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LEVANDO O DIREITO FINANCEIRO A SÉRIO PDF

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José Maurício Conti

 

 

 

 

LEVANDO O DIREITO FINANCEIRO A SÉRIO

3ª edição                     A luta continua

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

LEVANDO O DIREITO FINANCEIRO A SÉRIO

A luta continua

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

JOSÉ MAURICIO CONTI

Graduado em Direito e Economia pela Universidade de São Paulo. Mestre, Doutor e Livre-docen- te em Direito pela Universidade de São Paulo. É Professor Associado III da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo com experiência e ênfase em Direito Financeiro, atuando principal- mente nos seguintes temas: Direito Financeiro, Federalismo Fiscal, Orçamentos Públicos, Fisca- lização Financeira e Orçamentária, Tribunais de Contas, Dívida Pública e Responsabilidade Fis- cal. Fundador dos Grupos de Pesquisa: “Orçamentos Públicos: planejamento, gestão e fiscalização”, “Federalismo Fiscal” e “Poder Judiciário: orçamento, gestão e políticas públicas”, na Faculdade de Direito da USP. Juiz de Direito em São Paulo.

 

 

 

 

 

 

 

 

LEVANDO O DIREITO FINANCEIRO A SÉRIO

A luta continua

 

 

 

 

 

3a edição

 

Levando o direito financeiro a sério: a luta continua

© 2019 José Mauricio Conti Editora Edgard Blücher Ltda.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4° andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel 55 11 3078-5366

[email protected] www.blucher.com.br

 

 

Segundo Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009.

 

 

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da Editora.

 

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

 

Conti, José Mauricio

Levando o direito financeiro a sério : a luta continua [livro eletrônico] / José Mauricio Conti.

— 3. ed. — São Paulo : Blucher, 2019.

3 Mb ; ePUB

 

 

Bibliografia

ISBN 978-85-8039-402-3 (e-book)

ISBN 978-85-8039-403-0 (impresso)

 

  1. Direito financeiro 2. Finanças públicas I. Título 19-1605 CDD 81

Índice para catálogo sistemático:

  1. Direito financeiro – Brasil

 

 

 

 

 

 

 

 

A vida continua, e o Direito Financeiro não para.

Desde a publicação da 2a edição, com as colunas publicadas até dezembro de 2017, as questões envolvendo o Direito Financeiro continuaram na ordem do dia, justificando a atualização do livro.

Do final de 2017 até os primeiros meses desse ano de 2019, muita “água já rolou sob da ponte”, como diz o provérbio popular, e não se pode deixar de acom- panhar os fatos e como o Direito Financeiro evoluiu ao longo desse período.

Tempos marcados pelas dificuldades que tiveram de ser enfrentadas pelo novo Presidente, vice empossado após um traumático processo de impeachment, por ra- zões orçamentárias, o que acabou gerando um efeito positivo de atenção e maior respeito às normas de Direito Financeiro.

Há que se constatar a solidez demonstrada pelas instituições, tendo sido supe- rado o episódio dentro dos limites estabelecidos pela Constituição, com o vice-

-presidente assumindo o mandato, realizando eleições livres e entregando o co- mando ao sucessor democraticamente eleito. Mas não há como deixar de constatar as dificuldades políticas de superar os vários obstáculos no comando de uma Na- ção sem que tenha a legitimidade política de ter recebido o voto diretamente da população como primeiro e principal mandatário.

E não foram poucos, como se poderá constatar ao longo dos vários textos acrescidos a esta 3a edição.

A derrocada das finanças públicas, em especial nos Estados e Municípios, continuou “firme e forte”, e recuperá-las foi e continua sendo um desafio não su- perado. Entes federados sucumbem por colapso financeiro, exigindo medidas du- ras, como a decretação de intervenções, especialmente em razão do problema da violência. E a “administração-bombeiro” continua a agir, impondo “pautas-bom- ba” ao Congresso Nacional, e os ataques às restrições impostas pela Lei de Respon- sabilidade Fiscal continuam, na tentativa de trazer alívios temporários, provisórios e imediatos aos entes federados.

Desafios a serem enfrentados pelo Presidente e Governadores recém-eleitos, que assumem com o apoio das urnas e não podem perder a oportunidade de enfrentá-los.

 

 

Enquanto isso, a guerra contra a corrupção não cessa, e o “mecanismo orça- mentário” continua funcionando.

Tudo isso dificulta a efetiva implantação de normas de gestão e planejamento eficazes, e o Direito Financeiro fica sob ataque de todos os lados, lutando para manter a higidez de suas normas e de sua estrutura. Uma guerra em que muitas vezes parece estar sozinho, contra tudo e todos.

Um estímulo a mais para manter o ânimo dos soldados que lutam ao seu lado, com a convicção de estarem do lado certo e defendendo o que é melhor e mais justo para todos.

O fato é que continuam presentes as demandas já identificadas desde a pri- meira edição: levar o Direito Financeiro a sério é um objetivo que ainda precisa ser alcançado, e o caminho a percorrer ainda parece bem longo.

Novamente, o que se deseja é uma boa, proveitosa e agradável leitura a todos. Agradeço as críticas e sugestões às duas primeiras versões, que continuam sendo sempre muito bem-vindas e podem ser encaminhadas ao e-mail [email protected].

 

São Paulo, março de 2019.

José Mauricio Conti

 

 

 

 

 

 

 

 

Foi uma grande satisfação ver a excelente acolhida à obra Levando o Direito Financeiro a sério, em que foi possível falar aos leitores sobre o Direito Financeiro de forma mais leve e agradável, além de dar publicidade a textos informativos e críticos, que de alguma forma colaboraram para seu aperfeiçoamento.

As colunas continuaram a ser regularmente publicadas no ConJur, e após dois anos chegou a hora de atualizar o livro, compondo-o com os textos produzidos nesse período.

Uma época um tanto conturbada, mas de grande relevância para o Direito Financeiro, que foi marcada pelo impeachment presidencial, por razões diretamen- te ligadas ao descumprimento de normas de Direito Financeiro. Se por um lado se percebe a falta de seriedade com que foi tratado o ordenamento jurídico das finan- ças públicas, por outro se viu que houve aplicação de sanções de forma nunca antes vista no âmbito do Direito Financeiro, evidenciando a força de suas normas e a necessidade de que sejam respeitadas.

Outros fatos importantes marcaram esses dois anos para o Direito Financeiro, como o leitor verá ao longo das colunas, não sendo o caso de enumerá-los.

Constata-se que a importância do Direito Financeiro é cada vez maior, como maior também tem sido a consciência de que deve ser respeitado.

Mas o último período continuou a dar inúmeros exemplos de que o Direito Financeiro ainda não é levado a sério, o que justifica a manutenção do título desta obra. Essa é uma luta que continua!

A questão dos precatórios ainda não foi solucionada, e mais emendas à Constituição foram publicadas sobre o tema; a corrupção segue firme, apesar da intensificação do combate e da atuação dos órgãos de fiscalização; debates sobre temas relevantes, como a reforma da previdência social, avançam mas não se chega a um consenso. O que mais chamou a atenção, porém, foi o verdadeiro estado de falência a que chegaram vários entes da federação, consequência de ir- responsabilidades fiscais e da falta de planejamento. Por essa razão, o ataque às normas de Direito Financeiro foi intenso. Decretação de “estados de calamidade

 

 

pública”, flexibilizações da legislação financeira e outras medidas que mostram haver ainda muito que fazer na defesa do Direito Financeiro.

Levar o Direito Financeiro a sério é um objetivo que ainda precisa ser alcan- çado. E há um longo caminho a percorrer.

Uma boa, proveitosa e agradável leitura a todos. Agradeço as críticas e suges- tões à primeira edição. Elas continuam sempre muito bem-vindas, e podem ser encaminhadas ao e-mail [email protected].

 

São Paulo, dezembro de 2017.

José Mauricio Conti

 

 

 

 

 

 

 

 

Há 20 anos, em 1995, comecei a ministrar aulas de Direito Financeiro aos alunos de graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), e, alguns anos depois, nas primeiras disciplinas do curso de pós-graduação nessa área. E é com grande satisfação que permaneço até hoje na docência da matéria.

Nesse período, tive o privilégio de acompanhar a maior evolução havida na história do Direito Financeiro, que, nessas duas décadas, experimentou avanços que o colocam hoje em uma posição de destaque no mundo jurídico. Avanços que se iniciaram em 1994, com a estabilização da moeda, e se intensificaram em 2000, com a publicação da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A importância do Direito Financeiro se mostra presente e cresce a cada dia ao ficarem claras as tensões decorrentes da falta de recursos para atender as necessidades públicas e assegurar os direitos previstos em nossa Constituição. O orçamento, como lei que define os recursos à disposição do Poder Público para atender às demandas e estabelece onde e como serão gastos, passou a ser visto como norma que precisa ser respeitada, à semelhança das demais que regulam a atividade financeira do Estado. E a lei orçamentária é aceita como a mais importante depois da Constituição. Há esperanças de que a alcunha de “peça de ficção” pela qual sempre foi reconhecida, e da qual ainda não se desvencilhou completamente, se torne coisa do passado.

Limitações aos gastos públicos, responsabilidade no endividamento, planeja- mento, transparência e outras tantas questões envolvendo as finanças públicas tornaram-se parte integrante do cotidiano dos gestores públicos. A credibilidade dos governantes é em boa parte decorrente do respeito que têm pelas normas de Direito Financeiro, cujo fiel cumprimento é fundamental para transmitir seguran- ça jurídica à sociedade, aos mercados interno e externo, a todos os demais Estados com os quais o Brasil se relaciona.

Órgãos de fiscalização das contas públicas passaram a ter visibilidade e impor- tância nunca antes vista. Questões de Direito Financeiro começaram a chegar com mais frequência aos Tribunais, e o Poder Judiciário a ter de decidir e construir ju- risprudência em temas relevantes envolvendo o Direito Financeiro.

 

 

A doutrina passou a dar mais atenção ao Direito Financeiro, estudiosos volta- ram seus olhos para essa área até então esquecida, alunos viram nela um vasto campo a ser explorado e tem sido gratificante acompanhar a produção de disserta- ções e teses que se aprofundam nas instigantes questões da matéria. E nisso a Fa- culdade de Direito da USP teve e tem um papel determinante, com seus professo- res e alunos dedicados e interessados em desbravar esse ramo do Direito e a ele dar uma nova dimensão.

Estudar e escrever a respeito do Direito Financeiro, nessas circunstâncias, pas- sa a ser uma atividade especialmente estimulante, pois permite a incursão por áreas ainda pouco exploradas, com a certeza de que sempre será possível dar uma contri- buição inovadora. Faz ver que o Direito Financeiro deve ser estudado com os olhos voltados para o futuro, por estar em constante modernização, sempre atento aos avanços da sociedade, em todos os seus aspectos.

São razões que tornam prazeroso escrever as colunas – aqui publicadas – da seção “Contas à Vista” criada pelo site Consultor Jurídico, que há pouco mais de três anos divido com meu colega de docência na Faculdade de Direito da USP, Fernan- do Scaff, na qual temos a oportunidade de expor temas de Direito Financeiro, le- vando ao leitor a possibilidade de refletir sobre as principais questões afins presen- tes no cotidiano.

