico e paisagem, principalmente elementos do relevo, tomando como exemplo as montanhas próximas da cidade do Rio de Janeiro.
Veja também
Uma curiosidade relacionada às paisagens urbanas você poderá ver no artigo sobre os “Exploradores urbanos”, que capturam a beleza de locais aban- donados. A exploração urbana, ou urbex, é o hobby de visitar locais abandona- dos, como fábricas, túneis, catacumbas, linhas de trem e metrô, teatros, cinemas ou cidades.
13.2.2 Dinâmica das paisagens naturais e humanizadas
Uma das características intrínsecas da paisagem consiste em seu dinamis- mo. De fato, toda e qualquer paisagem é dinâmica, estando sob a influência dos processos naturais e sociais que a modificam.
A fim de tratarmos desse aspecto, vamos retomar outro ponto de conver- gência entre os estudiosos do conceito de paisagem, que surge na questão dos processos atuantes e na importância da dimensão temporal na transformação das paisagens.
Para Santos e Caldeyro (2007, p.14), o planeta Terra vem construindo “uma história longa e complexa, repleta de constantes transformações capazes de evidenciar uma sucessão de estados que se alternam entre situações de não equilíbrio e equilíbrio, resultando em diferentes paisagens”. O desenho atual das paisagens foi definido a partir de diversos processos e fenômenos, uns lentos e outros violentos, que tem afetado a Terra desde seus primórdios.
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Tantos milhões de anos em constante mudança para criar esta fantástica diver- sidade de formas e vidas que hoje podemos constatar! Tantos redutos e refú- gios de flora e fauna gerados num constante vaivém de variações ambientais naturais, em frequentes condições de desequilíbrio e equilíbrio! (Santos; Cal- deyro, 2007, p.16)
As autoras enfatizam o papel dos denominados distúrbios, isto é, eventos que ocorrem em um tempo e um espaço, e que significativamente alteram a estrutura e as funções das paisagens. “Desta forma, no passado ocorreram vá- rios distúrbios, de pequenas a grandes proporções, de mínimos a catastróficos, de curta a longa duração e, nessa época, originários das forças da natureza” (Santos; Caldeyro, 2007, p.16).
O conceito de distúrbio nos faz lembrar outra noção importante na evo- lução da paisagem. A noção de limiar10 ou limite crítico está presente em diver- sas ciências, significando basicamente o limite a partir do qual um fenômeno físico provoca um efeito determinado.
Embora os diferentes sistemas possuam seus mecanismos de regulação interna, permitindo se ajustar às variações dentro de certa amplitude, muitas vezes a ocorrência dos chamados eventos raros ou episódicos, de baixa frequência e elevada magnitude, podem exceder esses limiares de absorção interna.
Nota-se, portanto, que a constatação da existência ou a determinação desses limites críticos são fundamentais para se compreender as transforma- ções pelas quais passam a paisagem, inclusive quando a influência do homem provoca ou facilita a superação dos limiares. A teoria dos limiares se destacou bastante na Geomorfologia, basicamente com a tentativa de superar as abor-
10 Para Christofoletti (1978), a noção de limiar significa um nível de separação entre dois subsistemas, que funcionam como critério demarcador. Assim que determinado sistema ultrapassa a “linha demarcatória” através de um evento de entrada, ele ingressa em outra categoria, estabelecendo nova estrutura e assumindo novos aspectos. Com essas alterações, o sistema tende a se reajustar durante um período de tempo de reação ou de readaptação, a partir do momento de ultrapassagem do limiar compatível com a organização do sistema.
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dagens tradicionais que no decorrer deste século já deixaram de ser suficientes para explicar a evolução da paisagem, como é o caso da teoria dos ciclos de ero- são. O conceito de limiar traz implícita a ideia de que a paisagem nem sempre está em uma condição de regularidade, equilíbrio e harmonia. Afinal, a superfí- cie da Terra está em constante transformação, em um estado de fluxo entre as forças de equilíbrio e desequilíbrio, ou seja, em estado de “equilíbrio dinâmico”, contrapondo-se às abordagens anteriores, que orientavam-se preferencialmen- te para a identificação de fatores relacionados à estabilidade da paisagem.
Enfim, toda a paisagem é dinâmica, sempre se transformando pela ação conjunta de processos naturais e sociais. A compreensão da dinâmica temporal no espaço geográfico é fundamental para compreendermos a diferenciação de paisagens que marca nosso planeta em suas diversas escalas, pois o sistema técnico não é uniforme e não se difunde de forma homogênea sobre a natu- reza. A diferenciação é tanto espacial, pois não há dúvida que o mundo é uma “colcha de retalhos”, como temporal. A paisagem que vemos num determinado momento sempre já se modificou no passado, está se modificando exatamente agora e sempre se modificará no futuro, não podendo, portanto, ser destruída.
Indicações
Com o intuito de ampliar o conhecimento sobre condicionantes e trans- formações da paisagem, leia o texto de Rozely dos Santos e Verônica Caldeyro (2007), capítulo 2 do livro Vulnerabilidade ambiental. Disponível em: <http:// www.inpe.br/crs/geodesastres/conteudo/livros/Vulnerabilidade_ambien- tal_desastres_naturais_ou_fenomenos_induzidos_MMA_2007.pdf>.
Outra dica refere-se à riqueza de músicas brasileiras que tratam da dinâ- mica e de outros temas relacionados ao tema paisagem. Entre elas, sugerimos você ouvir e ler a letra da música Tempo rei, de Gilberto Gil, que trata do tempo e das transformações da paisagem e da vida humana.
O geógrafo Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro (2001) publicou um texto que aborda a teoria dos ciclos de erosão ou do ciclo geográfico, de W. M. Davis.
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13.2.3 Os limites da adaptabilidade humana
Poderíamos dizer que a história humana é também uma história da adap- tação do homem à natureza? E como os objetos da paisagem são capazes de oferecer limites para tal adaptabilidade?
Acompanhamos no capítulo 1 que a Terra existe há aproximadamente 4,6 bilhões de anos, e sabe-se também que os primeiros indícios de criação da vida datam de 3,8 bilhões de anos. O homem, surgindo muito tempo de- pois, acompanhou os demais seres vivos, no sentido de viver quase sempre em equilíbrio com a Terra. Podemos dizer que no início da evolução, o homem era totalmente dependente do ambiente, onde caçava, pescava e recolhia raízes e frutos das florestas e campos para sobreviver. E em grande parte da história hu- mana, nossos antepassados tiveram que se abrigar em grutas, cavernas e tocas para se proteger do clima hostil ou se defender de animais.
Local que já serviu de abrigo para o homem no passado. Lajedo do Pai Mateus, município de Cabaceiras (PB).
O homem sempre extraiu da natureza o que precisava, tanto para sua sobrevivência imediata, como para seu uso futuro, armazenando produtos e, ainda, para obter o que o seu meio não lhe oferecia através das trocas. Quando uma determinada fonte de recursos naturais se esgotava, ele a abandonava e partia em busca de novos lugares propícios.
Com a descoberta de continentes antes desconhecidos e com os grandes
inventos da humanidade nos últimos séculos, houve um enorme incremento
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das relações comerciais entre os povos. E desde que o homem inventou as má- quinas e descobriu novas fontes de energia, que permitiram a industrialização, ou seja, a produção em massa, a situação se transformou radicalmente.
Nesse processo, a população mundial cresceu em ritmo vertiginoso e muitas cidades tornaram-se as megalópoles que conhecemos hoje. O tipo de vida e o sistema econômico dos países mais ricos e poderosos foram se espa- lhando para o resto do mundo e, para dar conta de produzir cada vez mais pro- dutos e em quantidades sempre maiores, foi necessário explorar as riquezas da Terra numa velocidade tão acelerada que não permitia mais a sua recomposi- ção natural. Por outro lado, ficou praticamente impossível para o homem aban- donar o lugar onde vivia e estabelecer-se em outro, quando a natureza já não podia responder às suas necessidades de sobrevivência. Tornou-se necessário encarar os resultados da extração indiscriminada dos bens naturais, conviver com uma natureza desgastada, encarar a destruição e recompor o ambiente vital deste planeta. Nascia a consciência dos problemas ambientais.
A natureza vista como um mero recurso para a economia era identifica- da a um universo tido como infinito. Mas hoje sabemos que a natureza que permite a existência da vida e fornece os bens que utilizamos existe somente no planeta Terra, de forma finita. Ao contrário do que já se pensou, a natureza possui limites que, apesar de amplos, já começam a ser duramente atingidos pela ação humana, pois para a manutenção dos padrões de consumo atuais da imensa população da Terra, há uma elevada pegada ecológica.
A pegada ecológica mede a pressão que a humanidade exerce na biosfera comparando a procura humana por recursos e serviços dos ecossistemas com a capacidade que o planeta tem em gerar esses recursos e serviços. A pegada é calculada através do somatório das áreas necessárias para a produção dos recursos renováveis utilizados, para a ocupação com infraestruturas e para a absorção dos resíduos criados pelo homem. Os recursos renováveis incluídos na contabilidade da pegada ecológica nacionais são as áreas de solo agrícola, de pastagem, de floresta e de pesca necessárias para produzir o alimento, a fibra e a madeira consumidos pela população humana. Correntemente, o CO2 é o único resíduo incluído no cálculo da pegada. Uma vez que a população hu- mana consome os recursos e usa os serviços dos ecossistemas provenientes de
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qualquer parte do mundo, a sua pegada ecológica resulta do somatório dessas áreas, independentemente de onde estas se localizem. Para mais informações sobre a ideia de pegada ecológica, leia o Relatório planeta vivo (WWF, 2010).
Podemos pensar que o futuro da humanidade também depende de como o homem vai tratar das adaptações e mudanças de posturas necessárias para viver de forma mais harmoniosa e saudável em nosso planeta.
O habitat do homem é a superfície terrestre. Por habitat devemos enten- der o local de moradia, as áreas propícias à sobrevivência, à fixação de uma es- pécie. O homem é um ser vivo que não possui uma área específica, um tipo de clima ou de relevo que determine sua fixação, pois ele pode viver praticamente em toda a superfície da Terra. Porém, se a Terra deixasse de ser um possível habitat para a vida, o destino da humanidade, assim como de todas as demais formas de vida, seria a extinção.
Para Sevá Filho e Rick (2003, p.4),
é fato que vivemos no mesmo planeta, todas as gerações passadas, nós mes- mos, e aqui viverão os nossos sucessores; somos animais bastante adaptáveis, e, com algum recurso técnico, há grupos que vivem em terras geladas, como os esquimós, e em áreas desérticas, como os beduínos. A superfície do planeta tem mais mares e oceanos do que terras firmes; e há muitos trechos de pla- naltos e cordilheiras acima de 4 mil metros – onde já fica difícil a nossa sobre- vivência por períodos de tempo prolongados, devido ao ar rarefeito e ao frio extremo que fragilizam nossa saúde e nosso equilíbrio calórico. Não podemos sobreviver nem reproduzir a espécie se não tivermos acesso à água doce – que é muito mais escassa do que a água salgada e a salobra – e se não tivermos acesso ao sal e aos nutrientes básicos (carboidratos e gorduras, proteínas, fibras, vitaminas e sais minerais).
A adaptabilidade humana às condições naturais encontra grandes obstá- culos nas condições climáticas, sobretudo no tocante à influência do clima na saúde humana. Sorre (1984), citado por Mendonça (2000), em sua importante obra voltada à análise da interação entre o meio e a saúde humana em meados do século XX, enfatizou a influência daquele nesta, particularmente das condi-
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ções climáticas, destacando em sua abordagem o papel dos elementos do cli- ma na manifestação de variadas doenças, como se pode observar no quadro a seguir. Ele introduziu, ao correlacionar a ocorrência de determinadas doenças a tipos climáticos específicos, o conceito de complexo patogênico, “cujo número e variedade são infinitos”, situando seu conhecimento como “a base de toda a geografia médica”.
Manifestações fisiopsicológicas do homem pela ação dos elementos climáticos
Elementos
climáticos
Altitude (pressão atmosférica)
Radiação (associada à luminosidade)
Condições
limitantes
Limite máximo: 8.000m
60° e 70° latitude
Manifestações fisiológicas
– Mal das montanhas (dor de cabeça, fadiga, alteração sensorial, depressão intelectual, indiferença, sono, desco- ordenação de movimentos, perda de memória).
– Redução das faculdades físicas e mentais.
– Tristeza, apatia.
– Alta radiação/luminosidade: esgotamento nervoso, perturbações mentais, irritação, síndrome físico-psíquica “golpe de sol” (sunstroke), euforia.
– Baixa radiação/luminosidade: deficiências orgânicas,
Higrotermia
Vento e eletricidade atmosférica
Limite variável. Ótimo fisiológTico para raça branca: 15° – 16° C/60%UR
raquitismo, depressão, debilidade mental.
– Diminuição da capacidade respiratória (para europeus nos trópicos).
– Hiperpneia térmica (entre negros).
– Cansaço e esgotamento (brancos). – Morbidez, cansaço e abatimento.
– Debilidade do tônus nervoso, depressão, hipersensibili- dade, irritabilidade.
– Desidratação, dessecação do aparelho tegumentar. – Excitação nervosa, alucinações, delírio.
– Palpitações, dispneia, dores de cabeça, nevralgia.
Fonte: Adaptado de Mendonça (2000, p.93).
E nos dias atuais, como podemos pensar na adaptabilidade humana e
seus limites de sobrevivência?
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Sabemos que novas condições de adaptabilidade estão surgindo, em função principalmente das grandes ameaças que vem sendo produzidas e di- vulgadas acerca da sobrevivência do homem e das demais espécies de vida, ou ainda em função da possibilidade de perda generalizada de qualidade de vida, como será visto melhor no próximo capítulo.
Uma parte das pessoas acredita que temos que assumir a tarefa de nos adaptar a essas novas condições, reunindo esforços coletivos e individuais para salvaguardar a saúde do planeta. Outros acham que os mecanismos de adap- tação humana, principalmente com uso intensivo da tecnologia, servem de elemento enfraquecedor dessa luta. E ainda há aqueles que consideram que nosso planeta (ou a humanidade) não tem mais salvação, e que a saída seria a futura colonização de Marte ou de outros planetas, adaptando-se às novas condições que lá fossem encontradas (cf. o artigo “Stephen Hawking: única chance do ser humano será deixar a Terra”).
Em entrevista publicada no jornal O Estado de S. Paulo, Martin Rees, astrô- nomo da Universidade Cambridge e presidente da Royal Society (Academia de Ciências do Reino Unido), afirma que há um risco alto e real de mudanças cli- máticas graves e irreversíveis, e que a pior catástrofe não são os terremotos, mas a onda de desleixo que avassala o planeta. Quando indagado se a capacidade do ser humano de adaptação à condições de vida adversas impede que ele reaja e faça algo para evitar o seu próprio fim, Rees comenta que apesar de nós podermos nos adaptar, em vez disso deveríamos tentar impedir que o mundo se altere a ponto de o meio ambiente ser irreversivelmente degradado e ter sua biodiversidade destruída (Cruz, 2010).
Igualmente, podemos pensar na questão da convivência ou adaptabi- lidade com os riscos e desastres que assolam nosso planeta. Nesse contexto, Nunes (2009) lembra que a história da humanidade é também uma história de convívio com desastres naturais, muitos deflagrados por condicionantes atmos- féricos.
Muitas civilizações integraram as catástrofes naturais em seus mitos e crenças (Mesopotâmia, Grécia, atual Havaí, Austrália, China, Malásia, Índia, além dos As- tecas, Incas e algumas nações indígenas originárias do Brasil), e as grandes re-
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ligiões do mundo incorporaram alguns acontecimentos relacionados a desas- tres naturais, sendo o dilúvio o tema mais recorrente. Apesar disso, por muito tempo, as grandes catástrofes foram encaradas como fatalidade ou fruto da ira dos deuses contra os homens, argumentos que contribuíram para construir um senso de passividade e inevitabilidade diante delas e, assim, de medidas. (Nunes, 2009, p.181)
Por outro lado, há a critica da visão daqueles que apontam que o adven- to de desastres corresponderia a uma “vingança da natureza”, pois considera essa como uma concepção autocentrista, pela qual tudo seria regulado pelo ser humano, e simplista, por conceberem a causalidade de questões complexas, como os desastres, tendo apenas um ou poucos fatores contribuintes.
Tais interpretações não se sustentam no atual momento técnico-científico- informacional: as formas de ocupação do território, o empobrecimento de parcelas da população, a falta de infraestrutura adequada e a ineficiência dos sistemas organizacionais e políticos são os verdadeiros fatores para ao aumento da vulnerabilidade da população a esses episódios a partir das intervenções no território. (Nunes, 2009, p.181)
A ocorrência dos desastres naturais está ligada não somente às caracte- rísticas naturais, mas também à vulnerabilidade do sistema social sob impacto, isto é, o sistema econômico-social-politico-cultural. Geralmente, os países em desenvolvimento não possuem boa infraestrutura para enfrentar os riscos e de- sastres, sofrendo muito mais com estes do que os países desenvolvidos, princi- palmente no que se refere ao número de vítimas.
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Mortes causadas por catástrofes naturais. Na primeira figura, o mapa utiliza-se do recurso da anamorfose ge- ográfica, na qual a área do país é proporcional à quantidade de mortes. No segundo mapa, as áreas ocupadas
pelos países apresentam as medidas proporcionalmente corretas. Dados de 2006.
Isto ocorre em grande parte porque o aumento da pressão populacional e o desenvolvimento econômico forçam cada vez mais a população, em espe- cial a de baixa renda, a mudar para as áreas de risco, que são menos adequadas para atividades econômicas e para o adensamento populacional.
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Margens do Ribeirão das Anhumas, Campinas (SP), em 2002
A questão da vulnerabilidade social e ambiental aos desastres e situa- ções de risco é uma das alternativas de estudo sobre a adaptabilidade humana. Trata-se de uma temática atual, que se juntando a outras expostas neste tópico, pode ampliar nossa visão do que é a adaptabilidade, além da visão tradicional de adaptabilidade, muito influenciada pelo determinismo geográfico(cf. Gardi- ni, 2007).
Os limites da adaptabilidade humana podem, então, constituir-se em tema muito relevante dentro da Geografia, pois as mudanças ambientais glo- bais tem exercido influência enorme sobre as novas posturas que devem ser tomadas por parte dos indivíduos e das nações com o intuito de procurar novas adaptações e cuidados em relação ao nosso planeta.
Indicações
Leia o texto de Francisco Mendonça (2000), que aborda vários assuntos presentes nesta parte. Mais especificamente sobre este tópico, ele discute os impactos do clima sobre a sociedade e a repercussão desses impactos na con- dição de saúde humana.
No site Worldmapper você pode encontrar um conjunto bem extenso e interessante de quase 700 mapas que mostram, por exemplo, mortos por temperaturas extremas.
Leia o texto de Ricardo Dagnino e de Salvador Carpi Jr (2007), que ex-
põe diversos conceitos básicos sobre riscos e vulnerabilidade:
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No Relatório de desenvolvimento humano 2007/2008 há um texto inte- ressante sobre clima, risco e vulnerabilidade num mundo social e economica- mente desigual. Para ler o relatório completo, clique aqui.
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Capítulo 14
Paisagens humanas: da escala do lugar à escala planetária
abordagem da dinâmica da paisagem como um tema básico para a compreensão da Geografia vem subsidiar a compreensão do mundo atual, onde o tempo social ou humano vem modificar, num ritmo cada
vez maior, as características das paisagens originais, antes predominantemente naturais. Essa modificação, além de produzir formas mais variadas e complexas, também traz um conjunto muito variado de intervenções a lugares da Terra, frequentemente nocivas ao ambiente e ao homem. Diante disso, as preocupa- ções e ações relativas ao destino da humanidade e de nosso planeta nas mais diversas escalas tem crescido nas últimas décadas, desde a tentativa de orga- nização dos países por um bem comum, até a ação de cada indivíduo em seu lugar no mundo.
As transformações da paisagem e a maneira como são percebidas ou in- terpretadas pelo homem ocorrem em escalas distintas, que variam entre o lugar e o mundo. Então, vamos iniciar pelo conceito de lugar, que é outra importante dimensão do espaço geográfico.
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14.1. Lugar: as paisagens da janela
O lugar possui inúmeras conceituações, uma vez que são elaboradas por estudiosos que seguem variadas correntes de pensamento, como Tuan (1982),11 Christofoletti (1982)12 e Bezzi (2002)13.
Em uma de suas concepções, a noção de lugar permite identificar, por exemplo, qual espaço tem vocação para determinados usos, analisando as van- tagens e desvantagens em comparação com outros. Isso decorre do fato da no- ção de que o lugar possui uma riqueza natural, dada pela sua posição e situação geográfica, e um valor contido, em função de seu caráter histórico, que propicia uma atratividade social.
Vitte (2003) exemplifica a utilização do litoral brasileiro como lugar valori-
zado em termos de atratividade social e explica que
o lugar deve ser entendido como uma unidade de investigação e gestão, uma realidade material físico-biótica e social, cuja denominação obedece ao recorte pelo qual é analisada por seu investigador ou gestor. O lugar pode ser um ecos- sistema, uma biota, uma unidade geoambiental, um habitat, um município, uma planta produtiva. Mas antes de tudo, o lugar deve ser analisado como um espaço de produção e reprodução de um grupo humano, uma possibilidade de uso social com um dado potencial produtivo. (Vitte, 2003, p.64)
11 Tuan (1982) aponta para a necessidade de o homem conhecer seu território e o lugar onde vive. O ser humano se faz agente da organização de determinada porção da superfície terrestre, graças, basicamente ao papel da emoção e do pensamento, principais elos entre o homem e um certo espaço. Assim, para cada indivíduo ou grupo humano, existe uma visão do mundo, que se expressa através de seus valores e atitudes para com o meio ambiente.
12 Para Christofoletti (1982), o lugar é aquele em que o indivíduo se encontra ambientado, no qual está integrado. Ele faz parte do seu mundo, dos seus sentimentos e afeições; é o centro de significância ou um foco de ação emocional do homem.
13 Segundo Bezzi (2002), deve-se verificar os gostos, as preferências, as características e particularidades do lugar, valorizando-se o quadro físico e os aspectos culturais que resultam da personalidade do lugar. Essa personalidade própria confere ao lugar uma “identidade”, que vai distingui-lo dos demais.
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Costa do Descobrimento, litoral da Bahia
Praia da Fazenda, Ubatuba, litoral norte paulista
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Haesbaert (2002) chama a atenção para a questão da identidade territo-
rial, ainda que sem a utilização do termo “lugar”:
Muitos espaços expressam mais do que a manifestação concreta de seus pré- dios, estradas e montanhas. Neles há “espaços” ou territórios de um caráter es- pecial, cuja denominação extrapola em muito seus limites físicos e sua utiliza- ção material. É o que os autores como Poche (1983) denominam de “espaços de referência identitária”, a partir dos quais se cria uma leitura simbólica, que pode ser sagrada, poética ou simplesmente folclórica, mas que, de qualquer forma, emana uma aproximação estética específica, capaz de fortalecer uma identida- de coletiva que, neste caso, é também uma identidade territorial. (Haesbaert, 2002, p.149)
No entanto, o autor chama a atenção também para a emergência dos “não lugares”, que seriam espaços não identitários, não relacionais e não históricos. Essa concepção tem sido desenvolvida principalmente por aqueles que têm estudado a influência da globalização sobre as dimensões do espaço geográfico. Mas, por outro lado, Haesbaert (2002) defende que os lugares não estão apenas perdendo relações, identidade, história, mas sim incorporando uma multiplicidade de identidades, relações e histórias. Desse modo, no processo de globalização, o lugar pode ser considerado também como um encontro ou local de intersecções de um conjunto particular de atividades espaciais, de conexões e inter-relações, de influências e movimentos. É o mesmo que considerar o lugar no sentido de relações ou encontros de múltiplas identidades, em escalas muito maiores que as costumeiras, ou seja, na articulação permanente entre os níveis local e global.
A compreensão do lugar e demais espaços de referência identitária é muito importante para a Geografia e para os movimentos sociais, pois envolve questões centrais para o mundo atual. Propicia a identificação de grupos sociais reinvidicatórios, espaços de exercício de cidadania ou de luta, territórios de ex- clusão\ inclusão, de resistência, de marginalização ou segregação.
Para Nunes et al. (2006), entre tantas concepções a respeito do lugar, este é compreendido como o espaço de vivência e manifestação das relações so-
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ciais, cujo maior conhecimento das suas representações socioespaciais (cogniti- vas), leva os sujeitos a criarem afetividades com o seu local de vivência.
Apesar das distintas definições de lugar, você consegue identificar pontos
em comum? Uma delas não seria a questão da afetividade?
Aqui cabe lembrar outro conceito fundamental na Geografia, que é o de topofilia, que trata justamente do elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou quadro físico.
Para a Geografia, o lugar traduz os espaços nos quais as pessoas cons- troem os seus laços afetivos e subjetivos, pois pertencer a um território e fazer parte de sua paisagem significa estabelecer laços de identidade com cada um deles. É no lugar que cada pessoa busca suas referências pessoais e constrói o seu sistema de valores, e são esses valores que fundamentam a vida em socie- dade, permitindo a cada indivíduo identificar-se como pertencente a um lugar, e, a cada lugar, manifestar os elementos que lhe dão uma identidade única (São Paulo, 2008, p.46).
O lugar é considerado um dos conceitos estruturantes da Geografia, ar- ticulando-se com outras categorias de análise geográfica, algumas abordadas nesta parte, como espaço e tempo, sociedade, paisagem, território e região.
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Conceitos estruturantes e articulações presentes na Geografia
Conceitos Articulações
Espaço e
tempo
Sociedade
– Principais dimensões materiais da vida humana. – Expressões concretizadas da sociedade.
– Condicionam as formas e os processos de apropriação dos territórios.
– Expressam-se no cotidiano caracterizando os lugares, definindo e redefinindo as
localidades e regiões.
– Consideradas as relações permeadas pelo poder, apropria-se dos territórios (ou es- paços específicos) e define as organizações do espaço geográfico em suas diferentes manifestações: território, região, lugar.
Lugar
Paisagem
– Os processos sociais redimensionam os fenômenos naturais, o espaço e o tempo. – Manifestação das identidades dos grupos sociais e das pessoas.
– Noção e sentimento de pertencimento de certos territórios.
– Concretização das relações sociais vertical e horizontalmente.
– Expressão da concretização dos lugares, das diferentes dimensões constituintes do espaço geográfico. Pelas mesmas razões já apontadas, não limitaria a paisagem apenas ao lugar.
– Permite a caracterização de espaços regionais e territoriais considerando a horizon-
Região
Território
talidade dos fenômenos.
– Região se articula com território, natureza e sociedade quando essas dimensões são consideradas em diferentes escalas de análise.
– Permite a apreensão das diferenças e particularidades no espaço geográfico. – O território é o espaço apropriado. Base da região.
– Determinação das localizações dos recursos naturais e das relações de poder.
– A constituição cotidiana de territórios tem como base, as relações de poder e de identidade de diferentes grupos sociais que os integram, por isso eles estão inter-
-relacionados com conceitos de lugar e região.
Fonte: Brasil (2006, p.53).
A consideração do lugar como objeto de análise geográfica e de alguns de seus elementos típicos, como a ideia de afetividade e identidade traz à tona alguns conceitos que têm sido muito trabalhados atualmente nos debates a respeito da gestão ambiental em áreas rurais. São eles: pertencimento e patri- monialidade.
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Segundo Silva e Ferrante (2009), patrimonialidade ambiental e pertenci- mento são conceitos que vem se configurando como instrumentos de ações conjuntas entre órgãos gestores, universidades e assentados para promoção de uma gestão de áreas de reserva legal e proteção permanente, bem como entre aqueles que promovem a recuperação desses espaços que incluem também áreas disponíveis nos lotes de produção. É um olhar para as questões ambien- tais a partir do ângulo de visão do assentado, os envolvidos diretos, nas rela- ções concretas do assentamento, que convergem com suas histórias de vida e saberes, os quais compartilhados com os saberes sistematizados técnicos e de extensão podem gerar uma efetiva transformação ambiental, social, cultural e política.
A afetividade, o pertencimento, a identidade com o lugar e o conheci- mento local são elementos fundamentais para a toponímia, ou seja, a deno- minação dos lugares. Os topônimos fornecem um grupo importante de infor- mações sobre as características de um determinado lugar, juntamente com as características culturais e os fatos históricos e geográficos de um país.
No Brasil, o maior número de nomes de lugares tem origem na língua portuguesa, mas há também um grande número de topônimos de origem indígena.
No caso dos nomes de lugares denominados nas línguas tupi-guarani, eles dão a ideia de como eram as condições naturais de diversas regiões antes da colonização portuguesa, pois os indígenas eram de fina observação, incluindo no nome do lugar a descrição de suas características. Como exemplo, podemos citar os aspectos mais dinâmicos (mudanças na cobertura vegetal, os animais mais comuns, a qualidade das águas) e também os elementos mais estáveis da paisagem, como o relevo, as rochas, os solos, os rios, as quedas d’ água e as praias.
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Inscrições rupestres de origem indígena em Itacoatiaras do Ingá (Paraíba).
Itacoatiara significa “pedra desenhada”, segundo Bueno (1982).
A denominação de lugares, a identidade espacial, afeição, pertencimento, integração e conhecimento são elementos que mostram que a relação do ho- mem com a paisagem não é apenas de transformação, adaptação, sobrevivên- cia, proteção ou exploração. É também de percepção, pois a paisagem “não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons etc. […] e a percepção é sempre um processo seletivo de apreensão” (Santos, 1988, p.62).
Quando da realização do mapeamento ambiental do Estado de São Pau- lo (Bacelli, 1986), foi ressaltado que enquanto cada cientista trata a paisagem sob determinado enfoque, conforme seus objetivos, o processo perceptivo, ao contrário, tenta apreender a paisagem com uma visão que seja integrativa. Os
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componentes do processo perceptivo aceitos no método adotado, com a rea- lização de entrevistas com moradores de todos os municípios, correspondem à intuição, experiência coletiva e experiência pessoal, além de destacar a imagem que o habitante faz de sua paisagem.
Assim, uma importante estratégia de investigação sobre a paisagem constitui-se na aplicação de questionários ou na conversa com moradores dos arredores do local estudado, pois as pessoas que tem contato antigo ou diá- rio com determinada paisagem possuem informações importantes sobre suas transformações. Da mesma forma, tem se recorrido muito no Brasil a diversos métodos de utilização da percepção ambiental em levantamento de proble- mas ou riscos ambientais, muitos deles considerados como modalidades de “diagnóstico participativo”, como no caso das atividades de etnomapeamento.14
Nesse contexto está também a valorização e resgate da memória indivi- dual e coletiva, que propicia ao sujeito situar-se no tempo e no espaço em que vive, conhecer aspectos do passado como constituidor do presente. A memó- ria se materializa nos diferentes espaços da cidade: ruas, prédios, museus, ater- ros, diques, pontes, desmatamentos, praças, monumentos. Ou seja, a memória constitui-se em importante instrumento de resgate das transformações sofridas pelos objetos naturais e sociais de um determinado lugar.
Nesse sentido, Almeida (2006, p.43) considera que “a memória é parte importante do sentimento de identidade, tanto individual quanto coletivo na medida em que ela também é parte essencial dos sentimentos de pertenci- mento e de continuidade de um indivíduo ou de um grupo em relação a seu espaço e sua história”.
Almeida (2006, p.41) ainda afirma que
a memória em seu aspecto histórico-social é, por excelência, pertinente aos idosos. Eles a mantêm resguardada e precisam dela para sobreviver. O passado lhes pertence, pois, livres das tarefas profissionais e familiares, exercem a função que lhes é peculiar, de refletir e escavar lembranças. Isso, ao contrário dos adul-
14 Sobre esse assunto, cf. Correia (2007).
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tos, ocupados com as tarefas do dia a dia, em que a maioria das lembranças chega quase em forma de sonhos, soltos, sem o trabalho da reflexão.
Caberia às pessoas mais idosas a observação diária das mudanças e a lembrança da paisagem perdida, pois possuem uma forte ligação com o seu lugar, todas as suas lembranças estão enraizadas em seu espaço, em sua paisa- gem habitual. Em contraposição, os mais jovens tem uma ligação muito frágil com a paisagem e estão acostumados com mudanças mais rápidas, com a cor- reria cotidiana, e as transformações passam mais desapercebidas, principalmen- te nos dias atuais que apresentam a modificação de espaços com rapidez cada vez maior e de forma cada vez mais impactante.
Quando entramos em contato com uma paisagem, podemos observá-
-la, descrevê-la, compará-la com aquilo que conhecemos, explicá-la, mas com a ressalva de que é muito difícil explicar sua totalidade, interessando-nos so- mente alguns de seus aspectos, a depender do tema e objetivos definidos pela pessoa. Daí a necessidade de estudarmos a ideia de leitura e interpretação da paisagem, tão importante nos dias atuais, quando a própria ideia de lugar che- ga ao ponto de ser contestada ou modificada frente às transformações cada vez mais rápidas presentes em nosso mundo.
Sugestões
Vídeo: Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu – Purus (AM), que destaca vários temas relacionados à sustentabilidade, mas também a in- tegração entre o saber local das populações ribeirinhas e o conhecimento dos técnicos e cientistas que trabalharam na implantação da reserva.
Para se divertir vendo algo interessante: o fotógrafo britânico Carl Warner criou uma série de fotografias utilizando apenas alimentos para formar cená- rios. As chamadas “foodscapes” (união das palavras food [alimentos] e landscape [paisagem]) mostram cavernas submarinas, florestas, praias ao pôr do sol e até cachoeiras, usando frutas, legumes, queijos, frios e massas, entre outros.
O livro Cidade das águas, de Saide Kahtouni (2004), trata das relações entre
São Paulo e seus recursos hídricos desde o nascimento da cidade até os dias
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atuais, sendo que à medida que ocorrem as mudanças na paisagem urbana, os antigos vínculos cotidianos dos habitantes com as águas vão se apagando. Essa obra procura trazer para a memória coletiva algumas histórias e conexões perdidas em mais uma cidade das águas, chamada São Paulo.
O texto de Helena Copetti Callai (2005) mostra interessantes relações entre o lugar e as noções de identidade e pertencimento, e a percepção e leitu- ra da paisagem. Indica, também, várias possibilidades de exercícios para serem aplicados aos alunos sobre esses temas.
14.2. Leitura e interpretação de paisagens entre o lugar e o mundo
A percepção das paisagens, tanto como fenômeno individual ou coletivo, tem subsidiado a ideia de “leitura da paisagem”. Nela, a percepção se completa com o desenvolvimento da observação, que embora privilegie a visão como sentido principal, devemos sempre nos atentar à busca de utilização de outros sentidos.
Na leitura da paisagem, aproximamo-nos de diversas maneiras de apre- ensão e compreensão dela, expressas nos sentimentos e na memória das pes- soas, nos textos científicos sobre o lugar, na literatura, no modo de vida das pessoas. Essa apreensão está relacionada também às nossas referências, ou seja, àquilo que conhecemos de antemão, às nossas vivências, à nossa maneira de perceber e compreender o mundo.
A observação da paisagem pode ser realizada de forma direta e indireta. Na forma direta há contato direto com o objeto que está sendo observado, como as construções que marcam a paisagem de um bairro. Na forma indireta, o objeto encontra-se representado através de diferentes linguagens – mapas, gráficos, esquemas, fotografias, vídeos ou gravuras, assim como imagens de sa- télite, pinturas e filmes em geral.
Nesse contexto, as técnicas de campo são bastante importantes na Geo- grafia e em inúmeras ciências, principalmente para a observação da paisagem. Um recurso extremamente importante das observações de campo é a possibi- lidade de obtermos uma visão direta dos fenômenos que ocorrem na superfície terrestre.
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Assim como as demais técnicas de pesquisa, as observações de campo também possuem suas limitações. Uma delas se constitui na existência de mui- tas áreas de difícil acesso tanto para o deslocamento como para a presença do observador. Este fato se evidencia em locais muito montanhosos ou de difícil acesso, áreas alagadas, desérticas, florestas muito fechadas. Outra limitação re- laciona-se à visão somente parcial proporcionada pelas observações de campo, que favorecem a perda e a transitoriedade de muitos dos aspectos percebidos.
Por outro lado, um aspecto positivo dos trabalhos de campo para a ob- servação da paisagem consiste na possibilidade de serem aliadas as observa- ções puramente visuais com aquelas que se valem de instrumentos variados, tais como bússola, clinômetro, teodolito, altímetro, GPS e outros.
A leitura e interpretação de paisagens com as observações visuais e ins- trumentais podem ser utilizadas para a elaboração de diagnósticos em épocas distintas, conduzindo às análises temporo-espaciais, que permitem detectar as tendências de comportamento ou prognósticos dos aspectos da paisagem que sejam de interesse.
Uma das formas de ler e interpretar a paisagem ocorre mediante o uso de
fotografias, que podem ser de duas formas: em perspectiva ou planas.
No uso de fotografias em perspectiva, sejam elas aéreas ou feitas no pró- prio terreno, é possível o registro da paisagem praticamente quando se desejar, inclusive no que se refere à periodicidade. Ao contrário das fotografias aéreas planas, as situações registradas ficam restritas somente às datas dos levanta- mentos aerofotogramétricos realizados. Além disso, permitem um acompa- nhamento detalhado, no caso das fotografias registradas no próprio terreno, dos aspectos dinâmicos da paisagem. Por outro lado, possuem o inconveniente de terem um alcance temporal menor, restrito à realização do estudo, podendo ocorrer a falta de registros fotográficos mais antigos.
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Exemplo de fotografia aérea em perspectiva, mostrando Ourolândia (BA)
A avaliação de processos que ocorrem na paisagem geralmente possui caráter qualitativo e pode ser realizado através da elaboração de croquis15 dese- nhados a partir das fotos, ou então, através da comparação entre elas próprias, registradas em épocas distintas.
No caso das fotografias aéreas planas, a fotointerpretação é uma técnica de observação indireta bastante utilizada em pesquisas relacionadas à Geogra- fia e outras ciências, visando ao mapeamento dos objetos posicionados na su- perfície terrestre.
15 “Croquis: é um esboço e não obedece a rotina técnica para a elaboração de mapas. Não tem como finalidade a divulgação para o público; contém informações sobre uma pequena área e supre a falta de uma representação cartográfica detalhada. (IBGE, 1993).” Disponível em: <http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/textos/texto_1.
htm>.
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Entretanto, nas fotografias aéreas, a cobertura vegetal, os cultivos agrí- colas e outros objetos impedem muitas vezes de se observar ou dificultam a visão de alguns objetos da paisagem, caracterizando-se como uma limitação que pode ocorrer dependendo das características da área em questão.
Vimos que na escala do lugar, em áreas de expressão areal quase sempre restrita, os elementos da paisagem são compatíveis com as escalas nas quais são produzidas as fotografias aéreas. Nos casos em que se necessita de um conhecimento mais geral sobre a paisagem, numa escala de trabalho mais am- pliada, torna-se necessário o recurso a outros produtos de sensoriamento re- moto, como as imagens de satélite.
As imagens obtidas por satélites estão sendo cada vez mais empregadas atualmente. Crósta (1993), por exemplo, ressalta essas imagens como fonte de dados para levantamentos geológicos, ambientais, agrícolas, cartográficos, flo- restais, urbanos, oceanográficos, constituindo-se em uma das únicas formas vi- áveis de monitoramento ambiental16 em diversas escalas, devido à sua rapidez, eficiência e periodicidade. Enquanto as fotografias aéreas possuem o inconve- niente de serem, em sua maior parte, desatualizadas, as imagens de satélites apresentam uma periodicidade menor.
Na utilização de imagens de satélite, uma certa dinâmica da paisagem pode ser apreendida, graças à repetitividade cíclica do imageamento da mesma área, possibilitando a identificação das transformações da materialidade superficial ou subsuperficial a cada instante, em intervalos regulares de tempo. (Castillo, 2009)
Juntando-se a esse aspecto, vivemos também na era das telecomunica- ções e dos satélites. Até pouco tempo atrás, as notícias novas eram velhas quan- do chegavam às TVs, as ligações telefônicas eram complicadas e as dificuldades na previsão do tempo significava a perda de milhares de vidas a cada ano com
16 “Monitoramento ambiental: acompanhamento periódico através de observações sistemáticas de um atributo ambiental, de um problema ou situação através da quantificação das variáveis que o caracterizam. O monitoramento determina os desvios entre normas preestabelecidas (referenciais) e as variáveis medidas” (Brasil, 2004, p.221).
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navios encalhados e furacões chegando de surpresa. Depois que entramos na era do satélite, muita coisa mudou, e hoje a tecnologia dos satélites faz arte de nosso cotidiano… nos aparelhos de telefonia celular, na TV, no computador, no GPS, nas notícias, na previsão do tempo…
A utilização de imagens de satélite e de demais geotecnologias nos re- mete a outro aspecto fundamental da Geografia, que é o trânsito entre o global e o local. Da mesma forma que as imagens de satélite nos permitem captar as paisagens do mundo, também propicia visualizar cada vez mais as característi- cas de um determinado lugar. O avanço das técnicas de sensoriamento remo- to produz imagens com resolução e qualidade progressivamente superiores, assim como as geotecnologias têm facilitado a passagem entre escalas muito distintas de uma forma muito rápida e precisa.
Sugestões
Veja o texto de Sueli Tomaziello (2007), capítulo 3 do livro Vulnerabilidade ambiental, que trata do reconhecimento da paisagem por meio de técnicas de leitura espacial, inclusive a configuração, compreensão, informação e observa- ção da paisagem conforme a escala e resolução espacial.
Leia a dissertação de mestrado de Sonia Chamon Pardim (2005) e veja a riqueza de imagens – mapas, fotografias, desenhos, pinturas – que mostram o Rio Tietê.
A Terra vista do alto, de Fernando Carraro, conta a história de duas crianças que viajam de balão, da Serra do Mar até o Pantanal. Lendo esse pequeno livro, o leitor poderá descobrir os encantos desses trechos dos estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul e aprender sobre formas de relevo e as relações com os demais componentes da paisagem.
O artigo de Maria Conceição Lopes, Antonio Lucio Martins e Maria Tereza Abdo (2008) mostra um exemplo de atividades de observação direta e instrumental de alguns elementos da paisagem articuladas com atividades educativas em bacia hidrográfica.
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No conjunto de links abaixo, você poderá acessar imagens de satélite que mostram diversos desastres ambientais, alguns deles em sequência de tempos distintos, para notar as modificações da paisagem:
Satélite Aqua mostra uma massiva tempestade de poeira no Saara Nasa mostra imagens de desastres vistos do espaço
Imagens mostram desaparecimento do Aral e outros desastres
14.3. Globalização e crise ambiental
Inicialmente, podemos pensar que o estudo da paisagem é fundamental para a obtenção daquele que deve(ria) ser o objetivo principal da Ciência, de forma geral, e também da Geografia, que é o de assegurar a melhor qualidade possível de vida para o mundo atual e futuro.
A Geografia, ciência tradicionalmente reconhecida como aquela que analisa as relações da sociedade com a natureza, tem se tornado muito importante no cenário contemporâneo, por ser capaz de explicar como os processos naturais e sociais interagem no tempo e no espaço. Também a questão ambiental, que assumiu dimensões globais e recolocou em destaque as contradições da produção social do espaço e das formas de apropriação da natureza, deve ser compreendida como um produto da intervenção da sociedade sobre a natureza.
A forma variada, rápida e agressiva como as sociedades têm interferido na dinâmica natural da Terra já fornece elementos para alguns pesquisadores defenderem a ideia de, no presente, estarmos na vigência de uma nova Era Geológica ou de uma nova fase ecológica de desenvolvimento do homem, tamanhas as interferências existentes. Soma-se a esse aspecto as concepções mais recentes do termo meio ambiente, que incluem, além dos elementos naturais, os elementos socioeconômicos construídos ou organizados pelo ser humano.
A esse respeito, Sevá Filho e Rick (2003, p.14) assinalam que os últimos 20
mil anos, talvez 50 mil anos e, especialmente, os últimos 500 anos consistem no
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período no qual se tornou mais evidente a ação modificadora e destruidora humana sobre a Terra. Os autores afirmam que
alguns estudiosos já começam a chamar a “nossa era” de pós-quaternária, a era em que uma das espécies vivas, um dos maiores animais sobre a terra, se tor- nou um agente geológico de primeira grandeza, que consegue produzir efei- tos comparáveis aos dos terremotos e das grandes inundações sazonais das planícies, ou produzir reações comparáveis às explosões internas do Sol… aqui na Terra! […] Era pós-quaternária, era tecnogênica, a quinta era geológica do pla- neta. São bem apropriadas estas novas designações, o mundo já é bem distinto do que foi na Era Quaternária.
Devemos nos orgulhar?
Este questionamento nos remete à reflexão de que o ser humano além de dinamizador dos processos naturais, também é, como espécie, um dos mais prejudicados pelas ações danosas ao ambiente do planeta.
Podemos afirmar que tais ações se intensificaram nos últimos quarenta anos juntamente com o processo de globalização econômica, que provocou efeitos nos sistemas produtivos e nos hábitos de consumo das populações. É inevitável estabelecer que tais aspectos sejam intrínsecos à grave crise ambien- tal instalada no planeta neste período.
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Histórico de questões ambientais e principais marcos das discussões e preocupações ambientais no mundo
1965 – É utilizada a expressão “educação ambiental” (enviromental education) na “Conferência de Educação” da Universidade de Keele, Grã- Bretanha.
1972 – Conferência de Estocolmo, realizada pela ONU, sobre o ambiente humano. Participaram 113 países. A principal realização foi estabelecer um “Programa Internacional de Educação Ambiental” visando educar o cidadão para que ele maneje e controle seu ambiente.
1975 – Encontro Internacional de Educação Ambiental em Belgrado: encontro internacional no qual foi redigida a Carta de Belgrado, que afirmava que a educação ambiental deveria ser uma atividade contínua e multidisciplinar, e estabelece as suas metas e princípios.
1977 – Conferência sobre Educação Ambiental em Tbilisi: primeira conferência intergovernamental sobre EA, na Geórgia. Realizado pela Unesco, até hoje é considerado o evento mais decisivo sobre as questões relativas à EA.
1987 – Divulgação do Relatório da Comissão Brundtland, Nosso futuro comum. Lançado em 1987, originou o conceito de desenvolvimento sustentável e concluiu que o modelo atual de desenvolvimento era suicida e faria a Terra mergulhar num colapso em questão de pouco tempo.
1992 – Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco 92). Contou com a presença de 170 países, no Rio de Janeiro, Brasil. Também denominada Cúpula da Terra, analisou e encaminhou os seguintes aspectos:
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• situação ambiental do planeta;
• identificação de estratégias para as questões ambientais;
• medidas para aperfeiçoar a legislação ambiental;
• definição de estratégias de promoção de desenvolvimento
sustentado e;
• corroborou as premissas de Tbilisi através da chamada Agenda 21.
1997 – Em Kyoto, Japão, é assinado o Protocolo de Kyoto, um novo componente da Convenção, que contém, pela primeira vez, um acordo vinculante que compromete os países do Norte a reduzir suas emissões. Ambiciosa decepção.
2002 – Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Rio+10). A ONU realiza a Segunda Cúpula da Terra, em Johannesburgo, para conferir os avanços feitos em dez anos. A Rio+10 foi criticada por ambientalista e imprensa pela falta de novas ações para reduzir a pobreza e a degradação ambiental.
Um importante marco histórico para a questão ambiental foi a fundação do Clube de Roma, em 1968, formado por um grupo de 30 especialistas de vá- rias áreas para discutir a crise vigente e futura, o que resultou na publicação do antológico relatório The Limits of Growth [Os limites do crescimento]. O relatório apresentava projeções globais para predizer como seria o futuro se não hou- vesse modificações ou ajustamentos nos atuais modelos de desenvolvimento econômico. O documento condenava a busca incessante do crescimento da economia a qualquer custo sem levar em conta as consequências finais desse crescimento (Dias, 1993).
Esse processo histórico das discussões ambientais, de forma direta e in- direta, interpela os governos constituídos em seus países, que instauram, por intermédio da ONU, um conjunto de conferências a partir dos anos 1970. Nesse
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contexto, foi realizada na Suécia, em 1972, a Conferência de Estocolmo. Promo- vida pela ONU, representou um marco histórico para o ambientalismo mundial por questionar o modelo de crescimento econômico das sociedades industriais, incorporando ideias e dados do relatório do Clube de Roma. Já no fim dos anos 1980, a questão ambiental começava a se tornar um problema oficial, pois se percebia que os problemas ecológicos começavam a preocupar as autoridades políticas de muitas nações.
Vinte anos a após Estocolmo, foi realizada pela ONU a Eco 92 ou Rio 92. A Segunda Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento con- tou com uma maior participação dos Estados-Nações, com mais de 170 países. Considerada por muitos como o encontro mais importante, tem como um dos pontos de destaque a elaboração da Agenda 21, que em 40 capítulos apresenta diretrizes que estimulam ações e comportamentos compatíveis com o desen- volvimento sustentável.
O documento ressalta a falta de integração existente entre desenvolvi- mento e ambiente, a necessidade de promoção da equidade econômica e a importância da responsabilidade e participação social. Na Eco 92, o clima do planeta teve destaque nas discussões, em função das já preocupantes altera- ções climáticas envolvendo o buraco na camada de ozônio17 e o efeito estufa18. Ficou acertado neste encontro a realização de encontros periódicos (Conferên- cias das Partes – COPs) para discutir a redução da emissão de gases responsá- veis pelo aquecimento global. Foram realizadas até o momento 12 COPs. A mais importante, a COP-3, ocorreu em Kyoto (Japão), em 1997. Líderes de 160 países firmaram um compromisso com metas práticas para a diminuição de gases, conhecido como o Protocolo de Kyoto.
17 “Buraco na camada de ozônio consiste na ausência de parte do gás ozônio que envolve a Terra, pela reação com gases poluentes, principalmente o CFC usado em aerossóis, geladeiras, condicionadores de ar. A destruição dessa camada permite a passagem de maior quantidade de raios ultravioletas que podem causar doenças como o câncer de pele e modificações em outros seres vivos” (Dicionário…, 2005, p.10).
18 “Efeito estufa é o impedimento da dissipação do calor acumulado no planeta provocado pelo excesso de gases poluentes na atmosfera. Favorece o aquecimento global” (Dicionário…, 2005, p.22).
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Assim, os problemas ambientais passaram a ser discutidos também em conferências internacionais, das quais participam centenas de países, mas mui- tas vezes, com posições divergentes, defendendo interesses próprios e até mes- mo interesses de grupos específicos.
Em 2002, a ONU realizou a RIO+10, em Johannesburgo (África do Sul), para conferir os avanços feitos nos dez anos desde a Eco 92. A conferência foi criticada por ambientalista e pela imprensa em geral pela falta de novas ações para reduzir a pobreza e a degradação ambiental. Depois de duas semanas de negociações, a conferência terminou sem metas claras e com acordos tidos por ONGs como “vergonhosos”.
O sentimento de fracasso ao final da Rio+10 demonstra que as negocia- ções de tais conferências são na verdade disputas políticas de interesses an- tagônicos, representados por forças hegemônicas do capital e forças contra-
-hegemônicas. Mendonça (2000) afirma que no contexto atual de globalização, em que se observa a hegemonia das relações capitalistas de produção, o eco- desenvolvimento19 e mesmo a ideia de “sociedades sustentáveis” parecem não exercer muita influência sobre as políticas públicas, ações empresariais e práti- cas sociais.
As dificuldades de se assinar e programar tais tratados torna as negocia- ções internacionais em torno da questão ambiental complexas e longas; estas demoram décadas e demonstram que interesses econômicos ainda se sobre- põem aos interesses ambientais. Podemos destacar como exemplo, o descaso do governo estadunidense em relação ao Protocolo de Kyoto, refletindo a forte pressão política exercida pelo setor industrial desse país, formado por empresas multinacionais que temem a diminuição dos lucros com as medidas propostas.
Mas a problemática ambiental continuava suscitando várias contradi- ções, que tem se prolongado nas últimas décadas. As circunstâncias atuais de- monstram que a ideia de sustentabilidade ou desenvolvimento sustentável é oposta ao processo de globalização da economia mundial, que reforça a ideia de apropriação econômica do ambiente em diferentes escalas de exploração
19 “Ecodesenvolvimento consiste no desenvolvimento econômico que não causa danos à
natureza” (Dicionário…, 2005, p.21).
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de seus recursos naturais, expondo os diversos e mais remotos ambientes de nosso planeta aos interesses econômicos da ação humana.
O geógrafo Milton Santos alertava para o fato de que, das múltiplas de- nominações aplicadas ao nosso tempo, nenhuma é mais expressiva que a de período tecnológico. Para ele, a técnica é um intermediário entre a natureza e o homem desde os tempos mais remotos, mas, ao converter-se num objeto de elaboração científica sofisticada, acabou por subverter as relações do homem com o meio, as relações entre as classes sociais e até mesmo as relações entre as nações.
Essas relações diante do estágio do processo de globalização, além de ser responsável por aumentar o fosso de desenvolvimento humano entre so- ciedades abastadas e periféricas, impedem que as nações e empresas econo- micamente hegemônicas caminhem juntas em termos de compromissos am- bientais.
Capra (2004), em seu livro O ponto de mutação, afirma que o excessivo crescimento tecnológico criou um ambiente onde a vida se tornou física e mentalmente doentia. Ar poluído, ruídos, congestionamentos, poluentes quí- micos e outras fontes de estresse físico e psicológico passaram a fazer parte da vida cotidiana da maioria das pessoas. Para o autor, os múltiplos riscos para a saúde não são apenas subprodutos casuais do progresso tecnológico. São características integrantes de um sistema econômico obcecado por intensificar sua alta tecnologia numa tentativa de aumentar a produtividade.
Portanto, além de suas consequências socioeconômicas e culturais, a globalização reflete e perturba os aspectos e processos ambientais que consti- tuem a própria base da nossa existência, afetando a qualidade dos mais diver- sos aspectos do nosso cotidiano.
Tal aspecto é extremamente relevante no momento atual, em que pare- ce se falar exclusivamente sobre mudanças de caráter global, provocados pelo desmatamento, queimada de florestas, emissão de gases poluentes oriundos da queima de combustíveis fósseis, e outros. Cabe destacar que nem todo im- pacto ambiental tem, necessariamente, implicações numa escala planetária,
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como é o caso, na escala local, da formação de ilhas de calor20, e na escala re- gional, onde pode ocorrer a desertificação21 ou a chuva ácida22.
E quais seriam as escalas de atuação do indivíduo ou da sociedade para
reverter esse quadro?
As medidas para mitigar a degradação ambiental e que busquem a sus- tentabilidade do ambiente e de seus recursos sociais e naturais devem ocorrer nas diferentes escalas, globais, nacionais e locais:
Escala global – acordos para evitar a degradação do planeta.
Escala nacional – regulação e estruturação do uso de recursos naturais. Apesar dos acordos internacionais, os governos nacionais são soberanos na gestão de seu patrimônio ambiental.
Escala local – práticas que podem ou devem ser adotadas por todos. “Modo de vida das pessoas”. Consumo responsável, reciclagem etc.
Santos (2004) afirma que o mundo existe como possibilidade, enquan- to o lugar existe como oportunidade para os eventos. O problema ambiental, portanto, está presente no lugar, onde fica evidente a organização da socieda- de. Isso mostra como pode ser importante as ações do indivíduo em prol da melhoria das condições de vida do ambiente, pois é no lugar que as pessoas podem exercer uma influência maior nesse sentido.
Isto nos faz lembrar de uma importante reflexão de Carlos Santos (2008,
p.2) expondo que
20 “Ilha de calor é uma área de temperatura maior que as áreas vizinhas, que ocorre nas regiões centrais das cidades, provocada pela concentração de casas, indústrias, carros e pela falta de área verde” (Dicionário…, 2005, p.33).
21 “Desertificação: degradação da terra nas regiões áridas, semiáridas e subúmidas secas, resultante de vários fatores, entre eles as variações climáticas e as atividades humanas. A degradação da terra compreende a degradação dos solos, dos recursos hídricos, da vegetação e a redução da qualidade de vida das populações afetadas”(Brasil, 2004, p.102).
22 “Chuva ácida: chuva enriquecida em substâncias ácidas tais como ácido sulfúrico e ácido nítrico, sendo tais substâncias produzidas pela combinação da água atmosférica com os óxidos liberados após a queima de hidrocarbonetos, ou liberados por instalações industriais” (Brasil, 2004 p.71).
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a autoconsciência humana leva à descoberta da saudabilidade como a meta mais promissora de uma relação ecológica. É bom lembrar que, na verdade, para o planeta em si os impactos resultantes da ação humana são eventos como tantos outros que ocorrem como parte de sua própria dinâmica. Deixado a si mesmo, o planeta pode se refazer. A questão é a espécie humana. É sua saudabilidade que está em jogo quando alterações drásticas do meio ambiente acontecem por conta de seu comportamento.
Para finalizar, convém lembrar que o tópico em questão, relacionado à globalização e crise ambiental é um dos mais complexos, embarcando uma variada extensão de temas correlatos. Diante disso, apresenta também uma quantidade maior de indicações de leituras e links para você se aprofundar mais no assunto.
Indicações
Vídeos
A história das coisas. Faz a discussão sobre a extração dos recursos natu-
rais e o atual modelo de consumo e geração de resíduos.
Milton Santos, no documentário O mundo global visto pelo lado de cá, expõe o processo da globalização como unidade modificadora da sociedade, com uma análise dos fatores sociais que causaram o estado atual da sociedade brasileira e os possíveis mecanismos para sua recuperação.
Leia textos, veja imagens e reportagens e assista vídeos relacionados à
temática ambiental através do Repórter ECO.
O livro Da produção ao consumo: impactos socioambientais no espaço ur- bano, de Silvia Ortigoza e Ana Tereza Cortez (2009), discute e estimula reflexões de como as relações de consumo podem comprometer a qualidade de vida, a justiça social e a sobrevivência do planeta. Aborda os impactos socioambientais das ações do homem nas esferas da produção, circulação e consumo, alertando para a necessidade de se adotar um uso mais sustentável do meio ambiente.
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Para se divertir, charges sobre os EUA e o aquecimento global.
Para polemizar: “Aquecimento global é terrorismo climático”, diz meteo- rologista: Entrevista com Luiz Carlos Molion, representante da América Latina na Organização Mundial de Meteorologia.
Uma curiosidade impressionante: “Um oceano de plástico”, uma enorme
camada flutuante de plástico no Oceano Pacífico.
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Parte IV
Fluxos e redes no campo e na cidade
Rosangela ap. de MedeiRos HespanHol
Doutora em Geografia. Professora Assistente Doutora do Departamento de Geografia da
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, campus de Presidente Prudente.
antonio nivaldo HespanHol
Doutor em Geografia. Professor Assistente Doutor do Departamento de Geografia da
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, campus de Presidente Prudente.
luciano antonio FuRini
Doutor em Geografia. Professor Assistente Doutor do Departamento de Geografia da Unesp,
campus de Ourinhos.
alexandRe BeRgaMin vieiRa
Doutor em Geografia. Professor Adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados.
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Apresentação
Assim como no estudo dos temas da Geografia Física, a produção do es- paço urbano e rural tem sido tratada de modo fragmentado na escola brasileira. Devido às características do período atual, esta fragmentação não permite a compreensão da geograficidade do mundo, uma vez que a cidade e o campo encontram-se progressivamente integrados em cadeias e circuitos produtivos. Desta forma, os principais temas de Geografia Urbana e Rural serão revistos, buscando uma visão de conjunto das interações espaciais estabelecidas entre os diferentes lugares, com ênfase no Brasil. Esta análise deverá considerar os se- guintes temas: a propriedade da terra rural e urbana, trabalho e renda fundiária; a formação das cadeias agroindustriais e os circuitos econômicos globais; os flu- xos de mercadorias, redes de circulação e logística; a mobilidade populacional campo/cidade e transformações recentes da rede urbana.
I II III IV V VI VII VIII 232
Introdução
Este texto tem como objetivo geral analisar os fluxos e as redes que ocor- rem no campo e na cidade no período atual. Os fluxos de capitais, mercadorias, pessoas e informações, sempre foram significativos, todavia, eram bem menos intensos do que na atualidade. As redes também eram menos densas e com menor nível de complexidade. O grande desenvolvimento científico e tecnoló- gico associado à sofisticação e a maior fluidez propiciadas pelos modernos e rá- pidos sistemas de transportes e comunicações, especialmente após o término da Segunda Guerra Mundial, favoreceram o aprofundamento das articulações entre os agentes econômicos e as diferentes frações do espaço geográfico. Os capitais produtivos e especulativos se expandiram mundialmente em direção aos pontos do planeta com maior potencial de acumulação de capital, situados em diferentes porções do globo. A partir desses pontos, os investimentos se dis- persaram, com maior ou menor intensidade, para áreas mais próximas ou mais distantes, dependendo da atratividade econômica e da ação dos Estados na- cionais na realização de investimentos diretos e/ou na indução dos investimen- tos privados. As grandes empresas multinacionais e os Estados nacionais foram os protagonistas desse processo de expansão dos capitais que resultaram na crescente expansão dos fluxos de mercadorias, de capitais, de informações e de pessoas em âmbito global. A maior densidade das redes e intensidade dos flu- xos ocorre no Hemisfério Norte, entre os Estados Unidos da América (EUA), Eu- ropa e Japão, que concentra mais de 70% dos fluxos de mercadorias e capitais.
I II III IV V VI VII VIII 233
O objetivo deste módulo é tratar de maneira integrada os fluxos e as re- des globais considerando as suas especificidades e as articulações nos espaços rurais e urbanos.
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Capítulo 15
A propriedade da terra rural e urbana, trabalho e renda fundiária
Um início de conversa
A terra é um recurso disponibilizado pela natureza, não sendo passível de reprodução pelo trabalho, diferentemente do que ocorre com a maioria dos bens apropriados e utilizados pelos seres humanos. Não sendo produto do tra- balho humano, a terra não tem valor, mas ela tem preço e é comercializada de acordo com as condições dadas pelo mercado e com o que é estabelecido pelo poder público nas diferentes escalas (municipal, estadual e nacional).
A terra rural e urbana, embora interconectadas, desempenham funções diferenciadas, sendo que o volume, a densidade da infraestrutura e dos equipa- mentos públicos costuma ser maior nas áreas urbanas do que nas zonas rurais.
A concentração da propriedade da terra eleva os preços desse bem, one- rando toda a sociedade. No caso brasileiro, o nível de concentração da proprie- dade da terra e a especulação fundiária tanto nas cidades quanto no meio rural são elevados. As relações de trabalho no campo brasileiro são bastante hetero- gêneas, convivendo lado a lado relações capitalistas modernas (representadas pelo trabalho assalariado, regido por contrato formal) com relações arcaicas que normalmente são marcadas pelo compadrio e clientelismo político.
I II III IV V VI VII VIII 235
15.1. A propriedade da terra rural e urbana
A terra rural e urbana se constitui no substrato básico sobre o qual são es- tabelecidas todas as relações. Na terra urbana, são desenvolvidas as atividades econômicas ligadas aos diferentes ramos produtivos que requerem espaços de diferentes dimensões e localizações. Além das atividades econômicas, na terra urbana são estabelecidas estruturas que dão sustentação a outras dimensões da vida humana. Para que a produção se realize é necessário que a mão de obra seja reproduzida e, para tanto, parte das terras urbanas é alocada para as habi- tações dos diferentes estratos sociais. Além disso, na terra urbana são estabele- cidas estruturas voltadas ao atendimento de necessidades coletivas, tais como vias de circulação, lazer, instituições de ensino, órgãos públicos etc.
Pode-se dizer que, no urbano, os serviços e equipamentos urbanos (redes de infraestrutura, serviços, transporte público, atividades comerciais e industriais) estão consolidados e são contínuos; há alta densidade populacional e as pro- priedades imobiliárias são fragmentadas. Definido dessa forma, o urbano pode ser reconhecido pela extensão e oferta de serviços públicos e pela densida- de populacional e viária. Nesse urbano, pode ou não existir produção agrícola. (Sparovek; Leonelli; Barretto, 2004, p.16)
A terra rural também se constitui no substrato básico sobre o qual são estabelecidas relações sociais de diferentes ordens, mas ela possui feições dife- rentes da terra urbana. Na terra rural, a diversidade e a densidade de atividades econômicas costumam ser menores do que na terra urbana. Sobre a terra rural se desenvolvem, principalmente, as atividades agropecuárias, as quais são rea- lizadas em espaços abertos e amplos, com maior exposição e dependência às condições climáticas, topográficas, hidrológicas, pedológicas etc., que as ativi- dades urbanas que, normalmente, são desenvolvidas em áreas edificadas. Além da agropecuária, na terra rural são estabelecidas estruturas que dão sustenta- ção a outras dimensões da vida humana. Para que a produção seja realizada, também é necessário que a mão de obra seja reproduzida e para isto uma pequena parcela da terra rural é utilizada para a implantação de habitações. Na terra rural são estabelecidas algumas estruturas, como unidades de pro-
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cessamento de alimentos, de fibras e de outras matérias-primas industriais. Há também vias de circulação, áreas destinadas à preservação ambiental, reservas indígenas, instituições públicas e privadas, organizações religiosas etc., mas a diversidade das atividades e a sua densidade normalmente são inferiores do que nas terras urbanas.
No rural, a extensão dos serviços e equipamentos públicos é restrita ou par- cial, a dimensão das propriedades é muito maior e predominam as atividades agrícolas e áreas de preservação. Nesse espaço, há enclaves urbanos (colônias, loteamentos, condomínios), mas não há continuidade espacial entre eles. (Spa- rovek; Leonelli; Barretto, 2004, p.16)
Na terra urbana, a densidade populacional é elevada e as estruturas ne- cessárias normalmente são dispostas de maneira concentrada no espaço, com o intuito de maximizar o uso e reduzir os custos de instalação e manutenção da infraestrutura coletiva. Na terra rural, a densidade populacional é baixa, sendo necessária uma menor quantidade de estruturas, as quais normalmente são im- plantadas de maneira dispersa.
A comercialização da terra urbana é feita por metro quadrado, ao pas- so que a terra rural é comercializada com base em outras unidades de me- dida, como o hectare, unidade reconhecida internacionalmente, cuja dimen- são é de 10 mil metros quadrados. Há também outras unidades de medida que são utilizadas em determinados países, a exemplo: do acre, equivalente a 4.046,8564224 metros quadrados, utilizada na Inglaterra e nos Estados Unidos da América (EUA); do alqueire paulista, que equivale a 24.200 metros quadrados; e do alqueirão, que equivale a 48.400 metros quadrados (as duas últimas unida- des de medida são utilizadas em diferentes regiões do Brasil).
O preço da terra urbana decorre principalmente da sua situação geográ- fica, sendo importantes alguns fatores como a distância em relação ao centro da cidade, a maior ou menor proximidade das principais vias de circulação, a disponibilidade ou não de infraestrutura e serviços básicos etc. Os aspectos na- turais, especialmente as condições topográficas, também são importantes no estabelecimento do preço dos terrenos.
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O preço da terra rural é estabelecido com base num conjunto de fatores. Além da situação geográfica e da disponibilidade de infraestrutura (rede de energia elétrica, dotação ou não de telefonia fixa, recepção ou não de sinal de telefonia móvel), as condições naturais têm grande influência, especialmente a topografia, a disponibilidade de água e a fertilidade dos solos.
A apropriação da terra, tanto urbana quanto rural, por uma parcela da po- pulação limita o acesso a esse bem, tornando-o raro e caro. Tal domínio propicia que os detentores das terras se apropriem da chamada renda fundiária, ou seja, do aluguel que é cobrado para que a terra seja utilizada. O preço cobrado pelo uso da terra será maior ou menor dependendo de um conjunto de fatores, os quais estão ligados basicamente ao nível de rentabilidade que é possível ser obtido a partir da exploração econômica ou uso social de uma determinada área, seja ela rural ou urbana.
A localização, a situação em relação às vias de circulação e o acesso à in- fraestrutura e aos serviços básicos são fatores importantes no estabelecimento da renda fundiária urbana, enquanto que a renda fundiária rural deriva, além desses fatores, das condições topográficas, hidrológicas, climáticas e pedológi- cas. Quanto mais escassa a terra, maior costuma ser o seu preço e maior a renda fundiária por ela gerada. No caso brasileiro, dada a sua dimensão continental, a reduzida densidade demográfica e o baixo desenvolvimento das forças pro- dutivas, a renda fundiária costuma ser inferior a de países desenvolvidos, onde a densidade demográfica é maior, as superfícies territoriais normalmente são menores e as forças produtivas mais avançadas. Há que se ressaltar, entretanto, que a renda fundiária é muito variável de país para país, e mesmo de região para região, dependendo das diferentes condições e atributos locais.
A apropriação e controle do acesso a terra por uma parcela da população onera toda a sociedade, pois o pagamento da renda fundiária incide sobre os custos e, consequentemente, sobre os preços finais dos bens e serviços. Assim, a terra, que é um bem originalmente disponibilizado pela natureza, é converti- da em mercadoria e apropriada por uma parcela da sociedade, com a anuência dos Estados que regulam a compra e venda e o direito de uso. O Estado não somente regulamenta a propriedade e o uso da terra, como tributa a proprie- dade e os diferentes usos das terras urbanas e rurais. No caso brasileiro, incide
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sobre as terras urbanas o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), e sobre as terras situadas nas zonas rurais, o Imposto Territorial Rural (ITR).
15.2. A concentração da propriedade e a democratização do acesso a
terra
Em muitos países europeus, a democratização do acesso à terra rural se deu quando da passagem do feudalismo para o capitalismo, sendo esta uma forma eficaz de distribuir renda, ampliar os mercados internos e garantir a ofer- ta de alimentos a baixos preços, reduzindo o custo de reprodução da força de trabalho.
Para que isto ocorresse, foi necessário que a burguesia assumisse o poder político e promovesse a reforma agrária, ferindo profundamente os interesses da aristocracia que exercia o monopólio sobre as terras rurais e limitava o aces- so a esse meio de produção. A reforma agrária se constituiu, nestes países, em condição fundamental para o estabelecimento do capitalismo moderno.
Nos EUA, o Estado promoveu a distribuição mais equitativa das terras aos colonos que se estabeleceram nas zonas de fronteira agrícola, decretando, no ano de 1862, o chamado Homestead Act, por meio do qual foram concedidas posses de 160 acres (65,98 hectares) a quem cultivasse a terra por cinco anos. Isto favoreceu o acesso a terra pelos imigrantes e fez com que o país se conver- tesse no maior produtor e exportador de produtos agrícolas do mundo, confor- me ressalta Guimarães (1978).
No Brasil, a propriedade de vastas extensões de terra foi, e continua sen- do, sinônimo de prestígio e poder. Desde 1530, quando Portugal introduziu o cultivo de cana-de-açúcar, teve início o processo de doação de vastas porções de terra a quem se aventurasse a se estabelecer na colônia. A doação das terras por meio do chamado sistema de sesmarias se dava após a avaliação do preten- dente pelo rei com base no status social, nas qualidades pessoais e nos serviços prestados à coroa portuguesa.
As pessoas que residiam na colônia brasileira normalmente eram pro- prietárias de terras ou escravas. Contudo, havia uma pequena quantidade de trabalhadores livres sem propriedades – tratava-se dos poucos assalariados que
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trabalhavam como técnicos nos engenhos, dos religiosos, dos mascates e de pessoas sem posses que se estabeleciam em pequenas áreas e se dedicavam ao cultivo de subsistência e à produção de alimentos para abastecer os enge- nhos e minas. As pessoas que se dedicavam à exploração agrícola em peque- nas áreas não dispunham do título das terras, sendo esta uma das origens de pequenas unidades produtivas agrícolas no Brasil colonial e imperial.
As pequenas propriedades com titulação reconhecida pelo poder públi-
co resultaram basicamente de cinco processos
1 – regularização de áreas ocupadas por pequenos posseiros;
2 – colonização oficial em áreas de matas nos atuais Estados do Rio Gran- de do Sul e de Santa Catarina, no decorrer do século XIX, para assentar os imigrantes provenientes da Europa;
3 – loteamento de antigas fazendas de café nos vales do Paraíba flumi- nense e Paulista no início do Século XX;
4 – expansão da fronteira agrícola por meio, principalmente, da atuação de empresas privadas de colonização no decorrer do século XX no inte- rior do Estado de São Paulo, no norte do Paraná, no Triângulo Mineiro e no Sul de Minas Gerais;
5 – colonização oficial em zonas estratégicas com doação de lotes a colonos nacionais, especialmente nordestinos e mineiros, a partir dos anos 1940.
O sistema de sesmaria foi suprimido em 1822, não sendo elaborada, em seu lugar, nenhuma legislação relativa à posse da terra. A propriedade da terra durante os primeiros 28 anos de independência política do país era oficialmen- te reconhecida desde que o pretendente ao título comprovasse a posse efetiva sobre a área por meio de moradia habitual e cultivo das terras.
No ano de 1850, foi instituída a Lei de Terras, que estabelecia que a pro- priedade da terra se dava somente por meio da compra, dificultando que escra- vos libertos e imigrantes pudessem ter acesso a esse bem.
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A Lei de Terras significou, na prática, a possibilidade de fechamento para uma via democrática de desenvolvimento capitalista, na medida em que impediu ou, pelo menos, dificultou o acesso à terra a vastos setores da população. Ao mesmo tempo, criava condições para que esse contingente estivesse disponível para as necessidades do capital. É sob a égide da Lei de Terras, pois, que se processarão as transformações capitalistas no Brasil, cujo centro será sempre o privilégio da grande propriedade territorial. (Silva, 1978, p.26)
Após a instituição da Lei de Terras, a apropriação de grandes áreas nas zo- nas de fronteira agrícola continuou sendo feita por “grileiros” que se utilizavam de documentação falsa, emitida por paróquias e cartórios. Com base nesses documentos, procurava-se comprovar que o pretendente ao título de proprie- dade tinha morada habitual e exercia o domínio de tais áreas antes de 1850, quando a nova lei entrou em vigor. Tais ações geraram disputas judiciais e im- bróglios, e alguns deles se arrastam, sem solução, até hoje.
Apesar de algumas iniciativas que deram origem a pequenas proprieda- des, a política oficial sempre protegeu e deu guarida às grandes propriedades, permanecendo as pequenas propriedades à sombra daquelas.
O nível de concentração fundiária do país sempre foi muito elevado, ha- vendo um grande número de pequenas propriedades que ocupam áreas re- duzidas e um número relativamente pequeno de grandes propriedades que ocupam vastas extensões de terra.
Na década de 1950, houve a intensificação dos processos de industria- lização e urbanização do país, o que provocou a elevação da demanda por alimentos básicos, que se refletiu negativamente sobre os seus preços. Nessa mesma década, houve uma forte movimentação em favor da reforma agrá- ria, destacando-se o movimento empreendido no Nordeste do país pelas ligas camponesas. Tais movimentos foram apoiados por intelectuais e por parte do empresariado urbano, que consideravam a estrutura agrária do país arcaica e pouco eficiente, o que representava um empecilho para o desenvolvimento do capitalismo moderno no país.
No início da década de 1960, assumiu a presidência do país João Goulart,
em decorrência da renúncia do presidente Jânio Quadros. João Goulart se pro-
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punha a realizar reformas de base no país, dentre elas, a reforma agrária. Num contexto de Guerra Fria e de crise econômica interna, Jango foi deposto por meio do golpe militar ocorrido no ano de 1964, com apoio da classe média brasileira e dos Estados Unidos da América (EUA).
O governo militar, de imediato, reprimiu os movimentos em favor da re- forma agrária, mas cedeu parcialmente à pressão popular e criou o Estatuto da Terra, instrumento jurídico que possibilitava que a reforma agrária fosse realiza- da de forma pacífica.
Por meio do Estatuto da Terra ficou estabelecido que a terra deveria cum- prir a sua função social. O objetivo expresso nesse documento era eliminar pro- gressivamente o latifúndio e o minifúndio, ambos considerados ineficientes por desperdiçarem recursos fundamentais: terra, no caso dos latifúndios, e mão de obra, no caso dos minifúndios.
No contexto do Estatuto da Terra foi estabelecida a definição de módulo rural, que consiste numa área explorável suficiente para absorver a força de tra- balho e garantir a subsistência e o progresso social e econômico de um conjun- to familiar constituído por quatro pessoas adultas. A dimensão do módulo rural varia de região para região, dependendo das condições naturais, do padrão tecnológico e do tipo de exploração predominante. Todos os imóveis rurais foram classificados, e aqueles com áreas inferiores ao módulo rural estabeleci- do para a região foram classificados como minifúndios. Os imóveis cujas áreas superavam 600 vezes o módulo rural foram classificados como latifúndios por dimensão. Os imóveis com área entre 1 e 600 vezes o módulo rural que eram mantidos inexplorados ou inadequadamente explorados, considerando as suas características regionais, foram classificados como latifúndios por exploração. Os imóveis com área entre 1 e 600 vezes o módulo rural explorados econômica e racionalmente foram classificados como empresas rurais.
Apesar de todo o aparato jurídico representado pelo Estatuto da Terra e a classificação de todos os imóveis rurais com base na noção de módulo rural, a reforma agrária não foi realizada e os movimentos em seu favor foram enfra- quecidos pela forte repressão exercida pelos sucessivos governos militares, até pelo menos o final dos anos 1970.
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Na década de 1980, a depressão econômica mundial, a elevação das ta- xas de juros internacionais e a redução dos investimentos produtivos no país provocaram a estagnação e recessão econômica, o descontrole das taxas de inflação e a perda de autonomia do país no estabelecimento de sua política econômica, o que agravou ainda mais os problemas sociais.
No ano de 1985, os militares deixaram o governo e os civis retomaram o poder político na esfera nacional, sendo eleitos de forma indireta Tancredo Ne- ves e José Sarney, respectivamente, presidente e vice-presidente do país. Com a morte de Tancredo Neves, antes de sua posse, assumiu a presidência José Sarney, historicamente identificado com a oligarquia rural.
No governo Sarney foi lançado o Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária e criado o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário. O refe- rido plano pouco avançou durante o governo Sarney e nos demais que o suce- deram, apesar de ter havido a expansão do processo de regularização fundiária, especialmente nas áreas de fronteira agrícola, e de terem sido implantados mui- tos assentamentos rurais.
Os movimentos sociais em favor da reforma agrária voltaram a se fortale- cer a partir do final dos anos 1970 com a abertura política do país, ainda durante a fase da ditadura militar. Dentre os movimentos sociais demandantes da refor- ma agrária passou a se destacar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que fora oficialmente criado somente no ano de 1984 por meio de um congresso realizado na cidade de Cascavel, no Estado do Paraná. O MST passou a implantar acampamentos à margem de rodovias, a realizar marchas e atos públicos, a ocupar latifúndios improdutivos ou com titulação duvidosa, com o intuito de pressionar o governo para que ele efetuasse a desapropriação de fazendas e promovesse a reforma agrária.
Os sucessivos governos civis, desde o fim da ditadura militar, não empre- enderam uma política clara e objetiva de reforma agrária e se limitaram a alocar recursos públicos para a desapropriação de fazendas com o intuito de realizar assentamentos rurais, atendendo às demandas emergenciais e cedendo à pres- são exercida pelos movimentos sociais, notadamente pelo MST. Nos últimos anos, o MST tem questionado e exercido pressão não somente sobre as áreas sob o domínio de latifúndios improdutivos, mas também sobre as áreas com
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forte presença do chamado agronegócio, a exemplo das áreas cultivadas com monoculturas de cana de açúcar, laranja, eucalipto, soja etc. O movimento pas- sou a questionar abertamente o modelo de agricultura empresarial que exige muito capital e escala para se viabilizar economicamente, além de gerar graves problemas ambientais.
Além da elevada concentração da propriedade da terra, o campo brasi- leiro continua marcado pela submissão dos trabalhadores rurais em relação aos grandes proprietários de terra. Neste aspecto, o Estado brasileiro, sob o coman- do de João Goulart, em 1963, instituiu o Estatuto do Trabalhador Rural, pelo qual se estabeleceu que os direitos trabalhistas urbanos, tais como férias, descanso semanal remunerado, décimo terceiro salário, fossem estendidos aos trabalha- dores rurais. Apesar de alguns avanços, o grau de exploração do trabalhador rural ainda é bastante elevado no país e as relações clientelistas ainda são fortes, especialmente nas zonas rurais mais profundas e mais pobres do país.
15.3. Relações de trabalho no campo
Há, no campo brasileiro, uma grande diversidade de relações de trabalho. Ao mesmo tempo que as relações de trabalho capitalistas modernas se expan- diram, foram mantidas relações arcaicas, que normalmente não envolvem o pa- gamento em dinheiro.
Dentre as relações de trabalho capitalistas modernas se destacam o ar- rendamento, o assalariamento permanente e o assalariamento temporário. Dentre as relações de trabalho arcaicas se destaca a parceria. O assalariamento permanente, em geral, ocorre com a mão de obra que possui maior nível de qualificação profissional, a exemplo de engenheiros agrônomos, médicos ve- terinários e técnicos agrícolas, além de tratoristas, operadores de máquinas e de implementos agrícolas que normalmente trabalham em grandes fazendas. O assalariamento temporário é muito comum em algumas lavouras que ain- da possuem, pelo menos em parte, colheita manual, a exemplo da cana-de-
-açúcar, da laranja, do café e do algodão. Nestes casos, os contratos de trabalho são firmados por tempo determinado. A parceria se constitui em associação estabelecida entre proprietários e trabalhadores na qual o pagamento é reali-
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zado por meio de uma parte da produção. A proporção dessa participação nos resultados pode ser a metade, um terço, um quarto, dependendo do que for combinado de maneira formal (por contrato) ou informal (palavra). Entre esses trabalhadores, há aqueles que não possuem contratos de trabalho, como os diaristas. Por fim, há também o arrendamento, em que o trabalhador paga alu- guel pelo uso da terra.
O poder econômico e, principalmente, político da chamada aristocracia rural continua forte e, até o momento, a relação entre ela e a burguesia urbana industrial tem sido marcada por alianças de interesse, o que impediu e impede o acesso à terra de muitos trabalhadores rurais que dela poderiam retirar o seu sustento e ampliar a oferta de produtos agrícolas.
A reforma agrária foi, e continua sendo, um tema controverso no Brasil e em outros países subdesenvolvidos. Alguns países latino-americanos, tais como México, Guatemala, Nicarágua e Cuba, promoveram a reforma agrária, mas os seus resultados econômicos foram menos exitosos do que se esperava.
No caso do Brasil, a elevada concentração da propriedade da terra per- siste e, até hoje, não foi realizada uma reforma agrária massiva, apesar de, nos últimos 25 anos, ter havido a implantação de muitos assentamentos rurais em áreas específicas do país, tais como no Pontal do Paranapanema, no Estado de São Paulo, no Sudeste do Pará, no Sul da Bahia, no Sertão do Ceará, na Zona Canavieira Nordestina (Heredia et al., 2002).
Como dissemos no item anterior, apesar da instituição do Estatuto da Ter- ra após o golpe militar de 1964, a reforma agrária não foi implementada. Ao contrário, em seu lugar foram instituídas políticas agrícolas que fomentaram a modernização da agricultura por meio da incorporação do pacote tecnológico da “Revolução Verde”. O Estado criou linhas especiais de crédito para que mé- dios e grandes produtores rurais adquirissem insumos químicos, implementos e máquinas agrícolas. Com isso, criou-se, artificialmente, mercado para as indús- trias, por um lado e ampliou-se a dependência da agricultura em relação aos setores urbano-industriais. Nesse processo, a estrutura fundiária concentrou-se ainda mais, em virtude da dificuldade para que os pequenos produtores rurais tivessem acesso às políticas agrícolas, especialmente ao crédito rural subsidiado.
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A terra é um bem disponibilizado pela natureza. Nas sociedades capita- listas, a terra foi convertida em mercadoria, passando a ter preço, embora não tenha valor, porque não é passível de reprodução por meio do trabalho huma- no, diferentemente da grande maioria dos bens utilizados pela sociedade. O monopólio da terra por uma parcela da sociedade faz com que esse recurso se torne escasso e caro. O direito de uso da terra também é objeto de comer- cialização. Para se utilizar a terra urbana ou rural, normalmente é cobrado um aluguel, que se constitui na chamada renda da terra. Na terra urbana são de- senvolvidas inúmeras atividades econômicas, sociais, culturais, religiosas etc., as quais estão associadas a diferentes formas e modalidades de uso. A terra rural foi historicamente identificada com o uso agrícola, mas nela estão presentes outras dimensões, o que implica numa certa diversidade do seu uso. A socieda- de, até o advento da Revolução Industrial, no final do século XVIII, era essencial- mente rural e a produção de riqueza derivava basicamente da exploração da terra. No campo se produziam tanto os alimentos, quanto as ferramentas e as manufaturas básicas. A industrialização provocou a urbanização da sociedade e a consequente redução da importância econômica e demográfica do campo. O modo de produzir racional da indústria e da cidade atingiu o campo na virada do século XIX para o XX, quando foi instituído o padrão motomecânico e quí- mico na agricultura, por meio da incorporação de inovações técnicas geradas pela indústria. Nos países subdesenvolvidos, a exemplo do Brasil, as alterações na base técnica da agricultura, decorrente da sua maior articulação com a in- dústria, ocorreu somente depois da Segunda Guerra Mundial.
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Capítulo 16
A formação das cadeias agroindustriais e os circuitos econômicos globais
Um início de conversa
As relações estabelecidas entre a agricultura e a indústria se intensifica- ram a partir do início do século XX, quando foi estabelecido um novo padrão tecnológico na agricultura dos EUA consubstanciado no uso de máquinas, im- plementos agrícolas e produtos agroquímicos, tais como fertilizantes, herbici- das, inseticidas, fungicidas etc. A atuação de grandes empresas multinacionais que produzem esses bens e que processam alimentos e matérias-primas pro- venientes do campo deu origem a cadeias produtivas agroindustriais que com- põem importantes circuitos econômicos globais. O grande desenvolvimento científico e tecnológico e a sofisticação dos sistemas de transportes e de co- municações nas últimas décadas resultaram na redução das distâncias relativas, contribuindo para que houvesse uma maior articulação entre os agentes eco- nômicos e os espaços. Os significativos avanços nas telecomunicações, na mi- croeletrônica e na informática, fizeram com que o processo de reestruturação produtiva também atingisse determinados segmentos da agricultura, que cada vez mais estão articulados e dependentes dos interesses dos grandes grupos internacionais que atuam em escala global.
I II III IV V VI VII VIII 247
16.1. A intensificação das relações entre agricultura e indústria
Desde a Revolução Industrial iniciada na Inglaterra na segunda metade do século XVIII, ocorre uma intensificação das relações entre a agricultura e se- tores urbano-industriais. Após a Segunda Revolução Agrícola, ocorrida na virada do século XIX para o XX nos EUA e, depois, disseminada pela Europa e outras porções do globo terrestre, a articulação entre a agricultura e a indústria se es- treitou ainda mais, atingindo, inclusive, alguns países subdesenvolvidos, em vir- tude da ampla difusão do chamado pacote tecnológico da “Revolução Verde”.
Os agentes econômicos hegemônicos, representados por grandes em- presas multinacionais, disseminaram a ideia de que a adoção desse pacote tec- nológico resultaria na expansão do volume da produção agropecuária graças à elevação dos níveis de produtividade, o que ocasionaria a eliminação do flagelo da fome, problema que sempre afligiu e ainda aflige parte da população mun- dial, notadamente em países subdesenvolvidos.
Na esteira desse discurso, ocorreram profundas alterações na base técni- ca e econômica da agricultura de muitos países, tanto desenvolvidos quanto subdesenvolvidos, sendo constituídas cadeias agroindustriais que integram im- portantes circuitos econômicos globais.
As empresas multinacionais produtoras de máquinas, implementos agrí- colas e produtos agroquímicos, bem como aquelas voltadas ao primeiro pro- cessamento de matérias-primas agropecuárias e a indústria alimentícia, apre- sentaram grande expansão no decorrer da segunda metade do século XX, sendo, inclusive, implantadas subsidiárias dessas empresas em alguns países subdesenvolvidos.
Na década de 1950, a elevada integração da agricultura às indústrias quí- micas, mecânicas e de processamento de matérias-primas provenientes do campo, bem como a inúmeros outros serviços, estimulou os estadunidenses David e Goldberg a estabelecerem análises integradas dos diversos setores en- volvidos na produção e processamento de produtos agropecuários. Os referi- dos autores utilizaram técnicas matriciais de insumo-produto que foram elabo- radas por Leontief na década de 1940. Eles divulgaram as suas ideias na obra A
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Concept of Agribusiness [Um conceito de agronegócios], publicada em 1957 pela Harvard University.
Em primeiro lugar, torna-se necessário diferenciar agribusiness de cadeia
produtiva. De acordo com Michellon (1997, p.43),
o agribusiness representa o aspecto coletivo da agropecuária, enquanto a ca- deia produtiva representa o aspecto singular, ou seja, quando se fala em agri- business, complexo agroindustrial ou sistema agroindustrial refere-se ao todo e quando se fala em cadeia produtiva refere-se a um produto particular. Logo, pode-se afirmar que o agribusiness é o conjunto de todas as cadeias produtivas existentes a partir dos produtos de origem agrícola.
Essa visão integradora passou a ser empregada sob diferentes denomina- ções. Na França, essa perspectiva recebeu a denominação de filière ou cadeia agroalimentar.
O conceito de filière agroalimentar, ou cadeia agroalimentar, diz respeito aos fluxos, encadeamentos e itinerários por onde passa um produto dentro do sistema de produção-transformação-distribuição, e aos distintos fluxos que a ele estão ligados. (Michellon, 1997, p.48)
Outra noção que passou a ser utilizada foi a de cadeia produtiva. A ca- deia produtiva no Brasil representa “um recorte dentro do complexo agroin- dustrial mais amplo que privilegia as relações entre agropecuária, indústria de transformação e distribuição, tendo como foco um produto definido” (Farina; Zylberzstajn, 1992, p.3).
A perspectiva de análise das “cadeias” pressupõe considerar a divisão das diferentes partes (ou etapas) que compõem o processo de trabalho e produ- ção, sendo que o resultado final será uma mercadoria específica, como, por exemplo, o farelo e o óleo de soja, a carne de frango ou de suínos etc. Segundo Khatounian (2001, p.56), o “essencial na abordagem das cadeias produtivas é que elas permitam visualizar todos os atores e etapas para se chegar ao produto final”.
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No Brasil, alguns autores começaram a trabalhar com a noção de sistema ou complexo agroindustrial a partir do final dos anos 1970. Guimarães (1978) foi o primeiro autor a empregar essa noção, ao incluir no seu livro A crise agrária um capítulo cognominado “Complexo agroindustrial”. A partir dos anos 1980, outros autores, tais como Müller (1982, 1989) e Delgado (1985), também passa- ram a entender a agropecuária a partir das suas articulações com outros seto- res produtivos. Nessa perspectiva, o complexo agroindustrial pode ser definido “como o conjunto dos processos técno-econômicos e sociais que envolvem a produção agrícola, o beneficiamento e sua transformação, a produção de bens industriais para a agricultura e os serviços financeiros e comerciais correspon- dentes” (Müller, 1982, p.106).
A análise da agricultura ao levar em conta a sua integração e articulação aos demais setores da economia contribuiu para a superação da análise setorial e compartimentada predominante até os anos 1970 e que, até o momento, ainda não foi integralmente superada.
Silva (1996, p.33) destaca que
parte significativa da agricultura agora cresce não mais apenas em função dos preços das commodities no mercado externo, mas também em função das demandas industriais que se estabelecem sobre a agricultura. De um lado, há a procura de matérias-primas pelas agroindústrias; de outro, a busca de mercado pelas indústrias de máquinas e insumos, muitas vezes aprisionadas pela ação direta do Estado (como a concessão de crédito vinculado à compra de insumos modernos).
A agricultura moderna integra uma imbricada rede de empresas, na qual ela se situa em posição intermediária. Para que a produção agropecuária moderna se efetive, faz-se necessária a aquisição de máquinas, implementos e insumos que devem ser comprados das indústrias situadas a sua montante. Depois de realizada a produção agropecuária em moldes modernos, o produto gerado se constitui em matéria-prima, que deverá ser processada pelas indus- triais situadas a sua jusante, pelas chamadas agroindústrias.
I II III IV V VI VII VIII 250
Além das indústrias situadas a sua montante e a sua jusante, a agricultura moderna depende de uma variada gama de serviços de crédito, assistência téc- nica, armazenagem, transporte, dentre muitos outros, como se pode observar no quadro a seguir.
Elementos do complexo agroindustrial
Fornecedores de insumos e bens de
produção
Produção agropecuária
Processamento
e
transformação
Distribuição
e
consumo
Sementes
Calcário
Fertilizantes
Reações
Defensivos
vegetais
Produtos veteri-
nários
Combustíveis
Tratores Colheitadeiras Implementos Equipamentos
Máquinas
Motores
→
→
→
→
→
Produção animal Lav. permanentes
Lav. temporários
Horticultura
Silvicultura
Extração vegetal
Indústria rural
→
→
→
→
→
Alimentos
Têxteis
Vestuário, cal-
çado
Madeira
Bebidas
Álcool
Papel, papelão
Fumo
Óleos, essências
→
→
→
→
→
Restaurantes,
hotéis
Bares, pada-
rias
Feiras
Supermerca-
dos
Comércio
atacadista
Exportação
→
→
→
→
→
C O N S U M I D O R E S
Serviços de apoio
veterinários • agronômicos • P&D • bancários • marketing • vendas • transporte • armazenagem • portuários •
assistência técnica • informação de mercados • bolsas de mercadorias • seguros • outros
Fonte: Adaptado de Araújo; Wedekin; Pinazza (1990, p.209).
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No caso brasileiro, as primeiras indústrias de máquinas agrícolas se insta- laram no país a partir do final da década de 1950. Tais empresas integram o setor metal-mecânico e de transportes e produzem tratores, colheitadeiras, além de outras máquinas. Nesse segmento, predominam empresas multinacionais de grande porte, que exercem forte influência sobre as tecnologias mecânicas uti- lizadas nos processos produtivos agrícolas. Entre as empresas que exploram o mercado brasileiro se destacam: Case New Holland, John Deere, Valtra, Agrale, AGCO, Jacto, Ford e Santal. Nesse mesmo período (décadas de 1960 e 1970) foi implantado no país um conjunto de empresas de diferentes magnitudes que produzem uma variedade de implementos agrícolas, a exemplo da Marchesan, Baldan, DMB, Stara, entre outras.
As empresas que operam no mercado de fertilizantes químicos, insetici- das, herbicidas, fungicidas e sementes se instalaram no país a partir dos anos 1970, destacando-se a Monsanto, a Basf, a Bayer e a Syngenta.
As empresas ligadas ao processamento de matérias-primas, as chamadas agroindústrias, também apresentaram grande expansão a partir dos anos 1960, apesar de algumas delas já atuarem no Brasil desde a primeira metade do sé- culo XX, como são os casos da Nestlé, desde 1921, da Sanbra e da Bunge (então Moinhos Santista). Nesse ramo, predominam as grandes empresas que atuam no comércio internacional de alimentos, destacando-se: a Bunge, a Cargill, a Nestlé, a Danone e a Archer Daniels Midland Company (ADM), além de grandes empresas nacionais, como a Votorantin, a Cutrale, a Citrosuco, a Cosan e a Brasil Foods (empresa criada a partir da fusão entre a Perdigão e Sadia), entre outras.
Algumas cooperativas agrícolas possuem importantes unidades de pro- cessamento agroindustrial como são os casos da Coamo Agroindustrial Coo- perativa (Campo Morão), da Cocamar Cooperativa Agroindustrial (Maringá); da Comigo Cooperativa Agroindustrial dos Produtores Rurais do Sudoeste Goiano, da Copacol (Cooperativa Agrícola Consolata Ltda.), da Coopavel Cooperativa Agroindustrial (Cascavel), entre outras.
Nos setores de armazenagem, transportes, distribuição e manutenção de máquinas agrícolas, distribuição de fertilizantes e biocidas, assistência técnica, informática, propaganda, marketing e muitos outros serviços, atuam também várias empresas de portes variados, tanto de capital nacional quanto estrangeiro.
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16.2. A origem dos complexos, sistemas ou cadeias agroindustriais
no Brasil
Os complexos, sistemas ou cadeias agroindustriais se consolidaram no Brasil de forma mais intensa na década de 1970. Para entendermos como se deu o processo de consolidação desse segmento produtivo no país, utilizare- mos como referência o trabalho de Silva (1996), que, ao analisar a agricultu- ra brasileira, identificou um processo histórico de passagem do denominado “complexo rural” ao “complexo agroindustrial”. Nesse processo, de acordo com o autor, deu-se a substituição da economia natural por atividades agrícolas in- tegradas às modernas indústrias, a intensificação da divisão do trabalho e das trocas intersetoriais, a especialização da produção agropecuária e a substituição das importações pelo consumo produtivo interno.
Vinculado inicialmente aos interesses do capital comercial, a dinâmica do complexo rural era comandada pelas oscilações do comércio exterior. Para atender as demandas do comércio externo, a produção agropecuária utilizava apenas parte dos meios de produção disponíveis, enquanto a outra parte era ocupada na produção de bens de consumo para a população local e aos próprios bens de produção (Silva, 1996). Assim, no complexo rural, as grandes unidades produtoras, como fazendas e engenhos, eram quase que autossuficientes, pois para realizar a produção voltada à exportação, elas fabricavam as manufaturas, os equipamentos e instrumentos simples utilizados no trabalho, no transporte das mercadorias e na habitação. Neste contexto, a divisão social do trabalho apresentava-se bastante incipiente, já que as atividades agropecuárias e manufatureiras eram interligadas, e o mercado interno era pequeno (Silva, 1996).
A desagregação do complexo rural se inicia em 1850, com a Lei de Terras e a proibição do tráfico negreiro, e se intensifica a partir de então com a forma- ção do complexo cafeeiro paulista, que é marcada pela substituição gradativa do trabalho escravo e a introdução do trabalho livre por meio do sistema de co- lonato nas fazendas de café do Oeste Paulista. Outra característica fundamental do complexo cafeeiro paulista diz respeito à progressiva separação espacial das atividades e a crescente especialização produtiva. Esse processo de separação,
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que deu origem a novos setores produtivos, ocorreu de forma gradativa, tanto em termos temporais como espaciais (Silva, 1996).
O surgimento das cadeias agroindustriais se vincula ao amplo e contínuo desenvolvimento do capitalismo no período pós Segunda Guerra Mundial, que foi marcado “pela crescente internacionalização da economia capitalista com uma total interdependência das diferentes economias nacionais e uma nova divisão internacional do trabalho” (Castells, 1986, p.7).
Nesse período, o setor industrial, para garantir a ampliação dos seus lu- cros, necessitava do aumento da produção de matérias-primas sob determina- das condições ao mesmo tempo que vislumbrava na agricultura – sobretudo dos países subdesenvolvidos – um mercado consumidor em potencial para seus produtos industrializados (insumos químicos – adubos, herbicidas etc. – e máquinas e equipamentos agrícolas – tratores, colheitadeiras, aparelhos de irrigação etc.).
O desempenho dos complexos industrial e agroindustrial encontra-se atrelado à esfera do capital industrial e financeiro que opera, de modo simul- tâneo e integrado, em escalas distintas, isto é, regional, nacional, continental e internacional.
Embora o processo de modernização da agricultura brasileira tenha se tornado expressivo, ele foi marcado pela heterogeneidade: espacial – foi mais significativo no Centro-Sul do país; de produtos – atingiu mais amplamente as matérias-primas destinadas ao setor agroindustrial (frangos, carnes, soja etc.) e/ ou a produção de biocombustíveis; de categoria de produtores – favoreceu os médios e grandes produtores rurais que puderam oferecer as garantias exigidas pelo sistema financeiro para terem acesso às linhas de crédito rural subsidiadas e disponibilizadas por intermédio do Sistema Nacional de Crédito Rural, ope- rado principalmente pelo Banco do Brasil; e de fases do processo produtivo – as inovações concentraram-se, inicialmente, sobretudo na fase do plantio e da co- lheita, aumentando a sazonalidade do trabalho.
As mudanças derivadas da incorporação da ciência, da tecnologia e da informação no campo ocorreram sob a lógica, os objetivos e as estratégias do capital, em princípio comercial, em seguida industrial e, depois, financeiro. Os setores agrícolas ligados à exportação, sobretudo café, cana-de-açúcar e algo-
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dão, foram, no passado, os mais susceptíveis à adoção de inovações, tanto em nível técnico como nas relações de trabalho.
Em termos espaciais, as transformações na estrutura produtiva geraram as condições materiais e imateriais para aumentar a especialização do trabalho nos lugares. Assim, como observam Santos e Silveira (2001, p.144) “cada ponto no território modernizado é chamado para oferecer aptidões específicas à produção”. Essa nova divisão territorial do trabalho é estruturada na ocupação de áreas até então consideradas periféricas, a exemplo dos cerrados na região Centro-Oeste, com a produção de grãos (soja e milho), e da produção de frutas no Nordeste, e na remodelação de regiões já anteriormente ocupadas, como a expansão re- cente da cana-de-açúcar na região Sudeste, especialmente no Oeste do Estado de São Paulo, Noroeste do Paraná, Triangulo Mineiro e Sudeste de Goiás.
16.3. As cadeias agroindustriais e os circuitos econômicos globais
O território no período contemporâneo, denominado por Santos (1996) de técnico-científico-informacional, supera o seu entendimento associado ape- nas à noção de espaços homogêneos contíguos e autônomos que caracteriza- vam as regiões até pelo menos a Segunda Guerra Mundial. Isso porque, com a expansão dos transportes e das comunicações, amplia-se a possibilidade de especialização produtiva dos/nos lugares. Como observa Santos (1988, p.51):
O mundo encontra-se organizado em subespaços articulados dentro de uma lógica global. Não podemos mais falar de circuitos regionais de produção. Com a crescente especialização regional, com os inúmeros fluxos de todos os tipos, intensidades e direções, temos que falar de circuitos espaciais da produção. Estes seriam as diversas etapas pelas quais passaria um produto, desde o começo do processo de produção até chegar ao consumidor final.
Na perspectiva dos circuitos espaciais da produção, os lugares encontram-
-se cada vez mais articulados em virtude dos fluxos (capitais, pessoas, produtos, informações etc.) que circulam, integrando seletivamente áreas produtoras e/ ou fornecedoras de matérias-primas e consumidoras, realidades locais e merca- dos mundiais, conformando múltiplas redes.
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De acordo com Dall’Acqua (2003, p.81), o espaço econômico é organizado hierarquicamente, “como resultado da tendência à racionalização das atividades e se faz sob um comando que tende a ser concentrado em cidades mundiais (onde a tecnologia da informação desempenha um papel relevante) e por suas bases em territórios globais diversos”.
Na perspectiva dessa autora (Dall’Acqua, 2003), a escala ampliada de investimentos necessários à liderança tecnológica das grandes empresas e a formação de redes globais continuarão forçando um processo crescente de concentração em que “apenas um conjunto restrito de algumas centenas de empresas gigantes mundiais” participam desse processo. Para a autora,
estas corporações decidirão basicamente o que, como, quando, quanto e onde produzir os bens e os serviços utilizados pela sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo, elas estarão competindo por redução de preços e aumento da qualidade […] Enquanto esta disputa continuar gerando lucros e expansão, parte da atual dinâmica do capitalismo estará preservada. (Dall’Acqua, 2003, p.41)
Assim, como parte desse processo de concentração das grandes corpora- ções multinacionais e de uma estratégia global de reestruturação das empresas, verifica-se que, partir da década de 1990, os processos de fusões e aquisições1 se intensificaram. De acordo com Siffert Filho e Silva (1999, p.377), “o processo de globalização, à medida que ampliou os mercados por meio de quedas das barreiras aos fluxos de bens, serviços e capitais, alteraram o ambiente institucio- nal em que as empresas estavam acostumadas a operar”, além de intensificar a concorrência interempresarial.
A agricultura brasileira, como mencionado, tornou-se um importante mercado para as indústrias de máquinas, implementos, fertilizantes e biocidas e, ao mesmo tempo, grande fornecedora de matérias-primas para o processa- mento agroindustrial.
1 As fusões referem-se à união de duas ou mais companhias que passam a constituir uma
única empresa, geralmente sob o controle da maior ou mais próspera, e as aquisições ocorrem quando há a compra do controle acionário de uma empresa por outra (Rossetti, 2001).
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Como a maior parte das empresas que atua no Brasil também o faz em outros países, essa nova estruturação produtiva, com base na ciência, na tecno- logia e na informação, segmenta o território, ao mesmo tempo que é “preciso ligar, num único processo, as parcelas do trabalho desenvolvidas em lugares distantes, impõe-se mais cooperação entre pontos do território e a circulação ganha novo ímpeto” (Santos; Silveira, 2001, p.144).
Essas várias empresas que atuam nos diferentes setores produtivos são geralmente associadas a cadeias globais de commodities, controladas por em- presas multinacionais que não apresentam vínculos ou apresentam relações débeis com as localidades em que estão situadas. “São mercados tidos como despersonalizados, cuja marca é a ‘standardização’ de produtos, processos e pessoas” (Bush, 2000 apud Nierdele, 2009).
Um aspecto importante a se considerar na análise das cadeias agroindus- triais, segundo Nierdele (2009), refere-se a sua dimensão transnacional, expres- sa por meio da separação entre as partes constituintes das cadeias produtivas, notadamente, a partir da década de 1990. Assim, “processos de liberalização, globalização e desregulação (ou re-regulação com novas instituições e formas de governança) abriram caminho para a crescente incorporação dos mercados agroalimentares em amplas cadeias globais de commodities” (Wilkinson, 2006b apud Nierdele, 2009).
Alguns impactos desse processo para o sistema agroalimentar no Brasil
foram evidenciadas por Flexor (apud Nierdele, 2009, p.9):
Deste ano [2000] até 2004, o desempenho do setor agroexportador aumentou 89,3%, superando o avanço das exportações totais do país que ficaram em 75,13%. A pauta de exportações continua basicamente constituída pelas commodities mais tradicionais (o complexo soja, açúcar, aves, café, carnes bovina e suína), mas outros produtos também vêm apresentando uma expansão importante, como é o caso das cadeias de frutas e do próprio milho […] Grande parte deste crescimento tem respondido à demanda do mercado asiático, sobretudo […] China e Índia.
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O autor também destaca a expressiva expansão dos investimentos dire-
tos de grupos transnacionais na indústria de alimentos. Assim, no ano de 1990,
14 das 20 maiores empresas de alimentos eram controladas por capital nacio- nal, enquanto que em 2003, 7 das 10 maiores empresas eram firmas multinacio- nais (Flexor apud Nierdele, 2009).
Analisando o último elo da cadeia, ou seja, o setor varejista, o autor desta- ca também a crescente concentração, com os principais grupos transnacionais (CDB, Carrefour, Sonae, Wal-Mart) aumentando significativamente o seu merca- do entre 1994 (20,9%) e 2004 (38,8%) (Flexor apud Nierdele, 2009).
Como observa Silva (2004, p.1), até o final da década de 1980, a economia
brasileira caracterizava-se por ter sua dinâmica relacionada ao
mercado interno, com pouca abertura ao comercio exterior e alto grau de proteção à industrial nacional. A exposição à concorrência externa (devido a medidas de redução de barreiras alfandegárias) e o funcionamento menos tutelado dos mercados obrigaram as empresas a reduzir os custos, acelerar o processo de inovação, buscar alianças estratégicas e adaptar-se a um quadro regulatório distinto.
Nesse contexto, como observa a autora (Silva, 2004), amplia-se o número de fusões e aquisições no período compreendido entre 1999 e 2003, como se observa na tabela a seguir:
Fusões e aquisições transfronteiras (em milhões de dólares)
Ano 1999 2000 2001 2002 2003
Fusões e
aquisições
9.357
23.013
7.003
5.897
5.271
Fonte: Unctad apud Silva (2004).
As fusões e as aquisições, como mencionado, fazem parte da estratégia global de reestruturação que as empresas colocaram em ação a partir da dé- cada de 1990. Um exemplo desse processo é o que ocorreu no setor agroin- dustrial brasileiro, em que houve a consolidação de grandes oligopólios inter-
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nacionais por meio da aquisição e/ou associação de empresas que já atuavam no mercado nacional, como aponta Silva (2004) ao analisar os casos da Cargill Incorporated e da Bunge S.A.
O grupo norte-americano Cargill Incorporated atua no processamento de sementes oleaginosas e de milho, comercialização de grãos, nutrição para animais, produção e venda de fertilizantes. A estratégia da empresa tem sido tanto a de consolidar sua posição naqueles segmentos em que ela já atua no mercado mundial, como de conquistar novos mercados naqueles em que ela não atuava até recentemente. Assim, como destaca Silva (2004, p.5):
No segmento de fertilizantes fosfatados e fosfato pecuário, a empresa procurou consolidar sua posição no mercado por meio da empresa Global Nutrition Solutions Inc. em âmbito mundial. Com a compra das ações da Fertiza, empresa que possuía participação acionária do Grupo Fortifós (que é controlador das empresas Fosfértil e Ultrafértil), a Cargill ampliou sua participação no grupo. E a aquisição do controle acionário da empresa Solorrico representou a concentração nos segmentos de misturas NPK e fertilizantes básicos fosfatados, por parte da Cargill. A empresa por meio da aquisição da empresa Seara Alimentos entrou em um nicho de mercado que não atuava no Brasil – produção e comercialização de carnes de aves e suínos in natura. Com a compra da Agribands (operação realizada em âmbito mundial), a Cargill procurou consolidar sua participação no mercado de rações para animais.
A Bunge S.A. é outro exemplo de grupo que passou por um processo de reestruturação. A empresa, holandesa, produz fertilizantes e ingredientes para nutrição animal, processa e comercializa soja, trigo e outros grãos, fornece ma- téria-prima para a indústria de alimentos e food service, e produz alimentos para o consumidor final. No segmento de adubos e fertilizantes, a Bunge adquiriu a Dijon Participações S.A. com o objetivo de ampliar sua participação na Fosfértil, ao mesmo tempo que negociava a Companhia Nacional de Nutrição Animal, procurou deixar o mercado de nutrição animal. Visando consolidar sua parti- cipação no mercado de processamento de oleaginosas e na produção, distri- buição e comercialização de óleos comestíveis, a empresa adquiriu 54,69% das
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ações da Cereol S.A. Para fortalecer sua participação no segmento de produção de farinha para panificação, ela adquiriu o Moinho Jauense e transferiu as suas quotas da Plus Vita Alimentos Ltda. (produção, distribuição e comercialização de pães, bolos e torradas) para a Bimbo do Brasil Ltda., “focando seus negócios na fase industrial de fornecimento de matéria-prima (farinha de trigo e farelo de trigo)” (Silva, 2004, p.5).
Constata-se, assim, por meio dos dois exemplos apresentados, como essas grandes corporações ao realizarem fusões e aquisições com outras empresas buscam consolidar-se no mercado nacional, concentrando suas atividades, cada vez mais verticalizadas, com o objetivo de garantirem a fonte dos insumos, a produção e a comercialização dos seus produtos.
Simultaneamente a esse processo de concentração, materializado por meio de fusões, aquisições, joint ventures2 e acordos tecnológicos, que visa à eficiência, a conquista de novos mercados e a diversificação produtiva, ocorre a fragmentação: no âmbito das empresas, expressa por terceirizações, franquias e informalização, “abrindo espaço para uma grande quantidade de empresas menores que alimentam a cadeia produtiva central com custos mais baixos” (Dall’Acqua, 2003, p.41); e dos territórios, já que há tendência à crescente espe- cialização produtiva dos/nos lugares, levando ao estabelecimento de relações (econômicas, tecnológicas, políticas etc.) e a intensificação dos fluxos com cida- des, regiões e/ou países cada vez mais distantes. Esse processo ocorre porque, quanto “maior a inserção da ciência e tecnologia, mais um lugar se especializa, mais aumenta o número, intensidade e qualidade dos fluxos que chegam e saem de uma área” (Santos, 1988, p.51).
* * *
As mudanças ocorridas no mundo a partir da Segunda Guerra Mundial levaram à expansão das empresas multinacionais a países subdesenvolvidos, como o Brasil. Essa expansão resultou na intensificação das relações entre agri-
2 Joint ventures implica na criação de“uma nova empresa, formalmente separada daquelas
que a criou, com governança, cultura, força de trabalho e procedimentos próprios”(Mirvis; Marks, 1998).
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cultura e outros setores urbano-industriais, por meio da incorporação do paco- te tecnológico da “Revolução Verde”. Essas alterações na base técnica da agri- cultura brasileira redefiniram também as relações campo-cidade, seja com o aumento das migrações e a concentração da população nas cidades, seja com o estabelecimento de novas demandas e fluxos que extrapolam a escala local e regional. Para Santos (1996), o espaço é tornado único na medida em que os lugares se globalizam. O lugar, não importa onde se encontre, revela o mundo, pois todos os lugares são passíveis de intercomunicação. A técnica, a ciência e a informação são pontos cruciais do período atual, acarretando, por sua vez, numa maior competitividade e seletividade entre as empresas e os lugares.
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Capítulo 17
Fluxos de mercadorias, redes de circulação e logística
Um início de conversa
As redes técnicas ocorrem com maior intensidade na e a partir das ci- dades, no entanto, se analisarmos as redes proporcionalmente em relação à densidade demográfica entre campo e cidade, é possível notar que no campo também ocorrem redes e fluxos com significativa intensidade. De qualquer ma- neira, podemos dizer que as redes concentram-se atualmente no espaço urba- no e configuram uma topologia cada vez mais esparsa ao interagirem com as áreas mais extensivas do campo. Isso se deve tanto ao conteúdo técnico quanto ao conteúdo demográfico do território, pois no caso do campo a regra é que as estruturas comunicacionais apresentem maior extensão e, proporcionalmente, menor fluxo que em áreas urbanas. Porém, algumas exceções podem ser ob- servadas. Em algumas áreas do campo ocorrem redes dinâmicas que além de constituírem canais de fluxos intensos, expressam-se também nas cidades, ora ao dinamizar o consumo, com os respectivos produtos provindos do campo, ora ao dinamizar o comércio, ora ao gerar demanda por insumos ofertados nas cidades. Outro aspecto de interação em rede campo-cidade pode ser eviden- ciado na relação entre oferta e demanda de mão de obra qualificada. Os con- teúdos técnicos e científicos presentes no campo não são gerados apenas por
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demandas urbanas, mas constituem sim resultados de relações em redes que surgiram com base em inúmeras possibilidades de produção e de consumo no campo. Os sistemas complexos presentes na relação campo-cidade elevaram o conteúdo técnico-científico-informacional3 do espaço do campo. Em se tra- tando de redes, campo e cidade possuem aspectos relacionais de proximidade intensos, constantes e dinâmicos. Os fluxos de pessoas, objetos e informações são constitutivos dos assentamentos humanos e desde a Antiguidade sofrem transformações quanto aos avanços nas formas e técnicas de execução. A cada novo período, os meios e os componentes dos fluxos se alteram, muitas vezes contribuindo significativamente para novas formas de organização das socie- dades.
17.1. Novas características da economia capitalista urbana industrial
As mudanças surgidas a partir da Revolução Industrial4 implicaram trans- formações tecnológicas que alteraram as economias mundiais e as sociedades em geral. Tais transformações foram incorporadas e assimiladas diferentemente por diversos países, iniciando pela Inglaterra no século XVIII. A industrialização,
3 Milton Santos sugere uma sequência de etapas da história do meio geográfico na qual se
pode identificar: o meio natural, o meio técnico, o meio técnico-científico-informacional, sendo que este último começaria “após a Segunda Guerra Mundial, e sua afirmação, incluindo os países de Terceiro Mundo, vai realmente dar-se nos anos 70 […] neste período, os objetos técnicos tendem a ser ao mesmo tempo técnicos e informacionais, já que, graças à extrema intencionalidade de sua produção e de sua localização, eles já surgem como informação” (Santos, 1996, p.238).
4 As Revoluções Industriais foram marcadas por transformações ligadas ao desenvolvimento
técnico e tecnológico em setores como o da geração e uso de energia, do processo produtivo, da organização empresarial, entre outros, que alteraram o modo de acumulação de capital em processos econômicos de abrangência mundial, constituindo o que se estabelece enquanto período que compreende a Primeira, a Segunda e a Terceira Revolução Industrial. A partir das novas condições do período atual, Anderson (1986) previu algumas características de uma Quarta Revolução Industrial, “que seria marcada pelos sistemas multiuso de informação, ligados aos escritórios e às residências, a fusão nuclear, novos avanços na biotecnologia (euphenics) e o controle do tempo” (Santos, 1996, p.173).
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enquanto processo socioeconômico, vai, assim, ocorrer de maneiras diversas – em termos de período, abrangência territorial, de volume e valor de transfor- mação industrial – nos países que a desenvolveram.
No contexto do modo de produção capitalista, a industrialização cons- titui uma condição particular para o processo de urbanização. Novas necessi- dades surgem a partir das aglomerações urbanas das sociedades industriais capitalistas. As inovações tecnológicas vão se constituir a partir de avanços técnicos e científicos profundos a partir de meados do século XX, culminando com desenvolvimentos em diversos campos, como aqueles ocorridos na área da informática e amplos avanços na área das telecomunicações, além das inten- sas transformações a partir da consolidação da internet. Nesse contexto, vários setores econômicos têm sua importância redefinida, como no caso do setor fi- nanceiro, que alcança o estabelecimento de diversas transações em tempo real a partir das novas possibilidades abertas pelas novas tecnologias. Vale lembrar que o próprio sistema financeiro também impulsionou avanços tecnológicos, ou seja, ocorre um sistema interativo a partir do qual se redefinem as formas de relações socioeconômicas.
Após vários avanços tecnológicos formam-se novos sistemas comunica- cionais5 por meio dos quais circulam pessoas, objetos e informações, caracteri- zados pelos novos ritmos dos fluxos (agora possivelmente mais velozes) e pela quantidade e qualidade dos deslocamentos. Alguns exemplos podem caracte- rizar aspectos destes novos sistemas comunicacionais:
1 – a evolução da capacidade e da qualidade dos meios de transportes;
2 – a evolução da capacidade de transmissão das infovias;
3 – a evolução da capacidade dos processadores dos computadores no setor da informática e a associação das técnicas de telecomunicações às de tratamento de dados.
5 A comunicação aqui é aquela mais ampla, própria de diversas relações sociais e das
intencionalidades contidas nos objetos e nas ações.
I II III IV V VI VII VIII 264
Considerando que a infovia possibilita o transporte de informações de maneira rápida e eficaz, Dias, Monteiro e Rosa (2008) destacam que ela apresen- ta as seguintes características e funções:
a) transportar dados e informações do ponto de origem ao destino final através de vias tecnológicas;
b) ser utilizada como um produto;
c) ser considerada uma ferramenta facilitadora em processos operacio- nais;
d) ser um meio de comercialização de transporte;
e) permitir aumento de valor agregado ao serviço;
f) coletar, distribuir e organizar informações;
g) ser uma via de ligação entre os modais;
h) permitir a exploração de soluções intermodais.
i) os cabos de fibra óptica constituem parte da tecnologia das infovias.
As redes de telecomunicações adquirem uma potência cada vez maior em ciclos mais curtos. Cada vez mais depressa os equipamentos eletrônicos aumentam a capacidade de armazenamento e processamento de informações.
A constituição e respectiva difusão desses novos sistemas comunicacio-
nais contribuem também para redefinir as cidades e regiões:
Com a difusão dos transportes e das comunicações cria-se a possibilidade da especialização produtiva. Regiões se especializam, não mais precisando produzir tudo para sua subsistência, pois, com os meios rápidos e eficientes de transporte, podem buscar em qualquer outro ponto do país e mesmo do Planeta, aquilo de que necessitam […] Hoje, assistimos à especialização funcional das áreas e lugares, o que leva à intensificação do movimento e à possibilidade crescente das trocas. (Santos, 1988, p.50)
Para esse autor, os processos que inserem ciência e tecnologia nos lu- gares alteram os fluxos entre esses lugares podendo levar cidades pequenas à estagnação ou ao desaparecimento (Santos, 1988).
I II III IV V VI VII VIII 265
17.2. Fluxos de mercadorias
No caso dos fluxos de mercadorias,6 vários sistemas atuais, em conjunto, permitem maior domínio dos ciclos de produção, circulação, consumo e repro- dução. Os novos fluxos implicam alterações nos fixos, ou seja, são as caracterís- ticas dos fixos (corpos, objetos, lugares e canais) que dinamizam os fluxos. Esse processo de transformação constante confere novas características ao território.
Santos (1988) já chamava a atenção sobre a necessidade de novas ca- tegorias de análise para explicar as novas formas de organização do território. Considerando as mudanças que estavam ocorrendo e a complexidade inerente ao novo período que se desenhava, Santos (1988, p.17) já destacava a maior abrangência que os circuitos espaciais de produção possuem para explicar as articulações entre os diversos subespaços mundiais, inclusive permitindo com- preender a redefinição das relações cidade-campo, que passaram a apresentar maiores intensidades de contatos e interdependências, gerando fluxos diver- sificados que constituem uma dinâmica mais acelerada e ultrapassa o poder explicativo do par cidade-campo.
Para Dias (2005, p.11), “os fluxos de mercadorias – bens materiais e serviços imateriais – atravessam os territórios soberanos graças à especialização produti- va e à deslocalização das implantações industriais”.
É importante observar que as redes ligadas aos fluxos de mercadorias, por exemplo, podem ser analisadas a partir de várias especificidades. É o que demonstra o trabalho de Corrêa (1997):
6 A mercadoria pode ser “definida como uma riqueza, mercantil, que possui valor de
uso e valor de troca, ao mesmo tempo. Um produto (riqueza) que deixar de possuir alguma dessas duas propriedades não é uma mercadoria. Qualquer produto que tenha a capacidade de satisfazer necessidades, mas não tenha a propriedade de ser trocado por outro, não pode ser levado ao mercado para a troca, não é um elemento constitutivo de uma economia mercantil, embora até possa coexistir com ela. Logo, não é uma mercadoria. […] pode-se definir a mercadoria como a unidade de dois elementos: valor de uso e valor de troca” (Carcanholo, 1998).
I II III IV V VI VII VIII 266
Quadro – Proposta de análise de redes geográficas
Redes Analisadas Segundo: Especificação Exemplos
Dimensão
Organizacional
Agentes
Sociais
Estado Ministério da Saúde, Delegacia Regional, Posto
de Saúde
Empresas Sede, Fábricas, Filiais de Vendas, Depósitos
Instituições Sé, Dioceses, Paróquias Católicas
Grupos Sociais Sede, Núcleo Regional, Equipe Local de ONG
Origem Planejada Diversas Redes do Estado e das Corporações
Espontânea Mercados Periódicos
Natureza dos
Fluxos Mercadorias Matérias-Primas, Produtos Industrializados
Pessoas Migrantes
Informações Decisões, Ordens
Função Realização Rede Bancária
Suporte Rede de Transmissão de Energia
Finalidade
Dominação Rede de Unidades de Segurança dos Estados
Totalitários
Acumulação Rede de Grandes Corporações
Solidariedade Rede de ONG Ligada ao Movimento Popular
Existência Real Cidades Articuladas de Fato Via Telefonia
Virtual Cidades Potencialmente Articuláveis Via
Telefonia
Construção Material Rede Ferroviária
Imaterial Ligações entre Cidades Via TRANSDATA
Formalização Formal Rede das Grandes Corporações
Informal Rede de Contrabando e Vendedores de Rua
Organicidade Hierárquica
Complementa-
ridade
Rede de Lugares Centrais Rede de Centros Especializados
Dimensão
Temporal
Duração Longa Rede Urbana Européia
Curta Rede Hanseática
Velocidade
dos Fluxos Lenta Navegação Marítima e Fluvial
Instantânea TRANSDATA
Frequência Permanente Rede Bancária
Periódica Mercados Periódicos
Ocasional Redes Associadas a um Festival
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Dimensão
Espacial
Escala Local Sindicato Municipal de Varejistas e Lojas
Regional Sede, Fábricas, Pontos de Coletas, e Fazendas
Associadas em Cooperativa
Nacional Rede Globo de Televisão
Global McDonald’s, General Motors, Nestlé
Forma Espa-
cial Solar Cidade-Estado e Aldeias Tributárias
Dendrítica Rede Urbana da Amazônia 1900
Circuito Rede Tráfego Aéreo
Barreira Rede de Unidades Político Administrativas
Conexão Interna Rede Muito Integrada Internamente
Externa Rede Pouco Integrada Externamente
Fonte: Adaptado de Corrêa (1997, p.111).
Assim, são diversas as variáveis consideradas ao se analisar a dinâmica de uma rede. Fatores tais como escala, espacialidade, temporalidade e natureza organizativa são apenas referências iniciais a partir das quais se estabelecem especificidades diversas.
Os limites das explicações a partir do par cidade-campo devem-se ao modo como as diversas redes se territorializam. Deve-se considerar que as re- des do período atual possuem fixos complementares indissociáveis nos espa- ços rural e urbano e que esses fixos, embora estejam em áreas diferenciadas quanto ao uso do solo, apresentam níveis de inovação tecnológica e padrão de desenvolvimento, provenientes de modos de desenvolvimentos similares.
Atualmente, é necessário pensar os vários modos de transportes e a inte- gração entre eles para se falar em fluxo de mercadorias. Os principais modais de transportes de mercadorias são:
– aéreo;
– hidroviário;
– transporte marítimo (via de comunicação: mares abertos); – transporte fluvial (via de comunicação: lagos e rios);
– dutoviário; – ferroviário;
– rodoviário.
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Alguns equipamentos se destacam no transporte de cargas, como o caso do contêiner, que é utilizado para transportar cargas integrando vários modais. Um mesmo contêiner pode, por exemplo, passar pelos modais rodoviário, fer- roviário e hidroviário antes de chegar ao seu destino.
Contêiner no modal rodoviário
Contêiner no modal ferroviário
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Contêiner no modal hidroviário
17.3. Redes de circulação
Dias (2005, p.11, grifo nosso) apresenta o período atual como aquele
caracterizado pela aceleração de pelo menos quatro grandes fluxos que atravessam o espaço geográfico: os movimentos de pessoas ou fluxos migratórios; os movimentos comerciais ou fluxos de mercadorias; os movimentos de informações ou fluxos informacionais; e os movimentos de capitais ou fluxos monetários e financeiros.
Ela destaca que esses fluxos, que outrora eram contidos nas fronteiras dos territórios nacionais, agora as atravessam e introduzem uma nova ordem menos presa ao território.
Para circular esses fluxos são necessários canais, enquanto infraestruturas: rodovias, ferrovias, infovias, dutovias, aerovias, torres de transmissão, redes de abastecimento de água e de tratamento de esgotos, energia entre outras. A escala de abrangência dos fluxos depende dessa infraestrutura. Desse modo,
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os fixos e os fluxos estão territorializados, proporcionando uma fluidez relativa, quando está limitada a certos canais de circulação.
No período atual, destacam-se novas formas de circulação de mercado- rias devido ao surgimento também de novas mercadorias com a desmaterializa- ção tanto da produção quanto dos produtos (Santos, 1988). Softwares, serviços de telefonia, internet e programas ou filmes exigem novas formas de circulação de mercadoria. Assim, cabos, satélites e antenas diversas complementam a no- víssima caracterização dos fluxos na constituição do espaço geográfico atual. Os transportes de mercadorias fazem parte de um processo mais amplo que envolve a circulação de mercadorias: a logística.
Satélite na órbita terrestre como um novo meio de circulação de fluxos de informação
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17.4. Logística
Para Goebel (1996, p.1),
entende-se por logística o conjunto de todas as atividades de movimentação e armazenagem necessárias, de modo a facilitar o fluxo de produtos do ponto de aquisição da matéria-prima até o ponto de consumo final, como também dos fluxos de informação que colocam os produtos em movimento, obtendo níveis de serviço adequados aos clientes, a um custo razoável.
Anderson (1990) apresenta um estudo realizado para a União Europeia que distingue quatro revoluções logísticas. A partir desse estudo, Sposito (1999, p.105) destaca a relação das revoluções logísticas com a mundialização do ca- pital:
Assim, e ampliando mais nossa escala de enfoque, podemos dizer inicialmente que a mundialização do capital faz-se, primordialmente, baseada nas revoluções logísticas, porque elas são decorrentes de: incorporação das tecnologias aos transportes; necessidade de aumentar a velocidade nos fluxos de capitais e na circulação das informações, principalmente aquelas ligadas às novas ideias, que podem gerar maiores lucros; criação de novas necessidades associadas ao consumo de bens não produzidos no circuito produtivo (paisagem para o turismo, misticismo para a paz individual, separação crescente de pessoas para posições marginais) […] As revoluções logísticas ocorreram de maneira bem resumida, com o concurso associado entre Estado e empresas, cada um destes dois agentes respondendo, de sua maneira própria, às decisões dos atores situados nos lugares privilegiados da pirâmide social por sua apropriação secular do excedente do trabalho social.