A iniciativa do site Consultor Jurídico de criar a seção “Contas à Vista” mos- trou-se um grande avanço na forma de comunicação e divulgação das ideias no mundo jurídico. Com textos mais curtos, compatíveis com a modernidade, tem tudo para se transformar na nova forma de comunicar-se com o leitor interessado no Direito Financeiro. Os textos atingem um público amplo e de forma muito mais rápida, permitindo que fatos há pouco ocorridos possam ser objeto de análise qualificada pelos colunistas. A repercussão dos textos é imediata, com os leitores tecendo considerações e comentários que permitem ao autor ter um feedback das ideias veiculadas, o que muito colabora para maior reflexão sobre o texto escrito. Repercussão que se amplia e reflete nas redes sociais, ampliando ainda mais o pú- blico atingido. Uma demonstração de que a forma de se comunicar com o leitor está em evolução, e esse é o caminho a seguir.

As colunas publicadas nesta coletânea, aproveitando-se dos fatos relevantes da vida nacional, mostram como as questões de Direito Financeiro estão presentes na vida de cada um de nós, da sociedade e do Estado. O uso de linguagem mais sim- ples, clara e direta, sem rebuscamentos, torna o Direito Financeiro mais compreen- sível, leve, prático e agradável. Facilita e incentiva a leitura, em uma época em que o tempo se mostra a cada dia mais escasso, o que exige textos curtos, simples,

 

Apresentação à 1ª edição       ••

 

precisos e voltados à realidade, que permitam compreender os fatos à luz das nor- mas e teorias do Direito, e vice-versa, conectando a teoria com a prática.

Reunir as colunas selecionadas em um livro que permita ao interessado ter fácil acesso a elas de forma sistematizada em torno dos grandes temas de Direito Financeiro foi o meio encontrado de aproximação ainda mais forte com o leitor que, além do site Consultor Jurídico, passa a ter também o meio impresso, podendo ainda acessar gratuitamente o conteúdo do livro no formato pdf no site da Editora Blucher <www.blucher.com.br> pelo selo Open Access.

Escrever sobre os fatos que estão no dia a dia de cada um de nós, muitas das vezes ocupando espaços na mídia e chamando a atenção de todos, inviabiliza uma fórmula que permita congregar todos os assuntos de Direito Financeiro, abordados ao longo desses mais de três anos, sob um título único. No entanto, ao reler cada um dos textos, vê-se que há um ponto que une quase todos. Este é, infelizmente, o fato de observar que normas de Direito Financeiro têm sido sistematicamente des- cumpridas, desconsideradas e a elas não têm sido dada a merecida importância, especialmente nesses últimos anos, desde que as colunas começaram a ser publica- das. Nessa linha, tornou-se possível encontrar um título para esta obra que pudes- se destacar a necessidade de colocar o Direito Financeiro no seu devido lugar: aquele de um ramo do Direito que hoje tem inegável proeminência no mundo ju- rídico. E não houve modo mais adequado do que tomar emprestado de Ronald Dworkin a feliz expressão que utilizou para intitular sua conhecida obra: Levando os direitos a sério. Ainda que nestes textos não tenha havido nenhum compromisso com o conteúdo da sua obra, a expressão é reveladora da situação atual – e que se espera momentânea –, do Direito Financeiro, pois o que tem faltado é, justamente, que seja levado a sério. E na maior parte dos textos esta se mostra uma preocupação constante.

Os professores com quem dividi e divido as aulas de Direito Financeiro na USP – Regis de Oliveira, Heleno Torres, Estevão Horvath e Fernando Scaff – e os alunos dos cursos de graduação e pós-graduação sempre foram e continuam sendo fontes permanentes de inspiração para questões que fazem pensar sobre o Direito Financeiro. Muitos assuntos abordados nas colunas surgiram a partir desses conta- tos, e a colaboração, sobretudo dos orientandos, com quem se travam permanentes debates, foi especialmente relevante. A todos um especial agradecimento. Sem con- tar os professores de outras universidades, que só deixo de nomear por ter a certeza de que acabarei esquecendo algum e cometendo grave injustiça, mas cuja contri- buição mostra que o interesse da disciplina é crescente e em nada se parece com o que havia há 20 anos, quando comecei a me dedicar ao tema.

 

 

De grande utilidade para o surgimento de temas a serem debatidos, bem como do que é objeto de abordagem nos textos, são os três grupos de pesquisa USP-CNPq que mantenho para discussões de matérias de Direito Financeiro: “Orçamentos Pú- blicos: planejamento, gestão e fiscalização”; “Federalismo Fiscal”; e “Poder Judiciá- rio: orçamento, gestão e políticas públicas”.

Os textos que estão neste livro, por vezes, contêm pequenos ajustes, destina- dos tão somente a corrigir eventuais equívocos de redação observados em uma re- visão final, sem que isso importe em alguma modificação do conteúdo.

O compromisso de escrever mensalmente uma coluna para tratar de questões de Direito Financeiro, embora possa parecer um encargo, acaba sendo muito gra- tificante pela difusão das ideias com as quais se pretende fomentar os estudos e debates. E as críticas, por vezes presentes nestas colunas, têm a intenção de serem sempre construtivas, de forma a colaborar para um Direito Financeiro melhor, mais respeitado – e que seja levado a sério.

Espero que esta obra possa ser útil a todos e desejo uma boa e proveitosa leitu- ra. Críticas e sugestões serão sempre muito bem-vindas e podem ser encaminhadas ao e-mail [email protected].

 

São Paulo, dezembro de 2015.

José Mauricio Conti

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Apresentação à 3ª edição…………………………………………………………………………… 5

Apresentação à 2ª edição…………………………………………………………………………… 7

Apresentação à 1ª edição…………………………………………………………………………… 9

Parte 1. RECEITAS PÚBLICAS E FEDERALISMO FISCAL……………………………………………………… 17

Transferências voluntárias geram desequilíbrio federativo………………………… 19

Reformular o FPE para adequar o federalismo fiscal………………………………. 23

Desafios federativos precisam ser vencidos para acabar com a falta d´água ……. 29

Benefícios fiscais, partilha de receitas e a “súmula-fantasma” do STF…………… 35

A delação da JBS, o BNDES, as salsichas e a promiscuidade nas relações financeiras 41

Colapso financeiro leva ao caos social e à intervenção federal na segurança

do Rio de Janeiro………………………………………………………………………. 47

Parte 2. DESPESAS E POLÍTICAS PÚBLICAS…………………………………………………………………….. 53

Nem só com royalties se melhora qualidade da educação………………………… 55

Saúde não precisa só de dinheiro, mas de boa gestão……………………………. 59

Financiamento da segurança pública precisa de atenção………………………….. 65

Afinal, quanto custou a Copa do Mundo para a sociedade brasileira?……….. 69

O Direito Financeiro pode ser a solução para os sem-teto……………………… 73

Maioridade penal, os 25 anos do ECA e o Direito Financeiro…………………… 77

Solução para a crise carcerária tem significativo reflexo orçamentário………… 83

Recursos são fundamentais para garantir o direito das pessoas com

deficiência……………………………………………………………………………….. 89

Relação das mulheres com o dinheiro precisa ser desmitificada………………… 95

Universidades públicas agonizam pela falta de recursos…………………………. 101

É preciso transparência no sistema tarifário e de subsídio do transporte coletivo       105

Direito financeiro tem responsabilidade nos avanços da proteção

ao trabalhador…………………………………………………………………………. 111

Aumento da violência leva a retrocesso nas prioridades orçamentárias……… 115

Museu queimado expõe a incompetência dos “bombeiros de gravata”……….. 121

Parte 3. PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO……………………………………………………………. 127

Planos de governo são essenciais para a escolha do próximo presidente…. 129

Planejamento municipal precisa ser levado a sério……………………………….. 135

Descaso com o planejamento deixa o país sem rumo………………………….. 139

Poder Judiciário: 2014 é o ano do planejamento estratégico………………….. 145

LDO é instrumento eficiente para a administração pública……………………… 151

Decisões financeiras fundamentais são tomadas na Lei de Diretrizes Orçamentárias……………………………………………………………………………………………. 155

No primeiro ano de mandato, não se cumprem promessas…………………… 161

No fundo, protestos envolvem questões orçamentárias…………………………. 165

E o ano começa sem a aprovação do orçamento federal………………………. 169

Um ano depois, fica a pergunta: quem pagou a conta dos protestos de junho? 173 Vivemos no país das finanças públicas mal-assombradas…………………………………….. 177

O Direito Financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 começou mal……….. 183

Orçamento não pode mais ser uma peça de ficção……………………………… 189

Vereador não pode apenas homologar a Lei Orçamentária…………………… 195

Parlamentar pode, sim, propor lei em matéria financeira……………………….. 199

Poderes não são independentes sem autonomia financeira…………………….. 203

Vinculações orçamentárias não são a panaceia dos problemas……………… 207

Natal é tempo de correr com a execução orçamentária………………………….. 211

O final de ano, as dívidas e os “restos a pagar”……………………………………. 215

Emendas ao orçamento e o desequilíbrio de Poderes………………………….. 219

Durante as eleições, pense bem para quem vai entregar a chave do cofre…… 223

Hora é de “apertar o cinto” e contingenciar gastos……………………………….. 227

Orçamento impositivo é avanço para administração…………………………….. 231

Aprovação do “orçamento impositivo” é insuficiente para dar credibilidade

à Lei Orçamentária……………………………………………………………………. 235

Crise econômica pode criar “orçamento recurso-zero”…………………………… 241

Sumário ••

Flexibilidade orçamentária deve ser usada com moderação…………………….. 245

Uso político dos instrumentos de Direito Financeiro deve ser combatido…. 251

Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão……………………….. 255

Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias……………………………. 259

Direito Financeiro precisa avançar, e a hora é agora……………………………… 263

É preciso ter cautela e transparência para debater a reforma da Previdência . 269 Que venha 2017, e traga boas notícias para o Direito Financeiro……………………………. 275

O “mecanismo orçamentário” nem os caminhoneiros conseguem parar…….. 281

Pautas-bomba ameaçam explodir o orçamento de 2019………………………. 287

O novo presidente e o direito financeiro: o que podemos esperar?………….. 293

Uma facada na “caixa-preta do sistema s” em defesa da universalidade orçamentária       299

Novos governos, novas esperanças de avanços no Direito Financeiro……….. 305

Parte 4. FISCALIZAÇÃO FINANCEIRA E ORÇAMENTÁRIA…………………………………………………….. 311

Controle interno mostra sua força no combate à corrupção………………….. 313

Tribunais de Contas são os guardiões do dinheiro público……………………. 317

Corrupção na Petrobras precisa ser apurada com rigor pelo TCU e CGU…… 323

Julgamento das contas do governo precisa ser feito com rigor……………… 329

Julgamento do TCU que reprovou contas do governo entrou para a história

do Direito Financeiro………………………………………………………………… 335

“PEC do padrão mínimo” vai aperfeiçoar Tribunais de Contas…………………. 339

Supremo gera polêmica ao decidir sobre julgamento de contas

de prefeitos…………………………………………………………………………….. 345

Combate à corrupção marca uma nova república em construção…………… 351

Moralização da administração pública: chegou a vez dos Tribunais

de Contas………………………………………………………………………………. 359

Discutindo a relação entre o Poder Judiciário e os Tribunais de Contas…… 367

Devolvam nosso dinheiro: guerra contra a corrupção vence mais uma batalha  371 OAB finalmente vai prestar contas: decisão do TCU corrige erro histórico……….. 377