Silveira (2009a), dando continuidade às argumentações relativas às revo-
luções logísticas, sugere a ocorrência de uma quinta revolução logística.
Na década de 1990, quando houve o estabelecimento da quinta revolu-
ção logística, as consequências para o Brasil foram grandes. Tal fato vinculou- -se ao advento das políticas globalizantes e da integração territorial em larga
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escala (internacional), através do aumento, conforme Santos (1996), dos circuitos espaciais de produção (fluxos de bens materiais) e dos círculos de cooperação no espaço (fluxos não materiais – dinheiro, informação etc.). Nesse contexto de- lineado, o Brasil passou a ser incorporado, cada vez mais, ao sistema produtivo mundial. Destarte, sua participação foi hierarquicamente preestabelecida, ou seja, produtor de commodities e paraíso turístico. A abertura alfandegária e a desindustrialização – através de uma série de fusões, aquisições, falências, priva- tizações e concessões – comprovaram tal afirmação (Silveira, 2009a).
Em sentido estrito, Silveira (2009a) apresenta a objetivação das transfor- mações logísticas no âmbito dos transportes, relacionando logística, sistemas de movimento e fluxos econômicos.
É importante observar que a correlação entre logística, sistemas de mo- vimento e fluxos econômicos permite destacar a capacidade de circulação enquanto importante elemento da acumulação do capital, de acordo com a velocidade dos fluxos em diferentes meios.
Harvey (1992) apresenta uma ilustração sobre o que denomina compres- são do tempo-espaço; o significado é que o espaço parece encolher com a ocorrência de acelerações como aquelas relativas aos transportes.
É um exemplo importante para questionar o próprio significado de pares conceituais como continuidades e descontinuidades, proximidade e distância, lento e rápido, pois são transformações que alteram elementos epistemológi- cos.
* * *
A constituição da chamada sociedade em rede, ao modo apresentado por Castells (1999), permite-nos observar atualmente as características de com- plexas redes de circulação, nas quais ocorrem fluxos diversificados de pessoas, objetos e informações. Nesta nova sociedade são alterados os significados da relação espaço-tempo. Compreender essas alterações é tarefa contínua e indis- pensável para uma adequada leitura geográfica do mundo.
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Capítulo 18
Mobilidade populacional campo–cidade e transformações recentes da rede urbana
Um início de conversa
Na atual fase do sistema capitalista de produção, na qual os fluxos e as redes (re)definem os papéis dos diferentes centros urbanos e a escala de atuação do capital produtivo e financeiro atingem a escala global, compreender e analisar o impacto da globalização na redefinição das redes urbanas é de fundamental importância. Tais aspectos são necessários para entendermos a espacialidade e a espacialização do capital e da sociedade, pois como aponta Roberto L. Corrêa (1989), é no bojo do processo de globalização e da intensificação da urbanização que a rede urbana passou a ser o meio através do qual produção, circulação e consumo se realizam efetivamente. A redefinição das redes urbanas influencia e é influenciada pelo processo histórico de modernização da agricultura brasileira e a consequente reestruturação do espaço rural nacional. Esse processo, a partir da década de 1960, ocasionou a transformação do Brasil de um país cuja população era predominantemente rural para um país de população urbana. Dessa forma, dividiremos o capítulo em duas partes. Na primeira, apresentaremos uma breve discussão acerca dos estudos sobre a mobilidade populacional brasileira e as diferentes fases pelas quais podemos definir o movimento migratório. Na segunda parte, procurando
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compreender a (re)definição e (re)configuração da rede urbana na atualidade, inicialmente, identificaremos os principais referenciais teóricos sobre rede urbana, enfatizando desde os estudos do alemão Walter Christaller, com a “Teoria dos lugares centrais”, até as abordagens atuais, das configurações complexas da rede urbana perante a globalização. Este último enfoque é importante para se compreender os processos atuais que (re)configuram e redefinem as redes urbanas, principalmente no que se refere à (des)articulação/integração espacial e à divisão social e territorial do trabalho que atingem escalas inimagináveis até então. Posteriormente, procuraremos expor uma análise da rede urbana paulista a fim de dar um entendimento de como ela se (re)estruturou e qual o seu comportamento no período atual, trazendo elementos da nossa realidade para uma discussão empírica das diferentes teorias apresentadas anteriormente, demonstrando, a partir de mapas-esquemas, os desafios que surgem principalmente no que se refere à representação cartográfica das redes urbanas. Por fim, levantamos algumas questões da relação da emergência da discussão da rede urbana e sua importância para a vida do cidadão comum.
18.1. Mobilidade campo–cidade
Até meados da década de 1960 a população brasileira era predominan- temente rural, conforme se observa na tabela a seguir. A partir de então, a pop- ulação urbana passa a predominar sobre a rural, numa ascensão constante e acentuada até os dias atuais.
Tabela: Percentual da população residente no Brasil
Ano 2010 2000 1996 1991 1980 1970 1960 1950
Urbana 84,35 81,25 78,36 75,59 67,70 55,98 45,08 36,16
Rural 15,65 18,75 21,64 24,41 32,30 44,02 54,92 63,84
Fonte: IBGE.
Esse predomínio da população urbana sobre a rural foi fortemente in- fluenciada pela revolução técnico-científica, iniciada a partir dos anos 1950, a qual imprimiu uma nova complexidade aos processos de urbanização e in-
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dustrialização, promovendo o desenvolvimento do capitalismo no campo e a consequente modernização da agricultura, redefinindo os espaços rurais e imprimindo-lhes uma nova dinâmica; diversificando os serviços urbanos; inten- sificando os fluxos de transportes e comunicações; acelerando o processo de êxodo rural e reestruturando a interação das áreas rurais com os espaços urba- nos.
Assim, a modernização da agricultura no Brasil proporcionou uma nova
dinâmica tanto nos espaços rurais como nos centros urbanos.
Os principais reflexos dessa modernização da agricultura foram o cresci- mento da sazonalidade do trabalho agrícola – advindo da modificação nas relações técnicas de produção e da intensificação do uso de máquinas, imple- mentos e insumos de origem industrial –, a concentração fundiária e o intenso fluxo migratório (rural-urbano). Esse fluxo contribuiu, sobremaneira, para o es- tabelecimento do novo padrão demográfico brasileiro, com o esvaziamento populacional do campo e o consequente aumento da população urbana, con- forme apontamos anteriormente.
Portanto, o avanço capitalista no meio rural, que leva desenvolvimento econômico a algumas regiões em detrimento de outras, intensifica a divisão de trabalho nesses espaços, sendo fator determinante para a compreensão de uma maior ou menor relação entre o rural e o urbano.
Dessa forma, podemos afirmar que a mobilidade populacional cam- po–cidade constitui a contrapartida da reestruturação territorial, produtiva e econômica global do capital, determinando que o processo migratório acom- panhe a dinâmica do mercado de trabalho e a fixação ou transferência da força de trabalho de uma região para outra. E essa dinâmica atinge de forma mais significativa e diferenciada os setores menos qualificados da força de trabalho, que em grande parte integra o que se poderia chamar de mão de obra bara- ta, desqualificada, com baixo nível de escolaridade e disposta a aceitar todo e qualquer tipo de emprego.
Nesse sentido, poderíamos apontar quatro fases no que tange ao proces-
so histórico da mobilidade populacional no Brasil:
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1- a saída do espaço rural em direção às cidades;
2- o deslocamento inter-regional de uma cidade a outra a fim de acompanhar as oportunidades de emprego;
3- em um número significativo de situações, o retorno ao local de origem, uma vez esgotadas as oportunidades e possibilidades de emprego nos espaços dinâmicos da economia;
4- a mobilidade pendular ou sazonal, principalmente na relação entre cidade (local de moradia) e campo (local de trabalho), e entre inter- regionais, estaduais e diferentes cidades.
Portanto, atualmente, intensifica-se o ritmo e a velocidade da mobilidade. A questão aponta para a sincronia entre fluxo de capital e fluxo de trabalho. São os investimentos produtivos capazes de mobilizar força de trabalho no espaço.
18.2. Redes urbanas: a construção teórica
Segundo Corrêa (1998), os primeiros estudos sobre a temática das redes urbanas foram realizados por Richard Cantillon (1680-1734) na análise da organização espacial da sociedade. Nesta perspectiva, Cantillon apontava que toda a organização social se encontrava subordinada à terra, resultando daí uma hierarquia social, em função da posse ou não da terra, em maior ou menor escala. Considerando a organização social associada a uma organização espacial, o autor elaborou um sistema hierárquico entre aldeias – burgos – cidades – capital, sendo que, de acordo com a expansão das áreas agricultáveis próximas às aldeias, estas podem ascender a burgos, que por sua vez podem ascender a cidades, e assim sucessivamente.
No entanto, é a partir da década de 1930, com a teoria das localidades centrais do geógrafo alemão Walter Christaller (1933), que a teoria das redes urbanas surge com maior destaque. A análise de Christaller é baseada na orga- nização espacial da distribuição de bens e serviços (a projeção espacial da pro- dução), pautada numa rede hierarquizada, orientada por localidades centrais (Corrêa, 2001a).
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Christaller, ao realizar seu estudo nas regiões urbanas da Alemanha Meridional, propõe uma hierarquia entre localidades centrais de ordem – superior, inferior, adjacente e auxiliares –, tendo como elementos para essa construção a importância, o nível de centralidade, a função, a região complementar e a distância econômica.7 Partindo desses elementos, Christaller desenvolve um sistema com sete níveis de centralidades (localizações centrais) (Donne, 1990, p.126).
Corrêa (1989), considerando relevante as contribuições de Christaller, realiza uma adaptação do sistema de hierarquização das localidades centrais, frente ao desenvolvimento do modo capitalista de produção, em que a rede hierarquizada das localidades centrais constitui-se em uma forma de organização do espaço vinculada ao capital.
A intensificação da divisão social e territorial do trabalho gera diferenciações hierárquicas entre as diferentes cidades de uma rede urbana, além da especialização produtiva que essa articulação/integração econômica possibilita.
Quando a rede hierarquizada de localidades centrais organiza o espaço vinculando-o ao capital, está fortalecendo o sistema produtivo, a divisão social e territorial do trabalho. Por outro lado, fortalece também a concentração dos trabalhadores nas cidades com impactos nos transportes, comunicação e na organização nacional.
Para Corrêa (1989), a constituição das redes urbanas baseadas na teoria
das localidades centrais nos países subdesenvolvidos apresenta-se caracteriza-
7 Christaller considerou como os elementos das localidades centrais sua importância,
considerando sua conotação econômica, ou seja, o esforço econômico combinado dos habitantes; a centralidade, a sua importância relativa do local referente à região que a circunda; a função, aos bens e serviços produzidos e oferecidos em alguns pontos dispersos; a região complementar, a área relativamente a qual se define a centralidade de um determinado local; a distância econômica, o âmbito de distribuição de um determinado bem, que corresponde à máxima distância que uma população dispersa está disposta a percorrer para adquirir um bem oferecido num local central (Donne, 1990, p.126).
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da por três modos de organização: redes dendríticas, mercados periódicos e rede em dois circuitos.
As redes dendríticas, de origem colonial, seriam caracterizadas pela ex- istência de uma cidade estratégica e excentricamente localizada como pon- to de partida para uma hinterlândia. Essa cidade é ponto inicial de penetração no território, porta de entrada e saída, concentrando as principais funções econômicas e políticas. Para o caso brasileiro, poderíamos destacar o caso es- pecífico das cidades de Belém e Manaus.
As redes urbanas caracterizadas pelos mercados periódicos caracteri- zam-se pela existência de pequenos núcleos que periodicamente se transfor- mam em localidades centrais em virtude do comércio ou produção que ali se concentra em determinado dia ou época do ano, com uma sincronização es- pacial e temporal. As grandes feiras agropecuárias podem ser tidas como um exemplo atual de um modelo clássico de rede urbana de mercados periódicos.
Já a rede urbana caracterizada em dois circuitos reflete a forma como se deu o processo de modernização tecnológica nos países subdesenvolvidos e divide a vida econômica em dois circuitos de produção, distribuição e con- sumo, conforme elaborado por Santos (1978): o circuito superior, que é direta- mente resultante da modernização tecnológica, e o circuito inferior, derivado indiretamente da modernização tecnológica, dirigindo-se aos indivíduos que pouco ou nada se beneficiam com o progresso. Esses dois circuitos econômicos interferem na rede urbana, estruturando-a de modo que cada ponto da rede atue, simultaneamente, nos dois circuitos.
Durante o predomínio da Geografia Crítica, a partir dos anos 1970, tais estudos são postos de lado por um breve período, sendo retomados a partir do final dessa mesma década, quando as redes globais passam a ser destacadas (Bernadelli, 2004).
Cabe ressaltar aqui as contribuições da Geografia Crítica no estudo das redes, principalmente no que se refere à necessidade de se compreender a di- nâmica concernente à produção, circulação e consumo, no espaço e no tempo. Dessa forma, é preciso analisar as especificidades de cada local e em cada mo- mento histórico.
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O estudo Caracterização e tendências da rede urbana do Brasil,8 publicado em 2000, considerava a configuração regional e urbana como resultante de processos desequilibrantes inerentes à expansão da acumulação capitalista. Além disso, questionava a separação entre produção e distribuição assumida pelas teorias locacionais, dando ênfase aos aspectos históricos relacionados à constituição das cidades e dos conflitos entre agentes sociais e econômicos que disputam o acesso à terra urbana.
Assim, as análises sobre redes urbanas procuraram refletir sobre como elas se configuraram até meados dos anos 1970, quando definitivamente se consolida o processo de globalização e o espaço geográfico passa cada vez mais a ser caracterizado pela especialização das atividades (produtivas) e pela fluidez de mercadorias e informações, acarretando em uma nova Divisão In- ternacional do Trabalho. Para se compreender as redes nesse novo contexto, fundamentada em um meio técnico-científico-informacional, é importante considerarmos as afirmações de Corrêa (2000). Para o autor, o desvendamento de uma dada rede urbana faz-se a partir da interpretação e investigação do tempo, remetendo-nos ao conceito de formação socioespacial desenvolvido por Milton Santos.
18.3. A redefinição das redes urbanas sob a globalização
O debate acerca da globalização, por mais difundido que seja, ainda apre- senta uma grande controvérsia envolvendo o seu verdadeiro significado. Para Dabat (2000 apud Barquero, 2001), existem cinco grandes linhas:
a) globalização como mundo sem fronteiras (Ohmae, 1999, 1995);
b) globalização como fantasia da realidade (Veseth, 1998; Wade, 1996);
c) globalização como a forma assumida pelo liberalismo na atualidade (Fukuyama, 1992);
8 Série realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (Ipardes).
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d) globalização como internacionalização ou a mundialização (Oman, 1994; Ferrer, 1996; Chesnais, 1994);
e) globalização como processo histórico (Castells, 1996; Scott, 1998; Waterman, 1998).
Considerando a globalização como processo histórico, Sposito (1999) associa essa ideia à de revoluções logísticas, proporcionadas pelo desenvolvi- mento tecnológico e que seriam apresentadas em quatro etapas: mercado uni- ficado (no qual a economia mundial vai se transformando numa zona única de produção e de trocas); empresas mundializadas (gerando sobre uma base plan- etária a concepção, a produção, a distribuição e a circulação, principalmente, de seus produtos e serviços); quadro institucional ainda muito inadaptado que carece de um mecanismo de regulação em escala planetária; a interdependên- cia econômica e política entre os diferentes espaços; e, tomando o circuito su- perior da economia como referência, estaríamos hoje na fase do meio técni- co-científico-informacional (Santos, 1996).
Teríamos então que a
globalização é um processo vinculado ao território, não apenas porque envolve nações e países, mas, sobretudo, porque a dinâmica econômica e o ajuste produtivo dependem das decisões sobre investimento e localização tomadas pelos atores econômicos, sendo também uma função de atração de cada território. Trata-se, portanto, de uma questão que condiciona a dinâmica econômica das cidades e regiões e que, por sua vez, é afetada pelo comportamento dos atores locais. (Barquero, 2001, p.15)
Tem-se assim uma estreita relação entre globalização e a complexificação das redes, uma vez que se intensificam os fluxos (materiais e imateriais) frente ao desenvolvimento de modernas técnicas de transporte e comunicações.
Para Dias (2005), esses fluxos atravessam os territórios soberanos graças à especialização produtiva e à deslocalização das implantações industriais. Ainda de acordo com a autora, a rede expressa ou define a escala das ações sociais
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e, dessa forma, conecta diferentes pontos ou lugares mais ou menos distantes e permite hoje a ampliação da escala de ação humana até a dimensão global.
É neste contexto que as cidades e as redes urbanas passam também por diversas mudanças frente ao processo de globalização. Para Corrêa (2001b, p.426), “as transformações sociais e sua expressão na rede urbana inscrevem-se nos diferentes modos de inserção do país no processo de globalização”.
Rochefort (1998), tratando da noção de rede urbana regional, aponta para as mudanças que ocorreram na sociedade e suas implicações na urbanização. Para o autor, até meados do século XIX, cada cidade representava um organis- mo mais ou menos autônomo que expressava, por sua presença e importância, a natureza das necessidades de sua região. Já após esse período, a concentra- ção econômica da segunda metade do século XIX forjou, a partir das grandes cidades, uma verdadeira rede urbana regional. Essas cidades passaram a co- mandar todas as atividades de sua região. Por fim, no século XX, um conjunto de mudanças trouxe novas características às redes urbanas:
Os bancos regionais cedem lugar aos bancos nacionais, as empresas industriais abrem suas portas aos capitais exteriores, enquanto uma parte da riqueza regional é investida em outras regiões. Os próprios atacadistas tornam-se intermediários em cadeias de distribuição mais vastas […] Para interpretar uma cidade, é preciso entender laços de estrutura que subordinam esta a uma unidade mais vasta, constituída pelo Estado ou pela zona de influência de alguns grandes trustes. A verdadeira unidade de estrutura para uma geografia comparada das cidades tende a ultrapassar o âmbito da rede urbana regional. (Rochefort, 1998, p.18)
Outra contribuição importante sobre essas mudanças é oferecida por Santos (2005) que, já no início da década de 1990, apontou algumas tendências da urbanização brasileira para o final do século XX. Dentre os elementos desta- cados naquela ocasião, o autor chamou atenção para a tendência crescente à diferenciação e complexificação do sistema urbano e, nesse contexto, para a in- suficiência dos níveis hierárquicos na interpretação da rede urbana. Para o autor,
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esse tipo de classificação em níveis sucessivos deixa de ter significação à proporção que cada cidade passa a ter uma relação direta com a demanda de sua região, e à proporção que cada região se especializa: uma especialização regional, que é, também, especialização da demanda ligada ao consumo produtivo. A cidade se dobra a essa demanda, reforma-se, reorganiza-se, refaz- se, recria-se. (Santos, 2005, p.137)
Para demonstrar essa maior complexidade das relações interurbanas na atualidade, Endlich (1998), a partir do estudo da rede urbana regional de Ma- ringá, constatou que os estabelecimentos comerciais do ramo agropecuário mantêm relações com diferentes localidades do país e até mesmo com outros países. De acordo com a autora, as relações interurbanas não obedecem mais a limites rígidos e definitivos quanto à determinada área de influência. Cada ativi- dade instalada numa cidade pode ter uma configuração de fluxos diferenciada.
A velha hierarquia urbana não é mais suficiente para explicar os fenômenos urbanos na atualidade. Nesse sentido, a partir das considerações anteriores, na atual fase do processo de globalização, (re)configuram-se as redes urbanas, uma vez que a Divisão Internacional e Territorial do Trabalho é inten- sificada pelas novas tecnologias, políticas públicas, revoluções logísticas (meio técnico-científico-informacional), criação, (re)funcionalização e especialização funcional de inúmeros núcleos urbanos. A partir desses elementos, além de ver- ificar diferentes configurações de redes urbanas, constata-se uma superposição e/ou justaposição de diferentes redes urbanas que se complementam.
Essa superposição e/ou justaposição que se verifica na rede urbana é re- forçada quando se considera a globalização como um processo desigual, cujas mudanças e transformações, tais como a introdução de novas tecnologias e o avanço das técnicas não se dão de forma homogênea e instantânea em todo o território. Como já destacou Santos (2003), as cidades nos países subdesenvolvi- dos possuem duas áreas de influência, uma no circuito inferior e outra no supe- rior, resultando em interações espaciais cada vez mais complexas. Para Corrêa (2001b), o que se verifica no país, principalmente após a década de 1960, são padrões de rede urbana cada vez mais complexos no contexto de múltiplos circuitos.
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No contexto atual, a análise de múltiplos circuitos faz-se extremamente necessária para que possamos entender as superposições e/ou justaposições das redes urbanas. Corrêa (1989) frisa que se formos realizar uma classificação das cidades inserindo-as no circuito superior ou inferior, teríamos as grandes cidades inseridas em um circuito superior e as pequenas cidades no circuito inferior. Isso aconteceriaporque as empresas de alto padrão tecnológico, dentre outras inúmeras características, estão localizadas nos grandes centros, enquan- to nas cidades pequenas temos, como nos aponta o autor, uma reserva de mão de obra ligada principalmente à agricultura.
Mas o próprio Corrêa (2001b) e Santos (2003) enfatizam a existência de múltiplos circuitos, ou seja, uma cidade pequena inserida no circuito inferior pode, ao mesmo tempo, conter em seus espaços núcleos do sistema produtivo, econômico ou cultural ligados diretamente ao circuito superior. Por exemplo, na cidade de Mariápolis, no interior do Estado de São Paulo, há uma reserva de mão de obra de trabalhadores ligados à cana-de-açúcar, composta por pessoas que em seus cotidianos não têm noção da existência de redes. Mas, nessa mes- ma cidade, verifica-se a presença do circuito produtivo da cana-de-açúcar, que está diretamente ligado ao sistema de rede mundial. Dessa maneira, deve-se refletir cada vez mais sobre a questão dos múltiplos circuitos, pois as super- posições e/ou justaposições das redes estão cada vez mais complexas.
Entretanto, ainda verifica-se a presença de uma rede hierárquica (con- forme imagem a seguir), pautada em aspectos como centralização política, oferecimento de serviços médicos especializados, dentre outros. Porém, ao mesmo tempo, essa rede hierárquica encontra-se inserida em outras mais com- plexas (conforme a outra imagem), com profundas diferenciações no espaço de acordo com cada realidade, resultando em espaços luminosos e opacos (Santos; Silveira, 2001).
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Caso ilustrativo de uma rede hierárquica.
Caso ilustrativo de uma rede urbana perante a globalização
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Sobre o assunto, vale destacar as contribuições de Silveira (1994), quando
diz que:
A rede urbana local transforma-se sob a tensão entre globalização e localização. Por uma parte, a globalização inclui uma tendência à hierarquização da produção em função das atividades mais modernas e uma outra tendência, aquela do consumo a se difundir espacialmente. Por outra parte, a localização significa que a cidade local oferece oportunidades e resistências diferenciais à chegada dos vetores da modernização. Esse jogo dialético nos permitiria pensar a rede urbana através dos conceitos de zonas luminosas e opacas (Santos, 1993). (Silveira, 1994, p.125)
Contexto que reforça a constatação dessas transformações nas relações interurbanas e suas implicações para a rede urbana que se torna cada vez mais complexa. Nesse processo de mudanças surgem novas lógicas de relações nos diferentes níveis escalares, desde a local, regional, nacional e até mesmo global.
Por fim, para que possamos pensar na complexidade das relações in- terurbanas, deve-se abrir um leque de implicações referente ao processo de constituição e fortalecimento dessas redes. Nesse leque, podemos encontrar processos econômicos, culturais e políticos, sendo que cada um desses poderá influenciar diferentemente na configuração das redes. Nesse sentido, Roche- fort (1998) aponta na configuração das redes urbanas os papéis econômicos e políticos. O autor afirma que as redes urbanas são determinadas ou fortale- cidas pelo poder que as grandes empresas exercem sobre a configuração do espaço, apoiadas pelas políticas públicas que fortalecem seus interesses. Assim, os lugares centrais, os circuitos de produção, os espaços opacos ou luminosos, segundo essa visão, são determinados e reforçados pelo poder das grandes empresas fazendo com que o sistema produtivo seja o motor da constituição das redes urbanas.
18.4. Exemplo de rede urbana: o caso paulista
O histórico do Estado de São Paulo apresenta etapas importantes para a compreensão da atual configuração da rede urbana, desde a descoberta
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do ouro em Minas Gerais e as influências no território paulista, passando pela constituição do quadrilátero do açúcar, da expansão cafeeira/ferroviária e a sua crise até a predominância do transporte rodoviário e maior integração entre os núcleos urbanos, entrando atualmente na era da informação.
Segundo Bernardelli (2004), no período colonial, o Planalto Paulista se en- contrava isolado até a metade do século XVIII, o que mudou com a descober- ta do ouro em Minas Gerais. Inicia-se, então, a constituição das primeiras vilas no Planalto Paulista, caracterizando neste momento o início da constituição de uma preliminar rede urbana. Essa rede passa por transformações com a criação do Quadrilátero do Açúcar, cuja produção visava, sobretudo, abastecer o merca- do internacional. Naquele momento, inicia-se o surgimento de novas freguesias e a instituição/modificação do sistema de transporte e comunicação entre o litoral e o Planalto Paulista.
No entanto, a fase em que se verificou a consolidação, complexificação e diversificação da rede urbana paulista foi o período engendrado pelo com- plexo cafeeiro. Esse momento influenciou e marcou a constituição da rede ur- bana paulista na sua configuração atual que, no nosso ponto de vista, deve ser entendido conjuntamente com a expansão da linha férrea, responsável pela reconfiguração da rede urbana paulista, causando a estagnação de cidades dis- tantes das ferrovias e contribuindo para o surgimento e o crescimento de novos centros, intitulados por Monbeig (1984) de “bocas do sertão”, cidades onde es- tavam localizadas as estações terminais da linha férrea.
A fundação e abertura de patrimônios que, posteriormente, ascenderam a cidades, tal como a evolução e o crescimento desses núcleos urbanos, guar- davam expressiva relação com a abertura e localização das principais vias de circulação, determinando as posições hierárquicas dos núcleos na rede urbana como podemos observar ao analisarmos Deffontaines (2004).
Já, Sposito (2004) questiona a existência de uma rede urbana paulista no período colonial, antes da atividade cafeeira, pois nesse momento, no Estado de São Paulo não havia uma economia que apoiasse diretamente o papel agro- exportador que cabia ao Brasil na Divisão Internacional do Trabalho. Para a au- tora, durante o período colonial, os papéis urbanos de São Paulo não eram bem definidos, pois sua existência se apoiava principalmente em atividades rurais.
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No entanto, com a introdução da cultura cafeeira, a incorporação de terras do planalto à economia cafeeira, levou ao privilegiamento da cidade, devido a sua situação geográfica privilegiada (Sposito, 2004).
A expansão da economia cafeeira foi acompanhada pela instalação de ferrovias, que foi definitiva para o crescimento dos papéis urbanos da capital paulista e do Estado como um todo, pois além de fazer com que o escoamen- to da produção cafeeira passasse por São Paulo, também resultou, com a ex- pansão para o interior paulista, na difusão espacial das atividades econômicas no Estado de São Paulo (Sposito, 2004).
A partir da década de 1940, com a decadência do ciclo cafeeiro e da rede ferroviária, o transporte rodoviário passa a predominar, tornando-se um dos as- pectos fundamentais na atual configuração da rede urbana paulista. A substi- tuição da ferrovia pela rodovia traz uma maior articulação interna ao território, devido ao seu caráter mais flexível, à ampla acessibilidade e à facilidade de co- municação entre dois pontos, caracterizando assim um papel fundamental na reconfiguração e consolidação da rede urbana. Com a implantação da rodovia em pontos já alcançados pela ferrovia, tais localizações ganham reforço. Em contraponto, ocorre o esvaziamento dos fluxos destinados a cidades menores, que entram num processo de estagnação econômica.
Atualmente, com o desenvolvimento de diferentes técnicas no setor de telecomunicações, a rede urbana paulista passa por novas reconfigurações. Agora, é possível que o local de produção se distancie do centro de gestão, como podemos observar no caso da metrópole paulistana que, apesar de “perder” unidades produtivas para o interior, ainda continua concentrando grande parte dos centros de gestão. Santos (2005) qualifica São Paulo como uma metrópole informacional, uma vez que essa capital não tem seu papel definido pela produção industrial, mas sim por seu papel relacional de coleta, armazenagem, organização e manipulação das informações.
Observa-se que conjuntamente com tal dinâmica há uma diminuição do papel da metrópole paulistana na produção industrial e um aumento relativo no papel do interior paulista, porém essa desconcentração é acompanhada por uma concentração das atividades de gestão na metrópole.
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Esse processo gera e intensifica diferentes fluxos, trazendo maior com- plexidade à rede urbana paulista atual. Se, por um lado, a metrópole paulistana passa a concentrar cada vez mais o poder decisório, por outro, o interior passa a sofrer transformações no que se refere ao setor produtivo, principalmente quan- to às especializações produtivas. E esse processo reestrutura continuamente a rede urbana paulista, pois novas áreas de especializações produtivas podem ser reforçadas ou até mesmo criadas dependendo dos interesses econômicos e políticos que estiverem em pauta no momento.
Assim, com o desenvolvimento das telecomunicações e com a “nova” di- visão territorial e internacional do trabalho, com destaque para a especialização funcional, as redes urbanas apresentam uma maior complexidade e adquirem características de difícil compreensão, até mesmo no que se refere às possibili- dades de sua representação cartográfica. Na imagem a seguir, temos um exem- plo de representação de um emaranhado de ligações que constitui uma rede a partir dos fluxos de informações/negociações via internet. Interessante observar na imagem que, mesmo com a complexificação da compreensão e da análise das redes urbanas, podemos, ainda, observar “lugares centrais” (espaços lumi- nosos). Fator que caracteriza a existência de múltiplos circuitos, ou seja, ainda temos lugares centrais característicos das redes hierarquizadas, mas devemos ressaltar que podemos encontrar espaços que hierarquicamente seriam inferi- ores e devido a seus rearranjos encontram-se inseridos no circuito superior.
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Esquema (possível) de rede urbana
Deste modo, a rede urbana está em constante (re)configuração devido a vários fatores, dos quais podemos destacar: a criação de novos municípios, especializações funcionais e a relação com o mercado externo, além do desen- volvimento regional. Pensar nesse contexto de transformação da rede urbana torna-se extremamente necessário, devido ao fato de rearranjos espaciais po- derem determinar a forma de planejamento da região que, por sua vez, influen- ciam na organização das políticas públicas intraurbanas.
Na primeira tabela a seguir, podemos observar que foram criados mais de 70 municípios no Estado de São Paulo somente na década de 1990. Dentre esses novos municípios, nota-se que 70% referem-se a núcleos com até 5 mil habitantes.
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Já a segunda tabela a seguir mostra a distribuição dos municípios criados na década de 1990 por regiões do Estado. Nota-se a maior participação das regiões do interior do Estado como Sorocaba, São José do Rio Preto, Campi- nas, Araçatuba, Presidente Prudente e Marília. Dessa forma, o interior do Estado, frente ao ritmo de criação desses novos municípios, passa por transformações que podem influenciar na redefinição das redes urbanas. A partir do momento que novas cidades são inseridas na configuração espacial das redes, seus papéis na rede poderão ser redefinidos, pois entram em cena novos agentes e atores, com maior ou menor poder de decisão.
Tabela: Municípios paulistas criados durante a década de 1990, por tamanho
Classe de tamanho Quantidade de municípios
Criados
Participação no total (%)
Até 5.000 habitantes 51 70
Entre 5.001 e 10.000 habitantes 11 15
Entre 10.001 e 20.000 habitantes 07 9,5
Entre 20.001 e 30.000 habitantes 03 4,2
Entre 30.001 e 50.000 habitantes 00 0
Entre 50.001 e 100.000 habitantes 00 0
Entre 100.001 e 200.000 habitantes 01 1,3
Total do Estado de São Paulo 73 100
Fonte: Siqueira (2005).
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Tabela: Distribuição espacial dos municípios paulistas criados na década de 1990, por regiões administrativas
Região administrativa Quantidade de municípios criados
Sorocaba 16
São José do Rio Preto 15
Campinas 7
Araçatuba 7
Presidente Prudente 6
Marília 6
São José dos Campos 3
Ribeirão Preto 3
Central (Araraquara e São Carlos) 3
Registro 2
Bauru 2
RMSP 1
Baixada Santista 1
Barretos 1
Estado de São Paulo 73
Fonte: Siqueira (2005).
Ainda no que se refere às transformações ocorridas no contexto da glo- balização, outra informação relevante para esta discussão é a especialização funcional e sua relação com o mercado mundial. A tabela a seguir apresenta o valor (em dólares) exportado por alguns centros urbanos especializados na produção de determinados bens.
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Tabela: Exportação (em US$) – 2004
Município
População (2005)
Exportação (2004) – US$
Barretos
109.283
225.568.693
São José do Rio Preto
397.697
17.074.197
Mirassol
53.137
29.220.473
Franca
319.578
226.207.996
Ribeirão Preto
543.885
167.835.085
Birigui
103.325
28.031.360
Araçatuba
177.445
10.492.680
Fonte: Vieira; Roma; Zandonadi; Miyazaki (2005).
Primeiramente, nota-se a expressividade dos valores exportados por Bar- retos (economia baseada no setor agropecuário) e Franca (especializada na pro- dução de calçados) em relação aos núcleos urbanos maiores localizados em suas proximidades, como São José do Rio Preto (no caso de Barretos) e Ribeirão Preto (no caso de Franca).
Ainda neste mesmo sentido, podemos apontar o maior valor exportado por Birigui (outro centro especializado na produção de calçados) em relação à Araçatuba, e o caso de Mirassol (especializado na produção de móveis), que supera São José do Rio Preto.
Estas informações mostram que as especializações produtivas apoiadas pelo setor econômico e político transformam a rede urbana, tornando-a ainda mais complexa, uma vez que há um salto escalar dentro da velha hierarquia urbana. As políticas que permitiram a especialização funcional dessas cidades também possibilitaram a ocorrência nessa rede urbana de uma superposição e/ou justaposição das redes. Assim, fortaleceu a hierarquia urbana, permitindo que a cidade de São Paulo, ou mesmo os centros internacionais, comandassem o processo de gestão, mas ao mesmo tempo diluiu a hierarquia bruscamente, permitindo que Birigui deixasse de depender de Araçatuba, no que se refere ao sistema produtivo de calçado. No entanto, Birigui ainda depende hierarquica- mente de Araçatuba no que se refere, por exemplo, a cultura, lazer etc. Caiado (1995, p.52), analisando a rede urbana paulista, constatou que
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no mesmo espaço podem coexistir relações funcionais distintas. Estas distintas conexões, ou interconexões, existentes no mesmo espaço podem indicar a necessidade de revisão da hierarquia funcional urbana, através da compreensão de que o mesmo espaço pode estar conectado em diversos circuitos, engendrados a partir das formas de apropriação e uso daquele espaço.
Essa dinâmica de constantes mudanças traz novos elementos para dis- cussão, tornando a compreensão e a dinâmica da rede urbana cada vez mais complexa.
Contudo, vale ressaltar que apesar da importância dos estudos da rede urbana na atualidade e sua profunda complexidade, elas se constituem e se consolidam para alguns e, principalmente, para o setor econômico, enquanto a maioria da população vive e sobrevive naquilo que Milton Santos (1994, p.16) denominou de “espaço banal”, pois “além das redes, antes das redes, apesar das redes, com as redes, há o espaço banal, o espaço de todos, todo o espaço, por- que as redes constituem apenas uma parte do espaço e o espaço de alguns”.
* * *
Buscamos discutir no presente texto duas questões importantes no que tange à estruturação do espaço geográfico na atualidade: a urbanização da população e os deslocamentos populacionais, e a organização dessa sociedade a partir das redes urbanas. Evidencia-se, assim, uma tendência de aumento da mobilidade populacional, principalmente no que diz respeito à migração da força de trabalho, em busca de novas oportunidades de emprego e melhores condições de vida influenciados por uma estruturação do espaço geográfico em redes urbanas complexas, que redefinem os espaços agrícolas e urbanos.
Sugestões de leituras, filmes etc.
Na literatura brasileira recomenda-se o clássico Vidas secas, de Graciliano Ramos. Indicamos, ainda, o filme Migrantes, de Beto Novaes, Francisco Alves e Cleisson Vidal (2007), que também aborda a migração dos trabalhadores nor- destinos para o corte da cana-de-açúcar no interior de São Paulo.
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Parte V
Geografia do Brasil:
formação territorial e padrões es- paciais
rEGina cElia corrEa dE arauJo
Doutora em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (2001).
Atualmente é professora da Facamp
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Capítulo 19
A América Portuguesa e o Brasil
Um início de conversa
e acordo com o geógrafo Antônio Carlos Robert Moraes (2000), a for- mação territorial da América Portuguesa é marcada pela ideia de con- quista e apropriação de imensos “fundos territoriais”, tal como já havia
ocorrido na história de Portugal. A unificação precoce do Estado português, assim como, mais tarde, a unidade política dos territórios coloniais portugue- ses, foi consolidada no processo de apropriação e valorização desses fundos. A análise dessas raízes da formação territorial da América Portuguesa permitirá o aprofundamento dos estudos do território nacional.
19.1. Portugal e os “fundos territoriais”
No século VIII, o conjunto da Península Ibérica foi dominado pelos muçul- manos. A Guerra da Reconquista, termo que recobre cinco séculos de comba- tes até a retomada de toda a península e a definitiva expulsão dos árabes, teve início com o reino cristão das Astúrias, no século XI. Ao longo dos séculos XI e XII, as vitórias cristãs originaram os reinos de Leão, Castela, Navarra e Aragão. Portucale, originalmente um condado de Leão, proclamou a sua independên-
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cia em 1128. Em 1147 as forças portuguesas reconquistavam Lisboa, transfor- mando a cidade em capital do reino.
No século seguinte à retomada de Lisboa, os portugueses continuaram avançando para o sul do Rio Tejo, até a extremidade meridional da península. Em 1249, caía o último bastião dos mouros no Algarve. Portugal se tornou o primeiro Estado europeu a delimitar suas fronteiras atuais.
A guerra foi um elemento permanente da constituição de Portugal. As lutas contra Leão e Castela, no início, e as lutas da Reconquista em seguida conferiram à monarquia portuguesa uma centralização de poder desconhe- cida na Europa medieval, em grande parte fundada na expansão dos fundos territoriais. A projeção para o sul, em terras retomadas dos mouros, propiciava uma ampliação constante dos domínios reais. Os novos domínios incorporados eram colonizados através de um vasto esquema de doações de terras da Coroa para a nobreza, que se tornava cada vez mais dependente do poder central. Os camponeses pagavam os tributos aos proprietários em dinheiro, constituindo uma economia monetária pioneira.
A partir do século XIV, as cidades costeiras, principalmente Lisboa e Porto, passaram a funcionar como pontos de ligação das rotas comerciais italianas do Mediterrâneo com as rotas holandesas do Mar do Norte. A posição geográfica de Portugal o transformava na ponte entre a Europa do Sul e a Europa do Norte. No século XV, Lisboa atingia os 40 mil habitantes e se firmava como um centro destacado do comércio internacional.
O desenvolvimento comercial, a vida urbana e a economia monetária estão na origem de uma burguesia marítima e mercantil, que seria capaz de chegar ao poder ainda no século XIV, com a Revolução de Avis (1383). A Revolu- ção, que levou ao trono D. João I, o Mestre de Avis, representou uma vitória da burguesia lisboeta, dos negócios comerciais e da navegação oceânica.
19.2. A expansão marítima
A primeira fase da expansão marítima portuguesa, na metade inicial do
século XV, estende-se da tomada de Ceuta até o início da colonização das ilhas
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atlânticas, em 1460. Essa fase da expansão combina os interesses cruzadistas da nobreza, voltados para a guerra contra os infiéis e saudosa da Reconquista, com os interesses comerciais da burguesia, ávida pelo ouro e pelas riquezas da África.
A tomada de Ceuta é o marco oficial do início da aventura marítima. De- pois de Ceuta vieram as ilhas da Madeira e os Açores: arquipélagos descobertos (ou, mais precisamente, redescobertos) por embarcações portuguesas a serviço de D. Henrique, o Navegador. Em 1434, Gil Eanes ultrapassava o Bojador e abria o caminho do Senegal e da Gâmbia, fontes de ouro e escravos. Cabo Verde, arquipélago que viria a ter uma função estratégica no caminho do Atlântico Sul, seria ocupado pouco depois da metade do século XV.
Instalado no Algarve, o Infante D. Henrique, filho do rei D. João, estimu- lou o desenvolvimento náutico e funcionou como embaixador da burguesia marítima junto à Coroa. Na ponta de Sagres, reuniu navegadores, astrônomos, geógrafos, matemáticos e cartógrafos de vários pontos da Europa, ajudando a criar as condições para as fases seguintes da expansão marítima lusitana. O pórtico da Escola de Sagres, fundada em 1417, trazia como inscrição o verso de Virgílio: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Desde o Infante, a navegação portuguesa incorporava novos conhecimentos científicos, que a colocavam num patamar muito superior aos concorrentes europeus.
O início do reinado de D. João II, em 1481, assinala um novo impulso para as navegações portuguesas. As duas décadas anteriores tinham sido consumi- das na exploração do ouro do litoral da Guiné (a famosa “Costa da Mina”) e em dispersivos e dispendiosos ataques contra redutos muçulmanos na África do Norte.
D. João II refreou o espírito cruzadista da nobreza e colocou as novas riquezas africanas a serviço do grande objetivo representado pela descoberta do caminho oceânico para as Índias. O projeto do “périplo africano” tinha como objetivo deslocar o comércio das especiarias do Mediterrâneo (rota dominada pelas caravanas árabes e pelos mercadores italianos) para o Atlântico, onde de- veria se estabelecer o monopólio lusitano.
Diogo Cão e Bartolomeu Dias foram os grandes navegadores dessa fase. O primeiro atingiu a foz do Rio Congo e, pouco depois, explorou o litoral do que hoje é a Angola. O segundo, numa viagem memorável, refez o percurso
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de Diogo Cão e seguiu em frente. Possivelmente enfrentou tempestades e per- deu de vista a costa africana. Então, infletiu para oriente e tomou rumo norte. Quando avistou novamente a costa, tinha cruzado o Cabo das Tormentas (que ganharia o nome de Cabo da Boa Esperança). Nesse ponto, sua tripulação o fez voltar. Estava aberta a porta das Índias e das especiarias. (Veja o mapa do péri- plo africano neste link).
Como sabemos, foi Cristóvão Colombo, um genovês a serviço dos reis católicos, que primeiro aportou na América, no mesmo ano em que finalmente os mouros foram derrotados em Granada e expulsos totalmente da península. Colombo, porém, não sabia o que tinha descoberto ao aportar nas Bahamas. Ele pensava que as ilhas onde estivera fossem parte das Índias.
Portugal, ao contrário, separava nitidamente a exploração do Ocidente da descoberta do Caminho das Índias, sua meta principal. Entre os navegadores lu- sos, estava claro que o caminho mais curto para as Índias ambicionadas passava pelo Cabo das Tormentas. Foram os portugueses que concluíram que existiam terras a ocidente e que estas nada tinham a ver com as Índias. Desde então, a Coroa portuguesa usaria de toda a sua sagacidade para controlar a rota para as Índias e as terras a serem descobertas no lado ocidental do Atlântico.
O Tratado de Tordesilhas – precedido pelo Tratado de Toledo e pela
Bula Inter Coetera – prova que Portugal sabia perfeitamente o que queria.
O Tratado de Toledo, firmado muito antes da expedição de Colombo, dava a Portugal todas as terras a serem descobertas ao sul das Canárias, garan- tindo o controle luso sobre a costa africana e o Caminho das Índias.
As ilhas descobertas por Colombo em 1492 no Mar do Caribe estavam situadas ao sul das Canárias, para desespero da Espanha. Os reis católicos soli- citaram então ao papa que procedesse a uma divisão do mundo entre os dois reinos de forma tal a assegurar à Espanha o controle sobre as novas terras do Ocidente. Dessa solicitação surgiu a Bula Inter Coetera, que dava à Espanha as terras a descobrir a ocidente de um meridiano distante 100 léguas para oeste do Arquipélago de Cabo Verde.
Portugal recusou a mediação papal e entabulou tensas negociações com a Espanha, que redundaram na assinatura do Tratado de Tordesilhas. Assim, Lis- boa assegurava-se do controle de todas as terras a descobrir a oriente de um
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meridiano mais afastado, 370 léguas para oeste de Cabo Verde (veja neste link um mapa com a linha de demarcação do Tratado de Tordesilhas).
Depois de Tordesilhas, a “descoberta” era inevitável. Vasco da Gama não refez o itinerário litorâneo de Bartolomeu Dias para as Índias. Conhecida a dis- posição da costa africana, preferiu uma trajetória em arco cortando o Atlân- tico Sul. Para aproveitar os ventos alísios do Atlântico, velhos conhecidos dos portugueses, passou três meses sem avistar terra. Essa rota, chamada “grande salto”, cumpria uma função adicional: além de evitar as tempestades e calmarias costeiras, representava uma exploração do “outro lado” do Atlântico, onde pre- sumivelmente estavam terras atribuídas a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas.
Três anos após a partida de Vasco da Gama, zarpou a armada de Cabral. Sua frota de treze embarcações – a maior jamais organizada – tinha como meta consolidar o monopólio português da rota oceânica para as Índias. Mas, como Vasco da Gama, Cabral “barlaventeou”, traçando um arco ainda mais rombudo que o de seu predecessor. O “grande salto” trouxe Cabral às costas do território que hoje pertence ao Brasil.
19.3. Organização política e administrativa das terras “do outro lado”
A vigência da soberania política e jurídica da Coroa lusitana sobre as terras a leste do Meridiano de Tordesilhas fazia delas uma seção descontínua do terri- tório português. Essa condição de dependência direta durou até a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, em 1808, embora já tivesse começado a ser alterada em 1721, quando foi oficializado o Vice-Reino do Brasil.
A colonização dessas terras não foi, na sua origem, um empreendimen- to de base econômica, mas uma imposição geopolítica. As primeiras décadas após a chegada de Cabral caracterizaram-se por uma atividade muito inten- sa dos comerciantes e corsários franceses, que estabeleceram relações com grupos indígenas da costa, iniciando um lucrativo escambo de pau-brasil. Em contraste, as expedições exploratórias a serviço da Coroa lusa limitaram-se a percorrer trechos do litoral estabelecendo feitorias isoladas que organizavam a coleta dos toros de pau-brasil.
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A expedição de Martim Afonso de Sousa, que deixou Lisboa em 1531, inaugurou uma nova política da Coroa: a colonização das novas terras, por meio da ocupação e da organização política. Martim Afonso distribuiu as primeiras sesmarias a colonos portugueses e o seu relatório a D. João III parece ter sido decisivo para a implantação das capitanias hereditárias.
Sesmaria – gleba de terra concedida para uso de colonos, que consistia numa subdivisão da capitania, com o objetivo de que fosse aproveitada. Os capitães-donatários eram obrigados a distribuir 80% das terras como sesmarias.
Capitanias hereditárias – grandes faixas de terra, que iam da costa até a linha do Tratado de Tordesilhas, doadas aos capitães-mores mediante um documento chamado “carta de doação”. Os capitães também eram chamados de donatários, uma vez que recebiam títulos de governadores de suas posses. As capitanias eram hereditárias porque podiam ser transferidas aos herdeiros dos donatários.
As sesmarias, unidades elementares de apropriação da América Portu- guesa, inspiraram-se na antiga legislação fundiária portuguesa do século XIV, destinada a promover o uso produtivo das terras agrícolas. A Lei das Sesmarias (1375) obrigava os proprietários a cultivarem as terras ou a cederem parte delas para usufruto dos camponeses.
Em Portugal, os sesmeiros eram homens da pequena nobreza, militares ou navegantes, que recebiam as suas glebas como recompensa por serviços prestados à Coroa. Ao tomarem posse das terras, ficavam obrigados apenas a fazê-las produzir em alguns anos (em geral cinco) e a pagar o dízimo à Ordem de Cristo.
Na América Portuguesa, as sesmarias eram imensas, e seu cultivo deman-
dava o controle sobre um número significativo de escravos. Assim, as sesmarias
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foram o embrião do latifúndio canavieiro, algodoeiro e pecuarista e, mais tarde, das fazendas de café e cacau. O modelo monocultor, escravista e exportador da agricultura colonial da América Portuguesa começava a tomar forma.
As capitanias hereditárias foram criadas em 1534-1536. Elas representaram a primeira divisão político-administrativa do território colonial. Todo o Brasil por- tuguês foi dividido em quinze capitanias (ou donatarias) com fachada litorânea desigual, medindo entre 10 e 100 léguas. A partir do litoral, linhas paralelas deli- mitavam a área das capitanias.
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Capitanias hereditárias
O sistema de capitanias organizou o território colonial em unidades autô- nomas e desarticuladas entre si. Configurou uma opção pela descentralização político-administrativa. Entretanto, os donatários se revelaram incapazes de ar- car com os níveis de investimentos necessários e com as exigências postas pela defesa contra as incursões francesas. Ao mesmo tempo, a retração dos lucros portugueses no comércio de especiarias do Oriente e a descoberta das minas de ouro de Potosí na América Espanhola, em 1545, estimularam a Coroa portu- guesa a envolver-se diretamente no empreendimento colonial.
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Em 1548, o Regimento de D. João III instituía o Governo-Geral, sistema de administração centralizada do Brasil português. O governador fiscalizava e au- xiliava as capitanias, instalava engenhos de açúcar, estimulava a exploração do sertão, o povoamento e a fundação de vilas. Principalmente, garantia a defesa da terra construindo fortes e promovendo alianças com os indígenas.
O governador-geral cercava-se de um aparelho administrativo articulado em torno de três figuras: o ouvidor-mor, encarregado da aplicação da Justiça, o provedor-mor, responsável pela arrecadação dos impostos, e o capitão-mor da costa, coordenador da defesa do litoral. Começava a nascer um aparelho de Estado, subordinado à monarquia lusa. Salvador tornou-se a primeira sede do Governo-Geral, condição que perderia para o Rio de Janeiro apenas em 1763.
A legislação que regulava o poder local foi inspirada nas Ordenações Re- ais para a administração municipal portuguesa. A Alcaiadaria era ocupada pelo capitão da vila, nomeado pelo donatário. A Câmara Municipal era formada por vereadores eleitos pelos “homens bons”, constituindo a base do poder das oli- garquias locais.
As câmaras municipais tinham amplas prerrogativas. Definiam os preços dos produtos e o valor das moedas, lançavam impostos, aceitavam ou recusa- vam funcionários nomeados pela Coroa e legislavam sobre o comércio regio- nal. Algumas chegaram a ter representantes em Lisboa, estabelecendo relações diretas com a Coroa.
Nas câmaras se encontra a origem dos privilégios e do poder descentralizado dos grandes proprietários de terra. Elas refletiam uma interpenetração do interesse privado e do interesse público ou, o que dá no mesmo, uma subordinação e manipulação da administração pública pela propriedade privada da terra.
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Capítulo 20
O Império e a construção da unidade
Um início de conversa
presentando o texto sobre as “Memórias da Balaiada”, de autoria de Gonçalves de Magalhães e publicada originalmente na Revista do Insti- tuto Histórico e Geográfico, Luiz Felipe de Alencastro sintetiza o proble-
ma colocado pela unidade nacional e territorial brasileira. Parodiando o texto de Magalhães, afirma que:
O balaio de cocos provinciais atado ao cetro carioca sacudiu-se por décadas, ameaçando se esborrachar nas praias do Atlântico, num ribombo parecido com o que ecoava no Pacífico quando implodiam os vice-reinos espanhóis. En- tretanto, o processo histórico materializado na unidade mantida do vice-reino português desaparece nas brumas do passado, como se a questão tivesse sido solucionada de vez em 1822, ou melhor ainda, em 1808. (Alencastro, 1989, p.7)1
Como veremos, o processo histórico mencionado foi conduzido, em grande parte, pelo imperativo territorial, fundamento da unidade e da identida- de que se pretendia construir. Articular o agregado colonial lusitano em torno
1 O documento original é de 1848. Conferir bibliografia.
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de um centro de força “interiorizado” foi uma das tarefas cruciais postas aos agentes centralizadores da elite imperial. Transfigurada inúmeras vezes, essa tarefa continuaria em pauta para a elite brasileira durante séculos, até que a industrialização criasse as condições efetivas para a sua realização.
20.1. A ideologia do Brasil-Colônia
Em muitas das obras voltadas para a divulgação da história brasileira, o “balaio de coco provinciais” é apresentado como um enigmático Brasil-Colônia, corpo político e territorial relativamente coeso, depositário do germe do futuro Estado independente. Contudo, esse corpo político e territorial jamais chegou a se constituir. A América Portuguesa era fragmentada praticamente em dife- rentes colônias, cujos contornos territoriais flutuaram em função das estratégias de administração adotadas pela metrópole. O geógrafo André Roberto Mar- tins considera que o emprego do termo “Brasil” nesse contexto já induz a erro, pois é como se ele existisse desde sempre, “cumprindo um papel predestinado” (Martins, 1991).
O historiador Luiz Felipe de Alencastro, por sua vez, afirma que não existe continuidade possível entre o território colonial e a história nacional, já que a colonização portuguesa não gerou um corpo político e territorial articulado, mas estabeleceu um “arquipélago lusófono”, composto pelos diversos encla- ves da América Portuguesa (a zona de produção escravista) e pelas feitorias de Angola (a zona de reprodução de escravos). Este arquipélago, segundo ele, se constituiria em um “espaço aterritorial” (Alencastro, 2000). Nesta perspectiva, a desagregação colonial seria um reflexo da bipolaridade social e econômica instituída pela colonização da América Lusitana, já que o “pulmão” das ativi- dades produtivas ali instaladas eram as feitorias africanas. Os sólidos vínculos estabelecidos no eixo do Atlântico Sul formavam a outra face da fragmentação das terras luso-americanas.
De uma forma ou de outra, o longo processo de formação territorial do Brasil, que soldou o corpo político do país e manteve unido o “balaio de cocos provinciais”, foi desencadeado a partir de um momento de ruptura, não apenas das relações com a metrópole, mas também dos vínculos seculares que amar-
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ravam as possessões lusitanas dos dois lados do Atlântico. Esse processo envol- veu um ambicioso projeto político, que tinha como horizonte a construção da nação, da sociedade e do território brasileiros.
20.2. O território no Império Luso-Americano
Em muitos sentidos, a chegada da Corte portuguesa, ocorrida em 1808, representa um ponto de inflexão importante em direção ao processo de forma- ção do território brasileiro. Nesse momento, instaura-se finalmente uma rede de subordinações, comandada por um centro de forças interiorizado, representado pelo Rio de Janeiro, nova capital de todo o Estado Português, e não apenas de seus enclaves americanos. Transformada em “metrópole interiorizada”, a Corte portuguesa instalada no Rio de Janeiro assumia a função de dominar, controlar e explorar o conjunto das possessões existentes no continente.
Entretanto, a unidade nacional e territorial do Vice-Reino do Brasil não poderia estar garantida a priori nesse momento. O território real trazia as marcas dos séculos de colonização, sob a forma de uma complexa trama de interesses regionais forjados em cada um dos enclaves, que se traduziam em conflitos contra a estratégia centralizadora da Corte.
No plano do território, o processo de centralização envolveu a abertura de caminhos interiores, necessários para iniciar o processo de integração entre as diversas capitanias. Maria de Lourdes Viana Lyra (1994) aponta o esforço rea- lizado neste sentido:
Empenhava-se o governo em uma prática que, por três séculos, havia sido evi- tada. A abertura de novas estradas ou melhoria das antigas vias de acesso ao Rio de Janeiro e a imediata providência sobre a comunicação entre o Rio de Janeiro e o Pará são exemplos de medidas objetivas na prática criadora de elos de união do todo, até então chamado genericamente Brasil.
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Essas iniciativas implicaram em obras relativamente custosas – tais como a construção de pontes e a abertura de caminhos terrestres margeando os pon- tos intransitáveis dos rios.
Se o objetivo passa a ser o da integração, até mesmo a situação geográfi- ca da capital passa a ser frequentemente questionada. Escrevendo de Londres, no jornal O Correio Brasiliense, em 1813, Hipólito José da Costa já atenta para a inadequação do Rio de Janeiro como capital do futuro império do Brasil. Re- tomando as mitologias medievais acerca do paraíso terreno, ele propõe que a sede do novo império seja deslocada para o “interior central”, de onde partiriam as rotas e caminhos destinados a estruturar o território em torno de um mesmo ponto de convergência:
O Rio de Janeiro não possui nenhuma das qualidades que se requerem da cida- de que se destina a ser a capital do império do Brasil; e se os cortesãos que para ali foram tivessem assaz patriotismo […] se iriam estabelecer em um país do in- terior central, e imediato à cabeceira dos grandes rios, edificariam ali uma nova cidade; começariam por abrir estradas que se dirigissem a todos os portos do mar e removeriam os obstáculos naturais que têm os diferentes rios navegáveis, e assim lançariam os fundamentos do mais extenso, ligado, bem defendido e poderoso império, que é possível que exista na superfície do globo no estado atual das nações que o povoam. Este ponto central se acha nas cabeceiras do famoso Rio São Francisco. Em suas vizinhanças estão as vertentes de caudalosos rios, que se dirigem ao Norte, ao Sul, ao Nordeste, ao Sudeste, vastas campinas para a criação de gados, pedras em abundância para toda a sorte de edifícios, madeira de construção para todo o necessário, e minas riquíssimas de toda a qualidade de metais; em uma palavra, uma situação que se pode comparar com a descrição que temos do paraíso terreal. (Costa apud Lyra, 1994, p.127)
No início do século XIX, enquanto o território real mal começava a ser co-
nhecido e mapeado, a “utopia do poderoso império” era fortemente assentada
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em um imaginário, que articulava solidamente “Norte, Sul, Nordeste e Sudeste” em torno de um ponto central, pleno de potencialidades futuras.
Entretanto, as identidades regionais, herdeiras da colonização, ainda eram poderosas e ameaçadoras. A insurreição pernambucana de 1817, por exemplo, além de mostrar que o canto de sereia do poderoso império luso-brasileiro cen- trado no Rio de Janeiro não era capaz de seduzir o conjunto das elites regionais, deu origem a uma república com bandeira, hinos e leis próprias, sem quaisquer referências ao Brasil. Na fala dos revoltosos, o Brasil não era mais do que as “pro- víncias deste vasto continente”, sem qualquer unidade ou identidade.
Essa mesma duplicidade iria aparecer após a vitória da Revolução Liberal do Porto, em 1820, no contexto da reunião das Cortes de Lisboa, destinadas a traçar os novos rumos do império.
José Bonifácio de Andrada e Silva, integrante do grupo de reformistas
ilustrados liderado por dom Rodrigo de Souza Coutinho, era, em 1821, vice- -presidente da junta provisória de São Paulo. O programa que escreveu para
os deputados paulistas demonstra sua intenção de modernizar o conjunto do Estado Português, mas dedica particular atenção ao plano de integração do território luso-americano. Assim, propunha que a função de capital do império fosse revezada entre Lisboa e uma cidade “interior”, a ser edificada:
Parece-nos também muito útil que se levante uma cidade central no interior do Brasil, para assento da corte ou da regência, que poderá ser na latitude pouco mais ou menos de 15°, em sítio sadio, ameno, fértil, e regado por um rio navegá- vel. Deste modo, fica a corte ou o a regência livre de qualquer assalto e surpresa externa; e se chama para as províncias centrais o excesso de população vadia das cidades marítimas e mercantis. Desta corte central dever-se-ão logo abrir estradas para as diversas províncias e portos do mar, para que se comuniquem e circulem com toda a prontidão as ordens do governo e se favoreça por ela o comércio interno do vasto império do Brasil. (Andrada e Silva apud Silva, 2003).
Note-se que as relações entre a sede do poder e o conjunto do territó- rio são mais uma vez consideradas determinantes, ainda que ganhem novos contornos: muito longe dos argumentos mitológicos de Hipólito da Costa, José
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Bonifácio ressalta os vários significados estratégicos da cidade capital a ser er- guida: a defesa, o incentivo a formação de novos núcleos interiorizados de po- voamento e, principalmente, a integração entre as províncias.
Mas a integração não está sequer no horizonte da maior parte dos depu- tados provinciais do Norte e Nordeste enviados às Cortes lisboetas: para eles, o importante era garantir a autonomia de “suas” regiões.
De qualquer maneira, o desenvolvimento dos trabalhos mostrou que não havia como conciliar a diversidade de interesses e projetos – que se delineavam tanto em Portugal quanto nas províncias luso-americanas – em torno da cons- trução do “poderoso império luso-brasileiro”. O resultado, como se sabe, foi o rompimento.2
20.3. O Império Brasileiro: escravismo e fundos territoriais
A partir da Independência, mais do que nunca, estava em jogo a transfor- mação do agregado colonial em um único corpo político, o Império Brasileiro. O próprio dom Pedro trata de estabelecer os novos limites do Império – do Amazonas ao Prata – e de afirmar a importância da unidade e integridade do território como fundamento constituinte da nação e da identidade brasileiras.
Que nos resta pois, brasileiros? Resta-nos unir-nos em interesse, em amor, em esperanças, fazer entrar a augusta Assembleia do Brasil no exercício de suas funções para que, meneando o leme da razão e da prudência, haja de evitar os escolhos que nos mares das revoluções apresentaram desgraçadamente Fran- ça, Espanha e o mesmo Portugal. […] Não se ouça pois outro grito que não seja – união. Do Amazonas ao Prata não retumbe outro eco que não seja – inde- pendência. Formem todas as províncias o feixe misterioso que nenhuma força pode quebrar. (dom Pedro apud Lyra, 1994, p.146)
2 Sobre esse tema, consultar Berbel (1999).
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No “país real”, porém, não era nem poderia ter sido em nome de vínculos nacionais, que ainda não existiam, e muito menos da “liberdade brasílica”, que se formaria entre as elites provinciais – os “brasileiros” do discurso do príncipe – “o feixe misterioso, que nenhuma força pode quebrar”. Ao contrário. O Império se manteria unido exatamente em nome da falta de liberdade de grande parte de seus habitantes: os escravos.
O escravismo foi a solda que uniu as oligarquias regionais brasileiras. O interesse compartilhado na manutenção do trabalho cativo e do tráfico negrei- ro era ameaçado pela campanha internacional britânica contra o comércio de escravos. O Estado imperial centralizado funcionou como instrumento diplo- mático para enfrentar as pressões britânicas, conseguindo sustentar o tráfico até 1850 e a escravidão até 1888. Para a minoria branca de proprietários, a aco- modação das divergências em torno da figura do imperador nasce como ex- pressão de um pacto social fundamentado na e pela exclusão.
A Assembleia Constituinte de 1823 representou a primeira tentativa de organização do arcabouço institucional do Império recém-criado. Em que pese a diversidade de seus projetos e perspectivas, pode-se dizer que as elites regio- nais se uniam na busca do equilíbrio entre um poder centralizado – que cuidas- se da ordem social interna – e uma ampla autonomia provincial – necessária para a manutenção de suas prerrogativas no plano da economia e da política. A maior parte das províncias – com exceção de Maranhão, Pará, Rio Negro e da recém-incorporada Cisplatina – enviou seus representantes para os trabalhos parlamentares.
Mas um equilíbrio nestes termos não interessava a dom Pedro. Ainda em 1823, a Constituinte foi dissolvida e, no ano seguinte, seria outorgada pelo im- perador a Carta destinada a reger os destinos do Império. Nela, a proposta de centralização se materializa em pontos fundamentais: além de instituir o poder moderador, a vitaliciedade do Senado e o veto imperial, a Carta de 1824 previa que as províncias seriam administradas por um presidente, escolhido pelo go- verno central, e por um conselho eleito na própria província, mas destituído de qualquer autonomia efetiva. A partir de então, o Estado centralizado toma para si a tarefa de direcionar a marcha de apropriação dos imensos fundos territoriais disponíveis, por meio da abertura de novas rotas, da fundação de núcleos de
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povoamentos e de garantia de defesa das áreas em disputa. Assim como o es- cravismo, também a soberania sobre o território funcionava como elemento de legitimação do Estado Imperial.3
Esse arranjo institucional não evitou contestações do poder central que, algumas vezes, geraram revoltas separatistas. A Confederação do Equador, lide- rada pela elite pernambucana, em 1824, foi um movimento liberal e republica- no que eclodiu durante o processo de implantação da monarquia. Depois, no período regencial (1831-1840), o enfraquecimento do poder central abriu espa- ço para revoltas populares claramente separatistas. A repressão sangrenta à Ca- banagem (1835-1840), que proclamou a independência do Pará, deixou 30 mil mortos. Na Bahia, a Sabinada (1837-1838) também declarou a independência.
Porém, o mais duradouro movimento separatista foi conduzido por uma oligarquia regional marginalizada das estruturas de poder do Império. A Far- roupilha eclodiu no Rio Grande do Sul em 1835 e chegou a formar a República de Piratini e, em Santa Catarina, a República Juliana. Tendo por foco as áreas de fronteiras meridionais, entrelaçou-se com os conflitos entre oligarquias platinas que sacudiam o Uruguai e a Argentina. O fim dos conflitos ocorreu em 1845, graças a um acordo entre o poder central e a elite gaúcha.
Entretanto, a construção da unidade exigiu mais que a repressão ao sepa- ratismo. Desde o início, a elite imperial dedicou-se à obra de produção de uma simbologia que fundamentasse a unidade brasileira. Grande parte dessa tarefa coube ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), organizado em 1838 e presidido desde 1849 por dom Pedro. Foram os historiadores reunidos em torno do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que produziram uma nar- rativa da história colonial, capaz de conferir organicidade e sentido ao passado nacional. Essa narrativa nacional é relativamente pobre em figuras heroicas, e se apoia fundamentalmente na grandeza do próprio território, desde o início elei- to como um dos símbolos da unidade histórica e política do país. A formação
3 De acordo com o artigo 98 da Constituição de 1824: “O Poder Moderador é a chave de
toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador […] para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos demais poderes políticos […] dissolvendo a Câmara dos Deputados nos casos em que o exigir a salvação do Estado”.
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da consciência nacional também esteve no horizonte da literatura romântica brasileira, mesmo se tratando de um país de analfabetos. Aliás, é na constituição da nacionalidade no período do Império que o romantismo brasileiro exerce sua maior influência. Assim como o projeto de construção do Estado, o projeto de nação encabeçado pelas elites brasileiras foi também pautado pela ideia de exclusão, o que deve soar no mínimo estranho para teóricos europeus acostu- mados a pensar a ideia de nação como o “plebiscito diário” de um povo.4
4 O pensador francês Ernest Renan (1994), por exemplo, identifica a nação com uma
“consciência moral” capaz de agregar um grande número de homens a partir de ideais e símbolos comuns. A lealdade é ao mesmo tempo fim e meio da reunião de homens e ideias que forma uma nação.
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Capítulo 21
A República Federativa do Brasil: fronteiras e limites
Um início de conversa
Brasil possui o quinto mais extenso território do mundo, com área total de 8.514.876,599 km2. Suas fronteiras atuais estendem-se por 26.580 km, divididos em uma seção marítima de 10.959 e numa terrestre de
15.621 km.
A soberania do Estado aplica-se, integralmente, para o espaço atmosfé- rico sobre o território e se estende sobre a faixa oceânica contígua nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar (CNUDM), em vigor desde novembro de 1994 e atualmente ratificada por 156 países. Observe o esquema.
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Águas juridicionais brasileiras
O Mar Territorial (MT) se estende até 12 milhas náuticas (cerca de 22,2 km), contadas a partir da linha de base (que equivale, aproximadamente, à linha da costa). Nele, o Estado costeiro também exerce soberania integral, limitada ape- nas pelo direito de passagem inofensiva de navios de qualquer origem.
Na Zona Contígua (ZC), cuja extensão é de 24 milhas náuticas a partir da linhas de base, o Estado costeiro possui soberania restrita a atuações que visem reprimir agressões aos seus regulamentos aduaneiros, fiscais, de imigração ou sanitários.
Na Zona Econômica Exclusiva (ZEE), cuja extensão é de 200 milhas náu- ticas (370,4 km) a partir da linha de base, há total liberdade internacional de navegação, sobrevoo, construção de dutos e lançamento de cabos submarinos. Contudo, o Estado costeiro detém o monopólio sobre os direitos de exploração
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dos recursos biológicos e das riquezas do subsolo marinho, desde que atenda às exigências da ONU no tocante à conservação e gestão dos recursos naturais vivos ou não vivos, das águas sobrejacentes ao leito do mar, do leito do mar e seu subsolo.
A Plataforma Continental (PC) compreende o leito e o subsolo das áreas submarinas que se estendem além do mar territorial, até a borda exterior da margem continental, ou até uma distância de 200 milhas marítimas das linhas de base, nos casos em que a borda exterior da margem continental não atin- ja essa distância. De acordo com a CNUDM, o Estado costeiro pode pleitear a extensão da sua Plataforma Costeira até o limite de 350 milhas náuticas (648 km), observando-se alguns parâmetros técnicos. Em 2004, o Brasil apresentou oficialmente às Nações Unidas o pedido de extensão de sua Plataforma Conti- nental. Caso a ONU responda positivamente, os espaços marítimos brasileiros poderão atingir cerca de 4,5 milhões de km2, o que equivale a mais de 50% da extensão territorial do país.
21.1. A gênese das fronteiras brasileiras
A extensão do domínio terrestre de um Estado é determinada por linhas de fronteiras, limites que indicam até onde vai o território sobre o qual se exerce a sua soberania. A demarcação e indicação desses limites é direito e dever do Estado.
O Tratado de Madri, firmado em 1750 entre Portugal e Espanha, entrou para a história nacional como um acordo decisivo, que teria gerado as fronteiras do futuro Brasil independente. Mas, efetivamente, ele delimitou apenas alguns trechos das fronteiras, baseados no curso conhecido dos rios Uruguai e Gua- poré. Em conjunto, os segmentos de fronteira delimitados no período colonial representam apenas 17% da extensão da atual seção terrestre.
O Império foi responsável pela fixação de pouco mais de metade da ex- tensão total das fronteiras terrestres atuais. Em 1811, o Vice-Reino do Brasil havia anexado a Banda Oriental, até então pertencente ao Vice-Reino do Rio da Prata, que passou a ser denominada de Província Cisplatina. A ocupação permaneceu após as independências da Argentina (1816) e do Brasil (1822), e resultou em
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conflito armado entre os dois jovens países. O Uruguai nasceu da independên- cia de parte da Banda Oriental, como um Estado tampão entre os dois oposi- tores. Assim, o segmento de limites com o Uruguai foi resultado dos acordos que deram origem ao país vizinho, e esse segmento foi fixado com o Paraguai no encerramento da Guerra do Paraguai (1864-1870), que envolveu o Brasil e a Argentina. As outras divisórias delimitadas no Império foram delimitadas a partir de acordos com os países vizinhos.
O início do período republicano foi marcado pela figura de José Maria da Silva Paranhos, o Barão do Rio Branco, que ocupou o Ministério das Relações Exteriores de 1902 a 1912. Aproximadamente um terço da seção terrestre das fronteiras brasileiras foi delimitada neste período.
Na negociação que firmou os segmentos de fronteira com a Argentina, Rio Branco consolidou a posse do oeste dos territórios que hoje pertencem aos estados do Paraná e de Santa Catarina.
Na Amazônia, Rio Branco demarcou o segmento de limites com a Guiana Francesa, garantindo para o Brasil a posse do território do atual Amapá, com a Guiana Inglesa e com a Colômbia, ainda que nesse último caso o tratado de limites só tenha sido ratificado em 1928. Além disso, Rio Branco negociou também o Tratado de Petrópolis (1903), pelo qual o Brasil adquiriu da Bolívia o território que atualmente pertence ao Acre.
21.2. A faixa de fronteira: isolamento ou integração?
A Faixa de Fronteira interna do Brasil com os países vizinhos foi definida pela primeira vez como área de segurança nacional em 1890, durante o Se- gundo Império, com largura de dez léguas (66 km) paralela à linha terrestre do território. A noção de zona de fronteira foi concebida como uma área a ser de- fendida de ameaças externas e perpassou as sucessivas constituições brasileiras promulgadas nas décadas de 1930 e 1940.
Também na Constituição em vigor desde 1988, a faixa de fronteira é con- siderada um território especial ao longo do limite internacional continental do país, cuja largura é estabelecida em 150 km. A faixa de fronteira abrange 11 unidades da Federação e 588 municípios, nos quais vivem aproximadamente
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10 milhões de habitantes (veja no mapa neste link a faixa de fronteira em 2003). Nela, a realização de obras de infraestrutura, tais como a implantação de estra- das e ferrovias, e a exploração de recursos minerais, depende de autorização especial do governo federal.
Entretanto, a concepção tradicional de fronteira como área de segurança e defesa a ser protegida, tanto por parte do Brasil como por parte dos países limítrofes, acabou por inibir os projetos de integração e desenvolvimento com- partilhado.
Nas últimas décadas, porém, emerge um novo marco institucional para a faixa de fronteira, que passa a ser concebida fundamentalmente como espaço de integração econômica, política e cultural entre os países sul-americanos. De acordo com o Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira, concebido pelo Ministério da Integração Regional em 2005,
o momento atual pode ser caracterizado como um momento de passagem de uma concepção de fronteira exclusivamente de defesa de limites territoriais, rígida e isolante, para uma concepção de aproximação, união e abertura num espaço integrador sobre o qual se devem orientar as estratégias de desenvolvi- mento através de ações conjuntas entre países vizinhos. (Ministério da Integra- ção Nacional, 2005, p.174)
Conheça mais a zona de fronteira brasileira acessando o Atlas da fronteira continental do Brasil e o Álbum iconográfico da fronteira continental brasileira, ambos disponíveis em <http://www.retis.igeo.ufrj.br/index.php/tags/faixa-de- fronteira/>.
21.3. Poder central e autonomia estadual
A Constituição de 1824, outorgada pelo imperador, definiu o Brasil como um Estado unitário. As províncias não dispunham de autonomia política e seus presidentes eram nomeados pelo poder central. O Brasil se transformou em Estado federal apenas com a Constituição republicana de 1891. As unidades da federação – os estados – passavam a dispor de autonomia política, expressa em constituições próprias e na eleição dos governadores.
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Durante a República Velha, o federalismo representou significativo enfra- quecimento do poder central. A Constituição de 1937, fortemente centralista, praticamente suprimiu a autonomia estadual, que só foi reestabelecida em 1946. O regime militar implantado em 1964 representou nova fase centralista, imposta através das revisões constitucionais de 1967 e 1969.
A Constituição de 1988, que completou a redemocratização, voltou a am- pliar a autonomia dos estados. Atualmente, o debate sobre as relações entre o poder central e os direitos dos estados manifesta-se em polêmicas relativas à política fiscal e à tributação. A chamada “guerra fiscal” entre os estados revela o grau significativo de autonomia das unidades da federação, pelo menos no campo econômico.
Na federação brasileira, o Legislativo está dividido em duas câmaras. A câmara baixa – chamada Câmara Federal – é constituída por deputados que representam o povo. A câmara alta – chamada Senado Federal – é constituída por senadores que representam os estados e o Distrito Federal. As unidades da federação dispõem de constituições próprias, que definem as modalidades de exercício da sua autonomia política.
Nos Estados Unidos, as antigas colônias inglesas constituíram, após a independência, uma confederação, que em seguida se transformou numa fe- deração. Os novos territórios adquiridos ou conquistados no Oeste aderiram à federação. O Brasil percorreu trajetória muito diferente. O Império soldou as capitanias, que funcionavam praticamente como colônias distintas, num Estado unitário. A República adotou o sistema federativo, transformando as províncias em estados.
A configuração atual das unidades da federação guarda as marcas do passado. As capitanias do Vice-Reino do Brasil, em 1815, tornaram-se as provín- cias imperiais. A única adição foi Alagoas, que se tornou capitania subordinada a Pernambuco antes da independência. Em 1853, desmembrou-se de São Paulo a província do Paraná.
No período republicano, as mudanças nos limites político-administrativos decorreram dos processos de criação de territórios federais e de desmembra- mento de estados. O Acre foi o primeiro território federal, criado em 1903, como produto da incorporação da área adquirida à Bolívia no Tratado de Petrópolis.
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Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foram criados, por desmem- bramento, os territórios do Rio Branco (atual Roraima), Amapá, Guaporé (atual Rondônia), Ponta Porã, Iguaçu e Fernando de Noronha. Os territórios não dis- punham de autonomia política, pois seus governadores eram nomeados pelo governo federal. Situados em faixas de fronteiras pouco povoadas ou, no caso de Fernando de Noronha, em rota estratégica do Atlântico Sul, destinavam-se a garantir a segurança externa do país.
A Constituição de 1946 extinguiu os territórios de Ponta Porã e Iguaçu. Mais tarde, os demais territórios foram elevados a estados, ganhando autono- mia política. A Constituição de 1988 extinguiu o território de Fernando de No- ronha, anexando-o a Pernambuco.
A área da capital federal – o Rio de Janeiro – tornou-se Distrito Federal desde a proclamação da República. Em 1960, com a inauguração de Brasília, o Distrito Federal foi transferido para o Brasil central. O antigo Distrito Federal foi transformado no Estado da Guanabara, até fundir-se com o do Rio de Janeiro, em 1974.
O Brasil central conheceu dois desmembramentos de estados. A criação de Mato Grosso do Sul, em 1977, resultou da bipartição do Mato Grosso. Tocan- tins nasceu, em 1988, pela bipartição de Goiás. A República Federativa do Brasil passou a ser formada por 26 estados e o Distrito Federal.
O processo de desmembramento de estados é justificado pelo povoa- mento e pela valorização das regiões interiores do país. A autonomia política e a instalação de administrações estaduais funcionam como fundamentos para o planejamento econômico e social. Mas a criação de novas unidades da fede- ração também é uma resposta a demandas das elites regionais, que adquirem por essa via maior poder político, novos instrumentos de pressão sobre o go- verno central e uma rede de cargos públicos.
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Capítulo 22
Região e regionalização
Um início de conversa
A palavra região origina-se do verbo latino regere, que significa governar, ou seja, exercer o poder. No antigo Império Romano, o substantivo regio de- signava área sobre a qual um determinado poder era exercido. A região era, portanto, uma construção política.
Na Geografia, porém, o conceito de região emerge como estruturador, no século XIX, com um significado diferente. Nas obras de Paul Vidal de La Blache (1845-1918), a região é destituída de sua dimensão política, transfigurando-se em construção natural e a-histórica. O método da Geografia constituiria em identificá-las e descrevê-las o mais exaustivamente possível. De acordo com Yves Lacoste, essa concepção de região ofusca outras abordagens escalares e empobrece a análise geográfica:
Essa maneira de recortar a priori o espaço num certo número de “regiões”, das quais só se deve constatar a existência, essa forma de ocultar todas as demais configurações espaciais, às vezes bastante usuais, foram difundidas, com um enorme sucesso de opinião, através de manuais escolares e também da litera- tura e pela mídia. (Lacoste, 1993, p.54)
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Entretanto, o conceito de região pode ser resgatado desse viés natu- ralizante, desde que se considere sua relação com as demais escalas da Geo- grafia (tais como o mundo e o lugar). Em uma perspectiva renovada, a região se transforma em uma construção intelectual, uma maneira de abordar a di- versidade espacial do planeta, cujos contornos dependem das teorias e dos métodos utilizados. Diferentes propostas de divisão regionais resultam assim de modos de interpretar o espaço geográfico igualmente diversos, bem como das transformações na dinâmica social que reconfiguram permanentemente os espaços, em suas múltiplas escalas. Tal como afirma o geógrafo Milton Santos (2003, p.39), “no mundo de hoje talvez não haja mais coincidências entre região e régio. A região deixa de ser a sede do poder, do seu próprio comando, do seu comando total e absoluto, mas não deixa de existir. O desafio é guardar a palavra e redefini-la”.
22.1. As regiões do IBGE
A Revolução de 1930 inaugurou um novo período da história brasileira, marcado pela forte centralização do poder político em torno do governo fede- ral. A política de industrialização e de integração do mercado interno, iniciada por Getúlio Vargas, derrubou as restrições impostas pelos estados e municípios à circulação de mercadorias. Os estados perderam a autonomia legislativa sobre seu comércio exterior. Nesse contexto, o conhecimento estatístico do território e da população se transformou em prioridade nacional. Para traçar os rumos do desenvolvimento brasileiro, o governo precisava conhecer o Brasil.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi criado em 1937, com a finalidade de subsidiar a ação planejadora do Estado sobre o território brasileiro. Desde o início, a realização dos censos demográficos e econômicos e o mapeamento sistemático do país estiveram entre as suas principais atribuições.
O IBGE apresentou a primeira regionalização oficial do território nacio- nal em 1942, com o intuito de organizar a divulgação de dados estatísticos e sistematizar as propostas de divisão regional já existentes antes de sua criação. Nessa primeira divisão do Brasil, foram delimitadas as regiões Norte, Nordeste, Leste, Sul e Centro-Oeste.
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Em 1945, o IBGE apresentou outra proposta, baseada sobretudo no con- ceito de região natural, emprestado da geografia regional francesa. Na ocasião, seis grandes regiões foram identificadas no território brasileiro, por meio do estudo das influências recíprocas entre os diferentes fatores naturais, principal- mente clima, vegetação e relevo. Os fatores naturais eram então considerados mais estáveis e permanentes, e, portanto, mais adequados para servir de base à divisão regional, como explica o geógrafo do IBGE, Fábio Macedo Soares Gui- marães (1941), coordenador dos estudos que fundamentaram a proposta:
As regiões naturais constituem a melhor base para uma divisão regional prática, sobretudo para fins estatísticos e especialmente para uma divisão permanente que permita a comparação de dados de diferentes épocas. As regiões huma- nas, particularmente as econômicas, pela sua instabilidade, não fornecem base conveniente para tal comparação no tempo.
Em 1969, o governo brasileiro oficializou outra proposta de regionaliza- ção, também saída dos quadros do IBGE. Desta vez, elas foram definidas segun- do uma combinação de características físicas, demográficas e econômicas. As chamadas regiões homogêneas foram delimitadas a partir de estudos setoriais envolvendo os domínios ecológicos, o comportamento demográfico, a estru- tura industrial, a agricultura, a rede de transportes e o sistema de fluxos. O resul- tado desses estudos foi a divisão do Brasil em 360 microrregiões homogêneas, agrupadas em sete grandes unidades macrorregionais. Assim como na Divisão Regional de 1945, os limites interestaduais foram considerados no traçado das Grandes Regiões.
Na Divisão Regional do Brasil de 1969, os estados da Bahia e Sergipe fo- ram incluídos na Região Nordeste. A Região Sudeste foi criada em substituição à antiga Região Leste; São Paulo, antes pertencente à Região Sul, passou a inte- grar a Região Sudeste.
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Evolução da divisão político-administrativa
Essas modificações foram justificadas com base no processo de industria- lização e de crescimento econômico do país. A concentração da indústria nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais serviu de base à delimitação de uma região “central” do ponto de vista da economia. O triângulo São Paulo-
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-Rio de Janeiro-Belo Horizonte surgia como ímã dessa região “central”. Juntos, os três estados detinham mais de 80% do valor da transformação industrial do país e cerca de 70% dos empregos do setor. Por outro lado, a nova Região Nordes- te despontava como região-problema, marcada pela pobreza e pela repulsão demográfica.
O critério de regionalização oficializado pelo governo militar em 1969 considera as atividades econômicas como fundamentais na diferenciação dos espaços: são elas que vão determinar as políticas de investimentos públicos e de valorização de áreas consideradas “deprimidas”. Influenciada pela new geography norte-americana, a burocracia ligada ao regime militar acreditava que o estudo estatístico integrado dos fenômenos naturais, sociais e econômicos forneceria subsídios à ação de planejamento do Estado, consubstanciadas essencialmente nas políticas territoriais voltadas para a integração nacional, a modernização econômica dos estados nordestinos e a conquista e apropriação da Amazônia.
No que diz respeito às macrorregiões, a divisão regional proposta em 1969 permanece em vigor, com apenas uma modificação importante: o Estado do Tocantins, criado pela Constituição de 1988, passou a fazer parte da Região Norte.
A divisão em macrorregiões tem finalidades estatísticas e didáticas, mas é muito genérica para as necessidades de planejamento, tanto de políticas públicas, quanto de localização de atividades econômicas. Por isso mesmo, o IBGE buscou detalhar a divisão regional, identificando mesorregiões que se distinguem pela estrutura produtiva e pela posição que ocupam nas redes que articulam o espaço nacional. Partindo dessas regiões intermediárias, procedeu- se a uma análise ainda mais detalhada do território, com a identificação das microrregiões, que se diferenciam basicamente pela influência dos centros urbanos e pelos tipos de uso do solo dominantes.
As subdivisões em meso e microrregiões espelham a diversidade geográ- fica pelas dinâmicas sociais. Por isso mesmo, quanto mais densa for a ocupação e mais complexas as estruturas produtivas, mais numerosas são as subdivisões regionais. Observe as figuras.
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Brasil – subdivisões em meso e microrregiões
22.2. Os complexos regionais
Em 1967, enquanto o IBGE conduzia os estudos que resultaram na regio- nalização oficial de 1969, o geógrafo Pedro Pinchas Geiger lançava a proposta da divisão do território nacional em três complexos regionais. Trata-se de um esforço de captar os resultados espaciais do processo de industrialização acele- rada vivenciado pelo país desde o final da Segunda Guerra Mundial.
O Centro Sul era o Brasil moderno, gerado pela conexão do polo produti- vo do Sudeste, onde se concentrava a maior parte das atividades econômicas e das infraestruturas de comunicação, com o Sul e a porção meridional do Cen- tro-Oeste, que se destacavam pela presença de um modelo agrícola intensivo em tecnologia.
No plano econômico, o Nordeste era marcado pela baixa produtividade agrícola e pela industrialização ainda incipiente. No plano social, pela dissemi- nação da pobreza, expressa nos altos índices de mortalidade infantil, subnutri- ção e analfabetismo, e pela repulsão populacional.
A Amazônia se destacava como uma imensa fronteira de recursos, com conexões ainda frágeis com o centro dinâmico da economia nacional. A floresta equatorial, as baixas densidades populacionais e o processo de ocupação re- cente, indutor de grandes índices de violência na luta pela terra, completavam o quadro regional.
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Brasil – complexos regionais
A divisão regional elaborada por Geiger ignorou os limites das unidades da federação. Dessa forma, conseguiu captar importantes diferenciações espa- ciais no interior de algumas delas. O norte de Minas Gerais, por exemplo, foi in- corporado ao complexo nordestino, com quem compartilhava um modelo de apropriação da terra gerador de elevada exclusão social. O oeste do Maranhão e o norte de Mato Grosso e de Goiás (atual Tocantins), foram incorporados ao complexo amazônico. Geiger produziu essa proposta muito antes do desmem- bramento dos Estados do Mato Grosso (ocorrido em 1977) e de Goiás (1988).
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22.3. A difusão do meio técnico-científico e a regionalização
Na obra Brasil: território e sociedade no início do século XXI, Milton Santos e Maria Laura Silveira (2001) apresentam um proposta de regionalização, fundada na análise da difusão diferencial do meio técnico-científico-informacional pelo território brasileiro. De acordo com esses autores, na era da revolução tecno- científica, os territórios são reestruturados pelas infraestruturas que sustentam redes de informação e passam a desempenhar novas funções na economia de fluxos globalizada. O ingresso do Brasil na era da informação impulsiona uma atualização do seu território. (Veja neste link um mapa da divisão regional do período técnico-científico-informacional.)
A Região Concentrada abrange os estados do Sudeste (Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo) e os estados do Sul (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). Ela se destaca pela elevada intensidade de ciência e tec- nologia nas atividades produtivas e financeiras e pela densidade das redes de circulação. São Paulo e Rio de Janeiro, metrópoles nacionais, emergem como centros informacionais que comandam as redes que estruturam o conjunto da economia nacional, bem como suas relações com o resto do mundo.
O Centro-Oeste emerge como área de ocupação periférica, fundada na especialização agropecuária e na modernização subordinada às necessidades das firmas cuja sede está localizada na Região Concentrada. O Estado de Tocan- tins, deslocado para a Região Norte pela Constituição de 1988, reincorpora-se ao Centro-Oeste.
O Nordeste se define pelo peso das estruturas sociais herdadas do pas- sado. Nessa região, a difusão do meio mecanizado se deu de forma pontual e pouco densa, e a instalação das infraestruturas e redes informacionais realiza-se de modo descontínuo. Assim, pontos ou manchas de extrema modernização (tais como as lavouras de soja no cerrado, os projetos de fruticultura irrigada nas margens do São Francisco e o complexo industrial no retro-porto de Suape, em Pernambuco) despontam em um meio geográfico no qual predominam áreas dotadas de baixa produtividade espacial.
A Amazônia caracteriza-se, sobretudo, pela baixa densidade técnica. Os
sistemas informacionais aparecem como formas externas, representadas, por
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exemplo, pelos satélites e radares do Sivam. Os grandes projetos de exploração agropecuária ou mineral aparecem como pontos e manchas isolados, ainda que com grande potencial na geração de impactos ambientais.
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Capítulo 23
A natureza na formação territorial do Brasil
Um início de conversa
Quando os primeiros europeus desembarcaram nas terras que iriam constituir o território brasileiro, encontraram um conjunto de paisagens naturais diferente de tudo o que já havia sido registrado. A tentativa de explicar a exube- rância da natureza tropical começou junto com a colonização, resultando tanto em narrativas fantásticas e mitológicas sobre as plantas e animais quanto nos primeiros esboços de classificação das espécies.
Os esforços dos biólogos e naturalistas pioneiros foi sistematizado na grandiosa obra Flora Brasiliensis, organizada pelos editores Carl Friedrich Phili- pp von Martius, August Wilhelm Eichler e Ignatz Urban, com a participação de especialistas de vários países, e publicada em 15 volumes, entre 1840 e 1906. Nela, estão descritas cerca de 22 mil espécies vegetais, divididas em 5 grandes províncias botânicas, cujos nomes são emprestados da mitologia grega: Naia- des, a ninfa dos rios, por exemplo, foi escolhida para nomear a floresta pluvial amazônica, na qual está localizada a maior bacia hidrográfica do mundo; as florestas costeiras receberam o nome de Dryades, uma das muitas ninfas mito- lógicas dos bosques europeus. (Veja neste link um mapa com a distribuição das provícias florais brasileiras segundo a obra Flora Brasilensis)
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Desde então, milhares de novas espécies foram catalogadas, enquanto biólogos, biogeógrafos e geógrafos criavam novas e sofisticadas propostas de identificação e de delimitação dos domínios de natureza no Brasil. Contudo, grande parte dessa riqueza já se perdeu, pois a devastação andou muito mais rápido que a ciência.
A Mata Atlântica, por exemplo, não resistiu à exploração predatória à qual foi submetida nos últimos quinhentos anos: dela só restam manchas, e a maior parte delas está em Unidades de Conservação. No Cerrado, a devastação come- çou bem mais tarde, mas também já produziu estragos irreversíveis: estima-se que pelo menos 50% do bioma já tenha sucumbido ao avanço da fronteira da agricultura mecanizada. No nordeste do Sul do país, em áreas outrora recober- tas por campos e pampas, aparecem manchas de desertificação e arenização, resultantes de práticas agrícolas e pastoris predatórias. A Amazônia abriga ainda o maior conjunto de florestas equatoriais contíguas do mundo, mas a marcha da devastação prossegue ameaçando os ecossistemas originais.
O geográfo Aziz Ab’Sáber recorria à expressão patrimônio coletivo ao se referir à enorme riqueza das paisagens naturais presentes no território brasileiro: “Na verdade, ela [a paisagem] é uma herança em todo o sentido da palavra: he- rança de processos fisiográficos e biológicos, e patrimônio coletivo dos povos que historicamente as herdaram como território de atuação de suas comunida- des” (Ab’Sáber, 2003, p.9).
Aziz Ab’Sáber faleceu em 16 de março de 2012, aos 87 anos, deixando uma obra fundamental tanto para o conhecimento desse patrimônio como para fundamentar a tarefa, cada vez mais urgente, de considerar suas dinâmicas nos planos de desenvolvimento futuro do país. Vale a pena rever a entrevista por ele concedida ao programa Roda Viva, em 1992.
23.1. Os domínios morfoclimáticos
A dinâmica dos ambientes naturais é resultante da ação combinada de vários fatores. Além disso, eles refletem de múltiplas formas as marcas de seu passado climático. De acordo com evidências paleoclimáticas, a expansão da aridez pela porção centro-oriental da América do Sul ocorreu durante as gran-
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des glaciações que marcaram o Pleistoceno, e teria atingido, inclusive, parte da Amazônia e da fachada costeira. Há indícios de que, nos períodos secos, teria havido retração das florestas e expansão de savanas e cerrados nesta região. Essas evidências sustentam a “teoria dos refúgios”, formulada pelo geógrafo Aziz Ab’Sáber e pelo biólogo Paulo Vanzolini. De acordo com essa teoria, nos períodos secos, as florestas se reduziam e se fragmentavam, tornando a se ex- pandir nos interglaciais, com a volta do calor e da umidade. Assim, a instabilida- de climática do Quaternário teria contribuído tanto para a enorme diversidade biológica quanto para o elevado grau de endemismo das formações florestais brasileiras.
Na década de 1960, Ab’Sáber cunhou o conceito de domínio morfoclimá- tico e fitogeográfico para identificar os domínios naturais brasileiros. Cada domí- nio é um conjunto cuja ordem de grandeza espacial pode variar de centenas de milhares a milhões de quilômetros quadrados, constituído por um complexo relativamente homogêneo de elementos da natureza, tais como feições do re- levo, tipos de solo, cobertura, vegetação, climas e hidrografia que influenciam uns aos outros, gerando equilíbrios ecológicos peculiares.
Seis grandes domínios paisagísticos foram identificados no Brasil: três de- les abrangem áreas originariamente florestadas e os restantes correspondem a áreas com predomínio de espécies vegetais herbáceas e arbustivas. Entre eles, ocorrem faixas de transição, unidades paisagísticas nas quais se mesclam carac- terísticas dos domínios morfoclimáticos vizinhos (tal como ocorre no Pantanal mato-grossense) ou, ainda, áreas onde a instabilidade das condições ecológicas deu origem a uma interação entre os elementos naturais daquela que caracte- riza os domínios circundantes (tais como ocorre na Pré-Amazônia maranhense). (Veja neste link um mapa com os domínios morfoclimáticos do Brasil.)
23.2. Os domínios florestados
O Domínio Amazônico, o Domínio dos “Mares de Morros” Florestados e o Domínio das Araucárias têm em comum o fato de serem (ou terem sido) recobertos por florestas. Entretanto, possuem características naturais bastante diferenciadas.
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O Domínio Amazônico
O Domínio Amazônico corresponde a uma superfície de cerca de 3,5 mi- lhões de km2, englobando a Planície do Rio Amazonas e as depressões e baixos planaltos sobre os quais ela está encaixada. Esse extenso conjunto de terras baixas é dominado pela a Floresta Amazônica, caracterizada sobretudo pela grande biodiversidade: mais de 80 mil espécies vegetais e pelo menos 30 mi- lhões de espécies animais, na maioria insetos, partilham os ecossistemas flo- restais. Porém, nem todo o Domínio Amazônico apresenta cobertura florestal. Nele existem múltiplos enclaves de campos, cerrados e até mesmo de caatinga que, juntos, perfazem cerca de 2% de sua área total.
Os terrenos terciários e quaternários que constituem a complexa mor- fologia regional apresentam importantes variações topográficas. As planícies inundáveis, ao longo dos principais cursos fluviais, são dominadas pelas matas de várzeas (nas áreas de inundação periódica) e pelos igapós (em terrenos per- manentemente alagados). Juntas, essas formações correspondem a cerca de 10% da área total do domínio. As matas de terra firme, por sua vez, espalham-se em mais de 80% da área.
A riqueza dos ecossistemas presentes na Amazônia contrasta com a po- breza de grande parte dos solos da região. Mais de 70% do Domínio Amazôni- co é constituído por solos ácidos e intemperizados, de baixa fertilidade. Apenas algumas planícies aluviais, inundadas pelo Rio Amazonas, apresentam solos ri- cos em nutrientes. Esse contraste revela a fragilidade do ecossistema amazôni- co. A reciclagem dos nutrientes orgânicos e minerais necessários à manutenção dos ecossistemas regionais não é feita pelos solos, mas pela própria floresta. Por essa razão, o desmatamento está trazendo danos irreparáveis ao ecossistema florestal.
O Domínio dos “Mares de Morros” Florestados
Nesse domínio, a ação dos agentes do modelado sobre a estrutura geológica predominantemente cristalina produziu um relevo típico de morros arredondados, em forma de “meias laranjas”. Originalmente, a floresta tropical
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úmida conhecida como Mata Atlântica, uma formação florestal densa e hetero- gênea, recobria cerca de 95% do Domínio dos “Mares de Morros”. A introdução do cultivo da cana-de-açúcar no Nordeste e, mais tarde, do café nas serras do Sudeste, foram responsáveis pelo início da devastação da mata original. Hoje, restam menos de 4% da cobertura vegetal primária, verdadeiras ilhas florestais em alguns trechos montanhosos das escarpas planálticas.
A devastação da Mata Atlântica tem agravado os processos erosivos que atingem a região. Sujeita a chuvas intensas, concentradas nos meses do verão, a área está sujeita a desmoronamentos e transporte de material, especialmente nas escarpas mais íngremes.
O Domínio das Araucárias
O Domínio das Araucárias ocupa os planaltos sedimentares-basálticos da porção oriental da Bacia do Rio Paraná. Originalmente, esse domínio era reves- tido por uma floresta subtropical conhecida como Mata das Araucárias e por manchas de vegetação herbácea e arbustiva. No início do século XX, mais de 80% do território dos estados de Santa Catarina e Paraná ainda estavam reco- bertos pela vegetação nativa. Porém, com a expansão da agricultura, extensas áreas florestais foram queimadas e se transformaram em áreas de cultivo de milho, trigo, videiras e árvores frutíferas. Ao mesmo tempo, ocorria a expansão de diversos núcleos urbanos. Em 1950, mais de metade da vegetação original já estava devastada. Atualmente, restam menos de 20% da vegetação nativa do Domínio das Araucárias.
23.3. Os domínios das formações herbáceas e arbustivas
A paisagem do Domínio do Cerrado, do Domínio da Caatinga e do Do- mínio das Pradarias apresenta espécies vegetais de menor porte, herbáceas e arbustivas.
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O Domínio dos Cerrados
O Domínio dos Cerrados abrange as chapadas e chapadões do Brasil Central. Trata-se de uma área submetida ao clima tropical, marcado pela alter- nância entre verões chuvosos e invernos secos.
O cerrado, vegetação dominante, é composto principalmente por dois estratos, o arbóreo-arbustivo, de caráter lenhoso, e o herbáceo-subarbustivo, formado pelas gramíneas e outras ervas. A combinação desses estratos pro- duz uma cobertura vegetal em forma de um grande mosaico, constituído por trechos de campos limpos (predominância de gramíneas), de campos sujos (gramíneas e arbustos), de campos cerrados (predominância de arbustos, com espécies de 3 a 5 metros) e cerradões (florestas cujas copas se tocam e criam sombra, nas quais o estrato herbáceo-arbustivo é muito pobre e rarefeito). O arbusto típico do cerrado é adaptado à estiagem sazonal, apresentando troncos e galhos retorcidos, cascas grossas e raízes profundas.
A paisagem do Cerrado começou a ser transformada de forma intensa nas décadas de 1950 e 1960, devido à construção de Brasília e à abertura das rodovias de integração nacional. Desde então, as infraestruturas viárias, as técni- cas de correção da acidez dos solos, por meio da adição de calcário, e o desen- volvimento de sementes adequadas aos climas tropicais permitiram a expansão da fronteira agrícola e a implantação de vastas áreas de pastagens e culturas mecanizadas de soja, algodão e milho no domínio. De acordo com o Proje- to de Monitoramento do Desmatamento dos Biomas Brasileiros por Satélite (PMDBBS), do Ministério do Meio Ambiente, metade do bioma Cerrado já foi to- tal ou parcialmente desmatado, e a devastação prossegue em ritmo acelerado.
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Domínios e biomas
Domínios morfoclimáticos e biomas são conceitos distintos. Como vimos, a delimitação dos domínios considera fatores climáticos, morfológicos e relativos à cobertura vegetal. O bioma, por sua vez, corresponde a um “conjunto de vida (vegetal e animal) definida pelo agrupamento de tipos de vegetação contíguos e identificáveis em escala regional, com condições geoclimáticas similares e história compartilhada de mudanças, resultando em uma diversidade biológica própria”, de acordo com Vocabulário básico sobre os recursos naturais e meio ambiente, do IBGE (2004). [Aproveite para fazer o download do conteúdo deste dicionário, que pode ser útil para preparação de aulas sobre a questão dos recursos naturais.]
Entretanto, como não existem dados disponíveis para mensurar o desmatamento do Domínio dos Cerrados, estamos apresentando aqui os dados sobre o bioma Cerrado. Veja no mapa abaixo a distribuição espacial dos biomas brasileiros:
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O Domínio da Caatinga
O Domínio da Caatinga apresenta relevo em forma de colinas com ver- tentes suaves, as colinas sertanejas. A semiaridez é responsável pela baixa de- composição química das rochas, o que resulta em solos pouco profundos inter- calados por terrenos pedregosos e afloramentos rochosos.
A caatinga, vegetação dominante, é uma formação vegetal adaptada ao calor e à aridez. Suas principais espécies possuem folhas pequenas e hastes espinhentas. Nas áreas de maior altitude, que recebem chuvas de relevo, en- contram-se alguns trechos de matas úmidas, conhecidas regionalmente como brejos.
A irregularidade das precipitações e a natureza dos solos e da cobertura vegetal fazem da Caatinga uma área naturalmente suscetível aos processos de desertificação. De acordo com o PMDBBS, cerca 45% dos ecossistemas originais do bioma Caatinga já foram total ou parcialmente desmatados para o plantio de alimentos, para a abertura de pastagens ou para extração de carvão vegetal.
O Domínio das Pradarias
Esse domínio paisagístico abrange a região conhecida como Campanha Gaúcha. Nele, destaca-se a presença de um relevo suavemente ondulado, na forma de colinas conhecidas como “coxilhas”. As colinas são recobertas por ve- getação campestre. Nos topos mais planos, forma-se um tapete herbáceo ralo e pobre em espécies; nas encostas, a vegetação se torna mais densa e diversi- ficada.
A pecuária extensiva é a principal atividade econômica da região. Devido ao pisoteio excessivo do gado, registra-se uma sensível diminuição das espécies forrageiras nativas dos campos gaúchos. O uso recorrente da queimada como técnica de limpeza das pastagens contribui para o empobrecimento dos solos.
A pecuária e a monocultura de trigo e soja, em expansão nas áreas origi-
nalmente recobertas pelos campos, têm provocado a diminuição da fertilidade
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dos solos e o aumento dos processos erosivos. Em algumas áreas, o início de um processo conhecido como “arenização”.5
5 Diferença entre arenização e desertificação:“A desertificação é a diminuição ou destruição
do potencial biológico da terra, que poderá desencadear em definitivo em condições de tipo deserto. No caso da região sudoeste do Rio Grande do Sul, não ocorre processo de desertificação, pois a quantidade de chuva que ocorre na região é considerável, apenas ocorre o fenômeno de arenização, pois devido à perda de cobertura vegetal e de nutrientes em um solo fraco, composto em sua quase totalidade por areia” (Assembleia…, s.d., p.8-9).
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Referências bibliográficas
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Parte VI
Geografia Regional: América Latina e África
rEGina cElia corrEa dE arauJo
Doutora em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (2001).
Atualmente é professora da Facamp.
raul borGEs GuiMarãEs
Doutor em Geografia (Geografia Humana) pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) (2000) e livre-docente pela Faculdade de Saúde Pública da USP (2008). Desenvolveu dois programas de pós-doutorado: em 2001,
no Laboratório de Planejamento Urbano e Cidades Saudáveis da Universidade do Oeste da Inglaterra (UWE), em Bristol (Reino Unido); em 2009, no Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da USP. Atualmente é professor adjunto do Departamento
de Geografia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Presidente Prudente. Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em Geografia da Saúde, atuando também nos seguintes temas: geografia urbana, exclusão social, política
pública e cartografia temática.
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Capítulo 24
As invenções da América
Um início de conversa
América não existia como uma unidade para as civilizações que há milênios habitavam esse continente antes da chegada dos europeus. Assim, a América surgiu na história não como produto da cultura de
seus habitantes originais, mas como um fruto da civilização europeia.
Antes do descobrimento da América, nenhuma das sociedades ameríndias, mesmo as mais complexas como a dos astecas ou incas, conhecia, em toda sua extensão e diversidade, o território e as populações do Novo Mundo. Os ameríndios ignoravam a América […] Indígenas centro-americanos já haviam atravessado o istmo do Panamá e constatado que as águas do Atlântico eram diferentes das do Pacífico. Mas foi somente em 1513, quando Balboa fez a tra- vessia, que o Pacífico foi verdadeiramente “descoberto” e incorporado ao resto do mundo. Nessa mesma ordem de ideias, foram os europeus que “inventaram” a América. (Alencastro, 1991)
I
II
III
IV
V
Início da descrição:
VI
VII
VIII
349
Gravura em preto e branco, de grupo de soldados, armados com lanças, no alto de uma encosta, à beira mar. Ao centro, Vasco Nunes de Balboa está em cima de uma pedra, seguran- do uma bandeira. Com a cabeça levantada para trás,o peito estufado, e o olhar no horizonte, mostra o mar, com o braço esticado à frente do corpo e a mão virada para cima.
Fim da descrição.
Vasco Núnes de Balboa (1475-1519), descobridor do Pacífico. Balboa, conquistador espanhol, avistou o Pací- fico em 1513, o chamou de Mar del Sur e dele tomou posse em nome da Espanha. É considerado, por isso, o
descobridor europeu do Oceano Pacífico.
Durante a colonização, as modalidades divergentes de apropriação do território e de suas riquezas produziram diversas Américas, que apresentavam alguns traços comuns, em que pese a sua grande diversidade interna. América hispânica, por exemplo, era marcada pela servidão ameríndia; a América portu- guesa, organizada em torno da escravidão africana; a América anglo-saxônica, bipartida entre as plantações senhoriais sulistas e a economia familiar nortista.
Na virada do século XVIII para o XIX, as independências e a formação dos Estados Nacionais completaram o processo de fragmentação da América. No Norte, de colonização britânica, surgiram os Estados Unidos e o Canadá.
I II III IV V VI VII VIII 350
A América portuguesa deu origem ao Império brasileiro, que, como vimos na parte V, alicerçou sua unidade na escravidão e na apropriação dos “fundos ter- ritoriais”, enquanto diversas repúblicas nasciam da implosão dos vice-reinos his- pano-americanos e da descolonização caribenha.
Entretanto, a produção simbólica de uma unidade e uma identidade americana sobreviveu ao fracionamento da América em diversos estados inde- pendentes, servindo de inspiração para projetos geopolíticos de diferentes ma- trizes. É o caso, por exemplo, do ideário hispano-americano, associado a Simón Bolívar, e do ideário da América Latina, de inspiração francesa. Ambos serão objeto de análise neste capítulo.
24.1. O ideário hispano-americano
O processo de independência na América hispânica teve início no con- texto da invasão da Espanha pelas tropas francesas comandadas por Napoleão Bonaparte, em 1810. Destacavam-se então as figuras de Simón Bolívar e do gen- eral José de San Martín, os chefes militares da Libertação, fortemente inspirados pelas ideias vindas da França revolucionária e da República independente dos Estados Unidos.
Em 1814, com a derrota de Napoleão e a restauração da Coroa espanhola, tem início uma forte contraofensiva metropolitana. No ano seguinte, enquanto lutava contra as forças recolonizadoras, Bolívar escreveu a célebre “Carta da Jamaica”. Nesse documento, ele preconizava a unidade da América hispâni- ca independente e propunha a organização de uma confederação, formada por três Estados federais, que se estenderia desde o México até a Argentina. O ideário bolivariano de unificação política do conjunto hispano-americano tinha por modelo os Estados Unidos, uma república democrática organizada em bas- es federativas.
Em 1826, o processo de independência já estava praticamente encerra- do, mas sob o comando das oligarquias regionais, desenvolvia-se um proces- so de fragmentação territorial da América hispânica muito diverso do modelo bolivariano. Bolívar, então presidente da Grã-Colômbia, empreendeu mais uma
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tentativa de salvar o projeto de unificação convocando um congresso his- pano-americano, o Congresso do Panamá.
Grã-Colômbia
República fundada em 1819, e que se estendia pelos territórios que hoje pertencem à Venezuela, Colômbia, Equador e Panamá. Veja no mapa.
Início da descrição:
Mapa antigo em papel bege da Grã-Colômbia. No meio do mapa escrito em preto República da Colômbia, contorno em amarelo.Abaixo do mapaao lado direito um símbolo com o dizer “Carta da República Colômbia”. Acima do mapa o “Mar do Caribe Ó de Las Antillas”, ao lado direito o “Oceano Atlântico”. Abaixo do mapa ao lado direito , “Império Del Brasil”, do lado esquerdo “República del Perú”, e subindo do lado esquerdo o “Oceano Pacífico”.
Fim da descrição.
Mapa da Grã-Colômbia
Entretanto, o Congresso do Panamá contou apenas com a participação da Grã-Colômbia, do México, do Peru e da Federação Centro-Americana. A dinâmica da desagregação evoluiu, atingindo, inclusive, a própria Grã-Colôm- bia, dilacerada por conflitos internos e questões fronteiriças.
I II III IV V VI VII VIII 352
O projeto bolivariano de unidade hispano-americana fracassou, mas seus princípios continuaram ecoando em iniciativas que se prolongaram nas déca- das seguintes.
Entre 1830 e 1845, o México convocou sucessivos congressos e conferên- cias continentais, revelando a sua ambição de converter-se em liderança da América hispânica. Contudo, essa ambição foi fortemente abalada quando o país entrou em guerra com os Estados Unidos, em 1846.
Na América do Sul, entre 1848 e 1865, ocorrem três congressos inspirados
na “Carta da Jamaica”.
O Congresso Americano de Lima (1848), convocado pelo Peru, teve a par- ticipação da Colômbia, Equador, Chile e Bolívia. Nele, aprovou-se um “Tratado de confederação” que, apesar do título, limitava-se a estabelecer mecanismos de ajuda mútua em caso de agressão militar por uma potência estrangeira.
O Congresso Continental de Santiago (1856) foi uma reunião de um único dia, assistida apenas pelo Chile, Peru e Equador. Seus participantes redigiram um “Tratado continental”, que fundava uma liga permanente, associada contra eventuais agressões estrangeiras. Entretanto, o tratado nunca foi ratificado se- quer pelos poucos participantes do congresso.
A segunda Conferência de Lima (1864-1865) contou com maior audiên- cia, reunindo Peru, Colômbia, Equador, Chile, Bolívia, Venezuela, Guatemala e El Salvador. Novamente, a prioridade recaiu sobre a defesa comum e, mais uma vez, foram traçados planos para a criação de uma confederação, que não foram levados adiante.
Nas últimas décadas do século XIX, a ascensão dos Estados Unidos à condição de potência mundial representou o golpe definitivo contra as ideias de unificação política da Hispano-América.
24.2. A invenção da América Latina
A América Latina surgiu como representação geopolítica quando os ideais boliviarianos já haviam perdido grande parte de sua força. A identidade latino-americana apareceu, originalmente, como um empreendimento francês
I II III IV V VI VII VIII 353
destinado a estabelecer uma fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, de um lado, e os demais Estados americanos, de outro.
Durante o Império de Napoleão III (1852-1870), a França procurou pro- jetar a sua influência sobre o Novo Mundo. Aproveitando a paralisia temporária da política externa norte-americana provocada pela Guerra Civil (1861-1865), a potência europeia adotou a postura de defesa das Américas contra o expan- sionismo imperial dos Estados Unidos. Sob esse pretexto, em 1861, os franceses chegaram a comandar uma invasão do México e a coroar imperador o nobre austríaco Maximiliano de Habsburgo. Entretando, os mexicanos se aliaram aos Estados Unidos para derrotar os invasores, e Maximiliano acabou sendo fuzila- do.
A ideia de “América Latina” se difundiu nesse contexto, funcionando como alternativa à noção bolivariana de um conjunto hispano-americano. Sua inspiração encontra-se no panlatinismo, que defendia a tese da unidade racial, histórica e cultural dos povos de língua latina, em contraposição aos germâni- cos, anglo-saxões e eslavos. Comentando a representação latino-americana, Alain Rouquié (1991, p.22) destacou seu sentido geopolítico:
Esta etiqueta, amplamente aceita em nossos dias, o que recobre? De onde vem? As evidências do senso comum logo se desvanecem face aos fatos sociais e culturais. São latinas estas Américas negras descritas por Roger Bastide? A so- ciedade da Guatemala, onde 50% da população descendem dos maias e falam línguas indígenas, a das sierras equatorianas, onde domina o quíchua, são lati- nas? O Paraguai guarani, a Patagônia dos fazendeiros galeses, a Santa Catarina brasileira, povoada por alemães, tal como o sul do Chile, são latinos? De fato, referimo-nos à cultura dos conquistadores e dos colonizadores espanhóis e portugueses para designar formações sociais de múltiplos componentes.
Depois do fracasso do México, a influência francesa na América se deslo- cou do plano militar para o plano cultural, sob a forma da adesão das elites dos países da América do Sul à tradição dos autores, das letras e da língua francesa. Paris atraia os filhos dos fazendeiros, os ricos comerciantes, os banqueiros e os advogados sul-americanos. Uma parcela importante dos primeiros professores
I II III IV V VI VII VIII 354
contratados para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, quando foi fundada Universidade de São Paulo, na década de 1930, eram de origem francesa. Na produção geográfica brasileira, em particular, a influência francesa foi profunda e duradoura.
Nesse novo contexto, a América Latina, enquanto representação, sofreu uma reconstrução. Nas décadas de 1920 e 1930, intelectuais do sul e centro americanos passaram a enfatizar o peso das tradições e culturas indígenas. Na Nicarágua, o guerilheiro camponês Augusto César Sandino caracterizava o sub- continente como área indo-latina. No Peru, Haya de la Torre, fundador da Alian- ça Popular Revolucionária Americana (Apra), um partido político nacionalista, preferia a denominação de Indo-América.
Mas a nova representação da América Latina só se consolidou após a Segunda Guerra Mundial, e mais que o indigenismo, refletiu a noção de que a economia mundial capitalista dividia-se, inexoravelmente, num núcleo central desenvolvido e numa periferia subdesenvolvida. A América Latina, por oposição à América Anglo-Saxônica, era o “Terceiro Mundo” americano.
24.3. O “Terceiro Mundo” americano
A expressão “Terceiro Mundo” – que remetia à ideia do Terceiro Estado da Revolução Francesa – foi cunhada por sociólogos e geógrafos impressiona- dos com os contrastes socioeconômicos num mundo aparentemente dividido apenas pela fronteira ideológica da Guerra Fria. Esses intelectuais procuravam enfatizar uma outra fronteira, entre Norte e Sul, que adquiria dimensão política cada vez maior. Ao mesmo tempo, contrapunham os países subdesenvolvidos (o “Terceiro Mundo”) aos países industriais capitalistas (o “Primeiro Mundo”) e aos socialistas (o “Segundo Mundo”).
A produção do “Terceiro Mundo” e suas implicações na nova represen- tação da América Latina deveu-se, em parte, a intelectuais franceses. Os geógra- fos Pierre George e Yves Lacoste se dedicaram à conceituação do subdesenvolvi- mento, indicando os traços econômicos, sociais e demográficos que conferiam uma certa unidade à noção de “Terceiro Mundo”. O sociólogo Jacques Lambert, por sua vez, empenhou-se na caracterização da América Latina, distinguindo-a
I II III IV V VI VII VIII 355
da América Anglo-Saxônica pela colonização de exploração, por suas particu- laridades étnicas e culturais, pelo acelerado crescimento demográfico e pelo peso do latifúndio e da classe dos grandes proprietários fundiários.
Mas o centro intelectual da nova representação foi constituído pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), órgão da ONU criado em 1948 e sediado em Santiago, Chile. A Cepal se firmou como escola de pensa- mento voltada para a formulação de estratégias de desenvolvimento para a América Latina.
O pensamento cepalino identificou na economia mundial capitalista o entrave para o desenvolvimento sul-americano. Os seus principais teóricos – entre os quais se destacavam o argentino Raúl Prebisch e o brasileiro Celso Furtado – elaboraram teorias direcionadas para o desenvolvimento autônomo das economias do subcontinente. A aliança entre os empresários nacionais e o povo, sustentada por investimentos do Estado em setores industriais estratégi- cos, aparecia como desdobramento político das propostas cepalinas.
Nesse novo contexto, o velho ideal de unidade da América ganha um novo sentido. Ao invés da unificação política preconizada por Bolívar ou da identidade cultural dos povos do continente, a Cepal pretendia alcançar a inte- gração econômica sul-americana.
A Iniciativa para Integração da Infraestrutura Sul-Americana (Iirsa), criada em 2000 na Conferência de Brasília, é, em parte, uma herdeira do projeto cepal- ino. A Iirsa tem como objetivo integrar a infraestrutura de transportes, energia e comunicações entre os doze países signitários: Argentina, Brasil, Chile, Colôm- bia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.
I II III IV V VI VII VIII 356
Capítulo 25
A formação dos Estados americanos
Um início de conversa
A ruptura do sistema colonial europeu na América foi produto da crise das monarquias do Velho Mundo. Foi, ao mesmo tempo, um elemento cru- cial para o desenvolvimento dessa crise, que desembocou na dissolução do Absolutismo. O processo de independência das colônias americanas foi uma manifestação da transição da Europa na direção do liberalismo e do parlamen- tarismo.
Essa transição, que se estende de 1775 a 1848, correspondeu à constitui- ção dos estados ocidentais contemporâneos, cujo traço distintivo repousa no conceito da soberania popular, contraposta à soberania real. O ato inicial dessa transição não aconteceu na Europa, mas na América: a Revolução Americana (1775-1783) precedeu e preparou a Revolução Francesa de 1789.
A Revolução Americana foi conduzida pelas elites comerciais e fundiárias das Treze Colônias, unidas na rejeição aos impostos e taxas metropolitanos que sugavam a riqueza colonial. Seus líderes, homens ricos, refinados e cultos, be- beram nas fontes intelectuais do Iluminismo. A igualdade original entre os ho- mens, de Jean-Jacques Rousseau, e a separação dos poderes, de Locke e Mon- tesquieu, orientaram a Declaração de Independência (1776) e a Constituição Norte-Americana (1787). Como vimos na parte V, o processo de Independência
I II III IV V VI VII VIII 357
do Brasil, em contraste com o das colônias espanholas, repudiou o ideário que orientara a Revolução Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789. A declaração de 1822, que se completou com a dissolução da Assembleia Cons- tituinte e a outorga da Constituição de 1824, gerou um império escravista nos trópicos. A monarquia, unitária e hereditária, era o instrumento para a conserva- ção do escravismo e para a construção da unidade territorial.
As guerras entre as monarquias europeias atuaram como fator decisivo para as independências na América. A Guerra dos Sete Anos (1756-1763) envol- veu a França e a Grã-Bretanha na disputa entre os colonos franceses e ingleses da América do Norte pelo domínio sobre as terras situadas entre os Apalaches e o Mississipi. A vitória dos colonos ingleses foi o prelúdio da Revolução Ame- ricana. A revolta colonial originou-se como reação ao aumento de impostos cobrados pela metrópole sob o pretexto de compensação pela ajuda prestada na luta contra os franceses.
No caso da América hispânica, como vimos, os movimentos de indepen- dência ganharam força com a invasão da Espanha pelas tropas francesas de Napoleão, em 1810. Nesse capítulo, vamos enfocar o território colonial hispano-
-americano e a fragmentação territorial que teve lugar após as independências.
25.1. O território colonial hispano-americano
Durante o período colonial, para efeitos administrativos, as possessões es- panholas na América foram divididas em quatro vice-reinados que, por sua vez, foram divididos em audiências. Na circunscrição onde se encontrava a capital dos vice-reinados, o vice-rei, membro da nobreza espanhola, presidia a Audiên- cia. Nas demais, nomeava-se um capitão geral, com amplos poderes civis e mi- litares sobre sua capitania. (Veja neste link um mapa da Organização territorial do Império Colonial Hispano-Americano.)
I II III IV V VI VII VIII 358
O tema deste capítulo foi discutido no Portal do Professor do MEC. Veja neste link a sugestão de trabalho com este e outros mapas.
A Audiência era a principal instância governamental do território hispano-
-americano. Funcionava como uma espécie de tribunal, formado pelo presi- dente e por um conselho de juízes, que representava os interesses da Coroa de Espanha e servia de intermediário entre ela, os funcionários administrativos, os colonizadores espanhóis e as populações autóctones.
A descentralização administrativa teve como consequência a formação de poderosas elites regionais no território hispano-americano. Não por acaso, as sedes de Audiência – São Domingos, México, Guatemala, Lima, Caracas e Santiago do Chile – se transformariam no núcleo das futuras repúblicas inde- pendentes.
As Audiências controlavam um número variável de províncias, sendo estas divididas em municipalidades. No interior das municipalidades, organizava-se a propriedade fundiária.
Para garantir o fluxo de mão de obra para as plantações, foi transplantada para a América uma instituição bastante utilizada na Espanha durante a luta contra os mouros: a encomienda. Através dela, atribuía-se a particulares, em geral descendentes dos conquistadores, comunidades indígenas que passariam a lhes pagar tributos em espécie ou em trabalho. Em troca, o encomendero deveria oferecer aos índios proteção e evangelização, além de arcar com os custos de manutenção da paróquia.
A encomienda funcionou principalmente na área dos antigos impérios centralizados (Vice-Reinos de Nova Espanha e Peru), onde já existia o trabalho em regime de opressão. Nos engenhos tropicais de açúcar de Nova Granada e nas Antilhas, os escravos negros constituíram a maior parte da mão de obra.
Com a descoberta de promissoras minas de prata em Nova Espanha e no Peru, proliferaram novas práticas de recrutamento de mão de obra. Na Nova Espanha, o problema foi resolvido com importação de escravos negros e, prin- cipalmente, com a escravização de índios, mesmo após esta ter sido declarada
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ilegal. No Alto Peru, os espanhóis se utilizaram da mita, herança dos incas, para explorar as gigantescas minas de Potosí.
A mita era um sistema de prestação de serviços pelo qual as aldeias tribu- tárias, espalhadas em cerca de 2 milhões de km2, enviavam anualmente à Potosí um sétimo de seus homens entre 18 e 50 anos. Os mitayos, como eram chama- dos, eram obrigados a se deslocar centenas de quilômetros e, quando chega- vam, enfrentavam as mais terríveis condições de trabalho. Durante os quinze dias de folga anuais aos quais tinham direito, muitos deles eram obrigados a trabalhar para garantir a alimentação e as mantas (agasalhos).
25.2. Independência e os novos estados nacionais
Após as independências, a América hispânica foi fragmentada em diversos Estados, cujos contornos remetem às estruturas administrativas implantadas durante o processo de colonização.
O Vice-Reinado da Nova Espanha, com sede no México, tinha jurisdição indireta sobre as capitanias-gerais da Guatemala e de Cuba. O processo da independência, após uma efêmera tentativa de união do istmo centro- americano ao México, resultou na desagregação política de toda a região e na formação de pequenos estados independentes.
A Guerra da Independência no México desenrolou-se entre 1810 e 1821. Quando a libertação foi concluída, a Guatemala também proclamou sua independência. Em 1822, o coronel mexicano Agustín de Iturbide declarou- se imperador (Agustín I), pretendendo reinar sobre o conjunto dos territórios que haviam pertencido à Nova Espanha. Entretanto, no ano seguinte, em meio a desordens e revoltas, foi instituída a república. A Guatemala separava-se e formava a Confederação Centro-Americana. Em 1838, rompia-se a confederação com as sucessivas proclamações de independência de Honduras, da Nicarágua, de El Salvador e da Costa Rica. Por fim, o México perderia quase metade do seu território como resultado da guerra com os Estados Unidos (1846-1848).
Após o rompimento da confederação, o istmo centro-americano
conheceu guerras sucessivas, envolvendo Guatemala, Honduras, El Salvador e
I II III IV V VI VII VIII 360
Nicarágua. As tentativas intermitentes de formação de uma confederação entre Honduras, El Salvador e Nicarágua também fracassaram.
O Vice-Reinado de Nova Granada, com sede na Colômbia, abrangia tam- bém os atuais Panamá, Venezuela e Equador. A guerra da independência eclo- diu em Caracas, em 1810, alastrando-se para Bogotá. Bolívar chefiou a luta con- tra os espanhóis na Venezuela, que foi vitoriosa em 1817. Dois anos depois, suas tropas assumiam o controle da Colômbia. Feito presidente, Bolívar vai lutar no Equador, onde derrota os espanhóis em 1822.
A Grã-Colômbia independente representou a tentativa de conservar uni- dos os territórios de Nova Granada. Contudo, como vimos, o sonho bolivariano se desfez em 1830, com a retirada da Venezuela e do Equador, que declaram independência.
A dissolução da unidade territorial abriu caminho para as guerras, que pontilharam o século XIX. Em 1828-1829, a Grã-Colômbia derrotou o Peru e, em 1863, a Colômbia empreendeu guerra contra o Equador. Antes, entre 1858 e 1860, Equador e Peru tinham se enfrentado.
Em 1903, a recusa do Senado colombiano em ratificar o Tratado Hay-Her- rán, que concedia aos Estados Unidos o direito de construção de um canal inte- roceânico no istmo panamenho, provoca a secessão do Panamá, que se tornou um país independente graças ao apoio concedido pelos Estados Unidos.
O Canal do Panamá
Theodore Roosevelt iniciou contatos com o governo colombiano para a construção de um canal interoceânico na região do Panamá imediatamente após assumir a presidência dos Estados Unidos, em 1901. Diante da recusa do Senado colombiano, Roosevelt incentivou a revolta dos panamenhos contra a “opressão” da Colômbia, ajudando a criar a República do Panamá, reconhecida em 1903. Por meio do tratado Hay-Bunau-Varilla, assinado em 18 de novembro de 1903, a jovem República concedeu aos Estados Unidos o domínio sobre uma faixa de 16 quilômetros de largura conhecida como Zona do Canal, além do
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direito de intervenção militar no país. Esse tratado só foi anulado em 7 de setembro de 1977, quando os tratados Torrijos-Carter, assinados pelo Panamá e pelos Estados Unidos, garantiam ao Panamá o controle total do Canal do Panamá a partir do dia 31 de dezembro de 1999.
Para saber mais sobre o funcionamento e as obras de ampliação do Canal do Panamá, visite a seção multimídia da Autoridade do Canal do Panamá (Autoridad del Canal de Panamá, ACP), órgão do governo que administra o canal.
O Vice-Reinado do Peru, que abrangia também a Bolívia e a Capitania-
-Geral do Chile, disputou com o México, durante a época colonial, a posição de centro principal da América hispânica.
O general argentino José de San Martín empreendeu a sua campanha libertadora a partir do Chile, que declarou independência em 1818. Dois anos depois, as suas tropas derrotavam os espanhóis no Peru. Em 1824, Sucre, lugar-
-tenente de Bolívar, libertava a Bolívia, enquanto as tropas combinadas de San Martín e Bolívar derrotavam definitivamente as forças espanholas no Peru.