Parte 5. DÍVIDA PÚBLICA E RESPONSABILIDADE FISCAL…………………………………………………… 385

Carnaval financeiro: contas “maquiadas” não vão tornar nosso país

mais bonito……………………………………………………………………………. 387

Atenção caro leitor, pedalar faz mal à saúde!……………………………………. 391

Acabar com a meta de superávit é irresponsabilidade fiscal………………….. 395

Irresponsabilidade fiscal ainda persiste, 15 anos após a publicação da lei….. 401

Cuidado, pedalar pode dar cadeia!………………………………………………….. 405

BNDES tem o dever de colaborar com a transparência dos gastos públicos 411

No samba dos precatórios, quem dança são os credores!…………………….. 417

Agressões ao Direito Financeiro dão razões para o impeachment………… 423

Desrespeito ao Direito Financeiro afastou Dilma do cargo de presidente…. 429

Refinanciar dívidas nada mais é do que postergar problemas……………….. 433

Crise leva as finanças públicas ao “estado de calamidade”…………………… 439

Teori Zavascki, o Supremo Tribunal Federal e a responsabilidade fiscal………. 443

Um salve pela recuperação financeira do estado do Rio de Janeiro!……….. 449

Devo, não nego: o Direito Financeiro e o dilema da dívida pública…………. 455

O governo também te deve? Escolha a fila e entre nela!……………………… 461

Recuperar as finanças públicas em frangalhos é o desafio para 2018……… 467

Em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão…………………. 473

Alívio para prefeitos compromete responsabilidade fiscal…………………….. 479

2015: o ano de triste memória para o Direito Financeiro que não quer

terminar………………………………………………………………………………… 483

 

 

 

 

 

RECEITAS PÚBLICAS E FEDERALISMO FISCAL

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Transferências voluntárias geram desequilíbrio federativo ••
Reformular o FPE para adequar o federalismo fiscal ••
Desafios federativos precisam ser vencidos para acabar com a falta d’água ••
Benefícios fiscais, partilha de receitas e a “súmula-fantasma” do STF ••
A delação da JBS, o BNDES, as salsichas e a promiscuidade nas relações financeiras ••
Colapso financeiro leva ao caos social e à intervenção federal na segurança do RJ ••

 

 

 

 

TRAnSFERênCIAS vOLunTáRIAS gERAM DESEquILíBRIO FEDERATIvO

 

 

Coluna publicada em 28.8.2012: <http://www.conjur.com.br/2012-ago-28/ contas-vista-transferencias-voluntarias-geram-desequilibrio-federativo>

 

 

 

 

 

O Brasil é uma Federação, e o respeito à autonomia dos entes que a compõem é fundamental para sustentação desse sistema. Entre os vários aspectos em que se desdobra a autonomia dos entes federados, a autonomia financeira ocupa papel de destaque.

Os entes federados, em especial os chamados “entes subnacionais” (estados, Distrito Federal e municípios), precisam dispor de recursos suficientes para fazer frente a suas despesas, e sem depender dos demais, particularmente da União. A verdadeira, efetiva e imprescindível autonomia financeira depende, pois, do binô­ mio “suficiência” e “independência” dos recursos financeiros.

A equação que permite ajustar as receitas às despesas em cada ente federado é por demais complexa. Envolve uma multiplicidade de fatores que fazem do estudo do federalismo fiscal uma tarefa árdua e ao mesmo tempo instigante, pois inúmeros são os instrumentos e possibilidades na busca de uma fórmula ideal, que está e continua­ rá em permanente construção, dado o dinamismo das relações econômicas e sociais.

No âmbito dos gastos, há que se adequar os serviços pelos quais cada ente fe­ derado ficará responsável com sua capacidade de prestá­los de forma eficiente. Questão difícil e que não será objeto de abordagem neste texto, mas seguramente o farei em outra oportunidade dada a relevância e interesse do tema.

No que tange às receitas, o mesmo problema se verifica. Muitas são as fontes de receita, várias são as possibilidades arrecadatórias de que dispõe o Estado para angariar recursos dos cidadãos e das empresas. Como ajustar a distribuição dessas fontes aos diversos entes federados, de modo a compor parte da estrutura que sus­ tentará um sistema adequado de partilha de recursos?

 

 

De início, distribuem­se as competências tributárias, atribuindo a cada ente federado uma gama de tributos que poderá instituir e cobrar. No Brasil, a título exemplificativo, vemos, no âmbito dos impostos, a atribuição à União dos impos­ tos sobre o comércio exterior, IPI, IR, IOF etc.; os estados ficam com o ICMS, o ITCMD e o IPVA; e os municípios com o IPTU, ITBI e ISS.

Não é difícil constatar de plano a imprecisão financeira causada por essa par­ tilha, dado o comportamento diferente que a arrecadação de cada tributo assume nos diversos entes federados, tornando inadequada a divisão de recursos feita exclu­ sivamente dessa forma.

Outros métodos complementam essa fórmula, como é o caso da partilha de receitas tributárias, a exemplo dos fundos de participação (principalmente o FPE

– Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal, e FPM – Fundo de Parti­ cipação dos Municípios), por meio dos quais percentuais dos recursos do IR e do IPI, impostos federais, são transferidos de forma automática e obrigatória a estados, Distrito Federal e municípios, segundo critérios basicamente regionais, populacio­ nais e de renda per capita.1

Mesmo assim, o sistema não se mostra suficientemente adequado à complexi­ dade que as estruturas econômicas e sociais exigem para atender as necessidades públicas em uma federação com múltiplos atores.

Por essa razão, o Brasil, como muitos outros países, dispõe de um amplo e complexo sistema de transferências chamadas de “voluntárias”. São recursos à dis­ posição, principalmente, da União, e também, em menor proporção, dos estados e municípios, que podem ser entregues a outros entes federados, seguindo critérios de conveniência e oportunidade, vinculados a programas governamentais específi­ cos. Completam uma estrutura de “federalismo cooperativo”, claramente presente em nosso país, em que os diversos entes da federação em regime de cooperação para, juntos, compartilharem recursos e atribuições no fornecimento de bens e serviços públicos, tais como se verifica no caso da saúde, educação e outras tantas áreas de atuação do Poder Público.

Trata­se de um sistema que, bem utilizado, é extremamente útil e necessário para a correta partilha de recursos entre os entes federados, pois permite o atendi­ mento das necessidades públicas da forma mais eficiente, e com a necessária flexi­ bilidade exigida pelas peculiaridades dos serviços públicos, dos prestadores e dos beneficiários, além das demais circunstâncias que circundam cada caso.

1      Para quem se interessar por mais detalhes sobre esses fundos, escrevi o Federalismo fiscal e fundos de participação. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001.

 

Transferências voluntárias geram desequilíbrio federativo  ••

 

As transferências voluntárias, no entanto, são instrumentos que exigem mais atenção dos legisladores a fim de que se dediquem a regulamentar essa poderosa ferramenta de nosso federalismo cooperativo, tornando­a mais impessoal e insus­ cetível de distorções em seu uso, como, muitas vezes, se tem observado.

A regulamentação das transferências voluntárias é, hoje, escassa e essencial­ mente formalista, como a que se vê no artigo 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Não há diretrizes gerais que indiquem de forma mais clara quem deve ser contem­ plado e quais critérios devem ser observados.

Soma­se a isso a constatação de que os municípios, especialmente os menores, dispõem de ínfima arrecadação tributária própria e dependem fortemente das transferências obrigatórias, tornando o FPM sua principal fonte de receitas. Recei­ tas estas que, somadas, são consumidas com as despesas correntes, cobrindo a folha de pagamentos e outras despesas de custeio.

Com isso, chega­se ao quadro hoje existente, em que esses municípios, que são a esmagadora maioria, dependem, para qualquer investimento ou despesa nova, das transferências voluntárias oriundas da União e do estado a que pertencem. Transferências estas que nem sempre são concedidas por critérios exclusivamente técnicos e cuja liberação de recursos é muito utilizada como instrumento de barga­ nha política.

Atualmente, as transferências voluntárias, mais do que instrumentos de aper­ feiçoamento do federalismo fiscal cooperativo, transformaram­se em armas de des­ truição da autonomia financeira e, consequentemente, do federalismo brasileiro, subordinando municípios e estados à vontade da União. Há uma distorção do processo democrático por meio do qual são eleitos os governantes, uma vez que os responsáveis pela gestão dos entes subnacionais se veem compelidos a aceitar as ofertas que lhe são feitas pelos demais entes federados, sob pena de não terem re­ cursos para atenderem as necessidades de sua população. Muitos prefeitos, por consequência, têm de destinar recursos conforme o interesse da União, detentora dos recursos e do poder de entregá­los a quem lhe convier.

Um indesejável desequilíbrio em nossa Federação, em que a União consegue impor sua vontade aos estados e estes, por sua vez, aos municípios, deixando estes últimos, que estão mais próximos da população e sentindo mais de perto suas reais necessidades, à mercê de verdadeiras “benesses” oriundas do, no mais das vezes, longínquo planalto central.

Da forma como hoje se encontra, o sistema de transferências voluntárias transforma nossos prefeitos em verdadeiros “Indiana Jones” modernos: embora não vão à Índia ou ao Peru em busca de tesouros enterrados, são constantemente

 

 

forçados a deixar a cidade que deveriam administrar para deslocar­se à Esplanada dos Ministérios brasiliense atrás das polpudas transferências voluntárias bem es­ condidas nos gabinetes dos burocratas. Sem o chicote e o glamour de um Harrison Ford, armados apenas de suas pastinhas, cumprem tarefa certamente bem menos emocionante e, no mais das vezes, muito mais difícil…

 

 

REFORMuLAR O FPE PARA ADEquAR O FEDERALISMO FISCAL

 

 

Coluna publicada em 23.10.2012: <http://www.conjur.com.br/2012-out-23/ contas-vista-reformular-fpe-adequar-federalismo-fiscal>

 

 

 

 

 

Reproduzindo o que já disse na coluna do dia 28 de agosto de 2012 (Transfe- rências voluntárias geram desequilíbrio federativo, nesta edição, p. 19­22), inicio esta lembrando que estamos em uma Federação que tem entre seus pilares o respeito à autonomia financeira dos entes que a compõem.

Ao discorrer sobre a dificuldade que é construir um Estado Federal, especial­ mente no que tange ao exato desenho das partilhas de encargos e atribuições, de modo a compatibilizar as receitas com as despesas, chamei a atenção para a questão das transferências voluntárias, instrumento de extrema relevância para obter este desejado equilíbrio.

Desta feita, pelas razões que vão ser expostas em seguida, o foco é outro: as transferências obrigatórias, mais especificamente a transferência constitucional do FPE (Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal).

Não é fácil, em nenhum Estado, e menos ainda naqueles que se organizam na forma federativa, dividir as receitas públicas. Vários são os métodos e instrumentos pelos quais essa partilha se operacionaliza nos Estados Federados.

No Brasil, com seu federalismo cooperativo, temos, inicialmente, uma repar­ tição das fontes de receitas permitindo a cada ente federado dispor de competências arrecadatórias próprias, obtendo recursos tanto por vias tributárias quanto não tributárias, sendo as primeiras usualmente mais relevantes, responsáveis pela maior parte da arrecadação.