A Bolívia se separou do Peru em 1825. A tentativa de formação de uma confederação entre os dois países durou apenas três anos (1836-1839) e se en- cerrou com a derrota na guerra movida contra o Chile e a Argentina. Bolívia e Peru se enfrentariam dois anos mais tarde. Em 1879-1883, juntos, foram derrota- dos pelo Chile, na Guerra do Pacífico. Em consequência, o Peru perdeu a região de Arica e a Bolívia, a Antofagasta, em Atacama, sua única saída marítima:
A Guerra do Pacífico (1879-1883), junto com a Guerra do Paraguai, foi o mais gra- ve conflito internacional latino-americano do século XIX. As 800 milhas de costa boliviana no litoral do Pacífico estavam constituídas majoritariamente pelo de- serto de Atacama; muito poucos bolivianos o povoavam. Em 1866 os chilenos
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descobriram extensas jazidas de nitrato perto do local onde havia sido cons- truída a antiga cidade de Antofagasta, e em 1874 a Bolívia cedeu ao Chile uma parte do seu território de Atacama. Os chilenos extraíram e exportaram nitratos segundo um acordo com a Bolívia até 1868, ano em que uma disputa degene- rou em enfrentamento militar. O Chile atacou as zonas desérticas bolivianas em 1879 e o Peru entrou na guerra como aliado da Bolívia […] A 4 de abril de 1884 Chile e Bolívia firmaram uma trégua que assegurava um armistício indefinido e a ocupação de Atacama pelo Chile. Em 1888, o Chile renomeou unilateralmente o território de Atacama, que passou a ser a província de Antofagasta (Atkins, 1991, p.397-398; traduzido pelo autor).
A retração territorial boliviana concluiu-se na Guerra do Chaco (1932-1935), contra o Paraguai, precipitada pela descoberta de pequenas jazidas petrolíferas no sopé da Cordilheira andina. No conflito, o país perdeu a maior parte do Cha- co Boreal, um triângulo delimitado pelos rios Pilcomayo, Paraguai e Parapetí.
O Vice-Reinado do Rio da Prata, com sede na Argentina, abrangia o Uru- guai e o Paraguai. As lutas de independência transcorreram paralelamente. Na Argentina, um governo autônomo foi instalado em 1810, mas a proclamação oficial se deu em 1816.
No Uruguai, um levante popular liderado por José Artigas, em 1810, abriu a luta, que seria vitoriosa cinco anos depois. Contudo, em seguida, o país foi ocupado por tropas luso-brasileiras e depois anexado como Província Cispla- tina. Em 1827, forças uruguaias com apoio argentino derrotavam o ocupante. No ano seguinte, sob pressão britânica, a Argentina admitiu a independência uruguaia.
Nas décadas seguintes, a Grã-Bretanha continuaria a manobrar pendu- larmente entre o Brasil e a Argentina a fim de assegurar a soberania uruguaia. Assim, o país tornou-se um Estado-tampão entre as potências regionais, garan- tindo a liberdade britânica de movimentar-se no estuário platino.
A estratégia britânica no Prata fazia parte de um movimento de larga es- cala, voltado para o estabelecimento de uma influência duradoura, econômica e militar, no Atlântico Sul. Foi nesse contexto que se deu a anexação britânica das Ilhas Malvinas, arquipélago situado ao largo da Patagônia, em 1832.
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O Paraguai não aceitou o governo autônomo instalado em Buenos Aires em 1810 e derrotou as tropas argentinas do general Manuel Belgrano, procla- mando a independência em 1811. Mais tarde, sob os governos de Carlos López e Francisco Solano López, o Paraguai começou a desenvolver a indústria e o po- derio militar, ameaçando se tornar uma potência regional. Entre 1864 e 1870, o país viveu uma guerra de extermínio movida pela Tríplice Aliança (Brasil, Argen- tina e Uruguai), que devastou o país e resultou em grandes perdas territoriais.
25.3. A América Central e o Caribe
A América Central continental foi conquistada pelos espanhóis nas pri- meiras décadas do século XVI. Partindo das terras altas do México central, cora- ção do Império Asteca, os conquistadores buscaram os territórios pertencentes aos atuais Guatemala e Honduras. Penetrando em terra firme a partir do istmo panamenho, os espanhóis empreenderam a colonização da vertente pacífica da Nicarágua, onde exploraram a vasta mão de obra indígena. As primeiras cidades coloniais tardaram a aparecer na Costa Rica, então praticamente des- povoada. Granada e Léon, na Nicarágua, foram fundadas em 1524; Cartago, a primeira cidade hispânica da Costa Rica, em 1564.
Em 1543, a criação da Capitania Geral da Guatemala, subordinada ao Vice-
-Reino da Nova Espanha, englobou a totalidade do istmo centro-americano, à exceção do atual território do Panamá, subordinado ao Vice-Reino de Nova Granada. A descoberta de prata nas proximidades de Tegucigalpa (Honduras) transformou a região no mais importante centro minerador da Capitania.
Em 1821, foi proclamada independência das províncias formadoras da Capita- nia Geral da Guatemala e, em 1822, toda a América Central ístmica – à exce- ção de Belize e do Panamá – passou a integrar o território do México recém-
-independente. No ano seguinte, a região desligou-se do México e uniu-se em uma federação que, a partir de 1830, passou a ser presidida pelo herói nacional hondurenho, Francisco Morazán.
A federação centro-americana não iria resistir por muito tempo. Os núcle- os de povoamento, isolados entre si geraram poderosas elites locais frequen- temente arredias ao poder federal. Entre 1838 e 1841, Guatemala, Nicarágua,
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Honduras, Costa Rica e El Salvador desligaram-se da federação, proclamando sua independência e soberania. As oligarquias locais ergueram aparelhos de Estado adaptados às suas próprias necessidades. O mapa político do istmo centro-americano ganhava contornos próximos aos atuais, com apenas uma exceção: o Panamá permaneceu ligado à Grã-Colômbia, e posteriormente, à Colômbia, até 1903.
O Caribe, por sua vez, define-se historicamente como espaço desmem- brado do império colonial espanhol e submetido a grande variedade de sobe- ranias. Com exceção de Cuba e de parte da Ilha Hispaniola (República Domi- nicana), a metrópole espanhola perdeu os seus domínios coloniais caribenhos no final do século XVII. Ingleses, franceses e holandeses repartiram entre si o controle dos territórios caribenhos, que foram também alvo de implantação das sedes do “império pirata” sem pátria. Desse ponto de vista, o Caribe engloba Belize, colonizada pelos ingleses, e também a sub-região guianense, dividida entre os ingleses, franceses e holandeses.
No plano geopolítico, o Caribe conheceu, desde os últimos anos do sé- culo XIX, o poder e a força dos Estados Unidos. O expansionismo naval esta- dunidense, direcionado para o controle das rotas oceânicas, estabeleceu a sua hegemonia regional. Após a abertura do Canal, nos primeiros anos do século XX, Washington instalou uma rede de bases nos arquipélagos antilhanos, estru- turando um escudo de segurança em arco para proteger a implantação militar no Panamá. Durante a Segunda Guerra Mundial, as bases caribenhas foram re- forçadas, servindo de apoio logístico contra as forças navais alemãs na Batalha do Atlântico. A Guerra Fria e, em especial, a Revolução Cubana (1959) conferiram uma importância ainda maior ao aparato estratégico caribenho.
Apenas o Haiti e a República Dominicana acompanharam o processo ge- ral de descolonização da América Latina nas primeiras décadas do século XIX. Cuba se tornou formalmente independente em 1902, e os demais territórios alcançaram a soberania na segunda metade do século XX. Além disso, a Guiana Francesa e várias ilhas caribenhas permanecem politicamente atreladas às ve- lhas metrópoles. Porto Rico é um caso especial, pois um estatuto semicolonial o prende aos Estados Unidos.
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A Guiana: departamento francês
A Guiana Francesa é a única possessão colonial remanescente na América do Sul. Ao contrário dos domínios guianenses britânico e holandês, que alcan- çaram a soberania política nas últimas décadas, a Guiana Francesa permaneceu ligada à antiga metrópole. O seu estatuto político é de DOM (Departamento de Ultramar) e a administração funciona como a das demais regiões do territó- rio francês. A Guiana abriga um centro aeroespacial, instalado na localidade de Kourou, que entrou em atividade em 1968. Por estar situado nas proximidades da linha do Equador, o centro possui condições favoráveis para o lançamento de satélites orbitais.
O centro de Kourou serve de sede dos lançamentos do foguete europeu Ariane. Desde 1989, o programa espacial europeu atingiu um ritmo comercial de lançamentos de satélites, competindo nesse setor com o programa espacial estadunidense.
Centro de Kourou, sede dos lançamentos do foguete europeu Ariane
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Capítulo 26
África: colonização e descolonização
Um início de conversa
Diferente da América, objeto de disputa e cobiça dos europeus desde o século XVI, a África foi colonizada tardiamente. Até o século XIX, a ocupação foi marcada pelo estabelecimento de pontos de apoio da circulação até as Índias e América do Sul, além de alguns entrepostos comerciais que abasteciam a Eu- ropa de matérias-primas trazidas do interior do continente, como a pimenta, o ouro e, principalmente, o marfim.
A viagem de cabotagem ao longo da costa africana apresentava enor- mes dificuldades aos navegadores europeus. Em primeiro lugar, porque o con- tinente africano é formado por um imenso e antigo maciço cristalino, rico em minerais metálicos e pedras preciosas, mas com poucas reentrâncias litorâneas e estreita faixa sedimentar costeira. Daí decorre o fato dos navegadores per- correrem distâncias maiores de mil quilômetros para encontrar bons portos e abrigos adequados para suas embarcações no litoral africano.
O Golfo da Guiné, onde desemboca o Rio Níger, é uma importante ex- ceção a este fato. A partir da faixa costeira atlântica, a foz dos rios Gâmbia e Senegal também serviram de rota para a penetração pelo continente africano. Como as desembocaduras desses rios ficam próximas das ilhas Canárias e Cabo Verde, elas foram utilizadas como base de apoio para as conquistas do interior.
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Por esses caminhos naturais dos rios, os europeus não conseguiram ir muito longe. Próximo à foz, o Rio Níger percorre uma área mais chuvosa da cos- ta Atlântica. Contudo, em seu curso médio, o rio muda bruscamente de rumo, em direção às suas nascentes, também próximas do litoral. Ainda que as con- dições de navegabilidade no Gâmbia e Senegal sejam melhores, são rios de pequena extensão.
A costa africana impõe outras dificuldades para a navegação. Na foz dos principais rios há bancos de areia e recifes, além de grandes extensões de manguezais, que impedem maior aproximação do litoral pelas grandes em- barcações. Violentas tempestades, seguidas de calmarias, também tornavam o percurso incerto e perigoso.
Início da descrição:
Mapa esquemático, em preto e branco, da hidrografia do continente Africano.
Este continente é delimitado pelas águas do Mar Vermelho à nordeste, pelo Oceano Índico à sudeste, pelo Oceano Atlântico à oeste e pelo mar Mediterrâneo ao norte. Internamente, podemos
observar a existência de grandes rios, exceto na região norte, onde se localiza o deserto do Saara, e a sudoeste, onde se encontra o deserto do Kalahary.
Na faixa norte, o único rio que se destaca é o Nilo, e está localizado bem a nordeste.
Do centro para o sul, podemos observar rios extensos, como o Niger, o Ubangui, o Congo, o
Zambeze e o Orange, entre outros.
Destacam-se também os lagos: Rodolfo, Vitória, Tanganica e o Niassa. Fim da descrição.
África – Hidrografia
O Norte da África fez parte da história das culturas que se desenvolve-
ram, na bacia do Mar Mediterrâneo, desde a Antiguidade. A região onde está a
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Tunísia era chamada pelos fenícios de Afryguah (colônia). Os gregos a chama- ram de Aphriké e os romanos de Afrigah. Durante cerca de 1500 anos, desde a fundação das colônias fenícias (século VIII a.C.) até a conquista islâmica (século VII d.C.), a maior parte da população do Norte da África pertencia a essa unida- de cultural mediterrânea. Na medida em que novas terras eram descobertas na parte costeira do Noroeste, a denominação África foi sendo estendida até designar o continente inteiro.
O deserto do Saara, apesar de sua grande extensão (cerca de 7.500.000 km2), nunca foi considerado um obstáculo para os viajantes vindos do Mar Me- diterrâneo. Eram intensos os percursos para o interior do continente, que con- tavam com as caravanas de beduínos, comunidades nômades que detêm até hoje os ricos conhecimentos da interminável sucessão de dunas de areia, vales e depressões dos maciços montanhosos saarianos.
Este intenso intercâmbio através do Saara proporcionou a formação de importantes reinos na região subsaariana, que foram prósperos até o início do século XIX. Dentre esses reinos, destacaram-se o de Mali (localizado, em parte, onde está a atual República de Mali) e o de Gana (localizado na região da atual Mauritânia). O território da atual Nigéria e da Tanzânia foi dominado por mais de oito séculos pelo Reino de Benin. Até hoje, podem ser observadas as marcas desses reinos no território africano, principalmente pela importância de algu- mas grandes cidades formadas naquela época, como Tombuctu e Gao (parte do atual Mali). A grande maioria dos povos distribuídos ao Sul a partir da costa marítima da Nigéria até o litoral da Somália falava línguas aparentadas, denomi- nadas línguas bantas.1
A semelhança de vocabulário e das línguas remanescentes da grande maioria dos povos existentes ao sul do Deserto do Saara não deixam dúvidas da origem étnica regional. Essa população, que fala até hoje as chamadas línguas bantas, deve ter se dispersado a partir das bacias dos rios Congo-Zambéze. For-
1 Para maior aprofundamento do tema, sugerimos a leitura do capítulo 6 do volume 3
da coleção de história da África editado por Mohammed El Fasi para a Unesco em 2010. Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br:80/storage/materiais/0000015106. pdf>. Acesso: 14 ago. 2013. Neste livro, cf. Mapa da expansão banta na África (El Fasi, 2010, p.173).
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mavam, originalmente, grupos especializados na prática agrícola e na pesca, além de uma divisão social dominada pelos dirigentes e curandeiros.
26.1. A partilha da África
A chegada dos colonizadores europeus no interior da África significou uma ruptura dramática do processo de desenvolvimento cultural e econômico dos povos que ali viviam. Os colonizadores portugueses foram os primeiros a construir entrepostos comerciais na costa atlântica da África para deportar escravos para as plantations americanas. Calcula-se que esse lucrativo negócio tenha deslocado 11 milhões de negros até o final do século XVIII, estabelecen- do-se uma importante zona comercial entre a Europa e as colônias europeias na África e nas Américas.
Na segunda metade do século XIX, iniciou-se uma segunda fase da do- minação europeia, que envolveu também a África do Norte. Com o proces- so de industrialização na Europa, era crescente a necessidades de alimentos e matérias-primas. Assim, não bastava apenas o trabalho forçado dos escravos africanos, mas buscava-se também as riquezas naturais do continente.
Aos poucos, o território africano começou a ser partilhado pelas potên- cias coloniais europeias (cf. mapa a seguir). Para isto, inúmeras associações e expedições científicas foram incentivadas pelo Congresso de Viena, realizado em 1815.
Diversos estudos permitiram o mapeamento das informações culturais e dos aspectos físicos do interior do continente africano. Com base nesses conhe- cimentos, o congresso realizado em Berlim (1884-1885) adotou como princípio para a posse de terras na África, a efetiva ocupação do território pelas principais potências coloniais europeias. Somente a Abissínia (atual Etiópia) e a pequena Libéria continuaram independentes.2
Desde a Antiguidade, a Abissínia era uma região estratégica, porque pos- suía um dos portos mais importantes da África e era reconhecida e respeitada pelos egípcios e gregos. As alianças que estabeleceu com os europeus, desde o
2 Sobre a dominação colonial na África, cf. mapa em Boahen (2010, p.50).
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século XV, impediu o avanço do islamismo para o Ocidente. Por sua vez, a vitória na Batalha de Adwa (1896) foi a garantia da manutenção de sua independência, sob o reinado de Menelik II, impedindo a posse do seu território pelos italianos.
A Libéria era a única porção do território africano sob influência dos Esta- dos Unidos. Criada em 1822 pela American Colonization Society, uma organiza- ção privada que financiou a sua colonização por escravos americanos libertos, já se encontrava organizada politicamente como uma República desde 1847, inspirada no ideário da Revolução Americana.
Com exceção desses dois países, o mapa político da África no final do sé- culo XIX representa o esforço diplomático e a intervenção militar das potências coloniais europeias após a Conferência de Berlim.
Dentre os acordos diplomáticos, destaca-se o Tratado Germânico-Britâni- co (1890), que assegurou à Alemanha o acesso ao Rio Zambeze por um corre- dor de 20 milhas inglesas. Outro tratado importante foi o firmado entre a França e o Reino Unido, assinado no mesmo ano, que delimitou zonas de influência para regiões inexploradas e previu comissões binacionais para traçar as frontei- ras coloniais nas diferentes regiões africanas.
Este esforço diplomático não quer dizer que a partilha da África foi es- tabelecida apenas pela via pacífica. Pelo contrário, apesar do tratado entre a França e o Reino Unido, essas potências coloniais se envolveram numa série de conflitos, principalmente na disputa pela posse do Canal de Suez e do Vale do Nilo.
Outra zona de forte tensão entre eles foi na região do Lago Tchad. O domínio francês de vastos territórios da África Ocidental se chocava com os in- teresses imperialistas dos britânicos. A conquista das Repúblicas do Transvaal e Orange na Guerra aos Bôeres (1867-1902) facilitou a expansão britânica. Assim, o Reino Unido tomou posse de territórios franceses que deram origem à Nigéria, Togo e Camarões.
Mas os britânicos não entraram em choque apenas com os franceses. Eles também tiveram conflitos com os portugueses, uma vez que tinham o interes- se pela posse da Rodésia. Para os portugueses, essa região central da África era estratégica, uma vez que garantia a ligação entre Angola, na costa atlântica, e Moçambique, no Índico. Para os britânicos, aquela região era fundamental, já
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que eles pretendiam estabelecer um eixo ferroviário entre o Cairo (Egito) e o Cabo (África do Sul), o que nunca foi executado.
Por fim, a África Oriental foi completamente partilhada entre ingleses, franceses e alemães, apesar de os italianos conseguirem manter o domínio sob a Eritreia.
A Espanha teve uma participação menor na partilha da África, tendo co- lonizado apenas algumas ilhas e pontos dispersos pelo litoral, principalmente na Guiné.
26.2. A descolonização
A colonização europeia da África manteve-se até o final da Segunda Guerra Mundial, quando a Europa perdeu poder político e militar para as novas potências (Estados Unidos e União Soviética).
O enfraquecimento das potências europeias abriu o caminho para a de- flagração do processo de independência das colônias africanas e a formação de novos países. A assimilação de valores impostos pelos colonizadores, que forçaram a mudança das tradições orais dos povos africanos pelo uso da escrita, assim como a expansão da economia de mercado e a difusão do cristianismo, transformou-se na base da reivindicação dos direitos desses povos, o que forta- leceu o movimento do pan-africanismo.
O termo foi utilizado pela primeira vez na Conferência de Londres, con- vocada por afrodescendentes das Antilhas e dos Estados Unidos para protestar contra a ocupação da África pelas potências europeias. No período entre guer- ras, o movimento pan-africano realizou quatro congressos – Paris (1919), Nova Iorque (1927) e dois em Londres (1921 e 1923), com a presença de delegados das colônias africanas francesas e inglesas. A principal reivindicação era a garantia do direito das liberdades civis e da igualdade de condições dos negros, o acesso à terra, a vagas nas escolas e a suspensão de trabalhos forçados, como ainda ocorria nas colônias portuguesas de Angola, São Tomé e Príncipe.
Logo após o término da Segunda Guerra Mundial, o sentimento anticolo- nialista foi rapidamente associado ao pan-africanismo, dando o tom do V Con- gresso, realizado na Inglaterra em 1945. Com o objetivo de unir as lideranças
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africanas de língua inglesa e francesa, esse congresso aprovou a “Declaração aos Povos Colonizados”, que conclui assim: “Nós proclamamos o direito, para to- dos os povos colonizados, de assumirem o seu próprio destino… A longa noite está morta… Povos colonizados e povos oprimidos de todo o mundo, uni-vos!” (apud Castro, 1981, p.76).
No contexto da crise geral que se instalou no sistema colonial, outra cor- rente diferente do pan-africanismo foi importante para aglutinar as forças de oposição aos governos locais – o pan-arabismo. As forças de resistência ao na- zismo do Marrocos, da Líbia, da Tunísia, do Egito e do Sudão exerceram um papel estratégico nas vitórias dos aliados no final da Segunda Guerra e, rapida- mente, juntaram-se à Arábia Saudita, Iêmen, Iraque, Jordânia, Líbano e Síria para reivindicar a independência política.
Desta forma, em grande parte, a independência dos estados africanos foi negociada. Contudo, em alguns casos, o processo de descolonização resultou de violentos conflitos armados, como ocorreu na Argélia, Angola e Moçambi- que (cf. os dois mapas a seguir, sobre a formação dos estados independentes africanos).
Início da descrição:
Mapa da Àfrica em preto.
Está todo dividido em riscos pretos diferenciados para demonstrar ás áreas em : Territórios portugueses (P)
Territórios Britânicos (B) Territórios Belgas Territórios Franceses (F)
Darfur (Estado independente ainda não integrado ao Sudão anglo egípcio) Territórios alemães
Territórios espanhóis (E) Territórios Italianos (I) Estados independentes
Àreas cedidas á Alemhanha pela França em 1911.
No mapa o nome de diversos países como Marrocos, Ilhas Canárias,Etiópia,Angola, Nigéria, Etiópia, etc.
Fim da descrição.
África política (1960) África política (1980)
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Capítulo 27
As fronteiras da África
Um início de conversa
Com exceção dos limites fronteiriços de Marrocos, Argélia e Tunísia, esta- belecidos pelo Império Otomano, as fronteiras africanas tiveram sua origem nos tratados firmados pelas potências coloniais entre 1885 e 1926. Assim, as fron- teiras coloniais precederam a formação dos Estados modernos na África e, em muitas situações, desconsideraram a distribuição das nações preexistentes. Esse fato tem provocado um grande debate relacionado à partilha colonial da África.
Segundo a ideia predominante, tais linhas de fronteira teriam sido de- senhadas segundo os interesses externos, sem levar em consideração as dife- renças e divergências entre grupos étnicos existentes numa mesma unidade territorial. Da mesma forma, em função do conhecimento restrito do interior do continente, o traçado das fronteiras coloniais teria sido definido geometri- camente por meio de coordenadas geográficas (paralelos e meridianos) que uniam alguns pontos mais conhecidos, como o divisor de águas entre bacias hidrográficas, nascentes de rios e picos montanhosos. Esse procedimento seria a razão principal da artificialidade das fronteiras, as quais pouco representariam a realidade social e cultural do continente africano.
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O estudo mais aprofundado dos países africanos revela que essas ideias dominantes não encontram respaldo na realidade e refletem muito mais uma visão estereotipada das questões fronteiriças africanas.
Toda fronteira é, ao mesmo tempo, um limite que separa e uma zona de contato, que propicia o intercâmbio e as trocas. O grau de porosidade das fron- teiras depende das políticas de controle e vigilância dos países, podendo gerar diversos tipos de atividades legais e ilícitas.
No caso africano, dos 80 mil km de fronteiras entre os países, apenas 40%
foram demarcadas no terreno. Em vista da extensão dos desertos e dos limites territoriais de difícil acesso, as fronteiras são muito mais que faixas privilegiadas de contato e de atividades informais entre países vizinhos. Esses intercâmbios transfronteiriços são ainda mais intensos quando mantidos por meio de redes étnicas que já existiam anteriormente. Assim, os limites fronteiriços herdados do período colonial não representavam uma novidade para os povos que ali vi- viam, pois a África pré-colonial já era dividida entre entidades políticas de tama- nhos variados que agrupavam, frequentemente, grupos étnicos e linguísticos diferentes. Mesmo os grandes estados e impérios pré-coloniais nunca foram homogêneos do ponto de vista cultural: estados comunitários como Songhai, na África Ocidental, integravam diferentes tradições e representavam um siste- ma político que permitia a convivência, conflituosa ou não, de diversos grupos étnicos (cf. o box a seguir).
Por sua vez, em algumas regiões africanas, a área de extensão das nações são maiores que os territórios dos estados nacionais, como é o caso dos ioru- bás. Identificados por traços linguísticos comuns, a nação iorubá se estende do oeste da Nigéria até Benin. Esse exemplo mostra que na África pré-colonial já existia a noção de fronteira e que esta poderia representar os limites das terras das famílias, chefias ou reinos.
Enfim, os estudos fronteiriços africanos são uma grande oportunidade para o aprendizado da Geografia. Em primeiro lugar, é preciso tomar cuidado na análise das diferentes realidades regionais, sob o risco de reforçarmos uma visão preconceituosa a respeito de outras culturas menos conhecidas. As de- limitações fronteiriças africanas têm sido muito mais estáveis no decorrer da história do que o mapa político de outros continentes, como o europeu.
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Outro grande mito que precisa ser questionado é o da artificialidade das fronteiras africanas. Necessariamente, as fronteiras entre os países é sempre uma construção social e, no caso da África, não poderia ser diferente.
A civilização Songhai
“O Império Songhai foi profundamente original quanto à organização política e administrativa. A forte estruturação do poder, a centralização sistemática e o absolutismo real são características que atribuíram uma coloração moderna à monarquia de Gao, distinguindo-a do sistema tradicional de federação de reinos, vigente nos impérios de Gana e do Mali […]
Os Songhai adotaram dois sistemas de governo, de acordo com o território em questão. Um primeiro grupo compreendia as províncias conquistadas, governadas por chefes nomeados e demissíveis a qualquer momento pelo askiya. Estes governadores, hierarquizados, exerciam o poder soberano – exceto a justiça, confiada aos cádis. […] O império era dividido em duas grandes províncias: Kurmina, a oeste, e Dendi, a sudeste. A função do kurmina fari ou kanfari era exercida, com raras exceções, por príncipes de sangue, muito frequentemente pelo próprio príncipe herdeiro.
As cidades de comércio, como Tombuctu, Djenné, Teghazza e Walata, gozavam de certa autonomia sob o governo de seus koy ou mondzo. As atividades comerciais e artesanais e a grande população requeriam a presença de muitos funcionários administrativos. Assim, em Tombuctu, além do cádi encarregado da justiça e do Tombuctu koy, chefe da cidade, havia extenso quadro de funcionários: o asara mondzo, espécie de comissário responsável pelo policiamento dos mercados e pela execução das sentenças do cádi, os inspetores de pesos e medidas, os coletores de impostos dos mercados, os inspetores alfandegários de Kabara, os mestres de diversas profissões, os chefes das diversas subdivisões
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de etnias – agrupadas por bairros – e os comissários das cabanas dos subúrbios. Este pessoal formava o núcleo de uma administração eficaz nas grandes cidades […].
A administração indireta concernia aos países vassalos ou tributários. O chefe do território era nomeado segundo os costumes locais e reconhecido pelo askiya. Disputas entre os pretendentes ou rebeliões contra a autoridade imperial, no entanto, aconteciam. Neste caso, o askiya intervinha e impunha seu candidato. […] Os Estados haussa – Kano e Katsina –, o reino de Agadez, o Império do Mali, a federação tuaregue Kel Antessar (os Andassen de al-Sa‘dĪ’), a de “Magcharen” (tuaregues de origem Sanhadja da região de Tombuctu-Walata) agrupavam-se nessa categoria, sendo mais ou menos tributários, de acordo com a orientação política de Gao. Seus soberanos deviam pagar tributos periódicos, enviar contingentes de guerreiros quando o imperador pedisse e manter boas relações com Gao através de visitas, presentes e casamentos.
Com estes vários sistemas de administração – o central, o provincial e o indireto –, o Império de Gao conseguiu organizar as populações do Sudão nigeriano, manter pessoas e bens em segurança e alcançar grande desenvolvimento econômico” (Niane, 2010, p.218-224).
Início da descrição:
Mapa do Império Shongai em verde englobando Koumbi Saleh, Tombuctú, Jenne e Rio Níger.Estes locais estão marcados em pontinhos vermelho acompanhando um riso azul de um outro mapa maior ao fundo.
Fim da descrição.
Império Songhai, século XVI.
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27.1. Conflitos fronteiriços
A formação dos atuais países africanos manteve praticamente inalterada a divisão política do período colonial. Isso não quer dizer que a manutenção das fronteiras coloniais tenha sido um processo automático e sem contestação. Particularmente, o período entre 1956 e 1963 foi marcado por diferentes tipos de resistência à manutenção da divisão política colonial.
Foi nesse contexto que surgiu, em 1963, a Organização da Unidade Afri- cana (OUA), antecessora da atual União Africana (UA). Seus países-membros adotaram o princípio do direito internacional da intangibilidade das fronteiras co- loniais, segundo o qual seus signatários poderiam reivindicar a recuperação de territórios perdidos em caso de guerras ou de contestações dos vizinhos. Essa política foi fundamental para garantir o sucesso do processo de independência, que ganhou novo impulso na década de 1960. Por outro lado, reforçou ainda mais a tendência de manter os limites correspondentes dos antigos territórios coloniais.
As constituições nacionais dos jovens países foram baseadas nos modelos europeus e, na maioria dos casos, redigidas por constitucionalistas das antigas metrópoles. Aos poucos, a realidade do exercício do poder, baseado em alianças dos clãs e nas redes de solidariedade étnicas, vem promovendo uma africanização do Estado. Vários países, por exemplo, procederam a uma descolonização toponímica, abandonando os nomes impostos pelos europeus, seja fortalecendo a denominação do país na língua local ou evocando feitos históricos do processo de independência. Assim, desde 1957, a Costa do Ouro passou a se chamar Ghana, por referência ao antigo Império Oeste-Africano (que existiu naquele território entre os séculos VIII e XI). A República do Congo, formada em 1960 a partir do antigo Congo Belga, rebatizou a capital Léopoldville para Kinshasa e, em 1971, mudou o nome do país para Zaire (“o rio”, na língua kikongi). Da mesma forma, Dahomey passou a se chamar Benin, em 1975; a Guiné Portuguesa mudou para Guiné-Bissau, em 1976; Haute-volta mudou para Burkina Faso (“país dos homens íntegros”), em 1984; dentre outros exemplos.
A escolha da língua oficial foi uma decisão mais complicada, uma vez que
os países africanos são compostos por numerosas comunidades linguísticas. A
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solução predominante foi manter a língua das antigas metrópoles: o português, o francês, o inglês. Em alguns países foi adotado o sistema bilíngue (em Cama- rões, por exemplo, o inglês e o francês; em Madagascar, o malgaxe e o francês). No Norte da África, o árabe recuperou a primazia perdida durante a colonização europeia. (Veja neste link um mapa das línguas oficiais na África.)
Levando em consideração a diversidade étnica e regional dos países afri- canos, uma das soluções encontradas para a gestão política do território na- cional tem sido o federalismo, sistema político no qual as unidades federadas mantém autonomia entre si, como ocorreu na Nigéria. Constituída em 1946 pela junção de três regiões colonizadas pelos britânicos, seu território tem sido sucessivamente subdividido para atender aos interesses étnicos e religiosos lo- cais, garantindo a repartição da renda do petróleo entre diferentes grupos de interesse. Atualmente, a Nigéria possui 36 unidades federadas, cada qual com relativa autonomia política.
Considerando essas experiências políticas recentes dos Estados nacionais africanos, não existe fundamento para afirmar que as línguas, as fronteiras her- dadas das colônias ou as etnias seriam a principal base dos conflitos fronteiriços no continente. Os conflitos armados entre grupos rebeldes ou entre forças go- vernamentais e grupos rebeldes são abundantes na África, mas a maioria deles é resultado da violência política cujo objeto de disputa é o poder do Estado, seja pela ocorrência de eleições fraudulentas, pela afirmação do poder através da força e coerção ou por barreiras que impedem a alternância do poder.
Ainda que as contestações da divisão territorial africana sejam pouco nu- merosas, cabe destacar a mudança do mapa político do continente com o pro- cesso de independência da Eritreia, que se separou da Etiópia em 1993.
Em 1962, a Eritreia, antiga colônia italiana, deixou de ser tutelada pelo Reino Unido e foi anexada pela Etiópia. Desde então, o governo etíope nunca conseguiu eliminar o movimento separatista. Em 1991, um referendo popular decidiu, com ampla maioria, pela separação pacífica dos dois países, ainda que o acordo entre as partes não tenha conseguido estabelecer a fronteira comum.
Apesar da independência da Eritreia ter cumprido o cronograma, as diver- gências fronteiriças se acentuaram até a declaração de guerra da Etiópia, após a ocupação da região de Badme pelas tropas da Eritreia, em 1998 (Marin, 2000).
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Os dois países chegaram a um acordo de paz em dezembro de 2002, depois da perda de mais de 200 mil vidas. A situação ainda está indefinida, uma vez que a arbitragem internacional sob a coordenação da ONU decidiu que a cidade de Badme pertence à Eritreia, o que encontra resistência por parte da Etiópia, que ainda ocupa a faixa de fronteira em litígio.
Outra questão aberta no mapa político da África é a do Saara Ocidental, território em disputa pelo Marrocos e uma República saariana apoiada pela Ar- gélia. Com exceção desse caso e da “Guerra das Pedras”, como ficou conhecido o conflito entre a Etiópia e a Eritreia, as fronteiras não representam a causa prin- cipal dos conflitos armados no continente africano.
27.2. O Sudão do Sul
O princípio da intangibilidade das fronteiras definidas pela colonização pautou o ciclo de independência dos países africanos, iniciado nos anos 1950 e finalizado em meados de 1970. Apesar da retórica da unidade africana, a OUA temia a explosão de conflitos violentos, que de fato ocorreram nas poucas oca- siões em que grupos separatistas tentaram quebrar esse princípio: foi o que ocorreu em 1967, quando a tentativa frustrada de criação da República de Biafra, no oeste da Nigéria, resultou na morte de mais de um milhão de pessoas.
Por isso mesmo, a vitória esmagadora dos separatistas no referendo rea- lizado na porção meridional do Sudão em janeiro de 2011 pode ser considera- da uma guinada fundamental no processo de formação territorial dos Estados africanos. Cerca de 99% da população se manifestou a favor da independência, mesmo sem nunca ter sido objeto de uma delimitação colonial. O sucesso da criação do Sudão do Sul pode pavimentar o caminho de movimentos separatis- tas organizados em toda a África Subsaariana, abrindo um novo ciclo de criação de Estados e redesenhando as fronteiras do continente.
O Sudão, um dos países mais pobres do mundo, tornou-se independen- te do Império Britânico em 1956, já como um país dividido do ponto de vista étnico e cultural. No Norte do país, onde está a capital, Cartum, a população é majoritariamente árabe e muçulmana; grande parte da população do Sul per-
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maneceu fiel às religiões animistas ancestrais ou optou pela conversão ao cris- tianismo durante o período colonial.
A história recente do Sudão é atravessada por tensões e conflitos entre o Norte e o Sul, manifestados em duas guerras civis. A primeira, iniciada com a independência, durou até 1972, quando o Sul conquistou uma ampla autono- mia em relação à elite árabe do norte, que comandava o país. No início da dé- cada de 1980, porém, a companhia estadunidense Chevron descobriu imensas reservas de petróleo na porção meridional, onde se localiza cerca de 75% das reservas sudanesas. Nesse contexto, o governo de Cartum tratou de revogar a autonomia, fechando o parlamento de Juba. A revolta do Sul explodiu em 1983, encabeçada pelo recém-surgido Exército Popular de Libertação do Sudão (EPLS). O novo ciclo de guerra civil deixou um saldo de pelo menos 2 milhões de mortos e 4 milhões de refugiados. O acordo de paz assinado em 2005, que encerrou essa segunda fase do conflito, garantiu um elevado grau de autono- mia para o Sul, além de estabelecer a data para o referendo que teve lugar no início de 2011.
A opção pela independência, manifestada pela esmagadora maioria da população do Sul, foi acatada pelas autoridades de Cartum. No entanto, a fu- tura fronteira entre o Norte e o Sul ainda não foi definitivamente traçada e as áreas fronteiriças reivindicadas por ambas as partes são ricas em petróleo, o que funciona como fator de instabilidade, visto que o Sul dispõe da maior parte das reservas, mas depende do norte para exportar o petróleo, já que não possui saídas marítimas.
Além disso, não está ainda claro como vai funcionar o regime de cidada- nia, especialmente para as populações que praticam a transumância, circulando do Norte para o Sul de acordo com a alternância de estações secas e chuvosas. Sugerimos ao leitor que esse processo seja acompanhado e discutido, inclusive em seus desdobramentos para além das fronteiras sudanesas.3
3 Leia a matéria publicada no jornal o Estado de S. Paulo, em 22 de maio de 2011, a respeito
da continuidade do conflito entre Norte e Sul no Sudão.
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Capítulo 28
América e África no mundo globalizado
Um início de conversa
As fronteiras políticas que delimitam o território dos Estados, tanto na América Latina quanto na África, guardam profundas relações com a organiza- ção administrativa e política dos territórios coloniais. No caso americano, esse processo teve início nos séculos XVI e XVII. No caso africano, o imperialismo europeu atuou sobretudo no século XIX.
Também no plano econômico, é possível encontrar similitudes entre América Latina e África, cujas origens remontam ao passado colonial. A riqueza da América foi, em grande parte, transferida para a Europa, na forma de ouro, prata e produtos agrícolas tropicais. Mais tarde, as potências europeias, em plena Revolução Industrial, passavam a enxergar a África como fonte de matérias-pri- mas minerais e vegetais e potencial mercado consumidor.
Ao longo do século XX, porém, a América Latina conheceu um processo seletivo de industrialização. A dificuldade de importação de produtos manufa- turados no contexto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e a crise econômi- ca que afetou os países envolvidos na guerra, assim como a recessão econômi- ca mundial na década de 1930, favoreceram um primeiro surto industrial em países latino-americanos, em especial Brasil, Argentina e México. Nas décadas
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de 1950 e 1960, os parques industriais situados nesses países passaram a incluir também filiais de empresas transnacionais. Desde então, esses países passaram a abastecer o mercado mundial também com produtos manufaturados, princi- palmente de bens de consumo duráveis e não duráveis.
Nos últimos anos, porém, no contexto da globalização, vem ocorrendo um aumento relativo dos produtos primários (commodities) na pauta de expor- tação dos países industrializados da América Latina, em especial o Brasil. De acordo com dados do Instituto de Pesquisas Econômicas (Ipea), a participação relativa das commodities nas exportações brasileiras aumentou de 40% na dé- cada de 1990 para 51% entre 2007 e 2010. Enquanto isso, o país vem perden- do competitividade no comércio de produtos mais intensivos em tecnologia. Esse processo vem acarretando o sucateamento de segmentos industriais que se desenvolveram nas fases anteriores e, assim, reforçando o padrão periférico da América Latina nos fluxos da economia global.4
No continente africano, por seu turno, o processo de industrialização foi incipiente. Com exceção da África do Sul, que conta com um parque industrial relativamente diversificado, a indústria africana se concentra em setores pou- co intensivos em tecnologias, e é pouco competitiva no mercado mundial. No conjunto, os países africanos geram apenas 2,9% do PIB mundial.
Um estudo recente da União Europeia (2009) sobre a África considera que 28 países situados na África Subsaariana estão em situação de fragilidade econômica (veja a lista de países no quadro a seguir), devido a graves proble- mas sociais, econômicos e de infraestrutura.
4 Leia a matéria sobre as commodities na exportação brasileira, publicada on-line no jornal
Folha de S.Paulo (Commodities…, 2011).
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Países da África Subsaariana em situação de fragilidade
Angola Guiné Equatorial Nigéria
Burundi Eritreia Ruanda
Camarões Etiópia São Tomé e Príncipe
Centro-Africana (República) Gâmbia Serra Leoa
Chade Guiné Somália
Comores Guiné-Bissau Sudão
Congo (República Democrática do) Quénia Togo
Congo República do Libéria Uganda
Costa do Marfim Mauritânia Zimbabué
Jibuti
Níger
Fonte: União Europeia (2009, p.1)
O estudo revela que os produtos primários representaram 80% das ex-
portações desse conjunto de países, dos quais 30% correspondem às vendas externas de combustíveis, em especial petróleo. Além disso, analisa as deficiên- cias estruturais nos setores de transporte e de distribuição de energia, que fun- cionam como um gargalo para o desenvolvimento econômico desses países.
De acordo com o L’Atlas 2010, publicado pelo Le Monde Diplomatique, os investimentos estrangeiros na África Subsaariana saltaram de 1,2 bilhões de dó- lares no período entre 2002 e 2004 para cerca de 38 bilhões de dólares em 2007, sendo a maior parte feita por países asiáticos, em especial China, Hong Kong, Coreia do Sul, Índia e Malásia. Entretanto, a maior parte destes investimentos é canalizada para indústrias extrativas, em especial a exploração de petróleo e de minérios, e se concentra em um número limitado de países ricos em recursos naturais, em especial Nigéria, Angola, Moçambique, Sudão, Guiné Equatorial, Congo-Brazzavile e República Democrática do Congo. O mapa a seguir, produ- zido pela equipe do Cartographier le présent com o sugestivo título de “Territó- rios ‘úteis’ da África Subsaariana”, mostra e localiza a exploração dos principais recursos minerais e energéticos na África Subsaariana, situados nos países que recebem a maior parte dos investimentos estrangeiros diretos.
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Territórios “úteis” da África Subsaariana
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Tanto no caso da América Latina como na África, as inciativas regionais de integração econômica podem contribuir de muitas formas para o desenvolvi- mento econômico e social dos países que delas participam e para o rompimen- to desse padrão de subordinação.
28.1. As organizações regionais sul-americanas
As primeiras tentativas de integração econômica da América Latina surgi- ram fortemente influenciadas pelas teorias elaboradas pela Comissão Econômi- ca para a América Latina (Cepal), órgão da ONU criado em 1948 (sobre a Cepal, ver capítulo 24). De acordo com essas teorias, a integração regional poderia pavimentar o caminho do desenvolvimento e da industrialização, na medida em que proporcionaria ganhos de escalas e ampliação dos mercados para as economias latino-americanas.
Em 1960, com a assinatura do Tratado de Montevidéu, surgia a Associa- ção Latino-Americana de Livre-Comércio (Alalc), prevendo a constituição de uma zona de livre-comércio, que prepararia o estabelecimento gradual de um mercado comum. A Alalc contou, inicialmente, com sete integrantes: Argentina, Brasil, Chile, Peru, Paraguai, México e Uruguai. Mais tarde, recebeu a adesão de Colômbia, Equador, Venezuela e Bolívia, envolvendo quase toda a América do Sul, além do México.
No mesmo período, nasceram o Mercado Comum Centro-Americano (MCCA), e o Pacto Andino. O MCCA, surgido no Tratado Geral de Integração Econômica da América Central, assinado em 1960, é composto por Costa Rica, Guatemala, El Salvador, Honduras e Nicarágua, e foi criado com o propósito de integrar as economias e incentivar os investimentos industriais nos países do istmo centro-americano. O Pacto Andino nasceu do Acordo de Cartagena, assinado em 1969 por Colômbia, Peru, Venezuela, Equador, Bolívia e Chile, com vistas à adoção de uma tarifa externa única e de criar programas conjuntos para o desenvolvimento industrial.
Essas primeiras tentativas se chocaram com as estratégias de desenvol- vimento dos países latino-americanos, alicerçadas na proteção dos mercados internos. Apesar da retórica integracionista, nem a Alalc nem as iniciativas sub-
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-regionais conseguiram fomentar de fato o comércio entre os países membros ou minimizar a forte dependência destes para com os parceiros comerciais ex- ternos.
Com a assinatura do Tratado de Montevidéu, de 1980, a Alalc foi subs- tituída pela Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Integração (Aladi). O segundo Tratado de Montevidéu se organizou- em torno de metas menos pretensiosas e mais flexíveis, concedendo autonomia de decisões aos Estados-membros e estimulando a concretização de acordos comerciais entre seus integrantes.
No quadro fornecido pela Aladi, as iniciativas sub-regionais de integração econômica foram remodeladas e ampliadas. O Pacto Andino, que em 1996 foi rebatizado como Comunidade Andina de Nações (CAN), atualmente abriga a Bolívia, Colômbia, Equador e o Peru (o Chile deixou o bloco em 1977 e a Vene- zuela, em 2006). O MCCA, criado junto com a Alalc, recuperou dinamismo na década de 1990 com a relativa estabilização política dos pequenos do istmo. Em 1991, através do Tratado de Assunção, surgiu o Mercado Comum do Sul (Mercosul), o projeto de união aduaneira do Cone Sul. O Mercosul faz parte da Aladi como Acordo de Complementação Econômica (ACE).
O Mercosul nasceu da aproximação geopolítica entre o Brasil e a Argen- tina, que ocorreu no contexto da redemocratização (em meados da década de 1980, ambos transitaram de ditaduras militares para regimes civis baseados em eleições livres) e dos acordos prévios de integração econômica bilateral firma- dos entre os dois países. O passo inicial para a aproximação foi o encontro dos presidentes José Sarney e Raul Alfonsín, em novembro de 1985, em Foz do Igua- çu. A Ata de Iguaçu, uma declaração de intenções de política externa, preparou os empreendimentos práticos de cooperação. Em julho de 1986 era assinado o Programa de Integração e Cooperação Econômica Brasil-Argentina (Pice). O Mercosul foi criado em março de 1991, pelo Tratado de Assunção, contando com a adesão do Uruguai e do Paraguai ao projeto integracionista.
Em sua formulação original, o Tratado de Assunção estabelecia o princí- pio do regionalismo aberto, em cujo horizonte estava a incorporação de novos membros. Um primeiro passo nessa direção foram os acordos de associação com o Chile e a Bolívia assinados em 1996, prevendo a formação de zonas de
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livre-comércio entre esses países e o Mercosul. Um segundo passo, ainda não concluído, foi a adesão da Venezuela ao bloco: os congressos do Brasil, da Ar- gentina e do Uruguai já se posicionaram a favor da entrada desse novo membro no bloco, mas a inclusão do país ainda depende da aprovação do parlamento paraguaio.
Na década de 2000, surgiram duas novas iniciativas de integração no con- tinente. A Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), fortemente inspirada pelo ideário de Simón Bolívar de uma união latino-americana, foi instituída em dezembro de 2004, através de um acordo entre Venezuela e Cuba. Mais tarde, em abril de 2006, a Bolívia ingressou no grupo. Atualmente, a Alba é composta por oito países: Venezuela, Cuba, Bolívia, Nicarágua, Dominica, Equador, Antígua e Barbuda, São Vicente e Granadinas. Em abril de 2007, foi criada a União de Nações Sul-Americanas (Unasul). A Unasul, que pretende unificar duas organiza- ções sub-regionais já existentes (Mercosul e CAN), é integrada por Brasil, Argen- tina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela. O México e o Panamá participam na condição de observadores.
O processo de integração regional das Américas está sintetizado no mapa a seguir. Observe que, apesar de permanecerem membros de organizações re- gionais latino-americanas, Peru e Chile mantêm acordos preferenciais de co- mércio com os Estados Unidos. Além disso, o mapa também destaca o Tratado de Livre-Comércio entre Estados Unidos, América Central e República Domini- cana (Cafta), aprovado em 2005 pelo parlamento estadunidense, do qual fazem parte Costa Rica, El Salvador, Estados Unidos, Guatemala, Honduras, Nicarágua e República Dominicana. (Veja neste link um mapa com os principais processos de integração regional nas Américas, até janeiro de 2009.)
28.2. As Organizações Regionais Africanas
A Organização de Unidade Africana (OUA) foi criada por 32 países inde- pendentes em 1963, em Addis Abeba, na Etiópia, como instituição de cooper- ação e segurança continental, fundada no príncipio do pan-africanismo, ou seja, da unidade de todos povos africanos. Entretanto, como vimos no capítulo 27, apesar da retórica da unidade africana, a OUA adotou o princípio da intangibi-
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lidade das fronteiras políticas coloniais do continente, como forma de evitar as guerras e disputas territoriais. Entre os seus objetivos estava o apoio aos movi- mentos de independência ainda em curso e a promoção do desenvolvimento econômico e social do continente.
A União Africana (UA), sucessora da OUA, foi instituída em julho de 2001 não apenas para acelerar o processo de integração regional, mas também para atuar em caso de conflitos e buscar a paz no continente: tropas da UA já atu- aram, por exemplo, nos conflitos de Burundi, em 2003, e Darfur, no oeste do Sudão, desde 2004.
Todos os Estados africanos, à exceção do Marrocos, são membros da UA. O Parlamento Africano, que começou a funcionar em 2004 na África do Sul, está vinculado à organização, que tem entre os seus objetivos a criação de um banco central de desenvolvimento.
Além da UA, os países africanos também se associaram em organizações
regionais (veja o mapa a seguir). Dentre elas destacam-se:5
Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao), fundada em 1975 com o objetivo de promover a integração econômi- ca, social e cultural dos 15 países membros. Em 1990, sob a liderança da Nigéria, dotou-se de um braço armado para missões de paz regionais (Ecomog).
Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (Sadc, fundada em 1980 como Sadcc): engloba 14 países do sul da África, e tem como principais objetivos a integração regional, promoção do crescimento eco- nômico e a erradicação da pobreza.
União Econômica Monetária do Oeste Africano (Uemoa): criada em janeiro de 1994, através de um tratado assinado em Dakar. É um bloco regional formado por oito países da África Ocidental, que busca estabe-
5 Veja neste link um mapa das instituições regionais na África.
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lecer políticas de desenvolvimento e fortalecer a economia dos países membros.
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Parte VII
Ordem geopolítica mundial: ato- res e escalas de ação
Eduardo auGusto ribEiro WErnEck
Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (2011). Atualmente é pesquisador no Laboratório de Biogeografia e Geografia da Saúde da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Tem experiência na área de Geografia, atuando principalmente
nos seguintes temas: Geografia da Saúde, Políticas Públicas de Saúde, Cartografia,
Geoprocessamento e Biogeografia.
rEGina cElia corrEa dE arauJo
Doutora em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (2001).
Atualmente é professora da Facamp.
raul borGEs GuiMarãEs
Doutor em Geografia (Geografia Humana) pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) (2000) e livre-docente pela Faculdade de Saúde Pública da USP (2008). Desenvolveu dois programas de pós-doutorado: em 2001,
no Laboratório de Planejamento Urbano e Cidades Saudáveis da Universidade do Oeste da Inglaterra (UWE), em Bristol (Reino Unido); em 2009, no Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da USP. Atualmente é professor adjunto do Departamento
de Geografia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Presidente Prudente. Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em Geografia da Saúde, atuando também nos seguintes temas: geografia urbana, exclusão social, política
pública e cartografia temática.
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Capítulo 29
Estado, Estado territorial e Estado Nacional
Um início de conversa
A formação dos Estados Nacionais, como são atualmente conhecidos, tem sua gênese nos Estados Territoriais, organizados a partir do fortalecimento do poder soberano dos reis, com a ascensão do Absolutismo na Europa Oci- dental, e sua dominação sobre os súditos. Se o poder tinha como fonte a rique- za patrimonial (terras, barras de ouro, especiarias e etc.) das famílias reais (poder dinástico centrado na pessoa do rei), progressivamente, os Estados Territoriais permitiram a associação entre o poder e o espaço.
A Revolução Francesa representou um movimento de fortalecimento dessa associação, uma vez que permitiu a formulação de outra concepção de Estado, cujo poder soberano se deslocou da pessoa do rei (poder hereditário) para o espaço público. Assim, a personagem do súdito foi substituída pela do cidadão – um sujeito com os direitos universais da igualdade, liberdade e frater- nidade, comum a todos.
Para que possamos compreender as mudanças no mundo e seus efeitos sobre os conceitos destacados, vamos analisar os fundamentos que permitiram o desenvolvimento dos Estados Nacionais a partir dos Estados territoriais, tor- nando indissociável a ideia de poder e espaço.
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29.1. Poder, território e Estado
Até a metade do século XVII, a ideia de política era dominada pelo mo- delo organicista. Esse modelo foi desenvolvido por Aristóteles (384-322 a.C.) – e por isso também é chamado de modelo aristotélico – e é também encontrado nos trabalhos de outros filósofos, como Santo Agostinho de Hipona (354-430) e Santo Tomás de Aquino (1225-1274), segundo Bobbio (2001). No modelo or- ganicista, considera-se o Estado como um natural prolongamento das famílias, estruturado hierarquicamente, tal como as relações existentes entre pai, mãe e filhos, ou entre o dono da casa e os servos. A passagem do estado pré-político para o Estado ocorre como efeito de causas naturais, como, por exemplo, o aumento do território, o crescimento da população, a necessidade de defesa, a exigência de assegurar os meios necessários à subsistência etc., ou seja, a legiti- mação se dá pela necessidade.
Uma característica importante desse modelo aristotélico de política é o do lugar secundário do indivíduo na ordem social. Assim, os indivíduos não gozam de direitos anteriores ao Estado. Pelo contrário, os direitos nascem no e com o Estado. Nesse sentido, podemos ler nas primeiras páginas da Política de Aristóteles: “o todo precede necessariamente à parte […] a cidade é por natureza anterior ao indivíduo” (Aristóteles, 2001, p.14). Assim, mais do que de seus direi- tos, a tradição política aristotélica dominante até a Era Moderna fala dos deveres do indivíduo, entre os quais ressalta, como principal, o de obedecer às leis.
Sendo assim, o Estado (que na época de Aristóteles era a pólis) tinha a ação e o poder de suas leis submetidos a uma fronteira entre o indivíduo e sua comunidade. Ou seja, na pólis grega, em especial na Atenas dos séculos IV a II a.C., o espaço local tinha um papel central, uma vez que o cidadão participava diretamente das deliberações públicas, na ágora. Essa situação revela como o Estado grego desvalorizava o indivíduo fora de sua participação dentro do pró- prio Estado, ou seja, o indivíduo só tinha valor enquanto participante do espaço de deliberação pública, dentro dos limites da pólis.
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Sobre esse tema, assista à aula da Professora Marilena Chaui, sobre as relações entre o Público e o Privado no contexto do surgimento da Política.
Já na Roma Antiga, a relação entre o poder e o espaço ganhou outra dimensão. Os romanos precisavam manter o poder supremo do Estado Romano na or- dem política e administrativa dos povos conquistados. É desta necessidade que se desenvolve um novo conceito de Estado fora de seu território de origem, personificando o poder de imperium na figura do magistrado,1 ou seja, o poder para agir e fazer o que for necessário para governar em nome de Roma.
Na passagem da República para o Império Romano, o poder de imperium ficou atribuído apenas aos reis, esvaziando-se o poder político de outros cargos públicos. Tal situação se agravou com a queda do Império Romano do Ociden- te (475 d.C.), uma vez que a participação no governo pulverizou-se por meio do poder hereditário dos nobres. Desta forma, a concepção de poder tornou-
-se mais restrita, pois o poder para governar nos lugares distantes de Roma se transformou no exercício de subordinação da comunidade local ao comando do senhor das terras, o poder de um sobre os outros.
Neste momento, vale a pena diferenciar como as relações de poder se
desenvolveram durante o período medieval da Europa Ocidental.
1 Na República Romana, os magistrados eram funcionários públicos detentores de
imperium e tinham o poder de executar ordens e, para simbolizá-lo, eram escoltados por lictores com bastões enfeitados com fasces (feixes) de cereais. Esse título só era válido fora da cidade de Roma. O grau de autoridade variava com o cargo ocupado e era demonstrado pelo número de lictores que constituíam a escolta, Edil (2 lictores), Pretor
(6) e Cônsul (12). A ideia do consulado nos dias de hoje é decorrente desse princípio (uma representação de um Estado em outro país, ou seja, um poder para tomar decisões em nome do Estado, fora do lugar de origem).
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Na Alta Idade Média,2 o objetivo político central era, sobretudo, de prote- ção dos senhores de suas terras, os feudos, com relativa autonomia econômica, social e política.
Os senhores feudais mantinham entre si relações hierárquicas de nobre- za (reis, duques, marqueses, condes) e de clero (papa, bispos, abades). Esses príncipes leigos e clericais eram suseranos e vassalos entre si, com base em juramentos de lealdade mediante os quais formavam uma pirâmide hierárquica de poder e dignidade. Porém, todos eram senhores feudais. Cada um era dono (dominus) de um domínio (dominium) feudal e exercia o poder sobre as terras que possuía como feudo: o rei exercia o poder sobre o reino, o duque sobre o ducado, o marquês sobre o marquesado, o conde sobre o condado, o papa, nas terras papais, o bispo sobre o bispado, o abade sobre a abadia. Em suma, cada príncipe governava seu principado, por efeito de um domínio político sobre as coisas e os súditos que viviam em suas terras.
Eis aí a fonte do poder político característico da Europa Medieval: o do- mínio das terras e dos bens patrimoniais tinha implicações no poder político. O dono da terra, com base no direito natural, governava o que se passava em seus domínios. tratava-se de um domínio político que vinculava o poder às terras e riquezas patrimoniais.
No entanto, esse modo de exercício do poder não se desenvolveu da mesma maneira em todos os lugares. Alguns senhores feudais construíram mu- ralhas para além de seus domínios principais, propiciando a aglutinação de mo- radia dos camponeses do feudo e uma estrutura social diversa dentro de seus muros, o que favoreceu o ressurgimento de cidades e do comércio.
Algumas desses feudos ficaram tão complexos e ricos que ganharam au- tonomia e prestígio político diante do trono central. Outros romperam com a relação de vassalagem e lealdade e se tornaram independentes. É desta forma que surgem principados e ducados.3
2 Período demarcado pela queda do Império Romano do Ocidente (século V) até o século
IX, com a diminuição das invasões bárbaras, estabilização dos feudos e formação dos primeiros principados.
3 Duque é um título de origem romana, mas foi muito usado pelos monarcas germânicos
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Diante desse quadro de grande diversidade de formas de pode local, era evidente a impossibilidade de uma autoridade estatal se mostrar capaz de as- segurar a ordem e a unidade política da Europa Ocidental, o que provocou uma profunda instabilidade política, agravada pelas constantes guerras internas.
O sistema feudal europeu carecia de três características essenciais de uma
organização estatal:
a) a soberania (nenhum poder tinha condições de se impor aos numero-
sos poderes particulares);
b) a impessoalidade (as relações de poder eram do tipo pessoal);
c) juridicidade (não obstante a presença de um complicado sistema de regras acerca das relações entre o imperador e os habitantes dos feudos, preva- leciam na realidade as relações de força entre os mesmos).
A Idade Moderna pode ser politicamente caracterizada pelo fortaleci- mento e centralização do poder do rei.4 É nesse contexto de mudanças que se desenvolveram novas ideias a respeito do poder político, como as de Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704).
Na concepção de Thomas Hobbes (em seu livro Leviatã, de 1651), a paz só aconteceria se a sociedade civil abrisse mão de alguns direitos em detrimento de uma entidade chamada Estado (na visão do autor, o Leviatã). Segundo essa teoria, em seu estado natural, os indivíduos viviam isolados e em luta permanente, vigorando a guerra de todos contra todos ou “o homem lobo do homem”.
É por isto que para Hobbes, no estado dito natural, reinaria o medo, prin- cipalmente, o da morte violenta. Para se protegerem uns dos outros, a única lei seria a força do mais forte, que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar.
Para cessar o estado natural, os homens deveriam passar desse estado de natureza à sociedade civil, mas isso seria possível somente com a implantação de um sistema de leis de uma entidade maior, por meio de contrato social.
como título de rei. Em outros países, porém, o duque era um regente territorial muito importante, abaixo apenas do príncipe.
4 O monarca seria a lei, e os nobres estariam subordinados a ele.
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Essas ideias políticas de Hobbes, reunidas na Teoria do direito natural e do
contrato,5 evidenciam algumas importantes inovações políticas.
Em primeiro lugar, observa-se o desenvolvimento da ideia de sociedade civil. Compreendida como um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, que compartilha os mesmos bens, as mesmas crenças e ideias, os mesmos costu- mes, e que possui um destino comum, a sociedade civil seria a fonte do poder político.
Dessa ideia de poder produzido pelas relações políticas da sociedade civil resulta outra igualmente importante: a do soberano. Desta forma, o soberano que governará o Estado materializará em nome da sociedade o poder e inte- resse coletivo. Essa entidade maior ficaria responsável pelo coletivo, desde que orientada por regras: a do consenso e a submissão a um poder político central inquestionável. Na ótica de Hobbes, a sociedade precisaria de um Estado cujos limites territoriais estabeleceriam o poder do soberano. Estabelece-se aí uma aproximação cada vez maior entre poder e espaço a partir da formação dos Estados Territoriais, sob o comando central e forte do rei.
É interessante registrar que o contrato social proposto por Hobbes é feito entre os indivíduos entre si, para obedecer ao poder governante escolhido pela maioria. Depois de eleito o poder governante, os cidadãos perdem seu poder político, exceto aqueles que o governo achar conveniente conceder al- gum poder. Mesmo sendo um governo mau e despótico, os cidadãos não têm direito à rebelião, pois o acordo foi feito apenas entre eles, não entre eles e o governante.
Ainda de acordo com Hobbes, o homem troca sua liberdade pela pro- teção que o soberano pode lhe dar. Essa condição política implicará novos direitos para a sociedade, como o de autoconservação (nenhum governante pode lutar contra a sociedade que o escolheu) e o de não se submeter a um soberano que não tem força para protegê-lo. Para assegurar a paz social e im- pedir a volta à guerra permanente, Hobbes entende que nada está acima do governante , ou seja, há uma monarquia absolutista.
5 Também conhecido como jusnaturalismo.
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O inglês Locke, em oposição à ideia de Estado territorial de Hobbes, apre-
senta, na mesma época, o que se pode chamar de um Estado liberal.
A difícil passagem do período da República da Inglaterra,6 sob a liderança de Oliver Cromwell, fez com que muitos pensadores refletissem sobre os aspec- tos positivos e negativos que haviam vivenciado.
Locke, em seu livro Segundo tratado sobre o governo civil, de 1690, buscou apontar e aprimorar os acertos encontrados no período em que a Inglaterra era governada por apenas seu Parlamento. O contexto de seu livro estava na ex- periência de uma ex-monarquia na qual a sociedade civil elegia seus represen- tantes, que tinham o poder soberano do Estado. Todavia, a ideia de república foi logo abandonada, e o país se transformou em uma ditadura. Mais tarde, isso permitiu a restauração da monarquia, porém, com a divisão do poder com o Parlamento (monarquia parlamentarista)7.
Diante desse contexto, Locke argumentava que o Estado tinha um com- promisso com a sociedade civil, pois o estado da natureza (como já havia apon- tado Hobbes) é o estado dos direitos naturais, como o direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas, porém, conseguido atra- vés do trabalho. Nessa concepção, a propriedade privada8 é também um direito natural, pois é a partir do trabalho desenvolvido na natureza que o homem vai ter condições de subsistir. Com essa característica, a propriedade é o meio de sua subsistência, e o homem tem o direito de protegê-la. Para isso, une-se com outros proprietários que também querem exercer o direito de defesa das terras que trabalharam.
6 Commonwealth da Inglaterra. O Protetorado da Inglaterra foi um período republicano
que existiu de 1653 a 1659.
7 Representando a transição política de uma Monarquia Absolutista para uma Monarquia
Parlamentar, a Revolução Gloriosa inaugurava a atual política inglesa onde o poder do rei está submetido ao Parlamento o que vemos até nos dias de hoje.
8 Para John Locke, a partir da livre iniciativa do homem e da realização de seu esforço
que é possível garantir a apropriação de um bem natural disposto na natureza. Assim, a propriedade pode ser compreendida como tudo aquilo que é transformado pelo esforço do homem.
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Essa justificativa gera, na concepção de Locke, um contrato social total- mente diferente daquele preconizado por Hobbes. Para Hobbes, o contrato é feito entre os homens para decidirem que soberano irá protegê-los nos limites territoriais do Estado, e a este entregar sua liberdade e suas propriedades em troca de segurança. Por outro lado, Locke afirma que o contrato é feito entre as partes contratantes, ou seja, entre os cidadãos e o soberano, porém, diante de regras e limites do uso do poder soberano do Estado territorial.
Para Hobbes, o poder soberano é absoluto e o seu compromisso com os súditos se relaciona com a garantia da segurança e da vida. Para Locke, o soberano nada mais é do que uma instância superior que tem como missão de- fender a propriedade privada, castigar os ladrões e tratar das questões comuns a todos os proprietários, entre outras regras definidas coletivamente no âmbito do território.
Dessa forma, na visão de Locke, existe uma nova participação da socie- dade no Estado, consequência, principalmente, da ascensão dos burgueses, que estavam cansados do monopólio político e econômico do relacionamento despótico dos monarcas e da experiência dos ditadores. Além do poder do soberano ser limitado,9 observa-se também outro ponto importante: o acesso à propriedade (no caso a terra), a partir da livre-iniciativa.
Nos argumentos de Locke, o domínio da terra é fruto do trabalho do ho- mem (apropriação da natureza) e não da concessão do soberano. Desta forma, para o Estado, na concepção de Locke, o poder econômico e o político não estariam mais ligados ao monopólio político dos nobres e reis. Os burgueses poderiam desfrutar de tal status, desde que estivessem em dia com os impostos e os deveres estabelecidos pelas leis do Estado.
Nessa concepção, a função do Estado é outra. Não se restringe a dar segurança à sociedade civil (nobres, servos e vassalos), restrita aos súditos até então. Ela amplia sua obrigação e procura garantir e defender o direito natural
9 Ressalta-se que, no caso da Inglaterra, o poder já era determinado a certos limites a partir
do tratado chamado de Magma Carta de 1215, porém é em 1689, por meio do Bill of Rights, que o poder do monarca fica divido com o parlamento, e a sociedade civil daquela época ganha suas garantias mínimas com o Estado nacional.
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de propriedade de qualquer burguês ou mesmo arbitrar os conflitos políticos desta nova visão de sociedade civil, a nação.
À Revolução Francesa (1789) deve-se a ampliação da relação entre espa- ço, poder e cidadania. Os revolucionários franceses tinham um duplo desafio, pois não se tratava de uma simples troca de personalidades no exercício do poder, mas de uma verdadeira ruptura na forma de agir em relação aos limites do Estado e dos interesses públicos.
A visão revolucionária entendia que o “novo” Estado não seria mais defi- nido pela vontade das oligarquias, mas pela composição dos interesses popula- res. Desta forma, somente a república10 poderia atender as exigências políticas da nova forma de Estado. Vejamos o significado dessas ideias através do pen- samento do iluminista Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Em O contrato social, de 1762, o filósofo francês desenvolve sua própria posição sobre a legitimação do contrato social entre a sociedade civil e o Estado, principalmente na forma de república.
Na concepção rousseauniana, a evolução social da república não pode reproduzir as condições políticas que até então o pensamento liberal e burguês vinha difundindo. Assim como Hobbes, Rousseau constrói uma hipótese de estado de natureza e estado civil, porém, considera o “estado de guerra” hobbesiano ainda presente na sociedade civil.
É na sociedade das instituições civis que reside a crítica rousseauniana e o fundamento de sua teoria política. A república idealizada só teria sentido se a sua instituição fosse pública e criada através do pacto social.
A fundamentação do Estado republicano rousseauniano é a soma das diferenças das vontades particulares, e não o conjunto das próprias vontades privadas como se argumenta na perspectiva de Hobbes e Locke. Assim, percebe-se que a existência de interesses particulares conflituosos entre si é a essência da vontade geral no corpo político, o que confere à política uma condição de arte construtora do interesse comum (Rousseau, 1980).
10 Entende-se a partir da Revolução Francesa que a República é para atender ao interesse
público, sem distinção de que vive nela (Igualdade, Liberdade e Fraternidade).
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Ao difundir a importância do debate político na construção do Estado do interesse comum, a soberania emanada do povo ganha outra interpretação. Esta assume a forma de Estado, fazendo com que o povo cumpra o que ele mesmo estabeleceu. Dessa forma, o corpo político é constituído de cidadãos participantes da atividade soberana, formando assim a república democrática direta. A sociedade civil é composta de cidadãos e é, ao mesmo tempo, o corpo político do Estado, por ocasião do ato legislativo.11 A soberania é o exercício da vontade geral e é inalienável. Ela não pode ser definida por outra pessoa, pois se
o ser humano entrega a outro a possibilidade de decidir no soberano, estará se submetendo de tal forma que já não terá como assegurar sua sobrevivência, já que nada mais irá protegê-lo, a não ser ficar na esperança de que não haverá submissão, o que, no entanto, nunca estará garantido. (Rousseau, 1980, p.12)
Todavia, a instituição estatal defendida por Rousseau não seguiu em fren- te na França revolucionária. Apesar de reconhecer a origem do poder soberano e apontar que o Legislativo e Executivo estão nas mesmas mãos, esse pensador pondera que a democracia não exercida pelo cidadão é de um governo que facilmente se corrompe.
Neste sentido, Rousseau era contrário à ideia de que na república demo- crática houvesse representações (como a figura do deputado) pois, na visão dele, a representação era uma herança medieval e a república moderna tinha que se inspirar na experiência das repúblicas antigas que não tinham interme- diários entre o Estado e a sociedade.
Vale ressaltar que existem experiências concretas na política brasileira que aplicam o principio democrático de Rousseau. Segundo Ribeiro e Guima- rães (2007), a experiência da participação popular na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, faz parte de um conjunto de fundamentos cons- titucionais que possibilitam às cidades brasileiras uma variedade de instituições como mecanismos para a participação do cidadão, com a intenção explícita
11 A lei deveria ser escrita e publicada para que todos pudessem ler e discutir.
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de ampliar a institucionalização democrática oferecendo, uma vez implantadas, novas oportunidades de participação direta no desenho das políticas públicas e na regulação da ação governamental.
Na visão dos autores, esse modelo de participação popular é uma refe-
rência aos argumentos de Rousseau.
Esse pensamento, todavia, foi controverso em sua época, pois nem todos os revolucionários entendiam a participação política da mesma maneira. Para Maximilien de Robespierre (1758-1794), por exemplo, a democracia não é um Estado onde o povo, continuamente reunido, organiza por si mesmo todos os assuntos públicos. A democracia é um Estado onde o povo soberano, guiado por leis que são obra sua, faz por si mesmo tudo o que pode fazer bem e por delegados tudo o que ele próprio não pode fazer. Foi essa interpretação que fortaleceu outra concepção de república, a república democrática representa- tiva (Florenzano, 2004), promovendo a paz dentro da França, além de servir de exemplo para outras sociedades, como o recém-formado Estados Unidos da América.
A independência das colônias inglesas da América do Norte foi marcante não apenas pela adoção do regime republicano, mas por ter sido a primeira nação a identificar o sinônimo de democracia no sistema representativo repu- blicano.
É no começo do século XIX, na Alemanha, que Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) inaugura um novo modelo de pensamento sobre a relação entre Estado e sociedade, o que foi fundamental para o desenvolvimento da Geografia Política e sobre o pensamento europeu em geral. Para ele, o Estado, na medida em que se identifica com a vida de um povo, é um momento da história universal, ou seja, é um evento histórico. Nesta perspectiva, o Estado ideal seria aquele que assegurasse à sociedade civil uma vida ética, baseada nos valores da nova condição moderna. Representado principalmente pela Prússia de seu tempo, o Estado para Hegel seria a etapa final do desenvolvimento so- cial e da liberdade política da humanidade (Bobbio, 2001).
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29.2. A Geografia Política clássica alemã
A partir do início do século XVIII, muitos filósofos dos novos Estados sobe- ranos buscaram desenvolver ideias que ajudaram a compreender e fundamen- tar a luta política entre as nações. Um debate que dominou as discussões da- quela época era a relação entre os termos nação, nacionalidade e nacionalismo.
Para o historiador Eric Hobsbawm (2002), este debate teve como pano de fundo, desde 1870, a busca das argumentações teóricas para a definição das futuras regras de relações entre os Estado modernos (o que o autor cha- ma de nação moderna), no contexto do desenvolvimento do capitalismo e do imperialismo. Assim, a constituição de um Estado implicaria a interação entre diversos grupos étnicos, convivendo em um mesmo território, unificados ou não por uma língua comum e pela vivência de valores coletivos. Na visão deste historiador britânico, as tensões e conflitos decorrentes dessas interações so- ciais foram sendo superadas por meio da estratégia discursiva da identidade nacional, estabelecendo-se uma cadeia sinonímica cada vez maior entre Esta- do, Estado-Nação, nação e nacionalismo.
Por meio de um interessante estudo da evolução do termo, o mesmo autor adverte, por exemplo, que no francês e no alemão medieval a palavra “nação” significava “nascimento ou grupo de descendência”, referindo-se então a um local e/ou uma etnia, longe, portanto, de uma associação com um Estado, sem qualquer conotação política.
Nem mesmo a identidade linguística, comumente apresentada como uma das características que fundamentam a legitimidade de um Estado-Nação, poderiam ser assim entendidas. Assim,
particularmente não há conexão lógica entre corpo de cidadãos de um Estado territorial, por uma parte, e a identificação de uma “nação” em bases linguísticas, étnicas ou em outras com características que permitam o reconhecimento co- letivo do pertencimento de grupo. De fato, por causa disso já foi mostrado que a Revolução Francesa “foi completamente estranha ao princípio e ao sentimen- to de nacionalidade; era inclusive hostil a ele”. (Hobsbawm, 2002, p.32)
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É interessante ressaltar que a unificação alemã não resultou da vontade do povo “de baixo para cima”, mas de um pacto entre os príncipes, isto é, “de cima para baixo” e com a supremacia esmagadora da Prússia, dirigida por Otto von Bismarck.
Na política nacional, Bismarck, buscando corrigir o atraso industrial e béli- co em relação às grandes potências, sobretudo à Inglaterra, cooptou os Junkers (grandes proprietários de terra) e a burguesia (que abdicou do direito de go- vernar em troca do direito de lucrar ainda mais) para efetivar sua modernização conservadora. Ao mesmo tempo, a política de bem-estar prussiano envolvia o fortalecimento dos aspectos econômico e social por meio da intervenção esta- tal. Para isto, também era necessário construir valores de nação.
Nesta política de difusão de valores, caberia à escola o papel fundamental de construção de ideais de nação, de nacionalidade, de nacionalismo como valores a serem constituídos e difundidos por toda a sociedade alemã recém- unificada. É neste ponto que destacamos a importância de Friedrich Ratzel (1844-1904), no último quartel do século XIX, por sistematizar esse conjunto de ideias através da Geografia.
Enquanto os também estudiosos Humboldt e Ritter vivenciaram o apa- recimento do ideal da unificação alemã, Ratzel vivenciou a constituição real do Estado nacional alemão e suas primeiras décadas, servindo de instrumento po- deroso de legitimação dos desígnios expansionistas do Estado alemão recém-
-construído (Moraes, 1990, p.52).
O principal livro de Ratzel, publicado em 1882, denomina-se Antropogeo- grafia: fundamentos da aplicação da Geografia à História. Nessa obra, o autor defi- ne o objeto geográfico como o estudo da influência que as condições naturais exercem sobre a humanidade. Essas influências atuariam primeiro na fisiologia (somatismo) e na psicologia (caráter) dos indivíduos e, através destes, na socie- dade. Em segundo lugar, a natureza influenciaria a própria constituição social, pela riqueza que propicia por meio dos recursos do meio em que está localiza- da a sociedade; atuando também na possibilidade de expansão de um povo, obstaculizando-a ou acelerando-a e ainda nas possibilidades de contato com outros povos, gerando assim o isolamento e a mestiçagem.
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Para desenvolver essas ideias, Ratzel realizou extensa revisão bibliográfica sobre o tema das influências da natureza sobre o homem e concluiu criticando duas posições: a que nega tal influência e a que visa estabelecê-la de imediato. Segundo Ratzel, essas influências são exercidas através das condições econômi- cas e sociais, sendo a sociedade também um organismo que mantém relações duráveis manifestas com o solo, por exemplo, nas necessidades de moradia e alimentação. O homem precisaria então utilizar os recursos da natureza para conquistar sua liberdade que, nas palavras de Ratzel (1990), “é um dom conquis- tado a duras penas”. O progresso significaria o maior uso dos recursos do meio, logo, uma relação mais íntima com a natureza.
Quanto maior o vínculo com o solo, maior seria para a sociedade a ne- cessidade de manter sua posse. É por essa razão que a sociedade cria o Estado. Segundo Ratzel (1990), “quando a sociedade se organiza para defender o terri- tório, transforma-se em Estado”.
Para Ratzel, o território representa as condições de trabalho, e a existência de uma sociedade e a perda de território seria a maior prova de sua decadência. Por outro lado, o progresso implicaria a necessidade de aumentar o território, de conquistar novas áreas. Justificando essas colocações, Ratzel se utiliza do conceito de espaço vital, que representaria uma proporção de equilíbrio entre a população de uma dada sociedade e os recursos disponíveis para suprir suas necessidades definindo, assim, suas potencialidades de progredir e suas pre- mências territoriais.
Segundo Maltez (2006), Ratzel é o introdutor de um nacionalismo geo- político e de uma concepção físico-natural de nação, onde existem três ele- mentos fundamentais: o espaço (Raum: extensão territorial e características), a posição (Lage: posição relativa, continentalidade ou insularidade) e a fronteira (Grenze: órgão periférico e dinâmico). Desta forma, não fica difícil observar a íntima vinculação entre essas formulações da Geografia de Ratzel e a ideia de nação moderna.
A Alemanha seria uma “comunidade imaginária” que preencheria um va- zio emocional decorrente da desintegração ou da ausência de redes de rela- ções ou de comunidades humanas reais, pois a sua formação é decorrente dos príncipes e não do povo. O significado moderno de nação comporta em si a
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ideia de centralidade e unidade difundida pelo Estado: a nação deveria ser “una e indivisa”.
Dessa forma, o ensino da Geografia fundamentaria a constituição de uma “consciência nacional” entre as camadas populares, o que seria fundamental para a hegemonia das classes dominantes. Acreditava-se que tal tarefa seria realizável, sobretudo, por meio da escola, onde os professores seriam responsá- veis pela articulação da identificação da população com os símbolos da nação e com comportamentos considerados patrióticos.
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Capítulo 30
Relações estratégicas internacionais e a estruturação da ordem mundial
Um início de conversa
Neste capítulo, vamos discutir as origens da ordem mundial, tendo como referência um dos principais pensadores da Geografia Política do período entre guerras: o geógrafo britânico Halford John Mackinder (1861-1947). Veremos que, mesmo com mais de um século, muitas de suas ideias geopolíticas permane- cem ainda válidas para a análise do contexto internacional contemporâneo.
Mackinder tinha formação em Ciências Naturais e desenvolveu uma vi- são geográfica ampla durante a sua carreira acadêmica e política, que ocorreu numa época de grandes transformações sociais. Ele viveu quatro fases impor- tantes do Império Britânico, do final do século XIX até a metade do século XX: o apogeu; a crise, após a Primeira Grande Guerra; a decadência, durante a Segun- da Guerra Mundial; e o seu fim, nas duas décadas seguintes.
Em 1889, Mackinder foi o primeiro homem a escalar o Monte Quênia, em uma de suas expedições pela África, demonstrando a importância do co- nhecimento geográfico e a necessidade de mapeamento do vasto continente africano como parte da estratégia política de consolidação dos domínios colo- niais britânicos. E de fato foi o que aconteceu. A conquista do Monte Quênia foi
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considerada um dos pontos de partida da expansão imperial britânica sobre o Quênia, a Uganda e outras terras do além-Nilo (Blouet, 2004).
Em outra fase, já como diplomata, Mackinder aplicou essa visão de ciência ao trabalhar como analista das rotas comerciais para os empresários britânicos. Esse trabalho permitiu a ele ter acesso a documentos privilegiados, e também viajar para todas as nações que o Reino Unido tinha relações comerciais. Foi nesse período que dois de seus trabalhos que tratam da expansão do Império foram pulicados: Britain and the British Seas (1902) e On Thinking Imperially (1907).
Na passagem do século XIX ao XX, tendo acumulado grande experiência prática, Mackinder desenvolveu a sua teoria geopolítica, tanto na Royal Geo- graphic Society12 como na Universidade de Oxford. A Inglaterra estava passan- do por profundas transformações técnicas e científicas. O transporte de massa (motor a vapor) e as novas redes de comunicação colocavam uma nova ordem na maneira de se produzir e transportar, o que chamou a atenção de Mackinder.
Se a estratégia naval inglesa baseava-se no postulado de que a segu- rança das Ilhas Britânicas estava garantida por um poder marítimo, em que se controlava os oceanos com a esquadra de guerra, a marinha mercante e a rede de bases espalhadas pelo planeta, era necessário ficar atento às nações que se apropriavam das novas tecnologias e seus efeitos nas forças produtivas lo- cais. Para Mackinder, a Revolução Industrial e o transporte de massa colocaria a supremacia britânica em segundo plano. Pensando no impacto dessas trans- formações, ele desenvolveu a Teoria do Heartland, o que veio a influenciar o pensamento geopolítico do mundo entre guerras.
12 A Sociedade Real de Geografia teve um papel relevante na discussão e difusão do
conhecimento. Naquele momento histórico, a ciência contemplava o positivismo, que tinha como doutrina o evolucionismo. Não por acaso, Charles Darwin fazia parte dessa Sociedade.
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30.1. A geopolítica no mundo entre guerras
Em sua conferência na Royal Geographic Society,13 Mackinder questio- nou a visão dominante de que a Europa era o centro gravitacional do mundo, situação estabelecida desde a época das grandes navegações e dos descobri- mentos.
Segundo Mackinder, a Europa não devia ser vista como um continente à parte, mas apenas como uma pequena península de um continente maior denominado Eurásia, cujo eixo central estaria localizado no interior da grande massa continental. Partindo dessa noção de Eurásia, Mackinder desenvolveu o conceito estratégico de Heartland – coração continental/ terra central/ região-pivô – constituindo a pedra basilar da teoria do poder terrestre. Em termos descritivos, o Heartland abarcava o centro e o norte da Eurásia, abrangendo em suas linhas gerais o território da Rússia czarista do início do século. No sentido norte-sul, o Heartland estendia-se das costas geladas do Oceano Ártico aos desertos da Ásia Central; na direção leste-oeste, dos confins da Sibéria às terras situadas entre os mares Branco e Negro. Veja o mapa elaborado por Mackinder.
Início da descrição:
Gravura de mapa-múndi, com formato oval, achatado nos pólos. Do lado esquerdo observa-se parte das Américas.
Ao centro a Europa, a África, a Ásia e a Austrália, bem como as ilhas da Indonésia e do Japão.
E ao lado direito, outra vez, parte das Américas.
Cortando a imagem horizontalmente, um pouco abaixo do centro, e seguindo a forma ovalada, a frase: Lands of outer or insular crescente.
Na África, destaca a faixa do deserto do Saara, e em grande parte do norte da Ásia, a inscrição: Pivot Area.
Fim da descrição.
O mundo do ponto de vista de Mackinder (1904)
13 Mais tarde transformada em um artigo e publicada no Geographical Journal, em 1904.
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Segundo Mello (1994), a teoria proposta por Mackinder era sustentada por três aspectos fundamentais. Um primeiro aspecto estava relacionado ao fato de que a Europa não era fruto de sua própria história, mas subordinada à dinâmica mais ampla da história asiática e de vitórias contra as invasões que vinham do leste. ssim, Mackinder concebeu o desenvolvimento da civilização europeia como produto da reação vitoriosa ao desafio imposto pelas seculares invasões asiáticas. Essas pressões externas eram promovidas por hordas de ca- valeiros nômades que, deslocando-se desde o interior do grande continente, pressionavam as regiões marginais da Eurásia.
Além disso, Mackinder destacou dois aspectos geográficos essenciais do continente eurasiático. O primeiro deles era seu isolamento mediterrâneo, uma vez que seus rios navegáveis desembocavam nos lagos e mares do interior continental ou nas costas do Oceano Ártico. Outro aspecto era sua topografia plana, principalmente na extensa faixa das estepes meridionais, que oferecia condições ideais à mobilidade dos povos nômades-pastoris da Ásia Central. Isso fazia do Heartland uma fortaleza natural inacessível ao assédio do poder maríti- mo das potências insulares e propiciava o desenvolvimento do poder terrestre da potência que dominasse o eixo central euroasiático.
Ainda segundo Mackinder, em torno do Heartland articulavam-se quatro regiões marginais, que formavam as linhas costeiras da Eurásia e estavam loca- lizadas dentro do raio de ação do poder marítimo. Essas regiões formavam o “crescente interno ou marginal” (Inner Crescent) integrado pela Europa, Oriente Próximo, Índia e China.
Focos de irradiação de quatro grandes religiões — cristianismo, islamis- mo, hinduísmo e budismo —, as quatro regiões marginais concentravam três quartos da população da Eurásia. Por sua vez, o “crescente interno” estava cir- cundado pelo “crescente externo ou insular” (Outer Crescent), formado pelas duas Américas e a Austrália, que eram ilhas-continentes separadas da Eurásia pelos fossos do Atlântico e do Pacífico.
Em síntese, o eixo central do continente era dominado pela Rússia; o grande arco interior formado pela Alemanha, Áustria, Turquia, Índia e China; e o grande arco exterior composto pela Inglaterra, Canadá, Estados Unidos, África do Sul, Austrália e Japão.
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Uma vez caracterizada a ordem mundial a partir do eixo central euroa- siático, Mackinder ressaltou a importância das inovações tecnológicas no acir- ramento da disputa pelo poder mundial entre duas forças principais: o ocea- nismo (forças navais) e o continentalismo (forças terrestres). Para ele, na virada do século, o advento de novas tecnologias nos meios de transporte ameaçava desequilibrar o poder mundial com a interligação dos vastos espaços do interior da Eurásia. Essas novas técnicas poderiam representar a decadência do poder marítimo e o começo de uma nova era marcada pela preponderância do po- der terrestre. Ou seja, a invenção da locomotiva e a construção das ferrovias transcontinentais poderiam vir a neutralizar a importância do barco a vapor, al- terando a favor do poder terrestre a correlação de forças que, desde as grandes navegações, assegurou a supremacia do poder marítimo.
A partir dessa análise global, o geógrafo inglês alertou para o perigo que representava para o poder marítimo britânico uma eventual aliança entre duas grandes potências continentais, cuja mobilidade terrestre estava sendo incre- mentada pelas ferrovias e locomotivas: a Alemanha, situada no centro da Euro- pa, e a Rússia, a grande soberana do Heartland eurasiático.
Efeitos posteriores de Heartland
No decorrer da sua vida acadêmica, Mackinder teve oportunidade de
analisar a validade de sua teoria e fazer alguns ajustes de suas previsões.
De fato, nenhuma nação conseguiu controlar o Heartland, ainda que a ex-URSS tenha chegado muito próximo de sua previsão. Em vista do risco do “domínio vermelho”, logo após a Primeira Guerra Mundial, Mackinder assesso- rou a diplomacia inglesa nas negociações de paz, propondo que as potências vitoriosas criassem no Leste Europeu uma sequência de Estados-tampão, desde o Mar Báltico até os mares Negro e Adriático. Essa proposta está na origem da criação da Polônia, da Tchecoslováquia, da Hungria, da Iugoslávia, da Bulgária e da Romênia, dividindo parte dos territórios de três grandes impérios: o Russo, o Alemão e o Austro-Húngaro.
A função estratégica desse cordão sanitário contra o “perigo vermelho”
era separar e impedir uma futura aliança entre as duas potências marginalizadas
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pelo sistema de Versalhes: a Alemanha vencida e a Rússia bolchevique. Do ponto de vista da ordem mundial, essa proposta de Mackinder influenciou profundamente o pensamento geopolítico da época, que considerava imprescindível o domínio da Europa Oriental para o controle do Heartland. Assim, quem dominasse o Heartland controlaria a World Island – denominação dada por Mackinder ao duplo continente formado pela Eurásia-África, o que seria a condição para o controle da ordem mundial.
Contudo, o cordão sanitário mackinderiano demonstrou ser um arranjo geopolítico demasiado frágil para isolar as duas potências continentais. Com a ascensão do nazismo começou o desmantelamento da barreira de contenção europeia oriental pela política de agressão hitlerista, auxiliada em parte pelo pacto de não agressão germano-russo, de 1939. Essa situação perdurou até 1941, quando a máquina de guerra nazista invadiu a União Soviética, abrindo uma nova frente de batalha no leste da Europa contra o Estado-pivô eurasiático.
Em um segundo momento, devido ao curso da Segunda Guerra Mundial, Mackinder renovou sua teoria, introduzindo o conceito de Midland Ocean. Tal conceito era baseado na premissa do continente americano conseguir rivalizar com o Heartland, o que gerou um novo equilíbrio de poderes. Era o início da emergência do poderio americano.
Finda a Segunda Grande Guerra, o pensamento de Mackinder influenciou a divisão da Alemanha em dois Estados distintos e a própria assinatura do Trata- do de Washington, constitutivo da Otan, em 1949. Nesse contexto geopolítico, a Alemanha estava dividida entre quatro potências (Estados Unidos da América, Reino Unido, França e União Soviética), e essa conjugação era vista por Mackin- der como uma composição das forças terrestres a leste, no Heartland, e o ma- rítimo a oeste, devido à capacidade anfíbia do Midland Ocean. Aqui, criava-se um triângulo de defesa atlântica com o topo nos EUA e a base no Reino Unido e França. A cooperação das potências ocidentais vencedoras da Segunda Guerra com a União Soviética não durou muito tempo, como havia previsto Mackinder, a partir da publicação de The Round World and the Winning of the Peace, em 1943. A definição da ordem mundial passou cada vez mais a depender da expansão do poderio norte-americano e dos rumos da Guerra Fria.
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30.2. Hegemonia estadunidense e repartição do poder mundial
Hegemonia é uma palavra de origem latina que significa “direção supre- ma”. Era utilizada no Império Romano para designar os chefes dos exércitos (egemónes). Na escala das relações internacionais, o conceito de hegemonia está associado, principalmente, às relações de dominação entre os Estados na- cionais. Assim, na escala global, a hegemonia pode ser definida como uma for- ma de poder de fato, estabelecida pela capacidade de liderança que um país exerce sobre os outros em termos culturais, políticos e econômicos (Bobbio, 1998). Nenhum país exerce a hegemonia apenas pela coerção, mas também pela sua capacidade de convencimento (persuasão) a respeito dos seus objeti- vos e propósitos.Atualmente, não há dúvidas do poder hegemônico dos Esta- dos Unidos, tanto do ponto de vista militar, como econômico e cultural.
O poderio bélico dos Estados Unidos é indiscutível. Em 2008, os ame- ricanos gastaram 4% do PIB com as forças armadas (cerca de 600 bilhões de dólares), o que representa a metade do gasto militar mundial. Além do inves- timento em novas tecnologias, como o avião modelo B-2 (quase invisível para os radares), os Estados Unidos é o único país com bases militares e frota naval distribuídas em todas as regiões do mundo.
O domínio dos Estados Unidos também se manifesta no campo econômico e cultural. Dentre as 500 maiores empresas existentes em 2006, quase 200 foram formadas nos Estados Unidos. Essa hegemonia econômica facilitou a difusão da língua inglesa e dos hábitos e costumes estadunidenses (american way of life) pelo planeta. Os melhores exemplos desse domínio cultural podem ser observados na extensão do mercado cinematográfico produzido em Hollywood e na abertura de filiais das lojas estadunidenses de fast food no exterior. Veja nos links a seguir a sequência de mapas.
Mapa 1 – Despesas militares em milhões de dólares (2009)
Em 2009, os Estados Unidos gastou 663,3 milhões dólares com as forças
armadas, o dobro da União Europeia, segunda colocada no ranking mundial.
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Mapa 2 – A presença das forças armadas estadunidenses no mundo
(2007)
O Iraque é o país com o maior contingente de soldados estadunidenses,
seguido da Alemanha e do Afeganistão.
Mapa 3 – Número de empresas por origem geográfica (2006)
Das 500 maiores empresas classificadas segundo o valor de mercado, 196
possuem a sede localizada nos Estados Unidos.
Mapa 4 – Distribuição mundial de lojas do McDonald’s (1999-2004) Fora dos Estados Unidos, o Japão é o maior mercado do McDonald’s.
Mapa 5 – Importação de filmes dos Estados Unidos, da França e da
Índia (2006)
Dentre os principais produtores de filmes comercializados no mercado
mundial, os Estados Unidos é o único com penetração em todos os continentes.
Por que os Estados Unidos é uma nação tão poderosa? Segundo Bobbio (1998), além da força, são quatro os recursos do poder: a riqueza, a informação, o prestígio e a amizade. Vejamos como os Estados Unidos reuniram esses recur- sos e se transformaram na nação mais poderosa do mundo.
Os Estados Unidos têm a sua origem histórica nas 13 colônias inglesas na América do Norte: Massachusetts, Rhode Island, New Hampshire, Nova York, Connecticut, Pensilvânia, Nova Jersey, Delaware, Virgínia, Maryland, Carolina do Norte, Carolina do Sul e Geórgia.
A expansão territorial do país representou a formação de novos capitais, envolvendo a compra de territórios (Flórida, Alasca e Lousiana), assim como guerras e tratados com o México, quando o país anexou grande parte do Texas e da Califórnia. Ao término desse processo de expansão territorial, os Estados Unidos transformaram-se numa nação mais rica, principalmente com a desco- berta de reservas de ouro no oeste e o início da exploração petrolífera na região do Texas.
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Não foi por acaso que os Estados Unidos se tornou o principal destino dos imigrantes, provenientes da Irlanda, da Alemanha, da Inglaterra e da Itália. Foram mais de 40 milhões de pessoas em busca de trabalho e novas oportuni- dades, o que garantiu ao país uma enorme reserva de força de trabalho, jovem e barata.
Desta forma, quando o mundo ainda vivia sob a hegemonia do Império Britânico, os Estados Unidos se firmava como uma grande potência econômica, o que se consolidou com o desenvolvimento industrial das regiões nordeste e dos Grandes Lagos. A fonte da riqueza industrial estadunidense não se estabe- leceu apenas na exploração da mão de obra barata e do consumo da matéria-
-prima abundante (reservas de carvão mineral, dos Montes Apalaches, e de fer- ro, próximas aos Grandes Lagos), mas também pela capacidade de inovação tecnológica. Foram nas fábricas de Nova York, Filadélfia, Detroit e Chicago que se aplicaram novos processos de produção industrial e de gestão, que ficaram conhecidos como fordismo e taylorismo. Com base nesse novo capitalismo e com uma posição estratégica invejável (acesso aos Oceanos Atlântico e Pacífico, sem inimigos próximos às suas fronteiras), foi possível lançar-se ao mar. Primeiro, dominando o comércio marítimo no Caribe e, no decorrer da primeira metade do século XX, estabelecendo sua supremacia nos principais trajetos oceânicos.
O Corolário Roosevelt, anunciado em 1904, foi um marco dessa mudan- ça de status político dos Estados Unidos, que se colocava como a liderança dos países do continente e o árbitro das relações diplomáticas entre os países vizinhos latino-americanos em busca de maior integração e desenvolvimento comum. A política do Big Stick [Grande Porrete] foi o braço armado do Corolário Roosevelt. Aqueles países que apresentassem instabilidade política ou violação do direito internacional poderiam sofrer a intervenção militar dos Estados Uni- dos, o que lhes conferiram respeito pelas nações vizinhas e prestígio entre as nações consideradas amigas.
Apesar da imposição de protetorados em Cuba e São Domingos, além de inúmeras ocupações militares, os Estados Unidos nunca procuraram incorporar as regiões do seu domínio para formar um sistema colonial, nos moldes do Império Britânico. A ascensão da hegemonia estadunidense representou uma nova forma de repartição do poder mundial. Leia mais sobre o assunto no link.
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Capítulo 31
A (des)ordem mundial
Um início de conversa
A “ordem mundial” pode ser compreendida por diferentes abordagens e definições. Classicamente, há duas concepções dominantes: a realista e a idea- lista.
Na perspectiva realista, o principal instrumento de equilíbrio interestatal é a guerra. Sendo as relações internacionais marcadas pelo conflito permanen- te (egoísta e amoral, como afirmava Hobbes), a ordem mundial somente seria possível mediante o domínio de um poder forte, pela centralização do poder nas instituições do Estado.
Outra visão clássica da ordem mundial é a idealista, que vai integrar diver- sas correntes do pensamento relacionadas com a emergência do direito inter- nacional e formação do sistema mundial de regulação por meio de leis, acordos e tratados bilaterais. A grande referência teórica desta perspectiva internaciona- lista seria Immanuel Kant e sua ideia de “república universal de Estados confede- rados” (Font; Rufí, 2006, p.131), que tenderia a uma ordem mundial estabelecida por uma comunidade internacional estável.
Os períodos de 1500 a 1800 e de 1800 a 1914 podem ser considerados
representativos da combinação dessas duas perspectivas.
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Entre 1500 a 1800, há o predomínio da força das potências coloniais (pers- pectiva realista) no ordenamento do espaço mundial, ainda que alguns trata- dos entre os principais impérios da época, sob o viés da perspectiva idealista, estabelecessem duas zonas de comércio, a atlântica e a asiática. Este foi o caso dos Tratados de Tordesilhas (1494) e de Saragossa (1529), firmados pelos portu- gueses e espanhóis.
Entre 1800 e 1914 observa-se um período de relativa estabilidade e disse- minação dos valores culturais europeus, que se transforma no centro do “mun- do civilizado” (perspectiva idealista). Isto não impediu a formação de novos es- tados nacionais e o uso da força em situações que houve maior resistência dos colonizadores (perspectiva realista), como no processo de independência da América Latina.
Depois das duas guerras mundiais, que conformaram um período de grandes mudanças no mapa político, as abordagens da ordem mundial se tor- naram mais complexas, uma vez que surgiram outras perspectivas menos po- larizadas, como a estruturalista, a globalista e a pluralista (Font; Rufí, 2006). Veja na imagem a seguir a relação dessas abordagens com as concepções clássicas.
Início da descrição:
Diagrama. Formando um quadrado, em sentido horário, nas arestas temos as palavras: idealista, globalista, pluralista e realista.
Nas laterais do quadrado as palavras: universalismo, multilateralismo e pragmatismo. Na parte superior do quadrado, duas setas partem das arestas para o centro, onde está a palavra estruturalista.
Fim da descrição.
Ordem mundial – concepções do pós-guerra
A concepção estruturalista é de base marxista e compreende a ordem mundial como resultado do desenvolvimento desigual do capitalismo. Em fun- ção disto, aproxima-se da visão realista, tendo em vista a importância das ten- sões e conflitos na manutenção do sistema internacional. Por outro lado, recebe
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também a influência da visão idealista, uma vez que enfatiza o caráter ideológi- co da dominação supraestatal.
Para os globalistas, o mundo pós-guerra seria marcado pela superação do Estado a partir da regulação do sistema internacional por várias instituições mundiais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Neste sentido, eles valorizam o papel da comunidade internacional, como os idealistas.
Os pluralistas, por sua vez, deslocam o debate da questão da hegemo- nia para a gestão das políticas públicas, envolvendo muitos outros atores no processo de decisão, como as multinacionais, os organismos internacionais e as organizações não governamentais. Apesar de céticos em relação ao papel dos Estados na ordem mundial, o que os distanciariam, compartilham da visão pragmática dos realistas.
31.1. A Guerra Fria e a bipolaridade
Durante a Guerra Fria, a ordem mundial foi mantida pela tensão entre duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, que procuravam ex- pandir suas áreas de influência nas diferentes regiões do planeta. É por isto que podemos dizer que o período da Guerra Fria apresentava uma ordem mundial bipolar.
Neste período, prevaleceu uma combinação da visão realista com a ide- alista. Do ponto de vista do realismo, a manutenção do equilíbrio do poder representava a contenção do perigo tanto para o Ocidente (Estados Unidos) como para o Oriente (União Soviética) da perda de valores culturais e políticos das sociedades capitalistas e socialistas. O idealismo também impulsionou a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e os espaços políticos inter- governamentais que se desenvolveram a partir dela. Assim, os 51 países signatá- rios Carta das Nações, assinada em São Francisco, nos Estados Unidos, em junho de 1945, manifestaram a preocupação com o “flagelo da guerra” e a vontade de unir as forças para manter a paz e a segurança internacionais.
Contudo, isto não seria possível sem considerar o peso e a relevância po- lítica das potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, o que pode ser analisado a partir das conferências realizadas em 1945.
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A primeira conferência que destacamos é a de Yalta, realizada entre 4 a
11 de fevereiro de 1945. Essa conferência tem o nome da cidade que a sediou, localizada na região da Crimeia – Ucrânia.
Início da descrição:
Encontro político na Conferência de Yalta. Três cadeiras uma ao lado da outra em cima de tapetes, com os políticos conversando e sentados Churchill, Roosevelt e Stalin. Atrás políticos e generais fardados de pé.
Fim da descrição.
As principais lideranças da Conferência de Yalta. Da esquerda para direita, sentados: Winston Churchill (primeiro-ministro do Reino Unido), Franklin Roosevelt (presidente dos Estados Unidos) e Josef Stálin
(secretário-geral do Partido Comunista da URSS)
Essa conferência teve como objetivo a discussão dos esforços em con- junto para o término da guerra, reconhecendo o papel estratégico da União Soviética no desequilíbrio das forças em favor dos aliados. Os russos obtiveram o reconhecimento da fronteira soviética na Europa Ocidental, com a anexação da Estônia, Letônia, Lituânia e do leste da Polônia.
A conferência realizada entre 17 de Julho a 2 de agosto de 1945, em Pots- dam (subúrbio de Berlim), cujo tema foi o destino da Alemanha ocupada pelas forças aliadas , teve a participação dos britânicos, além dos norte-americanos
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e dos russos. Apesar da França não ter participado da conferência, os Estados Unidos e o Reino Unido pressionaram os russos para incluir os franceses na partilha de Berlim, dividida em quatro zonas de ocupação: a norte-americana, a soviética, a britânica e a francesa.
Se houve um prejudicado entre os vencedores no final da Segunda Guer- ra Mundial, este foi o Reino Unido. Os britânicos salvaram pouco da sua pode- rosa influência política mundial, a não ser a prerrogativa de manter seu império colonial, que, no decorrer dos anos, seria perdido devido aos vários movimen- tos de independência surgidos nas suas colônias.
A perda de status do Reino Unido como ator privilegiado na disputa do poder permitiu o reconhecimento dos Estados Unidos como um novo (e pode- roso) ator, cuja influência se ampliaria sobre a Europa Ocidental. Para atingir esse objetivo, apesar da acentuada escassez de dólares no mundo, a solução a curto prazo seria o financiamento direto das economias europeias pelo governo nor- te-americano, com o propósito imediato de criar mercado para as exportações dos Estados Unidos. Surgiu, assim, o Plano Marshall,14 cujo objetivo oficial era reunir todos os países europeus para estimular investimentos privados, tanto na indústria europeia como na obtenção de empréstimos (generosos) para ajustes sociais e na infraestrutura dos países atingidos pela guerra.
Todos os países que reconstruíam a Europa foram convidados a participar desse Plano, em encontro em Paris em 1947. Estiveram presentes os ministros das relações exteriores da Grã-Bretanha, Ernst Bevin, da França, Georges Bidault, e da União Soviética, Vyacheslav Mikhaylovich Molotov.
Todavia, poucos dias após o início das negociações, os soviéticos abando- naram a reunião por discordarem especialmente das imposições de Washing- ton. Na visão soviética, o plano tinha outros objetivos, como incentivar a recons- trução pelo aumento da demanda de produtos exportáveis norte-americanos.
Segundo Munhoz (2004), o Plano Marshall provou-se tão bem-sucedido que, muito tempo depois, especialistas preconizavam a necessidade de “um outro Plano Marshall” para resolver os problemas no Oriente Médio, no Vietnã
14 O nome do plano era uma homenagem ao então secretário de Estado dos EUA, George
Marshall.
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ou na América Central. No entanto, para o secretário Marshall, o plano só po- deria funcionar na Europa Ocidental, pois somente lá havia força de trabalho qualificada, economia industrial de grande potencial e sociedades políticas am- plamente estáveis (Lafeber, 1989, p.458).
A intervenção norte-americana na reconstrução, em especial, da Alema- nha Ocidental, tornou-se motivo de preocupação para os soviéticos. Moscou desconfiava que os capitalistas estivessem muito próximos de garantir o acesso ocidental aos cobiçados recursos naturais da União Soviética.
Com isso, a resposta foi a articulação do Plano Molotov, também conheci- do como Conselho para a Assistência Econômica Mútua (Comecon), formulado em 1949, que propunha a organização da produção industrial e a coordenação do comércio exterior dos países na zona de influência soviética.
Apesar do relativo sucesso no estabelecimento de pactos comerciais bila- terais controlados pela União Soviética, o Plano Molotov não alcançou o suces- so comparável ao obtido pelo Plano Marshall.
Em um segundo momento, os EUA romperam o tratado de Postdam ao incluir em 1949 a Alemanha Ocidental em uma organização militar que tinha como objetivo estabelecer um compromisso de cooperação estratégica em tempo de paz e uma obrigação de auxílio mútuo em caso de ataque da URSS a qualquer um dos países-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Não demorou muito para que a URSS também criasse seu tratado para o caso de uma possível futura agressão dos membros da Otan, o Tratado de Ami- zade, Cooperação e Assistência Mútua, conhecido como o Pacto de Varsóvia, criado em 1955.
O reconhecimento da bipolaridade acontece com o discurso proferido pelo ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill em Fulton, no Missouri, no dia 5 de março de 1946 na presença do presidente Truman. Naquele dia, apontando para o Leste Europeu sob a influência comunista soviética, Churchill manifestou preocupação em conter o “perigo vermelho” com o que ele de-
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nominou de “cortina de ferro”.15 Mais tarde, seu medo se materializava, tendo o Muro de Berlim16 como o seu símbolo.
31. 2. A crise da ordem mundial
O confronto tecnológico foi uma das características básicas da Guerra Fria, especialmente para a corrida armamentista. Tanto os Estados Unidos quan- to a União Soviética procuraram ter os arsenais nucleares mais numerosos e as tecnologias mais avançadas, o que seria um indicador de superioridade.
Este confronto tecnológico resultou em uma das representações mais fortes da Guerra Fria, que foi o equilíbrio do arsenal nuclear dos dois países. Em tese, esse equilíbrio bélico evitaria uma nova guerra, pois aquele que atacasse primeiro correria o risco de sofrer um terrível e destruidor contra-ataque, muito mais devastador do que o seu ataque inicial – situação que seria denominada na década de 1980 de “the day after”.17 Em outras palavras, o mundo não teria a chance de conhecer um vencedor.
Se esses armamentos evitaram, de fato, uma guerra entre os EUA e URSS, não evitaram a escalada da violência no mundo e o aumento dos conflitos re- gionais. Na verdade, o aumento da capacidade bélica dos países, em armas nucleares e convencionais, intensificou ainda mais os problemas das regiões que estavam nos planos de expansão das influências dos EUA e URSS, o que foi um ponto político delicado na equação do equilíbrio do poder. A sombra de qualquer incidente, dependendo dos resultados, poderia resultar em um ata- que nuclear, ou seja, mesmo conflitos menores poderiam levar a uma Terceira Guerra Mundial.
15 Para ler e ouvir o discurso no original, acesse: <http://www.hpol.org/churchill/>.
16 Em 1961, o governo da então República Democrática Alemã, constroi um muro que
cerca toda Berlim ocidental da Berlim oriental, isolando os capitalistas em um enclave dentro da zona comunista.
17 Esta expressão surgiu a partir de um filme de mesmo nome, que tratava justamente do dia seguinte a uma guerra nuclear. O dia seguinte (The Day After), Estados Unidos, dirigido por Nicholas Meyer, 1983.
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A Guerra da Coreia (1950-1953)18 foi o primeiro exemplo do confronto ar- mado indireto. Os Estados Unidos apoiaram os coreanos capitalistas, e a URSS e a China, os coreanos comunistas. Para evitar esse confronto, muitos desses incidentes tiveram participação direta dos EUA e URSS com tropas e armas con- vencionais, mas limitados dentro da sua área de influência – a superpotência enviava apenas uma parte das suas forças para uma região em conflito, pro- curando mostrar ao seu inimigo que ele não poderia vencer e obrigando-os a abrir negociações de paz.
Em 1962, essa política de “equilíbrio do terror” provocaria a pior crise entre as superpotências: a crise dos mísseis de Cuba, que foi o episódio culminante da Guerra Fria. No final do verão norte-americano de 1962, os Estados Unidos tomaram conhecimento do transporte de armas e tropas soviéticas à Cuba para defender a ilha de um possível novo ataque, como o que ocorrera na Baía dos Porcos. Os soviéticos orientaram seu embaixador em Washington para que as- segurasse aos norte-americanos que os deslocamentos eram apenas de armas defensivas.
Em comunicado oficial emitido pela Agência Tass19 em 11 de setembro de 1962, os soviéticos afirmavam que não havia necessidade do envio de armas nucleares, pois o poder dos mísseis instalados em território soviético era sufi- ciente para alcançar qualquer alvo potencial no Ocidente.
Dois dias depois, o presidente Kennedy prometia que não haveria uma invasão da ilha a não ser que Cuba ameaçasse outras nações do hemisfério ou que uma base militar ofensiva fosse instalada. Nos dias 15 e 16 de outubro, ficou claro para Kennedy e seus assessores, através do exame de fotos tiradas por aviões espiões, que mísseis nucleares estavam efetivamente sendo instalados em Cuba. A resposta norte-americana foi a imposição de um bloqueio naval que durou treze dias e que levou o mundo à beira da Terceira Guerra Mundial (Bignetti, 2009, p.72).
18 Tecnicamente, os dois países estão em guerra, pois não houve um tratado de paz ou algo
semelhante.
19 Agência Telegráfica da União Soviética (em russo), responsável pela comunicação oficial
da URSS.
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Depois da crise dos mísseis, o presidente Kennedy e o presidente russo Krouchtchev iniciaram uma política de dissuasão, que resultou nos tratados de limitação de armamentos estratégicos, executados por Nixon, Ford e Carter, de um lado, e Brejnev, de outro, na década de 1970, e mesmo nos acordos de re- dução de armas nucleares da década de 1980. Desta forma, foram criados três tratados: Os Salt (Strategic Arms Limitation Treaty)20 I e II e o Start,21 na década de 1990.
Estes esforços visavam a não proliferação das armas nucleares. O poten- cial nuclear das duas superpotências e dos respectivos meios (aéreos, marítimos e terrestres) de lançamento, embora equilibrado naquele momento, atingiu proporções preocupantes que obrigaram à celebração, em 1972, do Salt I, que tinha como objetivo estabelecer limites à produção daquelas armas em cinco anos.
Interessante é que a corrida armamentista não terminou com esse trata- do . As numerosas equipes de pesquisadores associadas à pesquisa militar (de ambos os lados) conseguiram desenvolver outros tipos de armas não abrangi- das pelo Salt I e a corrida armamentista continuou.22
Como resultado dessa manobra, no fim da década de 1970, vários novos sistemas de armas estavam a caminho das linhas de produção mais do que du- plicando o potencial nuclear e convencional armamentista, criando condições para o Salt II, em 1978.
Na foto a seguir, podemos ver o presidente Jimmy Carter (à esquerda) e o
presidente da URSS, Leonid Brejnev, em Viena, assinando o Salt II.
20 Tradução livre: Tratado de Limitação de Armas Estratégicas.
21 Tradução livre: Tratado de Redução de Armas Estratégicas.
22 Algumas características do Salt I eram: não haver proliferação de pontos de lançamento; a linha de defesa nacional de ambos ter pelo menos 1.300 km de distância entre elas; e substituir as armas mais antigas por mais modernas, mantendo o número.
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Um momento histórico
Neste momento, o tratado incluía as definições detalhadas dos sistemas a serem controlados e a verificação pela Comissão Permanente de Consulta por meio de foto-reconhecimento.
Para ambos os lados, também ficou acordado o não desenvolvimento de mais nenhum sistema de armas nucleares, bem como o princípio de não inter- ferência nos meios do outro ou de encobrimento que impedissem a verificação dos termos do acordo.
Como o congresso norte-americano não ratificou o acordo, na visão so- viética isto era um sinal de que o tratado não iria seguir. Esse impasse somente viria a se resolver com o tratado Start, assinado pelos presidentes dos Estados Unidos, Ronald Reagan, e do soviético, Michael Gorbatchev, em 1994.
A evolução da produção e os efeitos dos acordos de armas nucleares po- dem ser observados no seguinte gráfico disponibilizado no site do Le Monde Diplomatique.
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De fato, a produção de armas e de monitoramento da superfície terrestre via satélite e tecnologia aeroespacial foram setores em que a União Soviética obteve resultados positivos na competição com os Estados Unidos. Os sovié- ticos possuíam mísseis intercontinentais, quase mil ogivas nucleares em aviões bombardeiros, assim como 3.500 ogivas em submarinos. Mas esse investimento na tecnologia militar custou muito caro para a União Soviética, uma vez que o país precisou deslocar recursos dos investimentos sociais para a manutenção do desenvolvimento bélico.
Isto provocou ao longo dos anos uma crise na economia soviética. No final da década de 1980, por exemplo, isto aparece sob a forma de escassez de bens de consumo, hipertrofia do setor de bens de produção e gastos impro- dutivos. Desta forma, a contrapartida social desse quadro aparece num baixo padrão de vida dos cidadãos soviéticos.
Os gastos exagerados para manter a gigante máquina de guerra, aliado aos princípios sociais do marxismo, já mostrava problemas ainda na década de 1960, como aponta Guerra (1988). Mas foi com Mikhail Gorbatchev23 que a URSS enfrentou o maior desafio.
Quando Gorbatchev chegou ao poder, a URSS já enfrentava um dos pio- res momentos econômicos e sociais, o que também refletiu no campo político. Seu discurso trouxe uma grande novidade em função da acentuada gravidade da crise, poisafirmou que não era possível avançar se o país continuasse com a manutenção do regime político e econômico, propondo medidas políticas e econômicas drásticas: a Perestroika (reestruturação) e a Glasnost (transparência).
A Perestroika era o plano político que consistia em cortar os gastos mili- tares para equilibrar as contas. Esta ação permitiu a reestruturação da econo- mia, enfrentando a ineficiência da produção agrícola e industrial, os excessivos gastos com a corrida armamentista, a estrutura política e econômica dema- siadamente burocratizada, e a falta de opções para os modelos de produção impostos, alheios à realidade da população.
Por sua vez, tal reestruturação econômica não seria possível sem a Glas-
nost, a abertura democrática e transparência das relações políticas da URSS.
23 Último presidente da URSS de 1985 a 1991.
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Contudo, o projeto de Gorbatchev trouxe duas consequências. A princí- pio, houve o apoio popular, na tentativa de carrear o que se configurou como um processo democrático jamais visto na URSS. Por outro lado, expôs as ma- zelas do país. Além da insatisfação econômica, a abertura política possibilitou a emersão de problemas de ordem étnico-nacionais, que anos de linha dura conseguiram sufocar ou esconder, dando-lhes uma dimensão alheia aos inte- resses do país.
Gorbatchev iniciou um novo diálogo com as repúblicas que formavam a URSS, permitindo uma maior flexibilização das relações com Moscou, o que, de certa forma, fomentou o início das manifestações para a futura saída dos países integrantes da URSS.
Na ânsia de buscar sucesso em seu programa, Gorbatchev foi buscar acordos com os Estados Unidos para a redução do arsenal nuclear, retirou as tropas do Afeganistão e tentou uma maior aproximação com a Europa capita- lista, apoiando a queda do Muro de Berlim e a reunificação da Alemanha. Esses fatos criaram muita insatisfação, principalmente entre os militares tradicionais, os chamados linha dura.
Estas ações propiciaram um malsucedido golpe de Estado, em agosto de 1991. A população e até mesmo o meio militar não apoiou essa investida, o que permitiu a volta de Gorbatchev ao poder. Mesmo depois do fracassado golpe, a situação econômica e social não melhorou, facilitando a fragmentação do poder de Moscou sobre as demais repúblicas soviéticas.
Um mês depois do golpe, as repúblicas bálticas da Estônia, Letônia e Li- tuânia declararam a independência em relação a Moscou. Na sequência, foi a vez da Ucrânia, em 1º de dezembro, e depois as outras 15 repúblicas soviéticas, em 11 de dezembro de 1991.
Mas foi no dia de Natal de 1991 que Mikhail Gorbatchev declara oficial- mente o fim da URSS e renuncia à presidência do país. Depois disso, a bandeira com a foice e o martelo é retirada do Kremlin. O fim da URSS foi transmitido via satélite para o mundo todo (veja aqui).
Logo após a declaração da dissolução da URSS, a Federação Russa ficou como sua sucessora, permanecendo com mais da metade do antigo território soviético, além da maioria do seu parque industrial e militar.
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Um sistema unipolar?
Mesmo com a queda da URSS e, consequentemente, o fim da Guerra Fria, o quadro político não resultou em um mundo homogeneizado ideologi- camente pelo capitalismo. Ainda hoje, os conflitos internacionais expressos nas múltiplas guerras locais expõem com clareza os interesses geopolíticos contra- ditórios, até mesmo quando se trata aparentemente de conflitos exclusivamen- te étnicos ou religiosos.
De fato, o fim da Guerra Fria consolidou o deslocamento do mundo do “velho” modelo econômico e político de estilo eurocêntrico, fundado em valo- res seculares e numa forma de capitalismo marcado pela centralidade da ex- ploração dos países pobres, influência e dominação militar, através da limitação das relações comerciais internacionais, para um modelo econômico e político baseado na produção e no consumo em massa, na defesa do livre-comércio internacional, no modelo político estadunidense intitulado democrático, nas empresas de capital aberto, na centralidade do capital financeiro e no desdo- bramento dos potenciais capitalistas em escala mundial.
Essas mudanças vieram reforçar outras visões da ordem mundial, como a pluralista e a globalista. Para os pluralistas, os problemas políticos deveriam ser resolvidos por um choque de gestão a partir dos parâmetros de “boa gover- nança” estabelecidos pelas instituições financeiras internacionais (Banco Mun- dial e Fundo Monetário Internacional). Para os globalistas, a emergência das redes sociais (Facebook, por exemplo) e das novas tecnologias da informação e comunicação, a ampliação dos movimentos culturais e do capitalismo global flexível, multiplicam os atores que participam da ordenação mundial. As fron- teiras dos Estados não seriam mais suficientes para a representação do mapa político mundial.
A política de contenção da Guerra Fria foi apenas a última versão de uma tendência que remonta ao século XIX. A partir dos anos 1990, apesar da suposta ordem unipolar, outros temas colocam em questão a hegemonia dos Estados Unidos, como os circuitos mundiais das drogas e negócios ilícitos, os fluxos mi- gratórios e o aumento vertiginoso de refugiados, a fragilidade da economia e das instituições políticas.
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Capítulo 32
Novos atores e escalas de ação
Um início de conversa
No dia 06 de agosto de 1945, o mundo assistiu estarrecido à explosão da primeira bomba atômica, em Hiroshima. Quase todos os edifícios foram com- pletamente destruídos, matando de imediato 60 mil pessoas e milhares de ou- tras vítimas alguns meses depois, em decorrência da contaminação radioativa. O Japão se renderia às forças aliadas no mês seguinte, então sob a liderança dos Estados Unidos, encerrando a Segunda Guerra Mundial.
Os efeitos da explosão nuclear em Hiroshima foram devastadores e des- pertaram a consciência da capacidade destrutiva da humanidade, em escala planetária. Contudo, a mobilização dos pacifistas não foi suficiente para evitar a corrida armamentista, que acumulou um arsenal atômico capaz de destruir 120 vezes a vida na Terra (Pringle; Spigelman, 1981 apud Viola, 1987).
Como vimos no capítulo anterior, a Geopolítica mudou imensamente desde 1989. Após a queda do Muro de Berlim, o mundo teve um deslocamento de tensões e uma crescente participação econômica, política e cultural do que fora chamado por muitos anos como “Oriente”. As nações “orientais” e “ociden- tais” que eram, até então, disputadas pelo ideário capitalista ou socialista, passa- ram a produzir e consumir em escala cada vez maior, desvalorizando os preços dos produtos industriais. Por sua vez, os países periféricos mais pobres, tanto da
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África como da América Latina, tiveram suas principais mercadorias (commodi- ties agrícolas e minerais, principalmente) sobrevalorizadas. Assim, a antiga divi- são Norte (países ricos) e Sul (países pobres) foi relativizada, com a emergência de países como o Brasil e a África do Sul, formando novos arranjos políticos no cenário internacional, com a valorização das matérias-primas semiprocessadas e dos recursos naturais.
A elevação do preço do petróleo, desde o início da década de 1970, pode ser considerada um marco desta nova tendência, que transformou a escassez de recursos numa ameaça ao equilíbrio do poder mundial, não apenas porque colocou em jogo a riqueza das nações mais poderosas, mas também a sobera- nia dos países pobres.
Foram os movimentos ecológicos os primeiros que deram visibilidade a esses problemas de escassez dos recursos naturais, despertando a consciência da destruição do solo através de seu uso abusivo (incluindo a sua contamina- ção); das inundações e alterações do clima; da ameaça à vida biológica nos oce- anos, lagos e rios, devido à poluição de suas águas; da poluição da atmosfera em função da concentração de atividades industriais em áreas superpovoadas.
Diante desse quadro de exacerbada degradação ambiental em escala planetária, os movimentos ecológicos propuseram um novo sistema de valo- res sustentado no equilíbrio ecológico, na justiça social, na não violência e na solidariedade com as gerações futuras (Capra, 1986). Por causa de suas preocu- pações, esses movimentos podem ser considerados, juntamente com os paci- fistas, um ponto de inflexão na história da mobilização social e da ação coletiva. Tanto os pacifistas como os ambientalistas são porta-vozes de bandeiras que ultrapassam as fronteiras de classe, sexo, raça e idade (Bobbio, 1982 apud Viola, 1987), o que propiciou o surgimento de uma nova safra de partidos políticos, os partidos verdes ou ecopacifistas. Este foi o caso do primeiro partido verde, o Partido dos Valores da Nova Zelândia, fundado em 1969, que conseguiu num curto período afetar profundamente a cultura política, ecologizando os dois partidos tradicionais (Trabalhista e Nacional) que se alternavam historicamente no poder. É também a situação atual do Partido Verde Alemão, que está in- fluenciando profundamente a social-democracia, introduzindo no seu seio a importante corrente ecossocialista.
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Essa nova agenda despertou o interesse dos jovens pela política mundial, e a facilidade de acesso às informações e a divulgação dos problemas ecológi- cos pelas mídias (primeiro pela televisão, depois pela Internet) certamente con- tribuiu para isso. É por isto que vamos dar destaque neste capítulo às escalas de ação destes novos atores geopolíticos.
32.1 A agenda ambiental
O mercúrio é um metal pesado que pode ser encontrado em compostos químicos utilizados, por exemplo, na produção de cloreto de polivinila, mais conhecido como PVC. Durante anos, uma fábrica localizada em Minamata, no- Japão, lançou resíduos de mercúrio nas águas da baía, de onde a população local extraia sua principal fonte de alimentos: os peixes. O mercúrio dissolvido na água do mar foi introduzido na cadeia alimentar, contaminando a comuni- dade de pescadores.
Esse triste episódio começou a ser observado na década de 1950 e re- sultou no reconhecimento dos efeitos da contaminação por mercúrio no or- ganismo humano. Altas dosagens de mercúrio no organismo podem provocar sérios comprometimentos no sistema nervoso, gerando problemas auditivos e cegueira. A este quadro patológico passou a se denominar “Síndrome de Mi- namata”, em homenagem às vítimas da contaminação naquela baía japonesa.
É evidente que problemas de contaminação ambiental e de uso preda- tório dos recursos naturais, como o de Minamata, não se restringem ao mundo pós-guerra ou aos últimos dois séculos da era industrial. O que é novo nesses episódios é a escala do impacto ambiental. No início do século XXI, a devasta- ção dos recursos naturais alcançou uma escala planetária, e as nações passaram a ter de lidar com este tipo de problema.
Apesar da emergência do movimento ecológico ter ocorrido a partir da década de 1950, foi a partir de 1970 que a temática ambiental se transformou numa agenda política mundial. O marco desse processo foi a realização em Estocolmo da Primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, em 1972.
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Nessa Conferência, foram discutidos elementos de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas em uma lista de 26 princípios, que estipulava ações para o estabelecimento de planos de preservação ambiental pelas nações. Ao mesmo tempo, a Conferência garantia a soberania nacional, ou seja, a liberdade de cada país explorar seus próprios recursos naturais. Muitos desses princípios transformaram-se, ao longo das décadas seguintes, em metas de negociação da agenda ambiental mundial.
O chamado “Clube de Roma”, formado por cientistas, industriais e polí- ticos, teve uma participação decisiva na Conferência de Estocolmo, apresen- tando a proposta do crescimento zero para a economia mundial, ideia que foi melhor sistematizada com a publicação do Relatório de Meadows (1973).
Os autores desse relatório simularam as consequências da interação entre os sistemas do planeta Terra com os sistemas humanos, a partir de cinco variáveis: população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos e esgotamento de recursos. Respaldados em projeções computacionais sobre o crescimento exponencial da população e pelo esgotamento dos recursos naturais, poluição ambiental e a fome, previram o caos mundial em menos de quatro gerações.
Assim, pela primeira vez, a degradação do meio ambiente foi associa- da ao crescimento econômico. Desde então, vários relatórios, tanto da ONU24 como de organizações não governamentais, ajudaram a construir um paradig- ma teórico da chamada ecologia política. Segundo Viola (1987), essa vertente ecológica passou a criticar não apenas as relações contraditórias geradas pela sociedade (como o faz o marxismo), mas também, e fundamentalmente, as re- lações contraditórias entre sociedade e natureza.
Essas reflexões apontavam para a necessidade de tornar compatível a melhoria nos níveis de qualidade de vida e a preservação do ambiente. Desta forma, o movimento ecológico trouxe também a oportunidade de se construir
24 Pode-se citar as convenções de Berna (proteção de habitats) e Genebra (poluição
atmosférica), e os relatórios de Montreal de 1987(sobre o CFC).
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uma nova agenda política25 a partir da crítica ao modelo de desenvolvimento em vigor.
Para dar resposta à necessidade de harmonizar os processos ambientais com os socioeconômicos, maximizando a produção dos ecossistemas para favorecer as necessidades humanas presentes e futuras, um conceito que se construiu a partir de então foi o de desenvolvimento sustentável. Esse concei- to ganhou notoriedade com a publicação, em 1987, do relatório que ficou co- nhecido como Nosso futuro comum, da Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento (1988), presidida pela sra. Brundtland, ex-primeira-ministra da Noruega, que se transformou na base das discussões da ECO 92 ou RIO 92.
Dentre os principais assuntos abordados no Rio de Janeiro em 1992, estão a discussão de como fazer com que os países em desenvolvimento tivessem acesso às tecnologias não agressivas ambientalmente e fortalecer, concomi- tantemente, as instituições dedicadas aos estudos dessas tecnologias. Nessa Conferência teve origem o documento denominado Agenda 21, aprovado e assinado por 175 nações presentes no encontro.
De acordo com a Agenda 21,26 cada país se comprometeu em poder co- operar no estudo de soluções para os problemas socioambientais, envolvendo não apenas o governo, mas também as empresas, as organizações não gover- namentais e todos os setores da sociedade. Para isto, cada país teve que se organizar para elaborar o seu próprio documento, como ocorreu no Brasil a par- tir dos trabalhos coordenados pela Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável (CPDS) e da Agenda 21 Nacional.
Em 1997, na cidade de Kyoto no Japão, foi assinado um novo documento da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas: o Protocolo de Kyoto, cujo objetivo foi comprometer as nações mais industrializadas a reduzir em 5,2% as emissões de gases estufa que interferem no aquecimento da Terra, no período de 2008 a 2012.
25 Devido a esse novo caráter do movimento ecológico, ele se transforma no eixo do
surgimento de uma nova safra de partidos políticos, denominados partidos verdes.
26 A íntegra do documento está disponível em: <http://www.ecolnews.com.br/agenda21/>.
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Apesar da grande maioria dos países ter assinado o Protocolo de Kyoto, os maiores poluidores, como os Estados Unidos (veja o gráfico a seguir), resistiram em apoiar o documento, alegando os prejuízos que o controle da emissão de carbono poderia causar nas cadeias industrial, energética e automotiva.
Início da descrição:
Gráfico de barras, faz a relação entre a emissão per capita de Gás Carbônico, em tonela- das, e a renda do Produto Interno Bruto, de diferentes países, em dólares.
No eixo X, barras de diferentes cores, distribuem os valores do Produto Interno Bruto, em cinco faixas: menos de 2000 dólares; de 2000 a 5000 dólares; de 5000 a 10000 dólares;
de 10000 a 20000 dólares; e mais de 20000 dólares. E no eixo y do gráfico, observamos a variação de Emissão de Gás Carbônico, que vai de zero a vinte toneladas.