As características de cada tributo, em função de diversos fatores, dificultam a atribuição precisa de cada espécie aos diversos entes federados; e o comporta­ mento da arrecadação é também diverso para cada ente, tornando inadequada

 

 

uma partilha de recursos entre os entes federados promovida somente pela distri­ buição de competências arrecadatórias.

Em função disso, torna­se de extrema relevância o mecanismo de repartição do produto da arrecadação, por meio do qual um ente federado detém a competên­ cia para instituição e cobrança do tributo, mas deve dividir o produto arrecadado com outros entes federados.

Por meio da repartição do produto da arrecadação, muitas ineficiências são eliminadas, e abre­se a oportunidade de se introduzirem critérios de redistribuição de recursos que podem ser úteis para aperfeiçoar o sistema de partilha e eliminar desigualdades e desequilíbrios diversos, garantindo a autonomia financeira dos en­ tes federados, com mais equidade e eficiência, corrigindo­se os desequilíbrios ver­ ticais e horizontais existentes na Federação.

Os mais importantes instrumentos desse federalismo fiscal cooperativo no Brasil, atualmente, são o Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

Embora existam registros de previsões constitucionais de partilhas de receitas tributárias na Constituição de 1937 (art. 20) e de 1946 (art. 15), os Fundos de Participação ora referidos, na forma atual, surgiram com a Emenda Constitucional 18, de 1965.1

A Constituição vigente os prevê no artigo 159, I, a e b, destinando­lhes parce­ la do produto da arrecadação dos impostos sobre a renda e proventos de qualquer natureza (IR) e sobre produtos industrializados (IPI).

O artigo 161, II, da Constituição estabelece que “cabe à lei complementar estabelecer normas sobre a entrega dos recursos de que trata o art. 159, especial­ mente sobre os critérios de rateio dos fundos previstos em seu inciso I, objetivando promover o equilíbrio socioeconômico entre Estados e entre Municípios”. A Lei Complementar 62, de 28 de dezembro de 1989, definiu os critérios de partilha.

O Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal é composto por 21,5% da arrecadação da União com o imposto sobre a renda (IR) e com o impos­ to sobre produtos industrializados (IPI) (CF, art. 159, I, a), e seus recursos são distribuídos aos estados e Distrito Federal mediante fórmula que leva em conside­ ração a região da federação da qual o estado faz parte, a superfície territorial, a renda per capita e a população.

 

1  Pode­se ver a evolução histórica mais detalhada em texto anterior de minha autoria: CONTI, José Mauricio. Federalismo fiscal e fundos de participação. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p. 61­68.

 

 

O Fundo de Participação dos Municípios é composto por 22,5% da arrecada­ ção da União com o imposto sobre a renda (IR) e com o imposto sobre produtos industrializados (IPI) (CF, art. 159, I, b), e seus recursos são distribuídos aos municípios mediante fórmula que leva em consideração o fato de ser capital do Estado, a renda per capita e a população. Recentemente, por meio da Emenda Constitucional 55/2007, foi majorada a composição das receitas do Fundo, com a inclusão de 1% das receitas do IR e do IPI, a serem distribuídas aos municípios no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano.

As transferências intergovernamentais oriundas desses Fundos têm natureza obrigatória, ou seja, não se vinculam a programas governamentais específicos cuja operacionalização fique sujeita à decisão de autoridade para se efetivar. São tam­ bém transferências incondicionadas, ou seja, os recursos transferidos são de livre aplicação pelo ente federado que as recebe.

Passam a integrar as receitas correntes do ente federado que, em regra, as uti­ liza para financiar as despesas correntes, caracteristicamente pouco comprimíveis, com estreita margem para serem reduzidas.

Disso resultam alguns problemas interessantes e de difícil solução.

É o caso, por exemplo, das oscilações na arrecadação do IPI, imposto com relevante função extrafiscal, utilizado pela União no exercício de sua política fiscal e que, frequentemente, tem suas alíquotas alteradas, com consequente efeito no montante arrecadado e, por consequência, transferido sem que os estados e muni­ cípios possam ter qualquer controle ou ingerência. Evidente a dificuldade orçamen­ tária causada aos entes subnacionais, que ficam à mercê das ações da União e também do comportamento do mercado, para receber recursos destinados a pagar salários de servidores, contratos em andamento etc.

Outra questão refere­se à adequação dos critérios de partilha desses recursos. No caso do FPE, o primeiro critério (LC 62, art. 2º) é regional, destinando­

­se, das receitas do Fundo, 85% para as unidades da Federação integrantes das re­

giões Norte, Nordeste e Centro­Oeste; e 15% para as unidades da Federação do Sul e do Sudeste, com os coeficientes individuais, para cada estado, sendo defini­ dos na forma do anexo único da lei, para vigorar provisoriamente até o exercício de 1991, a serem alterados posteriormente com base no censo do IBGE.

Ocorre que a alteração dos critérios, como se pode imaginar, provoca modifi­ cações significativas na arrecadação dos estados beneficiários, em receitas cuja re­ dução causa sério transtorno nas respectivas finanças, pelas razões já expostas.2 Por

 

2      Só para que se tenha uma ideia, em alguns Estados, as transferências do FPE chegam a repre­ sentar quase 50% das receitas correntes.

 

 

consequência, previsível a dificuldade política em aprovar lei com novas disposi­ ções. Tão difícil que nunca chegou a ser aprovada3 e, até hoje, passados mais de vinte anos, continuam vigentes os mesmos critérios.

Em razão disso, estados que se consideraram prejudicados moveram ações diretas de inconstitucionalidade, por ação e omissão, em face da prorrogação suces­ siva da vigência dos artigos que fixam os critérios de rateio e não estabelecimento de novos, nos termos determinados pela Constituição, que resultaram em quatro ações (ADIs 875, 1.987, 2.727 e 3.243), julgadas em conjunto por decisão de 24 de fevereiro de 2010 (Tribunal Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes).

O Supremo Tribunal Federal reconheceu ser incompatível com o texto cons­ titucional que determinou sejam os critérios fixados com o objetivo de promover o equilíbrio socioeconômico, a manutenção de regra estabelecida provisoriamente há mais de 20 anos.

Em decisão interessante e inovadora, julgou procedentes os pedidos, declaran­ do inconstitucionais o artigo 2º, I e II, §§ 1º, 2º e 3º, e o anexo único, da Lei Complementar 62, de 1989, que fixam os critérios hoje vigentes de partilha das receitas do FPE. No entanto, sendo inconstitucionais os referidos dispositivos, in­ viável se torna a operacionalização da distribuição dos recursos, o que evidente­ mente provocaria um caos nas finanças dos Estados, razão pela qual foi declarada a inconstitucionalidade “sem pronúncia de nulidade”, assegurando­se a aplicação dos referidos dispositivos até 31 de dezembro de 2012.

Compreenderá agora o leitor a razão desta coluna.

O dia 31 de dezembro de 2012 está aí. Daqui a dois meses encerra­se a sessão legislativa e, portanto, o prazo para a supressão dessa futura lacuna legislativa, com a aprovação da lei que venha a regulamentar os novos critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal, de fundamental importância para as finanças públicas.

Sendo inviável nova prorrogação, até porque os critérios hoje vigentes foram declarados inconstitucionais justamente por serem decorrentes de prorrogações de normas anteriores, estamos diante de uma decisão definitiva de nossa Suprema Cor­ te estabelecendo esse prazo fatal para a vigência da norma que terá de ser cumprido.

Faltando dois meses para o final do prazo – que não se pode dizer tenha sido pequeno, uma vez que a decisão é de fevereiro de 2010 – e estando nosso Congresso às voltas com outras preocupações, tais como as eleições municipais em andamento,

 

3      A lei veio na ser aprovada em 17 de julho de 2013 (Lei Complementar 143).

 

 

acompanhamento do julgamento do mensalão e a sempre presente e importante votação da lei orçamentária, sérias razões há para se temer de que o prazo não ve­ nha a ser respeitado.

As reformulações das partilhas dos recursos do FPE, bem como do FPM, são decisões da mais alta relevância para a adequação do federalismo fiscal brasileiro, politicamente difícil de obter consenso e, por isso, deveriam ser objeto de intensos debates que permitissem avaliar as múltiplas possibilidades de utilização de novos critérios, mais justos, eficientes e coerentes com os objetivos fundamentais da nos­ sa República Federativa.

Nesse aspecto, o prejuízo é enorme e já está consumado, pois até agora pouco se fez e não há mais como recuperar o tempo perdido. Só nos resta esperar e que, no próximo dia 31 de dezembro, a surpresa não seja por demais desagradável…

 

 

 

 

DESAFIOS FEDERATIvOS PRECISAM SER vENCIDOS PARA ACABAR

COM A FALTA D´ÁguA

 

 

 

Coluna publicada em 16.12.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-dez-16/ contas-vista-desafios-federativos-vencidos-acabar-falta-dagua>

 

 

 

 

 

A forte estiagem que tomou conta de boa parte do país neste ano de 2014 trouxe à tona a questão do gerenciamento dos recursos hídricos e do fornecimento de água, serviço público responsável por assegurar um direito fundamental, que integra a dignidade da pessoa humana, até porque indispensável para a própria sobrevivência. Inegável, portanto, a responsabilidade do Estado em atender a essa necessidade pública.

O modo mais adequado e eficiente de fazê­lo, no entanto, depende muito da forma pela qual se estrutura e organiza o Estado, o que é uma tarefa, desnecessário dizer, extremamente complexa.

Complexidade que se intensifica quando é escolhido o modelo federativo, em que o poder se divide territorialmente em unidades autônomas. Isso exige uma delimitação de competências, encargos e recursos, dando origem a uma multiplici­ dade de relações entre entes federados, órgãos e políticas públicas, que devem se harmonizar com unidade de propósitos para atender a essa e outras necessidades públicas.

Tendo em vista a melhor alocação do fornecimento de bens e serviços públi­ cos, que deve observar as preferências dos cidadãos e adequar­se à limitação espa­ cial da incidência dos benefícios desses bens e serviços, que variam conforme cada caso, o modelo federativo tende a ser mais eficiente na maior parte dos casos, espe­ cialmente nos Estados de grande extensão territorial, como é o caso do Brasil.

Vencer as dificuldades sempre presentes para aperfeiçoar esse desenho do Es­ tado é um desafio permanente, tarefa a ser cumprida dia após dia, no Brasil e no resto do mundo. Não é fácil distribuir encargos e financiar políticas públicas com

 

 

uma multiplicidade de entes federados autônomos, cujos governantes são eleitos pela população, no mais das vezes com visões diferentes sobre a melhor forma de gerir a administração pública, e que devem conviver harmonicamente e agir com unidade de propósitos na busca do bem comum.

O fornecimento de água, serviço que se insere no contexto das políticas públi­ cas de gerenciamento de recursos hídricos e de saneamento básico, é daquelas tare­ fas especialmente complexas, e as dificuldades para organizar o Estado de modo a atender essa necessidade básica da população acabam aparecendo em situações de crise, como a que se está vivenciando.

Está entre aqueles serviços públicos que dificilmente podem ser prestados no âmbito de uma unidade da federação. Exigem, no mais das vezes, uma cooperação federativa não só horizontal, mas também e principalmente vertical, com a parti­ cipação de entes federados de todos os níveis, e em todos os aspectos – planeja­ mento, execução, financiamento entre outros. O crescimento das cidades, com o surgimento das megalópoles e grandes aglomerados urbanos faz com que, em muitos casos, se ultrapasse o conceito de interesse local, tornando necessário o compartilhamento de alguns serviços, nos quais os de fornecimento de água e sa­ neamento se destacam.1 As regiões metropolitanas tornam­se extremamente úteis para viabilizar uma gestão eficiente desse serviço, assim como consórcios públicos, parcerias público­privadas e instrumentos financeiros como fundos e transferên­ cias intergovernamentais.

É nesse momento que vemos a importância e a falta que faz um federalismo bem construído, com clara delimitação de competências e encargos, especialmente no que tange aos aspectos financeiros, diretamente afetados por essa estruturação.2

Os primeiros registros relevantes de preocupação com o tema no Brasil evi­ denciam­se com o Plano Nacional de Saneamento (Planasa), em 1971,3 que abran­ gia os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Financiado por recursos de várias fontes, nos termos do Sistema de Financiamento do Saneamento, destacam­se os empréstimos federais concedidos às companhias estaduais de

 

1 CARVALHO, André Castro. Direito da infraestrutura: perspectiva pública. São Paulo: Quar­ tier Latin, 2014, p. 408­409.

2 Sobre os aspectos e instrumentos financeiros em matéria de saneamento básico, que se relacio­ nam diretamente com o tema, remeto o leitor ao texto CONTI, José Mauricio e CARVA­ LHO, André Castro. Financiamento público da infraestrutura de saneamento básico no Bra­ sil. In: GONZÁLES, Luís Manuel Alonso; TORRES, Heleno Taveira (coords.). Tributos, aguas e infraestructuras. Barcelona: Atelier, 2012, p. 297­320.

3    Regulamentado pelo Decreto 82.587/1978.

 

 

saneamento básico, o que incentivou a transferência dos serviços, inicialmente di­ fusos entre os entes da federação, especialmente municípios, para a esfera estadual, o que se reflete no modelo do sistema atual, e promoveu um avanço, por certo período, nas políticas do setor.4

A Constituição de 1988 trata do tema de forma pouco específica, com desta­ que para o artigo 21, XX, que atribui competência à União para “instituir diretri­ zes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e trans­ portes urbanos”; artigo 22, IV, que confere competência privativa à União para legislar sobre águas; artigo 23, IX, que prevê ser da competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios “promover programas de cons­ trução de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento bási- co”; e artigo 26, I, que inclui entre os bens dos estados “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito” (g.n.).

Acrescente­se o artigo 30, I e V, que atribui aos municípios competência para legislar sobre assuntos de interesse local e “organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local”, e vê­se que o conjunto dos dispositivos citados não permite estabelecer com clareza a titu­ laridade sobre o domínio das águas e o ente competente para prestar o serviço de distribuição. Faz dessa partilha constitucional de atribuições uma questão relativa­ mente complexa, com competências exclusivas e não exclusivas, e competências político­administrativas e legislativas, tornando a titularidade para a prestação de serviços de saneamento o produto de “uma sofisticada conjugação de técnicas de repartição de competências do Estado Federal”, como bem destacado pelo hoje Ministro do STF Luís Roberto Barroso em artigo sobre o tema.5

A dificuldade na delimitação das competências, de difícil consenso na doutri­ na, também transparece na jurisprudência6 e, recentemente, voltou a ser debatido em nossa Suprema Corte, ADI 1.842­RJ, em que se constatam as diversas posições sobre o assunto e a complexidade das relações federativas.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal realizou conciliação entre entes federados, na ACO 2.536, movida pelo Ministério Público Federal, em que se

4   BRASIL. IPEA. Infraestrutura social e urbana no Brasil: subsídios para uma agenda de pesqui­ sa e formulação de políticas públicas. Livro 6, v. 2, capítulo 12 – Saneamento básico no Brasil: desenho institucional e desafios federativos. Brasília: IPEA, 2010, p. 503.

5  BARROSO, Luís Roberto. Saneamento básico: competências constitucionais da União, Esta­ dos e Municípios. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 11, 2007, p. 4.

6 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. O marco legal do saneamento no Brasil. Revista Trimestral de Direito Público, n. 49/1950, 2005, p. 81.

 

 

discute a possibilidade de realização de obras pelo estado de São Paulo voltadas à captação de águas do rio Paraíba do Sul para tentar amenizar o problema de abas­ tecimento de água, que também banha os estados do Rio de Janeiro e Minas Ge­ rais, o que deixa evidente o conflito federativo presente em matéria de recursos hídricos.7

A crise no abastecimento de água que se vê deixa clara a falta de organização e coordenação federativa nesse assunto, mostrando que o federalismo cooperativo brasileiro, em aspectos fundamentais para a atenção aos direitos fundamentais dos cidadãos, é ainda por demais incipiente e tem muito a evoluir.

As políticas públicas que envolvem o fornecimento e distribuição de águas, esgotamento sanitário e gerenciamento de recursos hídricos são um grande desafio para o federalismo cooperativo vigente no Brasil e que, por uma circunstância da natureza, tornaram­se de urgente solução.

Não é o caso de se estender em detalhes, até pela superficial abordagem do tema neste curto espaço, mas é interessante chamar a atenção para alguns aspectos.

De início, note­se que não se pode constatar a falta de legislação sobre o assunto.

A Lei 9.433, de 7 de janeiro de 1997, instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e tem, entre seus objetivos, “assegurar à atual e às futuras gerações a necessária dis­ ponibilidade de água” (art. 2º, I), por meio de gestão integrada e planejada, me­ diante articulação da União com os Estados (art. 4º), compondo o sistema órgãos como o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, a Agência Nacional de Águas, os Conselhos de Recursos Hídricos dos Estados e Distrito Federal, os Comitês de Bacias Hidrográficas, as Agências de Águas e outros órgãos dos entes federados (art. 33).

A Lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007, estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, tendo como um de seus princípios fundamentais o abasteci­ mento de água (art. 2º, III), e nela há dispositivos da maior relevância, como a re­ gulamentação de formas de cooperação, a instituição de fundos para que os entes federados gerenciem de forma compartilhada os recursos (art. 13), o planejamento (art. 19), a regulação (arts. 21 e seguintes), o controle social (art. 47) e as políticas do setor (arts. 48 e seguintes), entre outros. O artigo 52 determinou à União ela­ borar o Plano Nacional de Saneamento Básico, sob coordenação do Ministério das Cidades, recentemente aprovado pela Portaria Interministerial 571, de 5 de

7      Alckmin faz acordo com Rio e Minas, e vai transpor água. O Estado de S.Paulo, 28 de novem­ bro de 2011.

 

 

dezembro de 2013, produzindo o Plansab, com os cenários, diagnósticos, objeti­ vos, estratégias, metas e programas para o setor no curto, médio e longo prazos.

Vê­se não ser por falta – e até mesmo dizer, falha – de legislação que as tornei­ ras estão secando nas nossas casas.

Há até normas em demasia tratando do tema. Mas, o que se vê é não estarem sendo cumpridas – se estivessem, muito provavelmente não faltaria água em lugar algum, basta ler os diversos textos legais que tratam dessa questão e os vários órgãos que deveriam planejar, executar e fiscalizar. Um excesso de normas que, ao serem ignoradas, põe abaixo toda a credibilidade do ordenamento jurídico, inserindo nele uma multiplicidade de comandos que se transformam em letras mortas, sem qual­ quer efetividade, comprometendo a seriedade de todas as demais normas.

Trata­se de mais um caso em que é preciso dar cumprimento à legislação já existente, tornando real um planejamento que se mostra presente apenas em tese, e utilizar bem os instrumentos de cooperação federativa, especialmente no que tange ao financiamento e compartilhamento de recursos entre os entes federados.

Caso contrário, só nos resta adaptar o ditado popular para reconhecer que “em federação onde falta água, todos brigam e ninguém tem razão”, e começar a treinar a dança da chuva…8

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

8    E, quem sabe, se associar aos manifestantes que se reuniram no MASP, em São Paulo, em 21 de novembro de 2014. (Dança da chuva para 39 mil reúne só 200 “torneiras secas”. Folha de S.Paulo, p. C6, em 22 de novembro de 2014.)

 

 

 

 

BENEFíCIOS FISCAIS, PARTILhA DE RECEITAS E A “SÚMuLA-FANTASMA” DO STF

 

 

Coluna publicada em 13.12.2016: <https://www.conjur.com.br/2016-dez-13/ beneficios-fiscais-partilha-receitas-sumula-fantasma-stf>

 

 

 

 

 

Em 17 de novembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recur­ so Extraordinário 705.423, tomou uma relevante decisão no âmbito do federalis­ mo fiscal brasileiro, e não pode deixar de ser analisada.

O federalismo fiscal é um dos mais relevantes temas do Direito Financeiro e das finanças públicas em nosso País. Precisa ser mais bem estudado, pois da ade­ quada organização das competências para arrecadar e da partilha de receitas de­ pende o bom funcionamento do Estado brasileiro. Uma difícil equação que precisa ser resolvida para ser capaz de moldar uma estrutura que assegure uma compatibi­ lização entre receitas e despesas, dando a cada um dos entes federados a garantia de suficiência de recursos e independência para obtê­los.1

A concentração das preocupações com as questões tributárias faz com que poucos se deem conta de que, na maior parte dos Estados e Municípios, as receitas não vêm da arrecadação de seus próprios tributos, mas sim dos recursos oriundos das receitas partilhadas dos tributos arrecadados por outros entes da federação, principalmente a União.

Para Estados e Municípios, as receitas de tributos partilhados têm uma im­ portância que supera em muito as receitas tributárias próprias, pois dependem des­ sas transferências intergovernamentais de recursos para compor a maior parcela de seus orçamentos e manter os serviços públicos.

 

1      Como já mencionei em Transferências voluntárias geram desequilíbrio federativo, nesta edição, p. 19­22.

 

 

Isso não é o ideal para o bom funcionamento do federalismo fiscal, por fazer com que os entes federados subnacionais criem uma dependência de recursos sobre os quais não têm controle, prejudicando severamente sua autonomia financeira, que é um dos pilares nos quais se sustenta nosso federalismo.

Mas é a realidade tal como se apresenta.

E problemas surgem em razão desta distorção.

É o caso, por exemplo, da concessão de benefícios fiscais pelo ente federado com competência para tributar, em impostos cujos recursos são partilhados com outros entes federados.

Ao conceder um benefício fiscal em um tributo que tem suas receitas parti­ lhadas, como ocorre, por exemplo, com a União em relação ao imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza (IR), ou o Imposto sobre Produtos Indus­ trializados (IPI), haverá reflexos em toda a federação, uma vez que as receitas des­ ses impostos são em parte transferidas a todos os demais entes da federação por meio dos Fundos de Participação dos Estados e Distrito Federal (FPE) e dos Mu­ nicípios (FPM).

Nesse caso, muito provavelmente Estados e Municípios terão redução de suas receitas em face da atitude da União, sobre as quais não têm ingerência e controle, o que poderá gerar consequências graves, uma vez que, em havendo significativa restrição orçamentária, correm o risco de se verem sem os recursos mínimos neces­ sários para cumprirem suas atribuições.

A solução que muitas vezes tem sido prevista é a criação de novas transferên­ cias governamentais em razão das perdas decorrentes de renúncias fiscais. Assim, por conta de reduções de receitas originadas das desonerações de impostos parti­ lhados, uma das opções para corrigir desequilíbrios federativos daí decorrentes é a instituição de medidas fiscais compensatórias.