Uma seta horizontal mostra que a emissão de Gás Carbônico em relação, à média do Produto Interno Bruto, não chega a uma tonelada per capita, nos países pobres.
Outra seta horizontal mais acima, indica que a média mundial, fica por vota das quatro toneladas. E finalmente, uma seta bem acima, indica que a média dos países ricos, ultrapassa as doze toneladas.Nos extremos do gráfico, temos Estados Unidos como maior emissor de gás carbônico, com um pouco menos de vinte toneladas per capita, e Uganda com quase zero.
Fim da descrição.
Países emissores de CO2 (Bando Mundial, 2004)
No ano de 2002, foi realizada a Conferência de Johannesburgo, conhe- cida como Rio+10. O objetivo dessa reunião foi avaliar o progresso das metas estabelecidas na ECO 92, principalmente com relação à Agenda 21. O principal resultado da Conferência foi a formação da Cúpula Mundial de Desenvolvimen- to Sustentável, tornando a avaliação da Agenda 21 uma atividade permanente da ONU.
A Cúpula Mundial de Desenvolvimento Sustentável foi outra oportunida-
de para reavaliar os progressos da Agenda 21, agora vinte anos depois da ECO
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92. O Rio+20, evento que ocorreu em junho de 2012 no Rio de Janeiro, sediou, pela segunda vez, a Cúpula da Terra das Nações Unidas.
Outro aspecto interessante é ressaltar que desde a ECO 92, paralelamente, várias entidades da sociedade civil criaram outros espaços para discussões. O primeiro foi o Fórum Global 92, do qual participaram cerca de 10 mil organiza- ções não governamentais (ONGs) no primeiro evento no Rio de Janeiro.
Foram essas organizações que deram origem a outro importante docu- mento – a Carta da Terra27 – que buscava pautar, pelos olhos críticos e pelos interesses legítimos da cidadania, as ações globais dos governos e dos órgãos oficiais em prol do desenvolvimento sustentável.
Assim, pode-se perceber que as ONGs começaram a exercer um papel inovador no cenário político ambiental. Através da capacidade de exercer pres- são política, amplificar a escala de denúncias, captar recursos, mobilizar e sen- sibilizar setores da mídia internacional, e, acima de tudo, produzir e disseminar informações, converteram-se em atores capazes de influenciar e pressionar os governos nacionais, os organismos internacionais e demais agências bilaterais e multilaterais. Dentre inúmeros exemplos, podemos destacar algumas ONGs pioneiras no mundo e no Brasil.
A Fundação para Proteção da Vida Selvagem, a WWF é uma ONG ambien- tal criada em 1961. Preocupada com a defesa de espécies ameaçadas de extin- ção, de áreas virgens e de apoiar a educação ambiental, essa organização vem conseguindo atrair muitos interessados na defesa do meio ambiente, captando recursos para o desenvolvimento de projetos ambientais. A ONG também vem investindo em parcerias com o setor privado. Para a instituição, essas são ações importantes para ampliar o trabalho de conservação da natureza e uso susten- tável dos recursos naturais. (Veja um vídeo institucional da ONG) Uma segunda organização que destacamos é o Greenpeace, criado em 1971 no Canadá. Essa ONG ganhou notoriedade mundial por sua maneira arrojada de protestar (que, por sinal, ficou como característica de suas ações). Veja um vídeo, mostrando a organização em ação. A primeira atividade do Greenpeace foi a organização de
27 O documento pode ser lido na integra em: <http://www.cartadaterrabrasil.org/prt/text.
html>.
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uma expedição às ilhas Aleutas, no Estreito de Bering, como forma de protesto contra testes nucleares que os Estados Unidos estavam realizando naquele lo- cal. Desde então, o Greenpeace espalhou-se pelo mundo e tem representações em 41 países, inclusive no Brasil.
Um bom exemplo de ONG brasileira que atua no campo ambiental é a SOS Mata Atlântica. Vindo de outras mobilizações ambientais para conter a devastação da Mata Atlântica brasileira, os organizadores desta ONG consegui- ram aglutinar diversas entidades para criar em 1986 a SOS Mata Atlântica. Ten- do como objetivo a capacitação de pessoas para a geração de conhecimento sobre o bioma, a SOS Mata Atlântica possui várias parcerias. Com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por exemplo, a ONG publicou o Atlas dos remanescentes florestais da Mata Atlântica, aliando o sensoriamento remoto no monitoramento do bioma.
Avaliando o trabalho dessas organizações não governamentais podemos concluir que o debate ambiental se converteu num processo social em múlti- plas escalas. Recentemente, no Brasil, as ONGs tiveram um papel importante, juntamente com outras associações e universidades na discussão da reforma do Código Florestal Brasileiro.28 A consciência ambiental se ampliou e com isto cresceu a percepção da noção de risco e o entendimento de que as transforma- ções em curso estão se convertendo em ameaças cada vez mais preocupantes.
Outra vertente de atuação é a de empresas que introduziram no universo do mercado as preocupações ambientais, como a criação do selo verde ou de certificações dos produtos (ISO 14000, por exemplo).
O ISO 14000 é um conjunto de normas ambientais, não obrigatórias e de âmbito internacional, que possibilita a obtenção da certificação ambiental. Valle (1995) afirma que após implantada pelas empresas e exigida pelos consumido-
28 Sugerimos que os professores acessem dois links para compreender mais sobre esse
debate. O primeiro é do Senado federal, onde há um resumo da discussão no Congresso, disponível em: <http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2011/12/09/o-projeto- de-reforma-do-codigo-florestal-em-detalhes>. O segundo link é da ONG do Instituto de Pesquisa da Amazônia. No site, há uma cartilha que analisa os problemas que o novo Código Florestal trará para a defesa do meio ambiente. Disponível em: <http://www. ipam.org.br/saiba-mais/Reforma-do-Codigo-Florestal/8>.
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res, a Série ISO 14000 tem beneficiado os produtores responsáveis, preocupa- dos com o meio ambiente, contra os concorrentes inconsequentes e irrespon- sáveis que, por não respeitarem o meio ambiente, conseguem produzir a um menor custo, repassando parte dos custos não internalizados para a sociedade, via externalidades negativas.
As empresas que atuam na exploração de recursos naturais também pro- curam adotar uma agenda ambiental, como forma seja de compensar o uso do patrimônio ecológico, seja de reverter para a sociedade os benefícios obtidos com os empreendimentos, como é o caso da Petrobrás. Verifique os programas ambientais em desenvolvimento pela petroleira brasileira neste link. Observe que a Petrobrás investe tanto na recuperação e conservação de florestas e áreas naturais, como na gestão de corpos hídricos superficiais e subterrâneos, assim como em projetos de educação ambiental.
Embora o debate ambiental (tanto na escala local, nacional e internacio- nal) tem se mostrado como um espaço de ação dos diversos atores, como os Estados, ONGs, empresas e a sociedade civil, uma crítica que pode ser feita a essas iniciativas é a falta de maior integração das atividades dessas organizações na luta por mais justiça ambiental e na resistência ao avanço de um capitalismo predatório.
Os maiores avanços neste sentido estão relacionados à crescente globa- lização não só de agendas de muitos movimentos, mas também das formas de luta, notadamente a partir da incorporação das novas tecnologias de infor- mação. Isto possibilita a formação de meios de comunicação, ou mesmo redes locais, nacionais e transnacionais. A partir da construção de novas relações entre atores na sociedade civil, Estados e organizações internacionais, multiplicam-se os canais de acesso a informações, o que se configura como um importante e estratégico instrumento de discussão e reflexão no mundo contemporâneo.
32.2 A força dos jovens
O conceito de juventude é uma invenção do mundo pós-guerra, frequen- temente associado à música de protesto. O estilo musical mais relevante para a juventude é o rock, que surgiu na década de 1950 com os Saddlemen, depois
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chamados de Bill Halley and the Comets. Eles cantavam e dançavam o rock and roll, um estilo de música que iria marcar época. O líder Bill Halley empunhava e tocava o maior símbolo do rock: a guitarra elétrica.
Outros astros surgiram na sequência, como Chuck Berry e Elvis Presley, entre tantos outros músicos estadunidenses. Este último passou a combinar uma série de elementos que foram apropriados pela indústria cultural: um ído- lo produzido para ser comercializado. De Elvis se vendia tudo: seu comporta- mento, seus discos, seu estilo de vestir, enfim, tudo servia para que a indústria cultural ganhasse mais dinheiro.
Na década de 1960, o movimento do rock and roll mudou de eixo, embora mantendo o inglês como idioma principal. As bandas mais bem-sucedidas no show business internacional eram da Inglaterra. Na cidade de Liverpool, quatro rapazes filhos de operários e nascidos em Birmingham – John Lennon, Paul Mc- Cartney, George Harrison e Ringo Star – formaram a banda The Beatles, talvez a mais popular de toda a história do rock. Inicialmente, eles vestiam ternos bem cortados e usavam cabelos curtos. Porém, com o passar dos anos, deixaram os cabelos crescer e abandonaram seus ternos para protestar contra a ordem esta- belecida. Um protesto contido, sem outro objetivo que o de apontar problemas humanos, mas que nunca teve realmente algo de revolucionário.
Além dos Beatles, outras bandas e personagens surgiram na década de 1960, como The Rolling Stones, cujo líder, Mick Jagger, pode ser considerado uma das principais lideranças do rock mundial. A cantora Janis Joplin e o guitar- rista Jimmi Hendrix, ambos norte-americanos, tinham seu excepcional talento associado à rebeldia, na época representada pelo consumo de drogas e pela prática do amor livre.
Em agosto de 1969, o rock teve seu momento de glória, que acabou por se transformar em um símbolo do desejo da juventude de mudar os rumos da humanidade. Cerca de 500 mil jovens reuniram-se no Festival de Woodstock, nos Estados Unidos, no qual se apresentaram mais de 30 bandas. Foram três dias de sonho, nos quais o lema “faça amor, não faça a guerra”, uma das máxi- mas do movimento hippie, foi praticado por muita gente.
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Nas décadas de 1970 e 1980, a visão romântica dos roqueiros dos anos 1960 foi substituída por movimentos mais heterogêneos, como dos punks e do hip hop.
Os punks surgiram no final dos anos 1960 na Inglaterra. Eram filhos de operários e moradores da periferia que viram suas possibilidades de emprego reduzidas com o avanço da internacionalização da economia. Os jovens que viviam excluídos socialmente, em bairros violentos e sem perspectivas de mu- dança, aglutinaram-se em grupos que praticavam atos de violência e andavam sujos e rasgados. Punk, em inglês, significa “podre”, “lixo”.
Proclamando a anarquia e a luta contra a sociedade de consumo, choca-
ram a opinião pública por usar palavrões e pregar a destruição do sistema.
Após seu surgimento na Inglaterra, os punks espalharam-se pelo mundo, despertando cada vez mais o interesse dos jovens das periferias urbanas. Pro- curando assumir uma postura de contestação contra o Estado e o sistema, eles consideram o seu movimento como internacionalista, formando uma comple- xa rede de comunicações entre jovens do mundo inteiro, através de fanzines, jornais e boletins publicados pelo próprio movimento, cartas, discos e fitas das bandas de rock preferidas, que os mantêm muito bem informados das tendên- cias que estão surgindo em cada país.
O hip hop surgiu nos Estados Unidos um pouco mais tarde, na década de 1970. Podemos encontrar nesse movimento cultural a combinação de três tipos de manifestação artística: o rap (tipo de música centrada no ritmo e na poesia das letras, em detrimento da melodia), o grafite (pintura artística de murais de rua ou em estampas de camisetas) e o street dance ou break (dança que com- bina o ritmo dos pés com o equilíbrio corporal com as mãos em performances de duplas de dançarinos em desafio).
O que diferencia estes movimentos culturais jovens daquela juventude rebelde dos anos 1950 e 1960 é a crescente autonomia dos grupos de rap dos compromissos de mercado da indústria cultural. Utilizando-se das inovações tecnológicas propiciadas pela internet (rádios virtuais, blogs e portais de acesso) e pelas redes sociais (Facebook, por exemplo), um número crescente de grupos culturais alternativos tem consigo circular as suas ideias e manifestações artísti- cas pelo mundo inteiro.
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Segundo Bobbio (1995, p.23), “os inovadores comportamentos políticos das gerações jovens seriam resultantes de uma relativa emancipação do controle da família e da escola, bem como do desenvolvimento de uma ‘cultura’ específica da adolescência e da juventude”. Sabe-se que a heterogeneidade de interesses e expectativas dos jovens é enorme. Vivendo a adolescência, muitos se apresentam abertos a novas experiências afetivas e emocionais, enfrentando e transgredindo padrões de comportamento impostos. Por causa disto, desde a Revolução Francesa, os jovens foram se tornando protagonistas de inúmeros movimentos políticos e artísticos. Nos dias atuais, os jovens encontram- se organizados em torno de movimentos culturais e se apresentam como difusores de estilos centrados na música, no lazer e no consumo de produtos identificados com a cultural juvenil. É esta a força dos jovens no cenário político contemporâneo.
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Capítulo 33
A crise do mundo árabe
Um início de conversa
Os Estados Árabes modernos se formaram em territórios que estiveram sob domínio dos turcos otomanos, desde o século XVI até o final da Primeira Guerra Mundial, e das potências europeias, em especial a Grã-Bretanha e a Fran- ça, até meados do século XX. O surgimento do Estado de Israel, na Palestina sob mandato britânico, reforçou as correntes nacionalistas árabes e alterou de modo profundo o quadro geopolítico regional. Nesse capítulo, vamos abordar esse processo de formação e os seus desdobramentos.
33.1. A formação do mundo árabe
O profeta Maomé unificou quase todas as tribos existentes na Península Arábica em torno do monoteísmo islâmico. Após a morte do profeta, ocorrida em 632, seus sucessores criaram um vasto império: em 750, ele já se estendia pelo Oriente Médio e pelo Norte da África, difundindo a cultura e a língua ára- be, e avançava na direção da Península Indiana e do Afeganistão. Assim, surgiu um mundo árabe que abrange o Oriente Médio até os limites da Pérsia (atual Irã) e a África do Norte.
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No século IX, muitos povos turcos na Ásia Central já haviam se conver- tido ao islamismo. No século XI, os turcos islamizados ocuparam a Península da Anatólia, na Ásia Menor, unificando os vários principados da região sob seu poder. No início do século XIV, um líder militar turco da Anatólia fundou a di- nastia otomana, sob a qual os turcos anexaram vastas extensões do Império Bizantino e se expandiram na direção da Península Balcânica, convertendo ao Islã populações sérvias, croatas, macedônias, albanesas e búlgaras. Durante o longo período de hegemonia do Império Turco-Otomano, o centro político do Islã deslocou-se para Istambul (a antiga Constantinopla).
O Império Turco-Otomano entrou em decadência no século XIX, em grande parte devido à ingerência das potências europeias. De acordo com o geógrafo Edilson Adão C. Silva (2003, p.81):
O transcorrer no século XIX é marcado pela degeneração do Império Otomano. Muito contribuiu para isso a influência que adquiriram os estrangeiros europeus na vida econômica do Estado turco. Dentre os estrangeiros, foi a França quem primeiro chegou, presente na orla comercial otomana desde o século XVI. No século XIX, contudo, outras nações europeias vieram gozar, junto ao Império, de privilegiados acordos comerciais, em detrimento turco: Grã-Bretanha, Reino Austro-Húngaro, Alemanha, Itália, Rússia. Através de tratados, acordos comer- ciais desfavoráveis, concessões, o Império Turco ia sendo gradativamente sub- jugado, num ritmo simultâneo ao da cobiça imperialista que irrompia naquele instante, selando assim o destino daquela porção do globo.
Nesse contexto, os territórios africanos do Império Turco-Otomomano foram sendo sucessivamente ocupado pelas potências europeias. A Argélia foi anexada pela França em 1830; a Tunísia e o Marrocos se tornaram protetorados franceses, respectivamente, em 1881 e 1891. Em 1912, a Itália ocupou a Líbia.
A crise final do Império Otomano foi desencadeada no contexto da Pri- meira Guerra Mundial (1914-1918). Por meio do Tratado Sykes-Picot,29 negociado secretamente e concluído em 1916, França e Inglaterra dividiram a região que
29 O documento recebeu o nome de seus negociadores, o britânico Mark Sykes e o francês
Georges Picot.
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atualmente corresponde à Síria, ao Iraque, ao Líbano e à Palestina em áreas administrativas: Síria e o Líbano foram transferidos para o controle francês, en- quanto o Iraque, a Transjordânia (atual Jordânia) e a Palestina passaram ao con- trole britânico. Observe o mapa:
Acordo Sykes-Picot
Em 1917, o ministro das relações exteriores da Grã-Bretanha, Arthur James Balfour, declarou que seu governo apoiava a ideia de estabelecer um lar nacio- nal judeu na Palestina. A Declaração Balfour pode ser interpretada como início do processo que daria origem à criação do Estado de Israel, pois, desde o final do século XIX, o movimento sionista, surgido na Europa como expressão do
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nacionalismo judaico, já incentivava a migração judaica para a Palestina, então parte do Império Otomano.
Com o encerramento da Primeira Guerra Mundial, o Império Otomano desapareceu, dando lugar à República laica da Turquia. Os territórios otomanos no norte da África foram repartidos e colonizados, enquanto aqueles do Ori- ente Médio passaram a ser administrados pela França e pela Grã-Bretanha na forma de mandatos, reconhecidos pela Liga das Nações em 1922. Os Estados Árabes contemporâneos surgiram quando esses territórios se tornaram Estados independentes.
33.2. Tabuleiro político atual
As correntes nacionalistas árabes surgiram no contexto da crise do Império Otomano, ainda no século XIX, e ganharam um enorme impulso com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, quando elites regionais passaram a combater o es- quema de dominação imperial. Desde a década de 1920, a luta nacional árabe voltou-se contra o imperialismo francês e britânico, e principalmente, contra a colonização sionista da Palestina.
Na Tunísia, por exemplo, o partido nacionalista Destur (Partido da Constituição), pioneiro na luta pela independência, surgiu em 1920. Na década seguinte, seria subsitituído pelo Neodestur, comandado pelo advogado Habib Burguiba, que preconizava o boicote aos produtos franceses e o não pagamento de impostos às autoridades coloniais. Na Palestina, os conflitos entre as populações árabes e os imigrantes judeus explodiram na década de 1930. No Egito, a Irmandade Muçulmana, organização religiosa fundada em 1929, protestava contra o colonialismo, pregava a autoridade exclusiva do Corão e propunha a abolição de todas as instituições implantadas pelo Ocidente.
No contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a ideia da unidade árabe e a sua consequência – o nacionalismo pan-arabista – passou a ganhar força na região. A Liga Árabe, fundada em 1945, pela Síria, Egito, Líbano, Transjor- dânia, Iraque, Arábia Saudita e Iêmen buscou unir todos os países árabes em um “pacto de solidariedade” na luta contra a ocupação estrangeira.
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Entretanto, em 1947, a ONU aprovou um plano de partilha da Palestina, prevendo a criação de um Estado judeu e um Estado árabe. Em 1948, quando se completou a retirada das tropas britânicas, os palestinos, apoiados pela Liga Árabe, entraram em guerra contra recém-criado Estado de Israel. Com a derrota árabe, Israel ampliou seu território e os territórios reservados ao Estado árabe dos palestinos foram colocadas sob controle da Jordânia e do Egito. Veja os mapas no seguinte link:
O nacionalismo pan-árabe encontrou seu apogeu na década de 1950,
sob a liderança do coronel egípcio Gamal Abdel Nasser.
O Egito, formalmente independente desde 1922, mantinha um tratado com a Grã-Bretanha que autoriza os ingleses a ocupar todo o território do país em caso de guerra ou de tensão internacional. Como resultado, quando termi- nou a Segunda Guerra Mundial, 80 mil soldados britânicos estavam estaciona- dos no país, então governado pelo rei Faruk. Questionando a presença inglesa e os termos do armistício assinado com Israel, o coronel Nasser liderou o Movi- mento dos Oficiais Livres, que exigia a completa libertação do Egito.
A monarquia egípcia foi derrubada em 1952, e Nasser assumiu o poder buscando neutralizar a influência britânica e modernizar a economia egípcia. Em 1956, nacionalizou o Canal de Suez, controlado por acionistas franceses e britânicos, além de firmar acordos de cooperação econômica e militar com a antiga União Soviética. Em 1958, um acordo entre o Egito e a Síria fez surgir o primeiro Estado pan-árabe, a República Árabe Unida (RAU) com capital no Cai- ro. Em 1961, porém, um golpe de Estado na Síria dissolveria a efêmera república. Leia mais sobre o governo de Nasser a seguir:
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O Saladino dos tempos modernos
“Em 23 de junho de 1956, Gamal Abdel Nasser foi eleito presidente do Egito com 99,84% dos votos, aos 37 anos. Até 1970, data de sua morte, manteve-se no poder com uma política econômica que o identificou com a revolução nacional, cujas palavras de ordem eram a reforma agrária e o desenvolvimento industrial.
Uma primeira reforma foi iniciada em setembro de 1952. Até então, 280 proprietários dividiam aproximadamente 600 mil feddans (a unidade de medida agrária do Egito, equivalente a cerca de 4.200 m2), enquanto mais de 2 milhões de camponeses não tinham mais que 2 feddans. A partir de então, as propriedades passaram a ser limitadas em 200 feddans por pessoa e 300 por família. Essa reforma foi complementada, em 1961, por uma nova medida que restringiu as propriedades a 100 feddans.
Da mesma forma, Nasser, que publicou em 1953 um texto intitulado Filosofia da revolução, empreendeu, em janeiro de 1957, uma “egipcianização” de setores dos bancos, de seguros e de empresas estrangeiras de importação e exportação. Uma nova etapa foi concluída em 1960, quando foram nacionalizados os grupos bancários, principalmente o poderoso Msir, que detinha 75% dos depósitos. Essas nacionalizações deviam, segundo o rais [cargo de chefe de Estado], permitir a criação de 1 milhão de empregos.
No plano internacional, Nasser pregou, desde 1955, um “neutralismo positivo” diante dos blocos soviético e ocidental, reafirmado-o em abril daquele ano na conferência de Bandung, na Indonésia, onde, ao lado do chinês Zhou Enlai e do indiano Nehru, ele lançou as bases do movimento dos países não alinhados. Essa política lhe permitiu se tornar, rapidamente, o chefe carismático, e até ídolo, do mundo árabe. Conheceria seu apogeu com o caso do Canal de Suez.
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Em junho de 1956, Washington voltou atrás em sua promessa de financiar a barragem de Assuã. Como represália, Nasser nacionalizou a Companhia do Canal, uma decisão que provocou primeiro a ira de Londres e Paris, depois o desembarque de tropas estrangeiras em Suez, em novembro – os últimos soldados britânicos tinham deixado o país em junho –, com apoio de Israel. Diante das pressões estadunidenses e soviéticas, a
operação europeia fracassou e acabou transformando Nasser em herói do mundo árabe” (Lebeau, 2011).
A guinada egípcia inspirou diversos movimentos nacionalistas no mundo
árabe.
A Líbia teve sua independência reconhecida pela ONU em 1952, quando o emir Sayyid Idris al-Sanusi foi coroado rei Idris I, e, no ano seguinte, ingressou na Liga Árabe. Porém, estadunidenses e ingleses foram autorizados a manter tropas no país, e a presença estrangeira se tornou mais significativa depois de 1959, quando a companhia estadunidense Esso descobriu vários campos de pe- tróleo em território líbio. Em 1969, um grupo de oficiais nacionalistas derrubou a monarquia. No ano seguinte, quando o jovem coronel Muamar Kadafi assumiu o poder, teve início a expulsão das tropas estrangeiras e a nacionalização dos recursos petrolíferos.
Em 1977, Kadafi instituiu o “Estado das massas” (Jamahiriya), regime no qual o poder seria (real ou supostamente) exercido por meio de milhares de comitês populares. O livro verde de Kadafi, chamado também de Base política da terceira teoria universal, foi seu sustento ideológico. Apesar dos “comitês”, o poder se apoiava de fato em um partido único, a União Socialista Árabe, totalmente con- trolado por Kadafi. (Coggiola, 2011, p.36)
Na Tunísia, a independência foi proclamada em 1956. No ano seguinte, Habib Burguiba, antigo militante do Neo-Destur, foi proclamado primeiro presi- dente da República, cargo no qual permaneceu até 1987.
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A Argélia, por sua vez, travou uma longa e dramática guerra de indepen- dência contra a França, que se prolongou entre 1954 e 1962, quando a Frente de Libertação Nacional (FLN) assumiu o poder e se tornou, até 1988, o único partido legalmente estabelecido no país.
A independência da Argélia encerrou o ciclo de levantes nacionalistas que teve lugar no norte da África entre as décadas de 1950 e 1960. Desde então, muita coisa mudou.
Sob o comando de Anwar Sadat, sucessor de Nasser, o Egito foi o primei- ro país árabe a reconhecer diplomaticamente o Estado de Israel, em 1979. Assas- sinado em 1981 por um membro da Irmandade Muçulmana, Sadat foi sucedido por Hosni Mubarak, que tornou o país um forte aliado dos Estados Unidos e permaneceu quase trinta anos no poder. Na Tunísia, Burguiba foi afastado do poder pelo seu primeiro-ministro, o general Zina El Abidine Ben Ali.
O mundo árabe depois de uma primavera
Para compreender o alcance dos movimentos de reivindicações das po- pulações árabe-muçulmanas sunitas do Marrocos, da Argélia, da Tunísia, da Lí- bia, do Egito, do Sudão (Norte), dos territórios palestinos, da Jordânia, do Líbano, da Síria, do Iraque, de Omã, do Iêmen, dos Emirados e da Arábia Saudita, reco- mendamos um bom material (que pode ser aplicado em sala de aula) de uma série de debates que ocorreu na TV do jornal O Estado de S. Paulo, que pode ser acessado neste link. O conjunto de todos os eventos desses países ficou conhe- cido como Primavera Árabe.
São 5 vídeos em que os entrevistados abordam uma questão que per- mite refletir a complexidade e os efeitos da Primavera Árabe. Além disso, o jor- nal mantém uma página especial que reúne informações atualizadas sobre o tema.
A Primavera Árabe tem como o marco o mês de dezembro de 2010, quando os jovens da Tunísia deram início à série de protestos contra a ditadura em vigor no país. Influenciados pelos manifestos na Tunísia, a população de ou- tros países árabes vizinhos também se manifestaram, transformando a região
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no palco de grandes tensões políticas e revoltas populares que impressionaram o mundo pelo forte anseio por democracia.
Salienta-se que o mundo árabe-muçulmano sunita evoluiu muito nos últimos 20 anos, tanto no plano jurídico quanto nas práticas sociais, políticas e religiosas. Com toda a onda de protestos que se espalhou gradativamente pelos países de maioria islâmica, novos atores, como as lideranças femininas, vão se destacando, fruto dessas mudanças nos países onde a classe dirigente é defensora da suna (tradição).
É justamente o grupo que luta pela manutenção da tradição que é um ponto importante de se observar na análise desta conjuntura. As mulheres não se limitam a somente participar das manifestações, elas estão liderando e or- ganizando atos de protestos e expressando sua insatisfação contra a repressão a que têm sido submetidas há séculos, derrubando o mito da submissão das mulheres árabes.
Os protestos, portanto, demonstram não apenas uma luta centralizada no setor político, mas trata-se de elementos que compõem um amplo processo de questionamento popular diante da falência de um modelo que agrada às elites e baseia-se na repressão de gênero e costumes.
Na realidade, o termo Primavera Árabe permite uma compreensão ime- diata de uma mudança propícia em razão de um movimento muito vasto que agrupa várias centenas de milhões de pessoas. Desta forma, o movimento em direção a uma democracia fundada na liberdade, na igualdade, e mesmo na laicidade, não é o mesmo em cada país sunita, longe disso.
Pelo contrário, a Primavera Árabe não reflete apenas a questão da luta por democracia. Existem ainda desdobramentos nos dias de hoje que podem ser acompanhados, além do caso da Síria e dos efeitos das eleições no Egito (ocorri- das em maio de 2012). Muitas vezes, a dificuldade de interpretarmos esses fatos está justamente na própria divisão que estabelecemos. É um emaranhado de fatores que não pode ser visto desconectado. As reações das forças conserva- doras de cada país, os interesses petroleiros, os interesses de Israel e do mundo ocidental também são sentidos a cada agitação popular, e também precisam ser levados em conta.
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Parte VIII
Gestão do território: energia e meio ambiente
José tadEu Garcia toMMasElli
Doutor em Ciências. Professor assistente doutor junto ao Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, campus de Presidente Prudente. Professor das
disciplinas de Climatologia, Hidrologia, Meteorologia e Ciências do Ambiente.
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Capítulo 34
As questões da gestão territorial e o Protocolo de Kyoto
Um início de conversa
Após a publicação do trabalho pioneiro Primavera silenciosa, de Rachel Carson (um pouco apocalítico, mas importante), desnudando todas as maze- las da ambição da agricultura dos Estados Unidos da América (EUA), o mun- do começou a olhar o ambiente com mais cuidado. Entretanto, a luta contra a ambição desenfreada – premissa básica do capitalismo – está apenas em seu início e toda a gestão ambiental tem a ingrata missão de enfrentar os interes- ses econômicos. Tais interesses são agudamente dominantes, e as vitórias são apenas das pequenas batalhas do cotidiano das organizações que se propõem a enfrentar essa luta desigual. Não fossem os idealistas, as condições atuais da Terra poderiam ser bem piores. É importante lembrar que a segregação terri- torial é amplamente orquestrada pelo capitalismo, e os frutos são para poucos, restando à grande massa apenas as sobras do processo de “desenvolvimento”. A apropriação dos recursos para alimentar a ambição do capitalismo é o maior desafio a ser enfrentado pela humanidade.
Independente do que se explora, há sempre a necessidade de uso de
energia e não há como obtê-la sem utilizar os recursos que o ambiente fornece.
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Desde o princípio, quando se começou a erigir as primeiras indústrias, o com- bustível foi extraído do ambiente.
A utilização e o fornecimento de energia são primordiais para a sociedade atual, no modo em que a conhecemos. Além disso, são causadoras dos maiores impactos sobre o ambiente, mais do que qualquer outra atividade humana, o que se deve às características extremamente dispersas e de escala ampla das atividades dependentes de energia.
Em primeira instância, as preocupações inerentes à energia e ao ambien- te são de caráter estritamente local, como as atividades de extração, transporte ou as emissões poluidoras (nocivas). Entretanto, em face da difusão e a amplia- ção da escala dessas atividades, os problemas também ampliaram a escala e passaram a ser regionais e globais, como as chuvas ácidas (veja neste link uma representação esquemática), as emissões de gás carbônico, entre outros. As- sim, esses problemas passaram à esfera dos interesses políticos globais e a ser assunto para os debates e regulamentações internacionais, criando um novo panorama geopolítico global, conforme visto na parte 7.
34.1. Sobre gestão ou ordenamento do território
Para a análise da questão energética que será desenvolvida nesta parte, o ponto de partida é o entendimento de que o território é “o limite espacial dentro do qual o Estado exerce de modo efetivo e exclusivo o poder de impé- rio sobre pessoas e bens” (Silva, 2001). Também se pode definir território como “porção do espaço geográfico onde são projetadas relações de poder, que ge- ram uma apropriação e um controle sobre este espaço, independentemente se ele é ou não territorializado por um ou mais agentes” (Magdaleno, 2001).
Desta forma, ao se pensar em gestão do território, há que se levar em consideração o território geográfico (concreto) e as suas demais modalidades, nem sempre tão plausíveis e perceptíveis, pois são mais abstratos (podemos exemplificar com procedimentos culturais, normas, leis, entre outros). Nestes dois universos, que não estão apartados, vivem os atores que interagem no desenvolvimento e produzem respostas, que nem sempre atendem de modo equânime a todos. Assim, as questões relativas ao ordenamento territorial po-
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dem ser de vários tipos, tais como: gestão do território, políticas urbanas, planos diretores, zoneamentos ecológicos e/ou econômicos e análises e intervenções nos desafios e conflitos advindos do próprio ordenamento territorial. O papel da gestão do território cabe, normalmente, ao Estado, mas nem sempre a me- lhor atuação é feita por ele, principalmente quando está contaminado pelos interesses de segmentos específicos envolvidos no conflito que demandou a gestão territorial.
Por definição, gestão do território é a prática estratégica, que faz uso das ferramentas científicas e tecnológicas, do poder controlador, nas escalas espa- cial e temporal, da coerência das decisões e ações para alcançar um objetivo e que expressa equitativamente, a nova racionalidade e a tentativa de ordenar o caos. A gestão do território deve, necessariamente, passar pelo entendimento e interpretação dos fatores sociais, políticos, econômicos e, na atualidade, dos fatores ambientais, para uma postura equilibrada, sem relegar os aspectos fun- damentais do lugar. A natureza não pode ser dissociada dos processos sociais e econômicos, e deve ser abolida essa dicotomia.
Na medida em que os processos políticos e sociais atuam na produção do espaço surgem os conflitos, que nada mais são do que a materialização das relações de poder. Qualquer que seja a escala espacial, esses conflitos, latentes ou em curso, entre distintos grupos sociais sobre a destinação dos recursos do ambiente, adicionados à relação de causa e consequências dos fenômenos so- ciais e políticos, são a fonte básica de informação a ser incorporada nos proces- sos de gestão do território (Becker, 1995).
Em síntese, podemos dizer que a gestão do território é uma prática de
poder no espaço, tendo o território como arena política (Becker, 2001).
O ordenamento territorial é, concomitantemente, uma disciplina cientí- fica, uma técnica administrativa e uma política que se desenvolve numa pers- pectiva interdisciplinar e integrada, com tendência ao desenvolvimento equili- brado das regiões e à organização física do espaço dentro de uma estratégia de conjunto (Conselho da Europa, 1988). Os objetivos do ordenamento territorial devem incluir, proteção ambiental, gestão responsável dos recursos naturais, desenvolvimento social e econômico amplo e equilibrado das regiões (qual- quer que seja a escala definida) e melhoria da qualidade de vida dos ocupan-
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tes desse território, entre outros. Para que esse ordenamento se efetive são ne- cessárias várias condições, como, por exemplo, participação dos habitantes do território, levantamento e obtenção de recursos financeiros, estabelecimento e gerenciamento dos níveis de decisão com cooperação entre eles e utilização racional do território.
O ordenamento territorial pode ser entendido como resultado da gestão do território, conciliando políticas públicas dos vários setores da sociedade para racionalizar a utilização dos recursos e a ocupação do espaço, conforme as pre- missas da sustentabilidade do desenvolvimento a longo prazo (Schubart, 2000).
O ordenamento territorial é, em essência, um processo dinâmico resultan- te de um jogo de poder entre o Estado, os grupos sociais, as empresas, e vários outros interesses, inclusive o interesse capitalista. Numa ótica pragmática: se há deficiência de planejamento, coloque o ordenamento territorial para funcionar!
Com as novas exigências ambientais em curso, a ECO-92 indicou que o ordenamento territorial incorporasse o mecanismo de regulação do uso do ter- ritório sob a égide de três princípios fundamentais: (a) eficiência do uso dos recursos, pois quanto menos energia for utilizada, menos matéria-prima será necessária; (b) manter as condições políticas e sociais, bem como a diversida- de de recursos e; (c) como nova abordagem de planejamento e governo, des- centralização da distribuição territorial da decisão. Todas essas premissas foram ratificadas na Rio + 20, com a roupagem de “desenvolvimento sustentável”. En- tretanto, ao se considerar os resultados obtidos nesse evento, os avanços foram muito tímidos e mais uma vez ficou patente a força do capital que define seus próprios territórios (sempre em vantagem estratégica).
Apenas para complementar esta leitura sobre as questões territoriais alia- das às novas questões ambientais, como a geração de energia, é importante lembrar que são necessárias algumas normas para efetivar esse ordenamen- to territorial. Assim, o zoneamento é uma ferramenta importante. Para efetivar uma política ambiental, a Lei 6938/81 (Brasil, 1981) prevê meios, caminhos e ins- trumentos para tal, por meio de: (a) padrões de qualidade ambiental; (b) zonea- mento ambiental; (c) avaliação de impactos ambientais e; (d) licenciamento de atividades efetivamente e/ou potencialmente poluidoras.
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Zoneamento é definido conceitualmente como um instrumento de orga- nização do território a ser obrigatoriamente seguido na implantação de planos, obras e atividades públicas e privadas. Também estabelece medidas e padrões de proteção ambiental destinados a assegurar a qualidade do ambiente, dos recursos hídricos e dos solos, e a conservação da biodiversidade, garantindo o desenvolvimento sustentável e a melhoria das condições de vida da população (conforme o art. 2º, Decreto Federal n. 4297/02 – Brasil, 2002). Assim, há a ne- cessidade de ampliação da gama de investimentos com o intuito de formar e capacitar várias categorias de representantes, concretizando os planejamentos para posteriormente executar a gestão do território. Esse é um papel primordial dos poderes públicos.
Considerando que o tema a ser desenvolvido nesse texto se refere às questões de geração de energia e suas interações com o ambiente, não há como fugir de dois temas estreitamente relacionados: o Protocolo de Kyoto e os combustíveis renováveis. Será enfocada mais detalhadamente a temática dos agrocombustíveis, que parece ser a que gerará maior impacto nas questões de gestão territorial e nas questões ambientais, principalmente no Brasil.
34.2. O Protocolo de Kyoto
34.2.1. O aquecimento global
Até início dos anos 1980, as questões sobre o aquecimento global eram preocupação de um corpo restrito de cientistas, cujas opiniões sobre o assunto eram distintas, questionando-se se esse fenômeno efetivamente ocorria. Com os aportes de estudos mais detalhados, evidenciou-se que as temperaturas do planeta Terra estavam se alterando e mostrando uma tendência de aumento, se considerada a escala de tempo de dois séculos. Com base em análises dos da- dos de temperatura da Terra, ficou claro que o aumento de temperatura média do planeta, de fato, ocorria. Essas tendências se mostram mais evidentes após o ano de 1850 (aproximadamente), com o advento da Revolução Industrial (cf. gráficos neste link).
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Após os anos 1990, a maior parte da comunidade científica concordou que a temperatura da Terra estava em processo de elevação. Entretanto, não houve unanimidade sobre essa questão, pois alguns poucos estudiosos entendiam que não havia elementos para fazer uma afirmativa tão categórica como essa.
Alguns dados comprovam a hipótese do aquecimento global. Por exem- plo, nos últimos cem anos a temperatura global média da Terra aumentou entre 0,4oC e 0,8oC, dependendo de como se computam as médias e as correções associadas. Além disso, as décadas de 1980 e 1990 foram as mais quentes do século XX.
A grande pergunta que se coloca é: essa variação é antropogênica ou natural? Ou, de modo mais sutil, até que ponto as atividades antrópicas estão fomentando essa alteração dos padrões térmicos do planeta?
A incerteza que se põe é sobre a natureza dessas mudanças e quais as suas consequências, uma vez que há a certeza de que as alterações climáticas já estão em andamento. Os estudiosos do assunto, consorciados pelo Painel Inter- governamental sobre mudanças climáticas (Intergovernmental Panel on Clima- te Change – IPCC), acreditam que, ao permanecer esse quadro de aquecimento global, os elementos climáticos entrarão em novos padrões e/ou recombina- ções que poderão gerar, entre outras consequências: aumento de intensidade e frequência dos eventos climáticos extremos; aumento dos níveis dos oceanos e regressão das áreas litorâneas; redução da água potável por invasão da água salina; redução e/ou alteração da diversidade biológica e funções ecológicas dos ecossistemas, tais como adaptação e migração das espécies; mudança da vocação agrícola e da área plantada nas diversas regiões do planeta; e, por fim, aumento de doenças tropicais, por migração dos vetores, alterando a saúde e o bem-estar de várias populações.
34.2.2. A relação entre a temperatura do planeta e o conteúdo de gás
carbônico da atmosfera
Após a constatação do aumento da temperatura da Terra, houve a ne- cessidade de se responder: como e porquê? Não são respostas elementares, se considerarmos que a Terra não é um sistema simples, mas um ecossistema
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global. O aquecimento afetaria todas as especificidades e complexidades dos sistemas ecológicos.
As primeiras evidências sobre o que poderia ser responsável pelo aqueci- mento do planeta deveriam estar relacionadas ao sistema que mantém a Terra relativamente aquecida: sua atmosfera. A temperatura média da Terra é, atual- mente, da ordem de 15oC, que ocorre devido à presença de vários componen- tes da atmosfera que “seguram” o calor emitido pelo planeta (que, por sua vez, foi absorvido da radiação solar). Na ausência da atmosfera a temperatura média global seria -18oC.
O nome técnico dessa forma de calor emitida pela Terra é “radiação infra- vermelha”, e uma de suas propriedades conhecidas é a afinidade de interação com o vapor d’água e com o CO2 atmosféricos. Essa radiação infravermelha é fa-
cilmente absorvida por esses dois elementos atmosféricos (e outros em menor proporção, tais como o metano e os óxidos nitrosos), que retêm parte do calor e emitem o resto para o espaço. Essa retenção de calor na atmosfera terrestre foi fundamental para gerar vida como a conhecemos e recebeu o nome de “efeito estufa”, pois é semelhante ao aquecimento interno que ocorre numa estufa ou casa de vegetação.
Este tipo de arranjo termodinâmico levou alguns pesquisadores a se inte- ressarem em medir os teores dos componentes atmosféricos. Assim, surgiram as primeiras evidências da relação entre a temperatura média da Terra e o teor de gás carbônico atmosférico (CO2), constatadas por Keeling, pesquisador que media sistematicamente o teor de CO2 no Havaí.
A curva de Keeling mostra a evolução da concentração de CO2 nos últimos anos. Há, inegavelmente, um aumento da concentração do CO2 atmosférico nos últimos 40 anos: ela passou de cerca de 315 ppmv (partes por milhão em volume) para mais de 360 ppmv (veja gráfico neste link).
Quando se compara os dados das concentrações de CO2 versus a tempe- ratura do planeta, vê-se que há uma inter-relação entre essas duas variáveis. Os dados mostram que nos últimos 800 mil anos essa foi a tônica da relação.
Os argumentos que levam ao Protocolo de Kyoto dizem que a tempe- ratura da Terra está aumentando em função do aumento das concentrações de CO2. No entanto, isso traz uma questão perturbadora: quem foram os res-
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ponsáveis pelos picos de emissão nos períodos anteriores, quando não haviam atividades humanas como nos níveis atuais?
Os céticos, baseados em princípios sólidos e coerentes, argumentam em duas outras linhas. De acordo com a primeira, há uma defasagem de 200 a 1400 anos entre os picos de temperatura e de concentração de CO2, mostrando que
as respostas de temperatura em relação às das elevações de concentração não são tão imediatas como querem os articuladores do Protocolo (leia-se, IPCC). A segunda linha de argumentação diz que é claro que há essa relação, mas que não se pode afirmar quem é causa e quem é efeito, ou seja, é a temperatura que aumentou porque os níveis de CO2 se elevaram ou são os níveis de CO2 que se eleva-
ram porque a temperatura aumentou? Segue-se a linha de que existem vários ou- tros fatores que podem fazer com que a temperatura da Terra sofra alterações, como a frequência de eventos de vulcanismo submarino ou as alterações nos parâmetros da órbita terrestre em relação ao Sol (ciclos de Milankovitch).
Entretanto, independente das incertezas a respeito do assunto, as estru- turas políticas que comandam interesses maiores entenderam que seria mais importante criar demandas indiretas, atendendo suas próprias demandas, usan- do a roupagem do discurso de proteção da natureza dentro das novas nuances e estratégias de adaptação, sempre operantes nas estruturas do capitalismo. Assim, a ONU criou o IPCC.
34.2.3. O IPCC e o Protocolo de Kyoto
Em 1988, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (United Nations Environment Program – Unep) e a Organização Mundial de Meteoro- logia (World Meteorological Organization – WMO) estabeleceram o IPCC, cujo propósito IPCC é avaliar o estado de conhecimento nos vários aspectos cientí- ficos, impactos ambientais e socioeconômicos e estratégias de resposta para a mudança de clima.
O Primeiro Relatório de Avaliação do IPCC, de 1990, confirmou, como evi- dência científica, a mudança do clima da Terra, e teve um forte efeito sobre políticos e o público em geral. O relatório também apresentou um papel signifi- cativo na implantação da Convenção-Quadro para a Mudança de Clima (United
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Nations Framework Convention on Climate Change – UNFCCC) pela Assem- bleia Geral da ONU. O UNFCCC foi adotado na Conferência do Rio em 1992 e entrou em vigor em 1994.
O Segundo Relatório de Avaliação do IPCC sobre a mudança do clima, em 1995, introduz as negociações que conduziram à adoção do Protocolo de Kyoto na UNFCCC em 1997.
O corpo supremo da Convenção é a Conferência das Partes (Conference of the Parties – CoP) que inclui os 180 países que ratificaram ou aprovaram o acordo.
A cronologia das reuniões da CoP na UNFCCC pode ser vista no texto
anexo (clique aqui).
Entretanto, pouco se poderia fazer em termos do Protocolo até 2004, considerando que faltava o número mínimo de países para ratificar o tratado, pois segundo as normas da ONU seriam necessários 55% dos países com maior emissão de CO2 para ratificar o acordo. O grande impasse era a Rússia, que, por
fim, ratificou o acordo na segunda metade de 2004. Após 16 de fevereiro de 2005, o Protocolo passou a vigorar legalmente.
O Protocolo de Kyoto provê condições de criar certificados de redução de gases do efeito estufa transferíveis por investimento em projetos de mitigação operados pelas condições definidas pela implementação conjunta ou pelo me- canismo de desenvolvimento limpo (veja texto adicional).
Ademais, o Protocolo de Kyoto abre a possibilidade de países incluídos no
Anexo 1, que são os maiores emissores de CO2, com um excesso de quantida- des limite estabelecidas, transferirem unidades de quantidades limite estabele- cidas para outros países que tenham necessidade para atender às reduções de emissão criando o Comércio Internacional de Emissões.
Aqui é necessário um pequeno parênteses para comentar essa decisão. Veja que se cria uma estrutura que flexibiliza a política de como atuar frente ao excesso de emissões, ou seja, se eu tenho excesso de emissões posso pagar a alguém que reduza essas emissões em seu país (processos de captura de CO2).
Em síntese, é uma distorção do princípio do poluidor pagador,1 ou seja, se eu
1 Em Economia ambiental, o princípio do poluidor pagador prevê que se impute a
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poluo, eu pago alguém para despoluir, numa tentativa de se eximir de parte da responsabilidade.
Entretanto, o que não está dito é que as atividades que mais emitem CO2
são as que geram mais riqueza e estão associadas à indústria e à tecnologia. As
atividades agrícolas são as que menos emitem CO2, mas têm valor agregado reduzido e geram pouca tecnologia. Além disso, as atividades compensatórias demandam crescimento de florestas, as quais países desenvolvidos parecem não ter interesse em plantar, pela simples questão de ocupação territorial. Para eles, é mais fácil plantar nos países mais pobres, com custos bem inferiores, que arcar com o custo e ônus político desse novo arranjo territorial.
Todo o problema de redução das emissões de CO2 pode ser tratado de maneira a se reduzir o CO2 presente na atmosfera. A maneira mais simples de se efetuar essa redução é “prender” o CO2 na superfície da Terra, por meio do plantio de vegetação que captura o CO2 atmosférico e o converte em matéria orgânica vegetal. Essa técnica foi denominada de “sequestro de carbono” e está intimamente ligada às “implementações conjuntas”, aos “mecanismos de desenvolvimento limpo” e ao “comércio de redução de emissões”. Esses “me- canismos flexíveis” permitem aos países buscar atender, com melhor relação custo/benefício, aos objetivos do Protocolo de Kyoto. Observe já no próprio processo de negociação a influência clara dos interesses do capital.
Os objetivos do Protocolo de Kyoto estabelecem que as partes (leia-se
países) incluídas no Anexo 1 (leia-se maiores emissores de CO2) devem, indi- vidual ou conjuntamente, assegurar que suas emissões antrópicas agregadas, expressas em dióxido de carbono equivalente, dos gases de efeito estufa não excedam suas quantidades atribuídas, calculadas em conformidade com seus compromissos quantificados de limitação e redução de emissões, com vistas a reduzir suas emissões totais desses gases em pelo menos cinco por cento (5%) abaixo dos níveis de 1990 no período de compromisso de 2008 a 2012.
No ano de 2012, os níveis determinados pelo Protocolo não foram cum-
pridos. Na verdade, os teores de CO2 continuam a se elevar sistematicamente,
responsabilidade do poluidor em arcar com os custos resultantes da poluição. Veja mais detalhes em: <http://www.iapmei.pt/iapmei-art-03.php?id=502>.
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segundo as medidas mais atuais. Para completar o quadro, os resultados da Rio + 20 pouco avançaram nessa política de redução de emissões, pois a crise econômica dos EUA e da Europa, por si só, representam um problema que de- manda atenção prioritária dos programas políticos.
Evolução dos teores de CO2 atmosférico medidos em Mauna Loa – Havaí
Uma das normas do Protocolo diz que qualquer unidade de redução de emissões, ou qualquer parte de uma quantidade atribuída, que uma parte transfira para outra parte deve ser subtraída da quantidade atribuída à parte transferidora. Aqui, observa-se o mecanismo que permitiu gerar o comércio de redução de emissões, associado aos processos de certificação e às implemen- tações conjuntas.
Também há outra norma do Protocolo que estabelece que qualquer re- dução certificada de emissões que uma parte adquira de outra parte deve ser acrescentada à quantidade atribuída à parte adquirente, ou seja, quem compra é que efetivamente é dono do crédito e quem vende, não.
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Capítulo 35
Energias alternativas e desenvolvimento sustentável
Um início de conversa
Em junho de 2010, o presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama, afirmou que a construção de um futuro que beneficie a todos é co- letiva, e que assim que saíssem da recessão, o processo de transição para as energias limpas teria potencial de fazer crescer a economia e criar milhões de empregos – mas só se a transição for acelerada. Em seguida, ele conclamou a nação a se unir – trabalhadores e empresários, cientistas e cidadãos e os setores públicos e privados.
Donald Trump, empresário do ramo dos cassinos e hotéis que está entre as 500 pessoas mais ricas do planeta,2 declarou que “A China e a Opep estão comendo nosso almoço”, e T. B. Pickens, financista que é uma das 900 pessoas mais ricas do planeta, disse que “o petróleo estrangeiro está matando nossa economia”.
Em sintonia com os discursos acima, está o discurso oficial dos EUA, se- gundo o qual as propriedades básicas do etanol derivado de biomassa são as únicas que se ajustam à condição de transformá-lo numa das principais so-
2 A ordem dos mais ricos pode ser vista no site da revista Forbes.
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luções da América para enfrentar o aumento dos preços dos combustíveis, o problema da dependência do petróleo estrangeiro e a necessidade de criação de empregos.
Na sequência, o discurso é complementado com a afirmação que o eta- nol é mais barato que a gasolina. Durante o tempo que se exportou trabalhos e capital para países como a China a taxas alarmantes, as duzentas biorrefinarias que agora compõem a paisagem dos EUA representam um suspiro e, talvez, re- presentem o marco zero para se desenvolver biocombustíveis mais avançados.
Entretanto, de acordo com essa postura oficial, inovar a indústria e re- cuperar o foco para a comercialização do etanol de celulose implica que as agências governamentais e as agências reguladoras, responsáveis em manter o acesso a uma energia disponível, devem reconhecer a urgência do problema de dependência do petróleo estrangeiro e de como esses combustíveis alter- nativos precisam ser produzidos o mais rápido possível, como fizeram com o petróleo.
Fica evidente a urgência de gerar energia para satisfazer a demanda dos EUA e manter seu status quo de potência mundial e maior consumidora de ener- gia e água per capita do planeta. O discurso versa sobre energia limpa, seguindo as pressões ecológicas internacionais, mas o subliminar denota apenas energia. A preocupação é emblemática se nos atentarmos para o termo transição acele- rada e se unirmos a isso a estratégia recente dos EUA, com sua política incisiva sempre em conflito com as regiões fundamentais de produção de petróleo, fonte primária de energia dos dois últimos séculos.
Há que se considerar que desde os primórdios da Revolução Industrial as sociedades desenvolvidas produziram e consumiram energia de modo insus- tentável. Isso impactou seriamente no ambiente, tendo em vista a exploração intensa de todos os recursos naturais disponíveis, tais como as florestas – para lenha –, os depósitos de carvão e os depósitos de petróleo. Essa prática irres- ponsável levou ao problema atual do limiar do esgotamento dos recursos, ou ainda, os poucos disponíveis estão se tornando proibitivos, em termos de preço e de exploração. Os recursos que estão disponíveis, via de regra, encontram-se nas regiões menos desenvolvidas, o que leva os países desenvolvidos a buscar esses recursos nessas regiões. Entretanto, os países menos desenvolvidos tam-
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bém anseiam se desenvolver e vendem seus recursos naturais para dispor de capital para empreender sua política de desenvolvimento econômico.
Deste ponto de vista, é muito conveniente o discurso ambientalista or- questrado pela ONU com um programa geopolítico que restringe o uso dos recursos naturais, principalmente os baseados em carbono, sob a insígnia do aquecimento global gerado pelo efeito estufa.
Além disso, as maiores economias do mundo são dependentes do pe- tróleo importado, cujo preço tende a ser cada vez mais elevado no mercado mundial, impactando severamente seus programas econômicos.
Assim, a estratégia é utilizar a energia renovável, principalmente porque os representantes do capital já perceberam a grande oportunidade de negó- cios e lucros nesta nova estrutura econômica.
35.2. Energia renovável
As energias “limpas”, alternativas à utilização dos combustíveis fósseis, provêm dos chamados recursos renováveis, como biomassa, água, vento, sol e geotérmica. O argumento mais utilizado para a troca da matriz de energia é que os combustíveis fósseis estão intensificando o efeito estufa, levando ao aqueci- mento global. Contudo, uma análise mais cuidadosa mostrará que o conjunto de fatores que demandam a construção de novas estruturas geradoras de ener- gia estão muito mais associados aos interesses econômicos que aos sociais e ambientais.
35.2.1. Hidreletricidade
As tecnologias de geração de energia com base nos recursos hídricos
podem ser utilizadas para gerar eletricidade ou energia térmica (vapor).
Quando se faz uso da energia hidrelétrica, em tese, minimiza-se profun- damente o uso de combustíveis, o que deixa a geração desta forma de energia relativamente independente das oscilações dos preços dos combustíveis.
Uma das maiores vantagens da hidreletricidade é a quase total ausência
de resíduos e, por isso, em tese, ela não causa poluição no ar ou na água. Este
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tipo de estrutura de geração de energia é muito mais durável se comparada a outros tipos, como as termelétricas. As hidrelétricas, se bem manejadas, podem ter vida útil de até 100 anos, ao passo que as termelétricas raramente podem ser utilizadas por mais de 30 anos. Após a construção do reservatório, a geração de energia será constante e durará por várias gerações.
Um fator importante que torna a hidreletricidade uma alternativa interes- sante é seu baixo custo operacional, pois normalmente é bastante automatiza- da e há pouca necessidade de mão de obra.
Outro aspecto econômico vantajoso das hidrelétricas é a possibilidade de redução significativa de custos se os reservatórios forem planejados e geren- ciados com usos múltiplos. Assim, em épocas de baixa demanda de energia, a água poderá ser armazenada para gerar energia nas épocas de alta demanda.
Aliados a esses fatores há que se considerar a geração de empregos e novas atividades que podem surgir em função dos grandes lagos, que normal- mente propiciam atividades de lazer, similares às praias marítimas, e incremen- tam o turismo, gerando trabalho e renda na região (e problemas, também).
Como a hidreletricidade depende do ciclo hidrológico, que é comandan- do pela energia solar, ela é uma fonte renovável de energia, pois sempre haverá chuva nas bacias de drenagem, com certa variabilidade temporal.
Entretanto, nem tudo é perfeito, pois há vários problemas que os reserva- tórios das hidrelétricas podem apresentar, como a tendência de afetar os ecos- sistemas presentes no rio que é transformado em lago. Alguns efeitos já obser- vados incluem a redução da população de peixes por causa das mudanças das características físicas e químicas da água. Além disso, o represamento altera os ecossistemas de jusante.
Se pensarmos nas questões de emissão de gases do efeito estufa, ou- tro aspecto importante e atual é que os reservatórios das regiões tropicais são grandes emissores de CO2 e metano (CH4).
Como a construção das hidrelétricas tem alto custo e alto padrão de ma- nutenção, elas devem operar por várias décadas, mas há casos de represas que foram construídas com baixa qualidade e se romperam com pouco tempo de uso, resultando em inundações e perdas de vidas. Isto representa custos para os operadores do sistema e para as vidas que não podem ser mensurados.
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Outro problema dos reservatórios diz respeito aos lugares. A construção dos grandes reservatórios implica no alagamento de áreas vastas, impactando a população que nasceu e vive em função do curso d’água e de seu entorno, que deve ser retirada desses locais. Isto significa a ruína de suas terras e meios de sobrevivência, além da completa erradicação do lugar de referência dessas pessoas. Entretanto, em razão da característica inexorável desses projetos, a re- sistência da população não consegue evitá-los, ainda que sejam executadas medidas compensatórias e mitigatórias.
A grande pergunta que se faz é: quanto custa o “lugar”? Infelizmente, esse preço não é colocado dentro dos custos da instalação de um empreendimento hidrelétrico. Também não há como por preço em lembranças, passado, referên- cias físicas das lembranças etc.
Outro problema é a alteração do comportamento geológico do entorno das grandes represas. Após o enchimento dos grandes reservatórios sempre ocorrem sismos, como o caso do açude de Açu, no Rio Grande do Norte.
Outra questão relevante de gestão territorial, principalmente nas regiões que dependem de um único curso d’água, é que as represas alteram o regime do curso d’água, e pode acontecer dos países de jusante ficar privados da água necessária para as suas atividades. Esta condição pode gerar conflitos entre os países que dependem dessa água compartilhada e aquele que a represou.
Tendo em vista que o maior problema das usinas hidrelétricas é a inunda- ção de vastas áreas de terra, normalmente férteis e bem irrigadas, atualmente existem tecnologias que permitem que se obtenha energia da água, tanto nos rios como nos mares, sem utilização de grandes turbinas, que exigem volumes enormes de água. Uma das técnicas mais promissoras são as chamadas “usinas a fio d’água”. Elas se utilizam de uma nova geração de turbinas, que são mais eficientes e necessitam apenas de pequenos reservatórios para gerar energia.
35.2.2. Energia eólica
Considerando a redução rápida das fontes de energia não renováveis e naturais, cada vez mais há a necessidade premente de se conseguir uma fonte de energia que seja renovável. Nessa ótica, aproveitar os ventos para gerar ele-
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tricidade parece se ajustar muito bem a essa demanda, pois desde os primór- dios da civilização o vento fez parte da matriz energética, como, por exemplo, os moinhos holandeses, as caravelas etc.
Atualmente, há uma forte tendência em se utilizar a energia eólica como fonte geradora de energia elétrica e esta tem crescido em ritmo acelerado. A capacidade global de geração de energia eólica aumentou de 24 gigawatts3 em 2001 para mais de 190 gigawatts em 2010, um aumento de mais de sete vezes.
Capacidade global acumulada de geração de energia eólica (em bilhões de Watts)
Muitos países fazem uso dessa nova fonte de energia que, a princípio, parece ser uma fonte “limpa”, mas que também tem seus problemas. A seguir, vejamos as vantagens e desvantagens dessa forma de geração de energia.
Em princípio alguns aspectos positivos da energia eólica podem ser cita- dos, mas talvez a maior vantagem seja a geração de eletricidade sem a liberação de qualquer tipo de poluente. Isso a torna uma fonte de energia segura e limpa,
3 Um gigawatt equivale a um bilhão de watts.
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pois não utiliza combustíveis fósseis nem outra fonte de energia não renovável, como o gás natural, carvão ou petróleo (pelo menos no ciclo de geração de eletricidade, pois a construção dos cata-ventos e geradores geram os poluentes industriais que, normalmente, fazem uso dessas fontes não renováveis).
Alguns estudiosos do assunto advogam que a energia eólica é uma das formas mais baratas de energia disponível na atualmente e pode ser utilizada por qualquer um, incluindo os agricultores pobres das áreas rurais (desde que eles possam pagar pelo preço dos geradores eólicos, que custam tanto mais caro quanto mais energia for preciso gerar).
Outra perspectiva do uso de energia eólica é que quem a produz pode vender o excedente gerando alguma renda adicional. Também podem ser construídas várias unidades juntas, normalmente denominada fazenda eólica, para maior volume de geração tornando a eletricidade disponível para um nú- mero maior de pessoas.
Fazenda eólica, com vários cata-ventos e geradores
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O vento é um recurso praticamente inesgotável, embora intermitente,
pois depende das condições da circulação atmosférica.
Afora alguns problemas já mencionados a respeito da energia eólica, há outros a serem analisados. As turbinas eólicas ficam demasiadamente expos- tas e podem ser facilmente danificadas em tempestades severas e ocorrências de raios. Além disso, os ventos não sopram sempre na mesma velocidade, o que gera oscilações na geração de eletricidade, que comprometem significa- tivamente os grandes centros urbanos, cujos picos de demanda ocorrem nos horários de menor intensidade dos ventos (fim da tarde e início da noite). Há outros aspectos como a morte dos pássaros que se chocam com as pás dos cata-ventos, o barulho das pás em contato com o vento (média de 60 decibéis) e, embora subjetivo, a poluição visual na paisagem.
Alguns estudos mais atuais (veja texto clicando aqui) revelam que as pás dos geradores eólicos são um problema de poluição ambiental ainda a ser resolvido, pois os materiais que a compõem são quase impossíveis de ser reciclados, o que gera um problema de poluição numa escala de tempos bem maior que o da utilização da turbina eólica.
Independente de suas vantagens ou desvantagens, a energia eólica é uma das melhores alternativas, com os menores impactos ambientais, e ajuda a resolver de forma ampla alguns dos problemas de geração de eletricidade, mas não resolve todos eles! Isso significa que o projeto eólico deve ser planejado e gerenciado, integrado com outras fontes de energia.
Ainda há que se pensar que a restrição básica é a persistência de ventos, que nem sempre está disponível nas regiões de maior demanda. O exemplo brasileiro mostra isso, pois a região de maior potencial encontra-se no estado do Ceará, que é distante da região de maior demanda, a região Sudeste.
35.2.3. Energia solar
Os sistemas de energia solar utilizam a energia térmica da radiação solar para gerar eletricidade (normalmente gerando vapor para turbinas) e para ge- rar energia térmica (aquecimento da água ou de outros materiais). Atualmente, algumas usinas geradoras de eletricidade com base nas células voltaicas (con-
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versão direta da radiação solar em eletricidade) já se encontram em fase ope- racional.
A energia solar total absorvida pela atmosfera terrestre, pelos oceanos e pelas massas de terra é algo em torno de 3.850.000 EJ por ano. Apenas para ter uma ideia do que isso representa, se considerarmos os dados do ano de 2002, o fluxo de energia solar disponível em uma hora é superior a toda energia mundial utilizada no ano (1 EJ = 1018 J).4 De toda essa quantidade de energia, os processos fotossintéticos capturam aproximadamente 3.000 EJ por ano, por intermédio da biomassa do planeta. A quantidade de energia solar que alcança a superfície da Terra é imensa, de modo que um ano dessa energia equivale a cerca de duas vezes toda a energia que poderia ser obtida de todos os recursos não renováveis da Terra (carvão, petróleo, gás natural e urânio).
Observando a tabela a seguir, parece que as energias solar, eólica e da biomassa seriam mais que suficientes para suprir todas as demandas de ener- gia dos habitantes da Terra. Entretanto, o aumento vertiginoso do uso de bio- massa poderá gerar interferências no sistema climático, de acordo com a visão do IPCC, ou, o que parece ser o maior problema territorial dos nossos tempos, gerar um aumento dramático nos preços dos alimentos em resposta à redução de oferta pelo desvio de usos das florestas e das culturas para a produção de combustíveis. Existem, também, problemas graves relacionados aos desbalan- ceamentos de nutrientes que podem levar a alguns descontroles ecológicos e redução drástica de biodiversidade.
Tabela – Fluxo solar anual e consumo antrópico de energia (EJ)*.