Foi o que ocorreu no caso da exclusão, pela Emenda Constitucional 42/2003, da incidência do ICMS de operações de exportação. Em contrapartida, incluiu­se no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a previsão de que a União entregará aos Estados e ao Distrito Federal, nos termos definidos pela lei comple­ mentar, montantes de caráter compensatório às perdas da arrecadação com a exo­ neração das exportações – montantes que seriam ainda repartidos com os Municí­ pios, como dispõe o artigo 91 do ADCT e seus parágrafos.

O legislador, no entanto, foi até aqui omisso em editar a lei constitucional­ mente prevista. Apesar de haver projetos em tramitação e o próprio ADCT adotar regra de transição que prevê a aplicação temporária da Lei Complementar 87/1996

 

 

até a sobrevinda da lei complementar, o caso foi considerado como uma omissão inconstitucional pelo Supremo Tribunal no julgamento ADO 25,2 em que se esta­ beleceu o prazo de um ano para suprir a lacuna legislativa. Essa omissão exibe duas importantes facetas do problema: ao mesmo tempo em que, neste caso, o legislador reconheceu o impacto financeiro causado por determinados benefícios fiscais em outros entes da federação, a solução concreta (isto é, a efetiva implanta­ ção de mecanismos financeiros compensatórios) não encontrou, ainda, formula­ ção adequada.

Mas não é a única situação em que a disciplina jurídica da renúncia de receitas partilhadas tem levado a muitas outras situações curiosas no âmbito do Direito Financeiro.

Uma delas ocorreu por ocasião da crise econômica de 2008, quando o gover­ no federal brasileiro tomou medidas de renúncias fiscais voltadas a reverter o ciclo descendente da economia que se espalhava por todo o mundo. Houve em razão disto uma severa redução nos repasses aos Municípios, que ficaram em dificulda­ des financeiras e promoveram movimentos para resolver a questão. A solução en­ contrada foi uma “ajuda financeira” dada pela União aos Municípios, que se mate­ rializou por meio da Medida Provisória 462, de 14 de maio de 2009,3 que “repôs” as perdas com a queda nas receitas decorrentes da diminuição no repasse das trans­ ferências do FPM.4

Outro fato relevante ocorreu pouco antes, em 18 de junho de 2008, quando o Supremo Tribunal Federal proferiu uma decisão polêmica e interessante no RE 572.762. No caso, o Município de Timbó, no interior de Santa Catarina, se insur­ giu contra um benefício fiscal concedido pelo Estado em relação ao ICMS, que, ao postergar o recolhimento do tributo (por meio do Programa de Desenvolvimento da Empresa Catarinense – PRODEC), provocou redução na quota que referido Município recebia a título de participação no ICMS (Constituição, art. 158, IV). Nossa Suprema Corte decidiu que referida parcela “pertence de pleno direito aos Municípios” e que o repasse da referida quota “não pode sujeitar­se à condição

 

2    Ocorrido em 24 de novembro de 2016; veja­se voto do Ministro Gilmar Mendes.

3     Convertida na Lei 12.058, de 13 de outubro de 2009.

4 MP 462, art. 1º A União prestará apoio financeiro, no exercício de 2009, aos entes federados que recebem o Fundo de Participação dos Municípios – FPM, mediante entrega do valor cor­ respondente à variação nominal negativa entre os valores creditados a título daquele Fundo nos exercícios de 2008 e 2009, antes da incidência de descontos de qualquer natureza, de acordo com os prazos e condições previstos nesta Medida Provisória e limitados à dotação orçamen­ tária específica para essa finalidade.

 

 

prevista no programa de benefício fiscal de âmbito estadual”, configurando “inde­ vida interferência do Estado no sistema constitucional de repartição de receitas tributárias”. Referida parcela integraria “o patrimônio do Município, não podendo o ente maior dela dispor, a seu talante, sob pena de grave ofensa ao pacto federati­ vo”. O Min. Ricardo Lewandowski entendeu que tal medida configura verdadei­ ramente um caso em que “o Estado está fazendo cortesia com o chapéu alheio”.

Foi elaborada proposta de Súmula Vinculante, que recebeu o número 30, com a seguinte redação: “É inconstitucional lei estadual que, a título de incentivo fiscal, retém parcela do ICMS pertencente aos municípios”. Controvérsias em relação à redação do texto e alcance do enunciado, que permitiria concluir serem os recursos repassados de titularidade dos entes federados beneficiários, como bem observado por Celso Correia,5 levaram à suspensão da publicação da referida súmula. Assim, não obstante já terem sido publicadas as súmulas que se seguiram, esta súmula continua “pendente de publicação” até hoje, tendo se transformado em uma verda­ deira “súmula vinculante fantasma”.6

Mais recentemente, outro caso lança ainda mais dúvidas sobre o futuro da mencionada súmula. No julgamento do RE 705.423, de relatoria do Min. Edson Fachin, citado no início desta coluna, o tema da renúncia de impostos que com­ põem os fundos de participação volta à tona, em decorrência de ação movida pelo Município sergipano de Itabi, que se insurgiu contra a redução da transferência do Fundo de Participação dos Municípios em razão de benefícios fiscais concedidos pela União. Em sede de repercussão geral, foi aprovada a seguinte tese: “É consti­ tucional a concessão regular de incentivos, benefícios e isenções fiscais relativos ao Imposto de Renda e Imposto sobre Produtos Industrializados por parte da União em relação ao Fundo de Participação de Municípios e respectivas quotas devidas às Municipalidades”.

Como bem apontado por Celso Correia e Paula Santos em coluna publicada no ConJur,7 a semelhança entre os casos salta à vista, apesar de algumas particula­ ridades. É de todo modo evidente que no RE 572.762 se discutia o repasse de re­ ceitas estaduais a Municípios, ao passo que, no RE 705.423, tem­se o caso da

5   CORREIA NETO, Celso de Barros. O avesso do tributo. 2. ed. São Paulo: Almedina, 2016. p. 276.

6 E esperando que não venha a ser conhecida como a súmula “fogosa viúva Porcina”, a que “era sem nunca ter sido”…

7 CORREIA NETO, Celso de Barros; SANTOS, Paula Gonçalves Ferreira. Supremo decide quem deve suportar os impactos dos benefícios fiscais federais. Publicada em 24 de novembro de 2016 no ConJur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016­nov­24/supremo­deci­ de­quem­suportar­impactos­beneficios­fiscais>.

 

 

partilha de receitas federais. Ambos os casos se debruçam, no entanto, sobre ques­ tões jurídicas muito semelhantes, que dizem respeito à possibilidade de redução dos repasses a um ente em razão de renúncias fiscais praticadas por outro.

É muito difícil não reconhecer como contraditórias as decisões. Admitindo­se a tese expressa na Súmula 30 como de aplicação geral, seria inevitável um conflito com a decisão do RE 705.423.

Diante deste cenário, há algumas possibilidades interpretativas quanto às te­ ses defendidas em ambos os recursos. Uma delas, que permitiria alguma forma de conciliação entre ambas as decisões, é a de que o RE 572.762 se referia a uma questão específica, relativa exclusivamente ao tributo catarinense, e que apenas aquele incentivo estadual violaria a autonomia municipal ao diminuir o montante dos recursos partilhados. Mas a hesitação em publicar a Súmula 30 parece dimi­ nuir sua força de convencimento perante os tribunais, tanto mais quando se pre­ tende extrapolá­la para outros impostos partilhados, como o IR e o IPI. Até por­ que, em prevalecendo a tese exposta na “súmula­fantasma”, qualquer benefício fiscal envolvendo o IR e o IPI se tornaria pouco viável, uma vez que produz reflexos em todos os Estados e Municípios…

É o caso de perguntar, então, se estaríamos diante de uma revisão da doutrina da “cortesia com chapéu alheio”, que parecia estar em vias de formação no espectro da Súmula 30. Em vez disso, teríamos na tese de repercussão geral fixada no RE

705.423 a confirmação de que o poder de tributar tem como contraparte o poder de isentar, e que o ente com tal competência seria dotado em idêntica forma tanto de um como de outro.8 E, neste caso, a Súmula 30 seria, de duas, uma: ou uma tese já rapidamente superada em decisões posteriores do próprio Supremo Tribunal Fe­ deral, ou uma decisão válida para um caso específico e bem delimitado, não gene­ ralizável a outros tantos (o que faria perguntar do porquê, então, da necessidade de se cogitar de uma Súmula Vinculante para tratar da matéria).9 De todo modo, parece hoje ainda menos convincente a afirmação que seriam inconstitucionais as

8 Ver ainda Celso CORREIA NETO na coluna publicada em 15 de março de 2015 no ConJur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015­mar­14/observatorio­constitucional­supre­ mo­prevalece­controle­formal­beneficios­fiscais>. “É bastante difundida, no pensamento jurí­ dico, a noção de que a cobrança de tributos e a instituição de exonerações são duas faces de uma mesma moeda: o poder de tributar. A competência constitucional que autoriza a imposi­ ção de tributos também permite a concessão de benefícios fiscais”.

9 Já se discutiu se o RE 572.762­9 constituía um “ponto de inflexão” ou um “ponto fora da curva” na jurisprudência do STF. Ver, a respeito, FREITAS, Leonardo e Silva de Almendra. O passado (RE 572.762/SC) e o futuro (RE 705.423/SE) dos “impostos compartilhados” na jurisprudência do STF: o problema dos incentivos fiscais atuantes antes da arrecadação (“ge­ néricos”). Revista Tributária e de Finanças Públicas, ano 22, vol. 118, set­out. 2014.

 

 

renúncias de receitas com relação a determinados impostos por violarem a autono­ mia financeira do ente com os quais são partilhados.

Essa é apenas uma das múltiplas dificuldades que integram a difícil constru­ ção de um sistema tributário justo e adequado ao nosso Estado federal. Mas que precisa ser superada, pois com mais alguns desses “fantasmas” nosso sistema tribu­ tário corre o risco de se transformar em uma “casa mal­assombrada”, a assustar diuturnamente os contribuintes e a administração fazendária…

 

 

A DELAçãO DA JBS, O BNDES, AS SALSIChAS E A PROMISCuIDADE

NAS RELAçõES FINANCEIRAS

 

Coluna publicada em 30.5.2017: <https://www.conjur.com.br/2017-mai-30/ contas-vista-delacao-jbs-bndes-promiscuidade-relacoes-financeiras>

 

 

 

 

 

Os escândalos que não cessam em nosso País novamente fazem todos voltar a atenção para as pouco conhecidas e compreendidas relações entre o setor público e privado por meio dos bancos de fomento, como é o caso do BNDES, já objeto de referência em coluna anterior.1 E que está novamente no centro das atenções, com a recente alteração na presidência do órgão.

Na delação dos controladores da empresa JBS, mais conhecida pela sua atua­ ção no ramo frigorífico pela sua marca Friboi, ficaram evidentes as relações ao que tudo indica pouco republicanas entre o setor público e o privado envolvendo o BNDES, responsável entre outras atribuições por manter linhas de financiamento voltadas a cumprir sua missão de “Promover o desenvolvimento sustentável e com­ petitivo da economia brasileira, com geração de emprego e redução das desigualda­ des sociais e regionais”, atento aos valores da ética, compromisso com o desenvol­ vimento, espírito público e excelência.2

A atividade financeira do setor público, que tem nas leis orçamentárias seu principal instrumento normativo, deve ser transparente, daí porque os orçamentos têm por princípios, dentre outros, o da universalidade e da unidade, fazendo dele um documento que permita ao administrador público e à sociedade conhecer a origem e o destino de todos os recursos públicos pela análise de uma única peça – o que não é uma tarefa simples.

1      BNDES tem o dever de colaborar com a transparência dos gastos públicos, nesta edição, p. 411­ 416.

2      <http://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/quem­somos/governanca­controle/planeja­ mento­corporativo/missao%2C­visao­e­valores>

 

 

Apesar dos esforços no sentido de aperfeiçoar a contabilidade pública, há ain­ da lacunas importantes, com vultosas operações financeiras que, como já escrito na coluna há pouco citada, “tendem a ficar à margem da lei orçamentária, compondo o que já se conhece como off-budget expenditures, tais como os gastos tributários e os benefícios creditícios, cuja não contabilização adequada acarreta grande prejuízo à transparência fiscal”.

Mencionados no artigo 165, § 6º, da Constituição, os benefícios financeiros e creditícios devem integrar a lei orçamentária anual para efeitos de conferir transpa­ rência a essas medidas financeiras que, para muitos efeitos, configuram subsídios aos setores econômicos que deles se beneficiam. Assemelham­se, em alguns aspec­ tos, a outras modalidades de renúncia, pelo Estado, de parcela dos recursos que poderia arrecadar. E, muitas vezes, são “gastos invisíveis”, cuja dimensão deve ser apurada por metodologias específicas, no mais das vezes estimativas. Daí a justifi­ cada preocupação constitucional com sua previsão orçamentária, referindo­se ex­ pressamente à necessidade de sua presença nas leis de planejamento orçamentário da administração pública.

Os benefícios financeiros e creditícios, como muito bem exposto por José Maria Arruda de Andrade em texto relativamente recente publicado aqui mesmo no ConJur, são ainda “ilustres desconhecidos”,3 e a expressividade de seu montante não permite ignorá­los, atingindo o montante de R$ 107,7 bilhões em 2015, como menciona no referido texto, o que se manteve em 2016.4

Nos benefícios financeiros e creditícios há a concessão de subsídios por meio de programas voltados à expansão do crédito. Tratando­se de benefícios financei­ ros, o concedente realiza desembolsos pela via de equalizações de juros e preços, assim como assume dívidas decorrentes do saldo das obrigações de sua responsabi­ lidade. No caso dos benefícios creditícios, opera­se por meio de programas oficiais de crédito, cuja execução se torna viável por meio de fundos e programas criados para este fim, com taxas de juros inferiores ao custo de captação, de forma a incen­ tivar setores produtivos e promover o desenvolvimento regional e setorial.5 Em qualquer caso, esta diferença nas taxas de juros ou preços que o governo paga e oferece gera consideráveis desembolsos em apoio a setores produtivos. Fala­se,

3      Benefícios financeiros e creditícios: esses ilustres desconhecidos, em 14 de agosto de 2016.

4      Governo gasta R$ 107 bi só com subsídios, Folha de S.Paulo, 29 de maio de 2017, p. A17.

5      <http://portal.tcu.gov.br/comunidades/macroavaliacao­governamental/areas­de­atuacao/re­ nuncia­de­receita/>

 

 

portanto, em subsídios, nem todos explícitos no orçamento. Os benefícios credití­ cios são, particularmente, marcados pela opacidade, pois não aparecem no orça­ mento.6 Como ressaltado com precisão por Emerson Gomes, ao tratar com pro­ priedade do tema, “são também chamados de benefícios ou subsídios implícitos, em função de não constarem do Orçamento Geral da União. Os gastos são decor­ rência do fato de os recursos do Tesouro alocados a estes programas terem uma taxa de retorno inferior ao seu custo de captação”.7

Os Tribunais de Contas têm competência para fiscalizar as renúncias de recei­ tas, conforme dispõe o artigo 70 da Constituição Federal. No caso federal, esta atribuição vem, ainda, regulamentada pelo artigo 1º, § 1º, da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União.8 A Secretaria de Macroavaliação Governamental (Semag) do TCU conduziu relevante processo de auditoria apresentado em 2012 voltado a identificar os tipos e os montantes dos benefícios explícitos e implícitos, assim como sua distribuição regional. Ali se determinou que a Secretaria de Políti­ ca Econômica do Ministério da Fazenda, em conjunto com a STN, em relação às operações de crédito realizadas entre a União e o BNDES a partir de 2008, reali­ zasse “projeções que permitam conhecer o montante total de benefícios financeiros e creditícios concedidos pela União, contemplando os subsídios previstos para todo o período de duração dos empréstimos e apresentando recorte específico para os quatro anos seguintes, informando os resultados e a metodologia ao TCU até 31 de março de cada exercício, com fundamento no art. 71 da Constituição Federal, c/c o art. 36 da Lei 8.443/1992”.9

O Grupo JBS, pelo que agora se soube, aproveitou­se indevidamente desses benefícios, causando grandes prejuízos financeiros aos cofres públicos, sem contar o prejuízo moral decorrente dos métodos utilizados para consegui­los.

A complexidade das operações realizadas, com consequente dificuldade de análise, avaliação, acompanhamento e fiscalização, fica evidenciada, por exemplo,

6 Vide DINIZ, Érica; AFONSO, José Roberto. Benefícios fiscais concedidos (e mensurados) pelo Governo Federal (texto de discussão), FGV/IBRE, janeiro de 2014.

7   O direito dos gastos públicos no Brasil. São Paulo: Almedina, 2015. p. 161.

8 De acordo com o referido dispositivo da Lei 8.443/1992, que, no “julgamento de contas e na fiscalização que lhe compete, o Tribunal decidirá sobre a legalidade, a legitimidade e a econo­ micidade dos atos de gestão e das despesas deles decorrentes, bem como sobre a aplicação de subvenções e a renúncia de receitas”.

9   BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1966/2013, rel. Min. Aroldo Cedraz, p. 47.

 

 

na aquisição que o Grupo JBS fez da empresa norte­americana Swift, com apoio financeiro do BNDES, que foi objeto de investigação preliminar pelo Tribunal de Contas da União.

No Acórdão TCU 800/2017, relata­se que o BNDES, por meio de sua subsi­ diária BNDESPar, prestou apoio financeiro à operação, no montante de R$ 1,1 bilhão (US$ 573 milhões à época), tendo sido apuradas várias irregularidades, como falta de clareza na aplicação dos recursos solicitados, ausência de análise cri­ teriosa da operação e verificação dos benefícios econômicos e sociais dela decorren­ tes, entre outras.

O relator, Min. Augusto Sherman Cavalcanti, chama a atenção para os subsí­ dios implícitos e o impacto que promovem na dívida pública, sendo claro ao desta­ car que “o conjunto de indícios é no sentido de que o BNDESPar utilizou­se de recur­ sos caros para o país e para os contribuintes para viabilizar a aquisição de uma empresa norte­americana pela JBS, sem análise aprofundada de viabilidade econô­ mica do investimento, concedendo recursos em montante superior ao necessário, sem acompanhamento posterior adequado da operação, por meio da aquisição de ações da referida empresa com ágio que não se justifica frente às informações car­ readas aos autos, e, especialmente, sem qualquer análise dos benefícios que tal operação poderia trazer para o país e para seus cidadãos”.10

Os valores de recursos públicos envolvidos têm uma dimensão espantosa, e a sabedoria popular já ensina que quando a tentação é grande a carne é fraca. É difí­ cil até imaginar quantos bens e serviços poderiam ser levados aos mais necessitados com tanto dinheiro que está sendo desperdiçado.

Se não houver melhor regulamentação e fiscalização dessas operações, conti­ nuaremos a ver empresários enriquecendo às custas do dinheiro que é de todos nós, e com ele desfrutar das delícias de Nova York (nas quais se espera sejam incluídos seus famosos hot-dogs – com salsichas Friboi, claro!) graças a uma delação “espe­ cialmente premiada”.

Nessa delação, muito se aprendeu sobre o funcionamento das relações pouco republicanas entre o setor público e o privado, levando­nos a conhecer como fun­ ciona boa parte do sistema de financiamentos privilegiados concedidos pelo setor público, e da forma pela qual se fazem leis que concedem esses generosos benefícios tributários, financeiros e creditícios.

10     TCU, Acórdão 800/2017, rel. Augusto Sherman Cavalcanti, sessão de 26 de abril de 2017, p.

  1. Grifos do original.

 

 

Uma pena que nossos diligentes procuradores perderam a oportunidade de ter questionado os delatores, que são especialistas no assunto e o conhecem como ninguém, sobre aquele que é um dos grandes mistérios da humanidade e talvez um dos mais bem guardados segredos de todos os tempos: como são feitas as salsichas?

Já disse há séculos Otto Von Bismarck que, “quanto menos as pessoas soube­ rem como são feitas as salsichas e as leis, mais tranquilas dormirão”.11

Infelizmente ainda temos muitos motivos para não podermos dormir tranquilos…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

11 No original, “Je weniger die Leute davon wissen, wie Würste und Gesetze gemacht werden, desto besser schlafen sie”. Muitas vezes encontra­se a frase traduzida por “leis são como salsi­ chas: é melhor não saber como são feitas”.

 

 

 

 

COLAPSO FINANCEIRO LEvA AO CAOS SOCIAL E à INTERvENçãO FEDERAL NA SEguRANçA DO RIO DE JANEIRO

 

 

Coluna publicada em 6.3.2018: <https://www.conjur.com.br/2018-mar-06/contas-vista-

colapso-financeiro-leva-caos-social-intervencao-federal-rj>

 

 

 

 

 

As últimas semanas foram tomadas pela notícia da intervenção federal no es­ tado do Rio de Janeiro. Embora tenha sido feita na área da segurança pública,1 a intervenção tem como causa remota a grave crise fiscal enfrentada pelo estado.

O Rio de Janeiro, infelizmente, tem sido um verdadeiro case para o Direito Financeiro. Inovou em junho de 2016 ao decretar o “estado de calamidade públi­ ca” em razão de sua crítica situação financeira (Crise leva as finanças públicas ao “estado de calamidade”, nesta edição, p. 439­442) e, mais recentemente, tornou­se “cliente” da Lei de Recuperação Fiscal (ver Um salve pela recuperação financeira do estado do Rio de Janeiro!, nesta edição, p. 449­454), aderindo ao novo regime de recuperação fiscal por ela instituído.

A intervenção federal em um estado da federação é uma drástica medida pre­ vista no artigo 34 da Constituição, pois importa em mitigar a autonomia desse ente federado, cabível apenas nas hipóteses excepcionais lá elencadas. Torna­se, por vezes, uma necessidade, como em “situações em que a paz social ou a governabili­ dade do país não possam mais ser asseguradas por medidas convencionais”,2 como parece ser o caso do Rio de Janeiro.

A medida está sendo usada pela primeira vez desde que promulgada a Consti­ tuição vigente, há quase 30 anos. No caso, fundou­se no inciso III, que prevê essa medida excepcional para “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”.

1 O Interventor terá poderes sobre a Secretaria de Estado da Segurança do Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro (Decreto 9.288/2018, art. 4º).