Fluxo solar (ano de 2002) 3.850.000
Vento (ano de 2002) – disponível 2.250
Biomassa (ano de 2002) – captura por fotossíntese 3.000
Uso primário de energia (ano de 2005) 478
Eletricidade (ano de 2005) 57
* EJ = exajoule = 1018 J (1 Joule = 4,198 calorias)
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Energy_Information_Administration
4 Não se preocupe com os valores absolutos, atenha-se apenas às comparações com os
demais valores e veja a infinidade de energia disponível na forma de energia solar.
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Embora a energia solar seja praticamente infinita, ela só está disponível durante o dia, o que representa um problema que demanda soluções de alto custo. Assim como a energia eólica, ela é intermitente.
A energia solar pode ser aproveitada em praticamente todo o planeta e, em linhas gerais, quanto mais próximo da região equatorial, maior o potencial de exploração da energia solar, sendo apenas a nebulosidade um obstáculo.
No caso do Brasil, a energia solar é potencialmente promissora, pois o país encontra-se na região tropical, com dias de pouca variação de fotoperíodo e in- cidência mais aguda da radiação solar, o que aumenta a eficiência dos coletores.
Entretanto, como as demais fontes de energia, a energia solar também tem suas vantagens e desvantagens. Entre as vantagens podemos citar: (a) é um recurso renovável para todos os propósitos práticos; (b) é uma energia de produção limpa (exceto nos ciclos de produção dos equipamentos) e silencio- sa; (c) é o recurso com melhor distribuição espacial (não depende de jazidas) e pode ser instalado em locais remotos longe das redes de distribuição (como nos satélites, por exemplo); (d) a energia solar é gratuita; (e) embora, longe de serem perfeitas, já existem as tecnologias de conversão de energia solar em ele- tricidade, calor e força motriz; (f) os sistemas tem baixo custo de manutenção, pois tem poucas partes móveis; (g) os pequenos sistemas são fáceis de montar, ocupam pouco espaço, são fáceis de monitorar e permitem previsões de ge- ração com boa margem de acerto; e (h) os sistemas são silenciosos e discretos.
Entre as desvantagens, podemos citar: (a) altos custos iniciais dos compo- nentes; (b) eficiência baixa (converte apenas 5% da energia radiativa em energia elétrica) e baixa potência para alguns usos específicos; (c) necessidade de ar- mazenamento eficiente para os períodos de baixa incidência de radiação solar (nebulosidade e noite); (d) necessidade de locais apropriados para se instalar as usinas, mesmo com excesso de radiação solar; e (e) as “fazendas solares”, como todo projeto de construção em larga escala, sofrem do efeito “não no meu quin- tal”, ou seja, todos querem a energia, mas não querem morar perto das usinas.
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Fazenda solar, com os painéis solares de captação focados para a torre (Local: Andaluzia, Espanha)
A principal razão de não haver um número significativo de instalações solares está relacionada ao custo, pois os combustíveis fósseis ainda são mais baratos que o investimento inicial em painéis solares. Enquanto perdurar essa condição, não veremos uma grande migração para a energia solar, embora seja fácil perceber que há mais vantagens do uso da energia solar que desvantagens.
35.2.4. Energia geotérmica
A energia geotérmica procede do calor interior da Terra e pode ser utili- zada para gerar energia térmica ou elétrica (vapor para turbinas). As usinas geo- térmicas podem ser construídas somente em locais onde exista material mag- mático mais próximo da superfície, as chamadas manchas quentes. No Brasil, isso é pouco conhecido, pois não há mapeamentos claros dessas fontes. Porém, há muitos locais onde se tem a presença de poços artesianos que jorram água quente, com temperatura acima de 70°C, o que pode ser um indicador útil.
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Esboço esquemático do funcionamento de uma usina geotérmica. As linhas vermelhas representam fluxo de
água quente e as linhas azuis de água fria.
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A energia geotérmica é uma fonte renovável e limpa, pois gera poluição no meio ambiente apenas no processo de construção das usinas. As fontes de energia, que são térmicas, podem ser na forma de rochas secas quentes, rochas úmidas quentes e vapor d’água quente.
O aproveitamento da energia geotérmica deve ser acompanhado de me- didas cuidadosas em relação ao meio ambiente e também ao seu entorno, pois pode provocar instabilidades geológicas em função da alteração das proprie- dades do meio rochoso, pela retirada e/ou reposição de material líquido. Ain- da é preciso se preocupar com o monitoramento e tratamento da água e/ou vapores provenientes das camadas subterrâneas, pois podem conter materiais nocivos à saúde (o mais comum deles são os compostos com base em enxofre).
A exploração geotérmica que é feita nas regiões que tem gêiseres e vul- cões é mais plausível. Nas demais condições, o custo sobe vertiginosamente devido às perfurações de poços profundos em rochas.
A manutenção dos sistemas tem, basicamente, dois problemas: o primei- ro é mais comum nas regiões frias do planeta, e constitui no uso de desconge- lantes que, apesar da baixa toxicidade, produzem CFC ou HCFC.5 O segundo, é a manutenção dos canos, pois a água desses sistemas costuma ser ácida, causan- do corrosão e, com muita frequência, depósitos de minerais. O descarte desses resíduos é outro aspecto a ser avaliado ao se optar por esse sistema de geração de energia.
Para mostrar que a exploração geotérmica não é apenas possibilidade, vamos lembrar alguns dados. Na Itália, já no ano de 1904, em Tuscani, utilizou-se a energia geotérmica para produzir eletricidade pela primeira vez. Como forma de aquecimento doméstico, podemos citar: Budapeste, na Hungria; Nesjavellir, na Islândia; alguns subúrbios de Paris e muitas outras cidades. A maior central geotérmica do mundo está na Califórnia, EUA.
5
Os sistemas de refrigeração, normalmente, são baseados nos gases CFC (clorofluorocarbono) ou HCFC (hidroclorofluorocarbono). O CFC já foi praticamente banido, pois atua intensamente na química atmosférica, destruindo as moléculas de ozônio. O HCFC substituiu o CFC e é milhões de vezes menos reativo que ele.
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inserir imagem 14; legenda: Usina Geotérmica de Nesjavellir – Islândia
35.2.5. Energia nuclear
A questão que permeou o desenvolvimento e a utilização dos reatores de fissão nuclear para a geração de energia elétrica gerou muita controvérsia e um debate acirrado, que teve seu pico durante os anos de 1970 e 1980, com uma intensidade sem precedentes na história das controvérsias tecnológicas.
Os proponentes da energia nuclear afirmam que esse tipo de energia é sustentável, pois reduz as emissões de carbono e aumenta a segurança ener- gética, uma vez que diminui a dependência das fontes de energia importadas, o que é verdade apenas para os possuidores de jazidas de minério de urânio e com domínio da tecnologia do ciclo do urânio.
Os defensores da energia nuclear também afirmam que ela praticamente não produz poluição do ar convencional, pela emissão dos gases do efeito estu- fa e fumaça, por exemplo, como acontece com as fontes de energia dependen-
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te dos combustíveis fósseis. Acreditam que a energia nuclear é uma maneira vi- ável para se alcançar a independência energética, para a maior parte dos países altamente industrializados. Há suposições de que as reservas de petróleo estão no limiar e devem se exaurir em breve, o que gera a suposição de que o urânio possa vir a ser o recurso mais promissor para geração de energia.
Além disso, os defensores alegam que os riscos de armazenamento dos rejeitos são pequenos e podem ser menores ainda se forem usadas as tecnolo- gias melhoradas dos reatores mais atuais. Argumentam, também, que a segu- rança operacional é excelente se comparada às outras fontes de energia.
Outro aspecto muito importante da energia nuclear é o domínio do ciclo de fissão. Esse conhecimento é importante nas estruturas geopolíticas atuais e quem domina o ciclo de processamento do urânio se aloja em um nível supe- rior da hierarquia geopolítica. É preciso lembrar que esse domínio tecnológico tem que ser feito dentro de condições de controle rígido dos órgãos interna- cionais, e que o Brasil assinou um protocolo de desenvolvimento da energia nuclear para fins pacíficos.
Do outro lado do debate, os oponentes argumentam que a energia nu- clear impõe muitas ameaças às pessoas e ao ambiente. As ameaças mais per- ceptíveis são: os problemas de processamento, transporte e armazenamento dos rejeitos nucleares radiativos; o risco de proliferação de armas nucleares e o terrorismo e, também, os riscos à saúde e ao ambiente, derivados do processo de mineração e enriquecimento do urânio.
Outro fator que os oponentes argumentam é que os reatores e seus aces- sórios são máquinas muito complexas, o que aumenta as chances de algo dar errado e ocorrerem os acidentes nucleares. Os críticos da energia nuclear não acreditam que os riscos de utilizar a fissão nuclear como fonte de energia pos- sam ser reduzidos através do desenvolvimento de novas tecnologias. Também alegam que quando são considerados todos os estágios da cadeia de produção nuclear, desde a mineração do urânio até a disposição do rejeito radiativo final, a energia nuclear ocorre com muita emissão de carbono.
Além desses argumentos há outros que podem compor a lista de aspectos negativos da energia nuclear. Em princípio, as usinas nucleares são usinas termelétricas, pois geram energia movimentando turbinas com vapor gerado
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pela água aquecida pela energia liberada na fissão do urânio. Esse vapor deverá ser resfriado e condensado para voltar ao ciclo, o que é feito com água externa ao reator. Essa água externa é depois despejada nos cursos d’água próximo às usinas, o que ocasiona aquecimento da água, alterando profundamente o ecossistema local, às vezes dizimando a maior parte das espécies do local, ou forçando-as a migrar, quebrando ciclos ecológicos e gerando uma quebra de cadeia alimentar, levando outras espécies à extinção ou a se deslocarem também.
O maior perigo das usinas nucleares é o vazamento de gases radiativos. Todos os eventos de desastres nucleares, em maior ou menor escala, sempre es- tão associados a vazamentos radiativos. São extremamente perigosos e põem a população do entorno em condição de risco, que pode variar de morte imedia- ta por queimaduras, até problemas recorrentes por muitos anos em função da exposição à radiação. É fato conhecido que as pessoas expostas a altos níveis de radiação sofrem de várias patologias ao longo de sua vida, entre elas o câncer. Dependendo do grau e do tipo de exposição é provável ocorrerem alterações genéticas, levando a quadros de esterilidade ou infertilidade.
Outro grande problema relacionado à energia nuclear é o local de insta- lação da usina, que deve ser, preferencialmente, instalada em regiões com terre- no estável e em locais com predominância de ventos que dispersem eventuais resíduos gasosos para regiões com menor densidade populacional. Entretanto, nem sempre é possível seguir essa premissa, como foi o caso do Japão, que é um local geologicamente instável, pois está sobre uma região de encontro de placas tectônicas e é sempre assolado por terremotos e maremotos. Mesmo com avançada tecnologia de construção, não houve como evitar o último de- sastre com o reator central de Fukushima, no Japão, devido à imprevisibilidade desses fenômenos.
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35.2.6. Energia da biomassa6
Os materiais orgânicos, tais como plantas e animais, que se aglutinam no termo biomassa, podem ser utilizados para produzir combustíveis com várias finalidades, como combustível para frota de automotores (etanol ou óleo), pro- dução de energia térmica ou produção de eletricidade.
A biomassa não é um recurso padrão, pois cada região tem o seu esto- que, que foi gerado localmente tendo como base as atividades agrícolas, as florestas (naturais ou plantadas) e as fontes baseadas nos resíduos orgânicos urbanos.
As usinas de energia baseadas em consumo de biomassa são construídas em função da disponibilidade da mesma nas proximidades, pois o transporte é um custo primordial no preço final da energia gerada. Entretanto, com o me- lhoramento das condições de transportes, especialmente os hídricos, há um prenúncio claro de um mercado global de biomassa. A Europa é que está mais avançada no projeto de uso da biomassa como combustível para suas terme- létricas, na forma de usinas pequenas, com potencial de geração inferior a um megawatt (um milhão de watts).
A maneira mais clássica de se utilizar a biomassa é o processo de queima do material orgânico, utilizando madeira (na forma de árvores, ramos, serragem, resíduos de podas), lixo orgânico, e outros. Inclui-se, também, o uso de materiais animais ou vegetais para produção de fibras ou outros materiais de uso huma- no.
O petróleo, o carvão e o gás natural fazem parte da biomassa, mas como são fossilizados (com idade de milhões de anos) há uma preferência por deno- miná-los de “combustíveis fósseis” e excluí-los da categoria de biomassa porque o carbono neles presente foi retirado do ciclo há muito tempo. Assim, a sua combustão libera dióxido de carbono no ciclo rápido da atmosfera, alterando-a em seu conteúdo.
6 “Biomassa, sf (bio+massa). Biol. Quantidade de matéria viva em forma de uma ou mais
espécies de organismos, presente em determinado habitat, comumente expressa como peso de organismos por unidade de área do habitat, ou como volume ou peso de organismos por unidade de volume do habitat” (Weiszflog, 2012).
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A biomassa com interesse industrial pode ser obtida a partir de vários tipos de plantas, como cana-de-açúcar, cânhamo, milho, sorgo, soja ou algumas espécies arbóreas como palmeiras (babaçu), eucaliptos e pínus, entre outras.
A energia da biomassa pode ser obtida de cinco tipos de fontes de ener- gia: madeira, rejeitos orgânicos urbanos ou rurais, lixo, gases de aterros sanitá- rios, e combustíveis (álcool e óleo).
A energia da madeira pode ser explorada da vegetação natural ou da vegetação plantada, tanto como combustível ou como queima dos resíduos de madeira. A energia dos rejeitos é a segunda maior fonte de energia da biomas- sa, que são compostos por resíduos sólidos municipais, resíduos de manufatu- ras e gases de aterro sanitários. Os principais combustíveis gerados com base na biomassa são o álcool e o óleo. O álcool é derivado da cana-de-açúcar e do milho, em menor escala, e pode ser usado tanto como combustível diretamen- te ou como aditivo da gasolina (no lugar do chumbo, para reduzir o poder de explosão da gasolina e melhorar a eficiência dos motores a explosão).
A biomassa pode ser convertida em gás metano (CH4). Os resíduos or- gânicos em decomposição, resultantes das atividades humanas, liberam esse gás, que às vezes é denominado de “gás de aterro” ou “biogás”. Atualmente, há uma nova linha de aproveitamento da biomassa por intermédio da celulose e algumas pesquisas recentes demonstram que há um potencial grande e mais eficiente de se gerar etanol com base na celulose.
A utilização da biomassa como combustível polui o ar, pois libera monó-
xido de carbono (CO), óxidos nitrosos (NOx) e os compostos orgânicos voláteis (COV), particulados e outros poluentes. Em alguns casos específicos os níveis de emissão de poluentes são superiores aos níveis dos combustíveis fósseis tais como carvão e gás natural.
No processo de combustão completa a biomassa emite CO2 para a at- mosfera. Na madeira, em média, 50% de seu peso seco é carbono. Se a biomas- sa provém de uma cultura agrícola a quantidade utilizada poderá ser reposta ra- pidamente na próxima safra ou em alguns anos, no caso dos reflorestamentos. Entretanto, se a madeira for de exploração de uma floresta, esta reposição, se efetuada, poderá levar mais de séculos. Outro fator a ser considerado é que os sistemas vegetativos perenes (como as florestas) incorporam muito mais CO2 no
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solo do que as culturas temporárias, em função de todos os biomas sustenta- dos pela floresta, que desaparecem completamente nos campos agricultados.
Em síntese, a utilização da biomassa em larga escala representa perigo potencial para o meio ambiente, tendo como resultado a destruição da fauna e da flora com grande possibilidade de extinção de espécies, contaminação do solo e dos mananciais, por uso e manejo inadequados de adubos e defensivos químicos. Também há fortes indícios de que o uso da biomassa em longo prazo leva a uma redução do material orgânico do solo, reduzindo drasticamente suas qualidades físicas, químicas e biológicas.
O uso indiscriminado da biomassa leva a uma redução significativa da
biodiversidade, conforme será visto no tema sobre os “biocombustíveis”.
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Capítulo 36
Os biocombustíveis – um capítulo à parte
Um início de conversa
A ideia de se utilizar os biocombustíveis parte do princípio de que o car- bono emitido no ato de seu consumo já havia sido extraído da atmosfera du- rante o processo de desenvolvimento da cultura que o gerou. Assim sendo, o ciclo de carbono7 se fecha numa escala de tempo análoga à das atividades antrópicas, bem diferente da queima dos combustíveis fósseis, que retorna à atmosfera um carbono que de lá foi extraído em épocas em que a atmosfera terrestre era bem mais quente. Entretanto, há outros fatores importantes a se- rem incorporados nessa primeira análise.
As políticas vigentes de produção de combustíveis têm foco nos “bio- combustíveis” alardeando a proteção à biodiversidade. Na realidade, esse é um discurso falso, pois o que hoje se trata como biocombustível deve ser tratado como agrocombustível, se nos basearmos na premissa de que os biocombus- tíveis devem respeitar os princípios de sustentabilidade e de proteção ambien- tal, sem contarmos as questões da segurança alimentar. Isto posto, devemos utilizar o termo agrocombustíveis, pois a produção desses está intimamente re-
7 O ciclo do carbono foi tratado na parte III – Ciclos da natureza e dinâmica da paisagem.
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lacionada à produção agrícola e, pior ainda, claramente monoculturista e com características inconfundíveis do agronegócio.
Tende-se a apresentar os agrocombustíveis como a solução aos proble- mas da crise energética (experimentada pelos países desenvolvidos) e como um remédio ao aquecimento do clima global. Entretanto, há que se ponderar o gasto de energia para se gerar esse combustível e o valor equivalente em alimentos que poderiam ser produzidos na mesma área cultivada, sem contar- mos o fato de que os agrocombustíveis proliferam monoculturas, como por exemplo, a cana-de-açúcar.
Há que se atentar para o fato de que os agrocombustíveis representam o interesse de grandes empresas de petróleo, de bancos, de governos e de estru- turas organizacionais que possuem grandes áreas de terra, como os latifundiá- rios e o capital do agronegócio. Estas entidades já se preparam para entrar no mercado, pois conhecem o jogo geopolítico mundial e sabem das necessida- des cada vez mais urgentes de energia dos blocos desenvolvidos.
Nesse jogo desigual, há alguns aspectos a serem considerados. O primor- dial já foi constatado, que é a necessidade de geração de energia para suprir as demandas dos blocos desenvolvidos; em seguida, o valor cada vez mais alto dos combustíveis fósseis começa a inviabilizar uma série de economias mundiais e, além disso, o custo das políticas mais agressivas para se obter esse produto leva os políticos a avaliar, pura e simplesmente, que é mais vantajoso aplicar esforços em políticas geradoras de uma energia “limpa” e com um selo político muito mais aceitável, pois em tese gera empregos e é mais barata. Entretanto, os blo- cos desenvolvidos não querem, ou não tem área agricultável suficiente para produzir estes agrocombustíveis em seu território. Por fim, o último aspecto a ser analisado, e o mais crucial deles, é a competição pelas áreas da agricultura que gera alimentos. Na estrutura geopolítica atual parece haver um jogo desi- gual que empurra a produção dos agrocombustíveis justamente para os locais mais pobres e famintos do planeta.
Os blocos desenvolvidos, orquestrados pelos EUA, dispõem de cerca de
380 milhões de hectares em países da África para o desenvolvimento de seus projetos de produção de agrocombustíveis, em uma região claramente asso- lada pela fome. Mas, não é apenas a África que está subjugada. No Brasil, as
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estimativas mostram que cerca de 120 milhões de hectares serão destinados aos agrocombustíveis.
Na essência, o capital não tem fronteiras e não tem sustentabilidade, e o objetivo final é o lucro – nem sempre traduzido em dinheiro. Os agrocombustí- veis, na ótica do capital, são um grande negócio e desnudam a face predadora do capitalismo, gerar lucros às expensas da fome. Em síntese, agrocombustíveis não combinam com segurança alimentar.
Uma análise e observação mais cuidadosas irão demonstrar que a pro- dução e a utilização dos agrocombustíveis estão relacionadas às questões am- bientais, sociais, econômicas e técnicas. Essa discussão já está em curso em todas as formas de mídias, desde as mais populares até as científicas mais her- méticas, e inclui temas tão variados quanto: o efeito de moderação nos preços do petróleo, o debate alimentos versus combustíveis, o potencial de redução da pobreza, os níveis de emissão de dióxido de carbono, produção sustentável de agrocombustíveis, perda de biodiversidade, impacto sobre os recursos hídricos, balanço e eficiência energética.
De acordo com Holtz-Giménez (2007), para melhor compreendermos esse tema devemos ressaltar alguns aspectos do discurso sobre as qualidades dos agrocombustíveis e desconstruir as hipóteses falaciosas publicadas nos meios de difusão de informação. Assim, é fundamental entendermos alguns desses tópicos sobre o tema:
1. Agrocombustíveis trazem desenvolvimento rural?
2. Agrocombustíveis não geram desflorestamento?
3. Agrocombustíveis são “limpos” e “verdes”?
4. Agrocombustíveis não geram problemas relativos à fome mundial?
5. Melhores agrocombustíveis de segunda geração estão chegando?
36.1. Agrocombustíveis trazem desenvolvimento rural?
Os dados mais recentes sobre as questões agrárias mostram que nas regi-
ões tropicais, uma área de 100 hectares pode gerar até 35 empregos, se for de-
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dicada à produção da agricultura familiar. Nessa mesma área, a cana-de-açúcar e a palmeira fornecem dez empregos, o eucalipto, dois, e a soja um único em- prego para 200 hectares, todos com péssima remuneração e sem qualificação técnica ou profissional.
Os agrocombustíveis supriam mercados locais e eventualmente regio- nais, com pequenas destilarias e de propriedade dos próprios donos da terra. Com a intensificação do interesse pelos agrocombustíveis a “grande” indústria se moveu rapidamente centralizando suas operações e criando economias de escalas gigantescas. As grandes companhias multinacionais que dominam as tecnologias de fabricação do óleo, as tecnologias das sementes e as tecnolo- gias da engenharia genética estão consolidando rapidamente o controle sobre toda a cadeia de valor dos agrocombustíveis, no claro caminho da monopoliza- ção global. O poder de mercado dessas corporações está escalonado: as duas maiores multinacionais do setor de produção de sementes controlam 65% do comércio global de grãos; as duas maiores do setor de melhoramento genético têm um quarto da indústria de tecnologia genética. Este poder de mercado ha- bilita essas corporações a obter lucros dos segmentos mais lucrativos e de baixo risco dentro da cadeia de valores. Os mais óbvios são: insumos, processamento e distribuição.
Nesta sequência lógica é fácil perceber que a maior atividade de risco, a agricultura, ficará a cargo dos produtores de agrocombustíveis, que se tornarão, em curto tempo, cada vez mais dependentes de um conjunto de corporações organizadas para negociar suas sementes, insumos, serviços e processamento. Parece que a probabilidade desses produtores receberem algum benefício é bem remota. É muito mais provável que os pequenos sejam alijados do merca- do e até mesmo despejados de suas terras, pela falta de oportunidades.
Este grande problema territorial já acontece nas plantações de soja da chamada “República da soja”, uma área de cerca de 50 milhões de hectares en- globando o norte da Argentina, sul do Brasil, Paraguai e leste da Bolívia. Cente- nas de milhares de pequenos agricultores foram “deslocados” pelas plantações de soja. E o maior problema desse deslocamento é que ele é feito no sentido da “fronteira agrícola” da Amazônia, contribuindo para outro grave problema ambiental: o desflorestamento.
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36.2. Agrocombustíveis não geram desflorestamento?
Os pró-agrocombustíveis argumentam que as culturas agrocombustíveis plantadas em terras degradadas, ao contrário de piorar, irão melhorar as condi- ções ambientais.
Essa premissa parece ter sido a norteadora do governo brasileiro quando mais de 200 milhões de hectares das florestas tropicais secas, das pradarias e dos pântanos foram reclassificados de degradados para aptos para o cultivo. O que não se considerou foram os diversos ecossistemas da Mata Atlântica, do Cerrado e do Pantanal, além dos ocupantes históricos desses territórios, tais como, indígenas, agricultores de subsistência, e as criações extensivas de gado.
O pensamento mais aceito pelos que estudam essas questões é que a introdução das monoculturas dos agrocombustíveis deslocarão essas comuni- dades para a “fronteira agrícola” da região amazônica, intensificando os padrões de devastação das florestas.
As estimativas atuais apontam que cerca de 40% do agrodiesel brasileiro provém das plantações de soja. Os dados da Nasa mostraram uma correlação positiva entre o preço de mercado do agrodiesel com as taxas de destruição da floresta amazônica (no ano de 2010, na ordem de 325 mil hectares por ano).
Outro quadro devastador é o chamado “desflorestamento do diesel”, que acontece na Indonésia, país cuja taxa de desflorestamento é a maior do mundo. Lá a destruição da floresta é para dar espaço às culturas de palmeiras, que serão utilizadas para a produção de agrodiesel. Se forem mantidas as taxas atuais de desflorestamento, a Indonésia perderá 98% de sua cobertura florestal até 2020. Mas essa tragédia não acontece só na Indonésia. A Malásia, maior produtora dessas palmeiras, já perdeu 87% de sua cobertura vegetal e mantém a sua taxa anual de desflorestamento na casa dos 7%.
36.3. Agrocombustíveis são “limpos” e “verdes”?
Como a fotossíntese das culturas utilizadas para os agrocombustíveis
absorvem o CO2 atmosférico e podem diminuir o consumo dos combustíveis fósseis, considera-se que essas culturas são “verdes”. Entretanto, ao se levar em
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conta todo o ciclo do agrocombustível – desde o momento do processo de “terra devastada” até o consumo pelos motores dos veículos –, as reduções de emissões serão ínfimas se comparadas à desflorestação, drenagem das áreas úmidas, cultivo e perda de carbono dos solos (exportação de massa orgânica). Apenas para citar um exemplo, as derrubadas de florestas tropicais para a pro- dução de etanol emitem 50% a mais de gases do efeito estufa do que a produ- ção e uso da mesma quantidade de gasolina. Os especialistas em balanço glo- bal de carbono consideram que se apenas 5% de todo o agrocombustível for gerado à custa da destruição de florestas, perde-se todo o ganho de carbono.
Considerando todo o processo de produção dos agrocombustíveis, ne-
nhum deles deixa de emitir CO2. O que se pode dizer é que alguns são mais efi- cientes que outros e também que as condições de produção desses agrocom- bustíveis são fatores que determinarão um maior ou menor grau de emissão de CO2. Apenas para entendermos melhor, compare os valores de emissão de CO2
pelo etanol gerado pela cana-de-açúcar.
Dióxido de carbono produzido por energia gerada, em gramas de CO2 por megajoule, considerado todo o
ciclo produtivo do combustível
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Veja a diferença significativa entre o etanol gerado no Paquistão e o ge- rado no Brasil. O primeiro tem emissões maiores que o gás natural, o diesel e a gasolina, e fica no mesmo patamar do carvão. Por outro lado, o etanol brasileiro é extremamente eficiente e, se comparado aos combustíveis fósseis, observa-
-se que a sua utilização representa uma redução de emissão. Se comparado ao diesel e à gasolina, representa uma redução de emissão de mais de 75%.
Há ainda outros problemas a serem avaliados. Os agrocombustíveis de- mandam grande quantidade de fertilizantes, que são derivados do petróleo. Nos padrões atuais de consumo de fertilizantes, gera-se mais do que o dobro do nitrogênio biologicamente disponível, com uma contribuição sensível para a emissão de óxidos nitrosos (gases do efeito estufa 300 vezes mais efetivos que o CO2). Seguindo a política de segregação territorial, demandada pelo capital,
a maior parte dos agrocombustíveis será gerada nas regiões tropicais, onde os efeitos dos fertilizantes podem ser de 10 a 100 vezes mais impactantes para o aquecimento global. Se comparado às regiões de clima temperado ou frio, fica difícil justificar o discurso ambiental empreendido pelos interesses das grandes corporações envolvidas.
Em relação à água, os especialistas em geração de etanol afirmam que para produzir um litro dessa substância são necessários cinco litros de água para irrigação, e se produz treze litros de água residuária. Em termos do uso de energia se gasta, em média, 113 litros de gás para tratar essa água residuária, o que aumenta as probabilidades de que elas sejam descartadas no ambiente gerando poluição nas águas superficiais, nos solos e, o que é mais grave, nos corpos d’água subterrâneos.
Também há que se considerar o grande potencial erosivo da produção das culturas agrocombustíveis, particularmente na produção da soja, que nos casos do Brasil e da Argentina gera perdas de solo da ordem de 12 t/ha/ano.8
Se você não tem ideia do que seja 12 t/ha/ano, imagine a seguinte equi- valência: a cada ano jogamos 1,5 caminhão basculante de terra por cada quar- teirão nos córregos ao redor.
8 Medida: t/ha/ano = tonelada por hectare por ano. 1 ha = 10 mil metros quadrados (100
m x 100 m).
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36.4. Agrocombustíveis não geram problemas relativos à fome
mundial?
A fome é resultado da pobreza e não da escassez. De acordo com a FAO,9 os alimentos produzidos atualmente podem alimentar a população mundial com uma dieta diária per capita de 3200 calorias utilizando frutas, vegetais, cas- tanhas, derivados do leite e carne. Mas, aos mais de 800 milhões de miseráveis, sem condição de comprar esses alimentos, resta a fome. Nos idos de 2000 havia uma promessa política de reduzir pela metade o número de pessoas vivendo na miséria até 2015, mas ficou no discurso e pouco se avançou. Atualmente, as pessoas mais pobres do planeta comprometem de 50% a 80% de seus orça- mentos com alimentação. Assim, quando o preço dos combustíveis sobe, esse comprometimento é maior, e consequentemente a fome, pois os alimentos tem seu preço aumentado.
No quadro atual, a invasão dos agrocombustíveis criou uma competição acirrada com as culturas agrícolas, gerando competição por terras e recursos e criando uma condição alarmante em que os preços dos alimentos, inflaciona- dos por essa disputa, podem elevar os preços dos combustíveis. A escalada des- sa competição dispara os preços da terra e da água, pois são recursos limitados.
Essa espiral inflacionária e perversa deixa os alimentos e os recursos da produção fora do alcance dos mais pobres. Os órgãos internacionais que estu- dam as políticas alimentares estimam que os produtos básicos de alimentação deverão alcançar valores da ordem de 25 a 130% maiores que os atuais, por volta de 2020.
Todos os dados mostram, inequivocamente, que à medida que os preços se elevam, o consumo calórico cai na razão de 1:2, ou seja, se o preço sobre 10%, o consumo calórico cai 20%. Outro dado assustador é que a cada 1% de elevação dos preços dos alimentos, gera-se insegurança alimentar para cerca de 15 milhões de pessoas.
Se as tendências atuais continuarem, no ano de 2025, aproximadamente
1,2 bilhões de pessoas estarão em condição de fome crônica – 600 milhões
9 FAO – Food and Agricultural Organization [Organização para Agricultura e Alimentação].
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acima das previsões anteriores, que não consideravam os agrocombustíveis. As ações mundiais para fornecer ajuda provavelmente não acontecerão por- que os excedentes serão utilizados na geração dos agrocombustíveis. E o mais contraditório, as ajudas para fornecimento de alimentos só aumentam quando os preços caem, justamente porque comprometem menos os orçamentos dos doadores.
Há uma necessidade urgente de transferências maciças de recursos para produção de alimentos para as regiões rurais mais pobres, que é uma política de gestão bem contrária à de converter terras que geram alimentos, ou mesmo florestas, em culturas produtoras de agrocombustíveis. Essa é a zona de conflito que deve permear as questões de gestão territorial nas próximas décadas.
36.5. Melhores agrocombustíveis de segunda geração estão chegando?
Os pró-agrocombustíveis gostam de amenizar o discurso “comida versus combustível” comandado pelos críticos mais céticos, afirmando que os atuais agrocombustíveis feitos de culturas alimentares logo serão substituídos por culturas amigas do ambiente tais como árvores, arbustos e gramíneas de cres- cimento rápido. Essa argumentação é jogo de cena feito para tornar mais acei- tável os agrocombustíveis.
O processo de transição para os agrocombustíveis altera os usos da terra em escalas muito amplas, criando uma competição entre a produção de ali- mentos e a de agrocombustíveis pela terra, pela água e pelos recursos naturais. A questão de como as culturas serão convertidas em combustível é irrelevante e, às vezes, serve como cortina de fumaça para os interesses por trás da pro- dução. As plantas nativas cultivadas como culturas para agrocombustíveis ja- mais terão o “rastro ambiental”,10 por mínimo que seja, porque a estrutura de
10 O“rastro ambiental”é uma avaliação de quanto se prejudica o ambiente quando se produz algo. Quanto mais se impacta negativamente o ambiente, menos “rastro ambiental” terá esse produto. É um conceito similar ao da “pegada ecológica”. Como exemplo, sugere-se a leitura de: <http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/0947/ noticias/nova-obsessao-verde-482549> ou <http://pt.wikipedia.org/wiki/Pegada_ ecol%C3%B3gica>.
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comercialização e mercados associados, fatalmente transformarão sua ecolo- gia de acordo com a das monoculturas. Rapidamente, ocorrerá o processo de migração das sebes e arbustos para as terras aradas, com o fim de um cultivo intenso e de alta produção, como qualquer outra cultura industrial, incluindo aí as externalidades ambientais (leia-se, impactos negativos).
Outro aspecto a considerar é a engenharia genética,11 que tem criado plantas com menos lignina e celulose, trabalhando para a indústria, cujo objeti- vo é produzir culturas agrocombustíveis celulósicas que se desmembram facil- mente para liberar açúcares, especialmente as árvores de crescimento rápido. As árvores apresentam a vantagem de serem perenes e espalharem seu pólen com muito mais eficiência que as culturas alimentares e, além disso, as espécies candidatas à agrocombustíveis celulósicos, normalmente, são espécies invaso- ras. As culturas geneticamente modificadas se reproduzem muito facilmente e são muito competitivas, o que nos leva a um futuro cenário de contaminação maciça das culturas nativas ou selvagens. As multinacionais da engenharia ge- nética ficarão muito satisfeitas, pois os agrocombustíveis servirão de cavalo de Troia genético, permitindo a elas a total colonização dos sistemas de alimenta- ção e de combustíveis.
Se houver preferência por uma tecnologia que tenha algum potencial de minimizar os piores impactos do aquecimento global, ela deve estar comercial- mente viável em escala global nos próximos 5 a 8 anos. Não há como acreditar que isso possa ser possível com o etanol celulósico, que já foi amplamente de- monstrado não ser poupador de carbono. Dar o selo de verde a este etanol e torná-lo viável não é simplesmente uma questão de ampliar a tecnologia atual, mas de se criar avanços significativos na fisiologia das plantas que permitam uma extração eficiente da celulose, da hemicelulose e da lignina.
Considerando toda a demanda de pesquisa e recursos financeiros para se alcançar esses objetivos, parece que a indústria dos agrocombustíveis ainda aposta na sorte ou conta com a garantia dos contribuintes.
Para finalizar, deve-se ter bem claro que “ciência” é muito distinto de fé na
ciência. Ao se acreditar nos agrocombustíveis de segunda geração, ao invés de
11 Cf. <www.visbrasil.org.br/biblioteca/Oqueéengenhariagenética.pdf>.
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se trabalhar para melhorar as tecnologias conservativas, tais como energia solar e eólica, envereda-se por um caminho tendencioso que favorece os setores de maior poder financeiro, em detrimento do interesse maior que é a proteção do ambiente.
Independente do tipo de abordagem que se dê à análise sobre os agro- combustíveis, torna-se difícil acreditar que elas sejam minimamente “sustentá- veis”. A avaliação mais fria do tema demonstrou claramente que as roupagens que se dão aos agrocombustíveis são apenas, mais uma vez, o interesse do capital em se apoderar de mais um modo gerador de lucros para manter a estrutura dominadora.
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Capítulo 37
Impactos sociais e econômicos dos agrocombustíveis
37.1. O debate alimentos versus combustíveis
ste é, sem dúvida, o debate crucial quando o assunto é agrocombus- tíveis. Ele está relacionado ao risco, em escala global, de se desviar as regiões produtoras e as culturas para a produção de agrocombustíveis
em detrimento da produção de alimentos. Na essência, o debate se prende à possibilidade de que os produtores, ao aumentar sua produção de agrocom- bustíveis, normalmente incentivada por subsídios governamentais, desloquem seu tempo e terras da produção de alimentos, reduzindo a produção e, por consequência, aumentando os preços, em um fenômeno atualmente denomi- nado inflação dos alimentos.
Contudo, não é apenas a existência de um aumento na demanda para alimentos nobres, como milho, que alimentam a maioria dos pobres da Terra, mas também há a possibilidade do aumento de preços das culturas restantes que as pessoas utilizariam como dieta suplementar. A contra-argumentação se baseia em considerações de uso conjunto, ou seja, as culturas não propícias para consumo humano iriam para a produção de agrocombustíveis; as partes das culturas que não forem utilizadas como alimentos serão utilizadas como
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agrocombustível; como as altas dos preços de grãos impactam negativamente a tranquilidade e/ou estabilidade dos governos.
O debate alimentos versus agrocombustíveis é, por natureza, controverso e internacional, sem pontos de consenso sobre sua importância, sobre o que o está causando, sobre qual o seu impacto e até o que pode ser feito sobre isso (sobre o assunto, leia mais neste link).
37.2. Moderação do preço do petróleo
A análise da Agência Internacional de Energia do ano de 2006 concluiu que se a crescente demanda por petróleo não for contida poderá acentuar a vulnerabilidade dos países consumidores em relação à interrupção do forneci- mento com posterior choque de preços. Esta análise sugere que os agrocom- bustíveis podem ser uma alternativa viável, mas também aponta para as im- plicações da utilização dos agrocombustíveis para a segurança global, assim como para a saúde pública, para a economia e para o ambiente, mostrando a necessidade de uma avaliação posterior.
Os estrategistas do mercado de commodities acreditam que a gasolina estaria 15% mais cara e o petróleo 25% se não houvesse os agrocombustíveis no mercado. A maior parte dos analistas, incluindo-se aí os representantes dos produtores de agrocombustíveis, argumenta que um suprimento saudável de fontes de energias alternativas ajuda a combater os picos dos preços da gasolina.
37.3. Potencial de redução da pobreza
Os analistas dos institutos de desenvolvimento e pesquisa de vários paí- ses argumentam que os agrocombustíveis poderiam ajudar a reduzir a pobreza nos países não desenvolvidos por intermédio da criação de empregos, de mul- tiplicadores de crescimento econômico e da estabilização do preço do petró- leo. Contudo, esse potencial pode ser descrito como frágil e fica muito restrito onde houver uma tendência de produção de alimentos em larga escala, ou poderia gerar pressões sobre recursos agrícolas limitados, como investimento
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de capital, terras, recursos hídricos e o custo do alimento para as populações pobres.
No que diz respeito ao potencial de reduzir ou exacerbar a pobreza, os agrocombustíveis esbarram nas mesmas imperfeições políticas, regulamenta- res ou de investimentos que impedem que a agricultura seja uma opção para a redução dessa condição. Para sanar a maioria dessas imperfeições há a neces- sidade de melhoramentos políticos no nível nacional, muito mais que no nível global, o que leva à consideração de se efetuar uma análise país a país para se avaliar o impacto dos agrocombustíveis na redução da pobreza.
Há que se considerar, entre inúmeros outros fatores, os sistemas de ad- ministração das terras, coordenação dos vários segmentos do mercado e prio- rização de investimento nos agrocombustíveis, partindo da premissa de que haverá geração de mais empregos, menores custos de transporte (os agrocom- bustíveis normalmente são produzidos próximos à fonte consumidora) e uso de tecnologias mais simples, em tese, menos poluidoras. Também é necessária a redução de tarifas sobre as importações de agrocombustíveis, independente do país de origem, especialmente dos países que têm alta eficiência na produ- ção de agrocombustíveis, caso típico do Brasil.
37.4. Produção de agrocombustíveis sustentáveis
As políticas responsáveis e os instrumentos econômicos deveriam assegu- rar que a comercialização dos agrocombustíveis, incluindo o desenvolvimento de tecnologias da celulose, fossem sustentáveis. A comercialização responsável dos agrocombustíveis representa uma oportunidade de ampliar os prospectos de economias sustentáveis na África, na América Latina e na Ásia.
Os agrocombustíveis, na forma de líquidos derivados de materiais vege- tais, entram no mercado impulsionados por fatores como picos nos preços do petróleo e a necessidade crescente de segurança energética. Entretanto, gran- de parte dos agrocombustíveis fornecidos atualmente são criticados porque geram impactos adversos ao ambiente natural, à segurança alimentar e ao uso da terra.
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Os agrocombustíveis oferecem a possibilidade de acirrar a competição do mercado de combustíveis criando um moderador de preços, ajudam a com- bater os picos de preço da gasolina e reduzem a dependência dos combustí- veis fósseis, especialmente no setor de transporte. Além disso, a utilização mais eficiente de combustíveis nos transportes faz parte da estratégia de transportes sustentáveis.
O desenvolvimento e a utilização dos agrocombustíveis não é assunto tão elementar quanto parece, pois há várias opções disponíveis para se gerar agrocombustíveis. Alguns agrocombustíveis como etanol e “biodiesel” são pro- duzidos atualmente a partir de produtos das culturas de alimentos convencio- nais, tais como, trigo, milho, cana-de-açúcar e outras. Qualquer mudança mais drástica para os agrocombustíveis criará uma competição direta com as cultu- ras que alimentam as pessoas e os animais. Em algumas partes do planeta, as consequências econômicas, sociais e ambientais dessa estratégia já são visíveis.
Atualmente já estão em produção os agrocombustíveis derivados de uma gama bem mais ampla de reservas alimentares e inclusive a celulose das cul- turas dedicadas aos agrocombustíveis (algumas gramíneas perenes), materiais florestais, alguns coprodutos derivados da produção de alimentos e resíduos vegetais domésticos. Supõe-se que os processos de conversão devam melho- rar a sustentabilidade dos agrocombustíveis, por intermédio do incremento da eficiência e redução do impacto ambiental da produção dos agrocombustíveis, tanto das culturas alimentares como das culturas celulósicas.
Vale ressaltar que a produção sustentável dos agrocombustíveis pode colocá-los na categoria dos biocombustíveis, se forem obedecidos os preceitos básicos da sustentabilidade: melhoria das condições sociais da parcela da popu- lação que atua direta e indiretamente em todo o ciclo de produção; aumento da intensidade da cadeia econômica, com geração de empregos e distribuição de renda e, por fim, mas não menos importante, produção dentro dos limites dos ecossistemas, evitando os impactos negativos sobre o ambiente natural e a destruição da biodiversidade. Também vale a pena lembrar que a produção sustentável deve considerar as condições territoriais dos atores envolvidos no processo de produção das culturas destinadas ao agrocombustível. É funda- mental respeitar as zonas territoriais estabelecidas pela tradição e cultura dos
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locais onde se pretende estabelecer os referidos plantios de culturas. Devem ser evitadas todas as possibilidades de futuros conflitos entre a produção dessas culturas e a tradição agrícola e ecológica do lugar, o que não é tarefa simples, dados os preceitos que regem o capitalismo e sua natureza de criminalizar os conflitos não solucionados.
Assim sendo, há uma ampla necessidade de se produzir com responsa- bilidade, que remete à necessidade de muitos acordos e concessões. Em linhas gerais, pode-se dizer que a produção responsável é criar uma fonte de energia sustentável que não necessite desviar o uso das terras agrícolas, que não dani- fique o ambiente, que também possa ajudar a resolver os problemas dos resí- duos gerados pela sociedade e, por fim, que possa gerar empregos e melhorar as condições sociais, onde antes não havia. Por outro lado, pode-se dizer que a produção irresponsável, na melhor das hipóteses, não oferece nenhum bene- fício climático e, no pior caso, gera uma fonte de combustível que tem como consequência a deterioração das condições sociais e ambientais. Se pensarmos no tripé de sustentabilidade (ambiental-econômico-social) haverá apenas uma perna bem desenvolvida: a econômica, pois as outras duas estarão comprome- tidas ao extremo.
Ainda, para reforçar, é preciso considerar que as práticas de produção dos agrocombustíveis não podem comprometer a produção de alimentos e fibras para vestuário, não podem causar problemas ambientais (especialmente nos recursos hídricos) e devem ser coadjuvantes no processo de fertilização dos solos. A seleção das terras para implantação das culturas alimentares é um dos componentes mais críticos no que se refere à habilidade das estruturas produ- toras dos agrocombustíveis em fornecer soluções sustentáveis. A consideração fundamental é reduzir a competição dos agrocombustíveis com as terras desti- nadas à agricultura para alimentos.
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Capítulo 38
Impactos ambientais dos agrocombustíveis e a segurança alimentar
Um início de conversa
Embora haja uma campanha avassaladora que tenta mostrar as vanta- gens dos “biocombustíveis”, o nosso senso crítico deve observar que os pseu- dobiocombustíveis, que já nos acostumamos a denominá-los por agrocom- bustíveis, devem gerar impactos sobre o meio ambiente, como qualquer outra atividade agrícola. Não há possibilidade de fazer agricultura sem os problemas relacionados a ela, como a poluição das águas e dos solos (dependendo do grau de aplicação de defensivos químicos); a erosão dos solos (principalmente quando não se executa o plantio direto); o desflorestamento (ampliação da área de plantio); e a perda de diversidade biológica (redução das espécies nativas para uma única cultura).
Também é preciso pensar no maior problema de todos, que é a questão da segurança alimentar das populações, pois a agressividade e competitivida- de do agronegócio não colocam na equação esse elemento. Esse papel deve ser representado pelos órgãos reguladores, através de um processo de gestão territorial, definido por zoneamentos agrícolas. Há espaço para todos, mas deve haver limites para cada um, ou seja, podemos plantar cana, mas não podemos trocá-la por alimentos.
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38.1. Impactos ambientais da produção e uso dos agrocombustíveis
38.1.1. Poluição
Quando o álcool (etanol) é oxidado (ou queimado) são produzidos vários aldeídos, compostos aromáticos potencialmente perigosos à saúde humana e que ainda não têm regulamentação de emissão. Embora ainda não haja con- senso científico, alguns estudos indicam que o acréscimo de 10% de etanol na gasolina aumenta em 40% as emissões de aldeídos, e a redução dos níveis de enxofre das misturas dos agrocombustíveis também reduz o nível de emissão desses compostos. A queima do agrodiesel12 também emite aldeídos e vários outros compostos aromáticos.
A maior parte dos aldeídos é tóxica para os seres vivos. Em concentrações acima das aceitáveis (ainda não definidas), causa irritações respiratórias, corizas, tensão respiratória, doenças pulmonares e enxaquecas persistentes. Alguns al- deídos são cancerígenos e mutagênicos.
A União Europeia e a Agência de Proteção Ambiental dos EUA conside-
ram o formaldeído, um tipo de aldeído, cancerígeno.
O Brasil utiliza muito etanol e alguns estudos feitos no ambiente da cida- de de São Paulo e comparados com o ambiente da cidade de Osaka, no Japão, que não utiliza etanol, mostraram que o teor atmosférico de formaldeído em São Paulo era 160% superior ao de Osaka e o de acetaldeído, 260%!
Estudos mais recentes (veja o artigo) mostram que as queimadas nos canaviais exportam para o ar grandes quantidades de nitrogênio, fósforo e po- tássio que se depositam em regiões próximas. Isso gera desiquilíbrios ecológi- cos, pois essa quantidade de nutrientes é muito mais elevada que a quantidade natural.
Essas informações mostram que as questões da sustentabilidade dos agrocombustíveis estão muito aquém do que se imagina. Eles apenas trocam o tipo de poluidor.
12 A expressão agrodiesel é análoga à expressão agrocombustível.
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38.1.2. A pressão sobre os recursos hídricos
A intensificação da geração e do uso dos agrocombustíveis pressionam os recursos hídricos pelo menos de dois modos: primeiro, o uso da água para a irrigação das culturas para produção de agrodiesel; segundo, o uso da água na produção dos agrocombustíveis nas refinarias, nos processos de vaporização e resfriamento. Os impactos sobre os recursos hídricos serão tão mais signifi- cativos quanto maior for a utilização da irrigação para suprir as necessidades hídricas das culturas.
O problema fica ainda mais crítico se essa água for retirada de aquíferos, que sempre são consideradas reservas estratégicas quando o assunto é gestão dos recursos hídricos. Por exemplo, nos EUA, de 2000 a 2008, o número de refinarias de etanol subiu de 20 para 140. Alguns dados preliminares mostram, ainda, que mais de 60 ainda estão em construção e grande parte delas irá ex- plorar água subterrânea dos aquíferos Ozark (Missouri), Ogallala (Iowa, Nebraska e Kansas) e Mahomet (Illinois). O aumento de produção dos agrocombustíveis necessário para cumprir a meta estadunidense para o ano de 202213 representa um aumento de 25% de retirada de água dos reservatórios, se for considerada apenas a plantação de sorgo, que é a mais eficiente em termos de produção de agrocombustível.
Observamos aqui mais um exemplo da não sustentabilidade da produ- ção dos agrocombustíveis, pois esse impacto sobre os recursos hídricos com- promete totalmente a sustentabilidade ambiental.
38.1.3. Erosão dos solos e desflorestamento
As florestas, que possuem árvores maduras, ajudam a remover o CO2 do ar, pela fotossíntese, e o fazem de maneira muito mais eficiente do que qual- quer cultura (cana, sorgo, milho etc.). O desflorestamento em larga escala des-
13 O Ato de Segurança e Independência Energética, aprovado pelo Congresso dos EUA,
em 2007, prevê a produção de 45 bilhões de litros de agrocombustível até 2010 e de 136 bilhões de litros até 2022. Para maiores detalhes veja: <http://www.agroanalysis.com.br/ materia_detalhe.php?idMateria=810>.
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sas árvores eleva os níveis globais dos gases do efeito estufa a patamares in- sustentáveis com o respectivo aumento global da temperatura; leva à perda dos habitats de várias espécies e à redução da biodiversidade em terra ou mar. A demanda por agrocombustíveis gerou o desflorestamento para plantação de palmeiras, por exemplo. Desde 1996, apenas na Indonésia, cerca de 38 mil quilômetros quadrados foram convertidos em monoculturas de palmeiras para geração de agrodiesel.
Outro aspecto a ser analisado é o balanço desfavorável de biomassa. Se ela for extraída além de uma taxa determinada, haverá deficiência de matéria orgânica no solo e ele necessitará de correção (introdução artificial de matéria orgânica). Entretanto, a eficiência desse processo de correção não é igual ao natural e, com o tempo, tal deficiência será observada tanto no aspecto quantitativo como no qualitativo. Vários estudiosos do assunto afirmam que a remoção adicional da biomassa celulósica para a produção dos agrocombustíveis irá esgotar os solos com o tempo. Obviamente, essa não é uma prática com sustentabilidade ambiental.
38.1.4. A perda de biodiversidade
Há várias evidências que corroboram a ideia de que a expansão agrícola para a produção dos agrocombustíveis produz uma perda de biodiversidade inaceitável, se comparada a uma redução em níveis insignificantes do consumo dos combustíveis fósseis.
A perda de biodiversidade torna a dependência aguda em relação aos agrocombustíveis um risco extremamente elevado, porque reduz nossa ha- bilidade de lidar com a deterioração, ou pragas, que possam afetar algumas culturas geradoras de agrocombustíveis. No passado, as culturas alimentares já se recuperaram dos efeitos das pragas quando as reservas mais antigas foram misturadas e/ou cruzadas com as espécies nativas resistentes, mas à medida que a biodiversidade natural reduz, na competição com a agricultura agressiva, as possibilidades de recuperação diminuem gradativamente e podem chegar ao extremo da perda total do representante selvagem resistente a determina- da praga. Em síntese, o maior veneno para a agricultura é a redução de biodi-
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versidade, ou mais implicitamente, a perda da sustentabilidade ambiental. E os nossos dias nos mostram que este caminho está sendo trilhado a passos largos!
38.2. Do IPCC aos agrocombustíveis e a segurança alimentar
O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, da sigla em inglês) e seus cientistas alertam para a intensificação do efeito estufa e apon- tam para a urgência de se resolver o problema, por intermédio da alteração da matriz energética, passando dos combustíveis fósseis para os biocombustíveis (ou agrocombustíveis, dependendo da origem do discurso). Segundo o IPCC, que é um ramo da ONU, essa mudança é necessária para reduzir as emissões de gás carbônico de origem fóssil, e utilizar combustíveis cuja emissão de carbono esteja dentro do ciclo de produção, sendo que todo o gás carbônico emitido já havia sido sintetizado da atmosfera pelo vegetal que origina o agrocombustível.
Esse é o discurso oficial da ONU e também uma preocupação do corpo de cientistas do IPCC. Entretanto, existem outros motivos para aumentar a pro- dução dos combustíveis alternativos, como as questões de segurança energé- tica e também o problema, sempre em foco, das incertezas políticas dos países produtores de petróleo.
Outro ponto a ser levantado é o aumento das relações diplomáticas entre os países das regiões produtoras de agrocombustíveis e os grandes consumido- res de energia, reforçando a hipótese de um novo quadro geopolítico mundial, direcionado pela questão energética. Se, de fato, o planeta está se aquecendo, parece que a grande preocupação política não é essa, mas sim assegurar ener- gia limpa e barata.
Bem ao centro das questões de segurança energética, surge outra ques- tão fundamental: a segurança alimentar. De fato, essas duas questões, embora pareçam excludentes no atual quadro geopolítico que se desenha, são insepa- ráveis e uma frente de conflito já se vislumbra claramente.
A produção de agrocombustíveis já está estabelecendo uma fronteira agrícola agressiva e fincada em uma base tecnológica adequada, e com uma expansão caracteristicamente descontrolada invadindo os espaços anterior- mente destinados à produção de alimentos. Se atentarmos para a lógica do
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mercado, teremos um panorama preocupante: a redução da área de agricultura para os alimentos implicará em menor produção, o que intensificará a deman- da, alavancando os preços dos alimentos. Sob a ótica do capitalismo, está tudo certo. Sob a ótica social, é fácil perceber quem sofrerá as consequências dessa nova estrutura de produção.
Aqui já é possível vislumbrar uma ponta dos problemas territoriais advin- dos dessa expansão dos agrocombustíveis. As grandes corporações produtoras de energia atuam como capitalistas em potencial, tendo como base o lucro e o território como sua posse. Do outro lado, estão os grupos tradicionais que ocupam o território de forma mais coletiva, equilibrando as necessidades de se explorar e preservar. Isto é mais forte ainda nos ecossistemas mais frágeis, com grande potencial de exploração pelo agronegócio dos combustíveis, como, por exemplo, os cerrados brasileiros, que são apropriados em termos econômicos, pelo baixo custo das áreas de terra, e pela facilidade de implementação agrícola das terras planas.
Os movimentos atuais na esfera dos Estados estão preocupados com esse problema do interesse privado e da expansão agrícola associada, com desdobramentos nas mesas de negociação sobre os agrocombustíveis (ou bio- combustíveis sustentáveis), com o objetivo de gerar uma base para certificação dos “biocombustíveis” a partir de vários critérios ambientais.
Essa “preocupação ambiental” mascara uma postura de protecionismo por parte da Europa, com agricultura altamente subsidiada, no intuito de prote- ger os agrocombustíveis produzido na União Europeia diante dos agrocombus- tíveis economicamente muito mais competitivos de outras regiões, como , por exemplo, o Brasil, que produz etanol com subsídio praticamente nulo.
Nesse novo xadrez geopolítico, a leitura que se faz é que a imposição dessas políticas ambientais e sociais configura um novo tipo de domínio, muito mais sutil e perigoso: o imperialismo ecológico.
As agendas das reuniões que tratam desses assuntos propuseram certi- ficações com critérios bem rígidos, com exigências bem claras para o relacio- namento das grandes corporações com os produtores locais, especialmente o de evitar os efeitos de deslocamento dos usos da terra e o de coexistir com as comunidades locais sem violar sua harmonia.
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A princípio, os critérios são perfeitos, mas experiências mostram a invia- bilidade de aplicação. Se extrapolarmos nosso raciocínio, na ótica capitalista a certificação é o aval para aumentar a área de expansão do agrocombustíveis, pois a premissa básica é: se temos certificação, tudo está certo, então podemos plantar mais, pois estará com certificação. O canto do cisne das grandes cor- porações é a inserção do pequeno produtor no mercado com a promessa de desenvolvimento. A questão básica que se põe é: como isso ocorrerá?
Algumas experiências mostram que as especificações de certificação pre- veem o estabelecimento de diálogos e acertos com as populações locais para que se tenha algum consenso de como deva ser a convivência entre as partes. A contradição que se põe é que as corporações ocuparão fisicamente os ter- ritórios das comunidades locais, de maneira incisiva, como sempre acontece nos processos de expansão territorial agrícola. Essa contradição gera, em curto espaço de tempo, disputas territoriais, pois as óticas são muito distintas: de um lado, a ótica capitalista da propriedade privada e, de outro, a ótica das comuni- dades locais em que o território é um bem coletivo e explorado, em boa par- cela, coletivamente. Esses conflitos irão relacionar, quase que invariavelmente, a territorialidade como sinônimo de liberdade.
Ainda é preciso avaliar que, normalmente, há uma vinculação entre a ter- ritorialidade e a necessidade de uso dos ecossistemas, principalmente quando a natureza impõe ciclos de produção e a extensão do manejo dos solos pelos produtores locais. Em outras palavras, em determinadas épocas há a necessi- dade de se ocupar uma maior parte de terras, pois a produtividade será bem menor em função dos rigores climáticos.
Ao analisar com mais cuidado esse quadro cheio de contradições, fica difícil aceitar o discurso dos certificadores de que os diálogos serão efetivos para a convivência entre esses dois grupos. As empresas do agronegócio, ao se instalarem, expandem seus espaços de monoculturas numa proporção avassa- ladora e alteram os aspectos da vida dos grupos atingidos.
Considerando a necessidade intrínseca de produção em larga escala para os agrocombustíveis e a iminente necessidade de expansão e domínio dos ter- ritórios, não há como acreditar que o diálogo, ou qualquer outra estratégia aná- loga, irá resolver o problema latente do futuro conflito territorial.
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Assim, todos os processos de certificação parecem desembocar num modelo de desenvolvimento com imposição claramente hegemônica em rela- ção às populações locais, configurando um imperialismo econômico com um discurso que o legitima, mas que em seu âmago, como sempre ocorreu, o ob- jetivo é ser competitivo no mercado e obter o maior lucro possível.
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Capítulo 39
Uma visão crítica sobre a questão ambiental
Um início de conversa
Recebeu destaque na mídia o Himalaiagate, um escândalo envolvendo a previsão, pelo grupo II do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, da sigla em inglês), de que as geleiras do Himalaia estão em um ritmo de derretimento mais acelerado do que em qualquer outra parte do mundo. Isso muito provavelmente reduzirá sua área de 500 mil km2 para 100 mil km2 até o ano de 2035, comprometendo gravemente o fluxo de água do Indo, do Ganges e do Brahmaputra e, consequentemente, a sobrevivência de centenas de mi- lhões de pessoas no Paquistão, na Índia, no Nepal, no Butão e em Bangladesh. Contudo, o material de referência citado para essa afirmação é um relatório do WWF14 intitulado An Overview of Glaciers, Glacier Retreat, and Subsequent Im- pacts in Nepal, India and China. Este episódio expôs ao mundo o compromisso do IPCC em citar apenas bibliografia de fontes científicas consagradas, revisadas por pares, sem qualquer envolvimento político ou ativista, e de checar a vera- cidade das informações citadas, especialmente quando se trata de uma ques- tão que envolve um dos maiores formigueiros humanos deste planeta. O que
14 World Wildlife Fund (WWF), em português, algo como Fundo Mundial para a Vida
Selvagem.
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ocorreu é que após uma análise por especialistas do assunto, conclui-se que a estimativa do WWF não passava de mais uma suposição sem base técnica, dentre muitas outras que marcam indelevelmente os debates sobre a questão ambiental (Onça, 2011), o que, em última instância, sempre prejudica a causa ambiental.
Todas as questões ambientais, sem exceção, são conduzidas em nossos tempos pela profusão do discurso ambientalista nos diversos segmentos da sociedade. Transparece através deste discurso a valorização, cada vez maior, das várias ferramentas modeladoras da natureza. Há algumas décadas, a reflexão sobre as relações homem e meio ambiente, por intermédio de uma atitude genuinamente observacional, tem sido totalmente desprezada, ou tratada de modo corriqueiro sem o menor cuidado e sob a maior trivialidade, sem o devi- do compromisso mesmo por parte dos segmentos que deveriam manter essa postura, tais como universidades, institutos de pesquisa e órgãos ambientais.
Os debates sobre a questão ambiental se tornaram o reduto de estimati- vas infundadas ou fantasiosas, levadas às últimas consequências por simulações computacionais, de modelos numéricos cujos códigos constituem-se mesmo em um mistério insondável a muitos daqueles que propagam, através do dis- curso, os resultados de suas saídas, como se elas próprias fossem a prova da existência do fenômeno.
Mas nada existe senão, e tão somente, um resultado de algo como qual gostaríamos que fosse. Na maioria das vezes, o modelo é isso, e nada mais do que isso, por mais engendrado de relações matemáticas com que possa surgir, ele é um equacionamento. Deve-se lembrar que o equacionamento é feito por pessoas, e também que na natureza as relações são infinitamente mais comple- xas do que podemos avaliar com simples reduções estabelecidas por modelos. Além disso, o que garante que os equacionamentos representam a realidade em sua essência mais profunda? Simplesmente não há como garantir.
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39.1. Sobre o aquecimento global
Durante o processo de elaboração do último relatório do IPCC, mais espe- cificamente em julho de 2006, Briffa15 enviou a Eugene Wahl16 os comentários da revisão do primeiro esboço do relatório, advertindo-o que eram confiden- ciais e não deveriam ser divulgados. Logo depois, em agosto, Wahl reenviou a Briffa o documento com suas sugestões de mudanças na redação. Não resta dúvida de que em pelo menos duas ocasiões Briffa pode ter sido influenciado a alterar ou até mesmo enviesar as conclusões do Painel, pois recebeu comuni- cações e recomendações fora dos procedimentos do IPCC. Mas não foi apenas isso que impugnou o procedimento científico, pois aos 28 de maio de 2008, Phil Jones17 recomendou a Briffa que dissesse que não recebeu qualquer artigo ou comentário fora dos procedimentos usuais do IPCC, mesmo sabendo que isso havia ocorrido, e comentou: “Se Holland18 soubesse como o processo real- mente funcionou!!”. Embora esses fatos não bastem para questionar a ciência, são mais do que suficientes para ilustrar até que ponto os membros do Painel estão dispostos a subverter seus princípios e métodos de trabalho, se isso for necessário para passar uma mensagem particular, não a do nosso real estado de conhecimento climático, mas a da confirmação do aquecimento global an- tropogênico, que ainda gera dúvidas nos meios científicos (Onça, 2011).
Que mal há em um aquecimento? Absolutamente nenhum. Afinal, é tão vital que nos mantenhamos aquecidos que nossa própria evolução acabou nos proporcionando uma fonte de calor extra, além do calor absorvido pela inci- dência da radiação solar. O calor metabólico é esta fonte extra, e sem ela não seríamos o que somos. Um ambiente mais aquecido contribui, inclusive, para a
15 Climatologista responsável pelos dados paleoclimáticos do 4º relatório do IPCC, em 2006.
16 Climatologista da Noaa (Programa de Paleoclimatologia).
17 Membro da Unidade de Pesquisa Climática da Universidade de East Anglia, Reino Unido. Foi coordenador do capítulo 3 do 4º Relatório do IPCC, intitulado “Observações: mudança climática na superfície e na atmosfera”.
18 Membro do Instituto de Engenharia e Tecnologia, Londres, Reino Unido. É um crítico
atuante do aquecimento global.
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realização de menor esforço pelo nosso organismo para a produção desta fonte de calor extra.
Porque não se fala em resfriamento global? O nosso atual conhecimento científico obtido através de nossas observações do Universo mostram justa- mente isto, dissipação permanente de calor. A Terra, em algumas épocas, já foi muito mais fria do que nos dias atuais, e foi justamente nessas épocas que ocorreram as extinções em massa e redução crítica da biodiversidade do pla- neta. É importante observar que nosso planeta, bem como todos os demais que possam existir, sofrem os mesmos processos naturais de aquecimento e resfriamento. Não há nada