2 LEWANDOWSKI, Ricardo. Intervenção federal como necessidade. Jornal O Globo, 20 de abril de 2017.

 

 

Foi motivada pela crescente criminalidade no Rio de Janeiro, que não tem sido combatida satisfatoriamente pela ação dos órgãos de segurança pública do próprio estado, deixando a população desprotegida, vitimada pelos criminosos e sujeita a permanente situação de insegurança.

Há hipóteses de intervenção específicas para problemas financeiros, como é o caso do inciso V, que a prevê para “reorganizar as finanças da unidade da Federa­ ção que: a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos con­ secutivos, salvo motivo de força maior; e b) deixar de entregar aos Municípios re­ ceitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei”. E também para assegurar a “prestação de contas da administração pública, direta e indireta” (art. 34, VII, d) e a “aplicação do mínimo exigido da receita re­ sultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde” (art. 34, VII, e).

Embora não tenham sido essas as razões que justificaram essa intervenção, é bom lembrar que o Ministério Público Federal já representou ao Supremo Tribunal Federal para que houvesse intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, com base no já citado artigo 34, VII, d, tendo como fundamento o enorme prejuízo aos trabalhos do Tribunal de Contas do Estado após o afastamento, por ordem judi­ cial, de seis dos sete conselheiros que o compunham.3

Ainda que a intervenção em vigor não tenha sido formalmente motivada por razões financeiras, o comprometimento das finanças públicas fluminenses é uma das principais – se não a principal – razão que está deixando o Rio de Janeiro um caos. Desse modo, as questões financeiras que envolvem a intervenção federal ora em vigor são extremamente importantes e interessantes sob o ponto de vista jurídi­ co e econômico. E considerando o “pioneirismo” da medida, são novas, sem prece­ dentes e de difícil solução. E precisam ser resolvidas, com rapidez, dada a óbvia urgência a que estão submetidas.

Um socorro da União a estados ou municípios invariavelmente envolve a apli­ cação de dinheiro púbico, o que traz à tona discussões complexas envolvendo a partilha de recursos em uma Federação. O próprio decreto de intervenção permite prever esse aporte financeiro, como se vê do seu artigo 3º, § 3º: “O Interventor poderá requisitar a quaisquer órgãos, civis e militares, da administração pública

3 Rodrigo Janot Monteiro de Barros, procurador­geral da República, em 26 de abril de 2017 (Ofício 97.442/2017­AsJConst/SAJ/PGR). Vide notícia no ConJur: Rodrigo Janot pede inter- venção federal no Rio de Janeiro por crise no TCE-RJ, publicada em 29 de abril de 2017.

 

 

federal, os meios necessários para a consecução do objetivo da intervenção” (grifei). E, se a situação do Rio de Janeiro está em forte crise, é previsível e fácil de presumir não haver recursos financeiros próprios suficientes para restabelecer a ordem na administração da segurança pública, tornando evidente “que sem o aporte signifi­ cativo de recursos federais a intervenção federal não conseguirá minimamente atingir seus objetivos”, como bem observou a deputada Laura Carneiro.4

Muitas questões podem ser colocadas: é justo que contribuintes do país todo paguem a conta de determinado estado da federação, quando o motivo que levou à necessidade de socorro não adveio de qualquer fato imprevisto, mas provavelmen­ te em decorrência de má gestão e corrupção? Por outro lado, é razoável fazer a população local sofrer as consequências desses fatos, de modo muitas vezes desu­ mano, com paralisação de serviços essenciais na saúde, educação, ou, como no caso presente, falência do sistema de segurança pública, deixando que prevaleça a desor­ dem, o caos social e um ordenamento jurídico inoperante? Com o estado deixando de exercer o controle da sociedade, que passa a ser “terceirizado” para o crime or­ ganizado, por meio de facções criminosas, traficantes e milicianos?

Essas são apenas algumas das questões de fundo que indicam quão complexa é a intervenção da União nos estados e seus reflexos financeiros.

Outras mais específicas, de natureza eminentemente financeira – e, portanto, fundamentais para o sucesso da ação –, também não ficam claras.

O decreto que instituiu a intervenção (Decreto Federal 9.288, de 16 de feve­ reiro de 2018) atribui ao interventor, que é um agente federal subordinado ao pre­ sidente da República, o poder de “requisitar se necessário, os recursos financeiros, tecnológicos, estruturais e humanos do Estado do Rio de Janeiro afetos ao objeto e necessários à consecução dos objetivos da intervenção” (art. 3º, § 2º – grifei).

É uma medida curiosa, pois não deixa claros os limites desse poder. Permite que sejam requisitados todos os recursos necessários? Limitados ou não pelas dota­ ções específicas já previstas para o setor? Obriga a concessão de créditos adicionais, se necessário? E se os recursos exigidos pela intervenção provocarem excessos de gastos vedados pela legislação, como, por exemplo, eventuais ultrapassagens das metas fiscais previstas?

Poderá haver contingenciamento nas dotações para a segurança pública? Quem será responsabilizado em caso de descumprimento de limites constitucio­ nais e legais? O interventor? Será ele o ordenador de despesas?

4      Relatório que integra a Mensagem ao Congresso Nacional 80, de 2018, da deputada federal Laura Carneiro.

 

 

A gestão dos recursos depende, muitas vezes, de atos de outros órgãos, que coordenam a administração financeira do ente federado, como é o caso da Secre­ taria de Estado de Planejamento e Gestão, que não está abrangida pelo decreto de intervenção. Um potencial conflito entre o interventor e demais órgãos da admi­ nistração pública fluminense que pode dar origem a obstáculos ao fiel cumprimen­ to das obrigações.

O próprio sistema de fiscalização financeira institucionalmente organizado pode gerar insegurança jurídica, uma vez que teremos órgão estaduais e respectivos recursos sendo geridos por agentes federais, além dos eventuais recursos federais que serão adicionados para que os órgãos estaduais possam cumprir suas funções.5 Uma possibilidade de gerar duplicidade de controles, ou, o que seria até pior, ne­ nhum controle.

A participação da União com aportes financeiros já chamou a atenção do TCU, que instaurou processo de acompanhamento6 voltado a acompanhar as des­ pesas da União e atos administrativos praticados no âmbito da intervenção federal,7 uma prudente medida para fiscalizar a aplicação dos referidos recursos, especial­ mente em razão da urgência e rapidez com a qual devem ser desembolsados, o que exige cuidado redobrado para evitar desvios e desperdícios.

A regra é submeter ao sistema de fiscalização próprio do titular dos recursos,8 o que evidentemente deixará os setores envolvidos na intervenção submetidos ao controle do TCE­RJ e do TCU; mas a linha demarcatória da atuação de cada um certamente será tênue, muito conflitos surgirão, e os responsáveis e envolvidos na intervenção, além dos óbvios problemas que enfrentarão com relação aos limites de sua atuação sob o ponto de vista das questões de segurança pública, ainda terão de

 

5 Imagine­se, por exemplo, mais de um órgão de controle se manifestando de forma divergente sobre a legalidade ou não das despesas públicas feitas pelo órgão sob intervenção.

6    O procedimento de acompanhamento está previsto no artigo 241 do atual Regimento Interno do TCU: “Acompanhamento é o instrumento de fiscalização utilizado pelo Tribunal para: I

– examinar, ao longo de um período predeterminado, a legalidade e a legitimidade dos atos de gestão dos responsáveis sujeitos a sua jurisdição, quanto ao aspecto contábil, financeiro, orça­ mentário e patrimonial; e II – avaliar, ao longo de um período predeterminado, o desempenho dos órgãos e entidades jurisdicionadas, assim como dos sistemas, programas, projetos e ativi­ dades governamentais, quanto aos aspectos de economicidade, eficiência e eficácia dos atos praticados”.

7   “TCU vai fiscalizar contas da intervenção no Rio” (Folha/Uol, 21 de fevereiro de 2018).

8 “A competência da TCU é fixada a partir da origem dos recursos públicos, logo independe da natureza do ente envolvido na relação jurídica, inclusive na seara do Sistema Único de Saúde” (STF, RE 934.233 AgR, relator(a): min. Edson Fachin, j. 14.10.2016).

 

 

enfrentar também insegurança jurídica em razão da gestão compartilhada dos re­ cursos envolvidos.

É de se imaginar igualmente que os entes federativos envolvidos possam su­ portar encargos financeiros excepcionais decorrentes de ações indenizatórias moti­ vadas por eventuais excessos cometidos durante as operações militares, como já antevisto no caso do dito “fichamento” dos moradores de comunidades pobres.9 Também aqui, a falta de clareza quanto às competências da União e do estado do Rio de Janeiro pode gerar dúvidas quanto ao responsável pelas reparações, gerando reflexos no dimensionamento dos riscos fiscais e passivos contingentes de cada entidade.10

Mais uma vez se vê que a falta de planejamento e irresponsabilidade fiscal comprometem gravemente o funcionamento de um ente da federação e a popula­ ção é chamada a pagar a conta. Financeira e não financeira. E a “administração­

­bombeiro” volta a agir, para apagar mais um incêndio, desta vez de grandes pro­ porções. A falta de seriedade na aplicação das normas de Direito Financeiro continua a produzir vítimas inocentes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

9  “Especialistas criticam ‘fichamento’ de moradores durante operação em favelas” (O Globo, 23 de fevereiro de 2018).

10 De maneira simplificada, pode­se dizer que os riscos fiscais, que devem ser previstos periodi­ camente em anexo próprio da Lei de Diretrizes Orçamentários, são eventos que venham a impactar negativamente as contas públicas. Os passivos contingentes são riscos relacionados a obrigações futuras que escapam ao controle da entidade ou obrigações presentes não reconhe­ cidas, de liquidação incerta ou de valor não mensurável.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DESPESAS E POLíTICAS PÚBLICAS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nem com royalties se melhora qualidade da educação ••
Saúde não precisa só de dinheiro, mas de boa gestão ••
Financiamento da segurança pública precisa de atenção ••
Afinal, quanto custou a Copa do Mundo para a sociedade brasileira? ••
O Direito Financeiro pode ser a solução para os sem-teto ••
Maioridade penal, os 25 anos do ECA e o Direito Financeiro ••
Solução para a crise carcerária tem significativo reflexo orçamentário ••
Recursos são fundamentais para garantir o direito das pessoas com deficiência ••
Relação das mulheres com o dinheiro precisa ser desmitificada ••
Universidades públicas agonizam pela falta de recursos ••
É preciso transparência no sistema tarifário e de subsídio do transporte coletivo ••
Direito Financeiro tem responsabilidade nos avanços da proteção ao trabalhador ••
Aumento da violência leva a retrocesso nas prioridades orçamentárias ••
Museu queimado expõe a incompetência dos “bombeiros de gravata” ••

 

 

 

 

NEM Só COM royalties SE MELhORA quALIDADE DA EDuCAçãO

 

 

Coluna publicada em 30.7.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-jul-30/ contas-vista-nem-royalties-melhora-qualidade-educacao>

 

 

 

 

 

Nas últimas semanas a mídia tornou a trazer para o centro do debate a sempre presente questão dos gastos com educação. A destinação de percentual do PIB, bem como dos royalties de petróleo para a educação, associada às manifestações recentes, em que se observou uma quase unanimidade nas reivindicações pela melhoria no sistema, é um dos assuntos recentes que fizeram o tema voltar à discussão. Uma excelente oportunidade para tratar do tema sob o prisma do Direito Financeiro.

A educação é indiscutivelmente uma prioridade, não só do Brasil como de qualquer país do mundo que seja ou pretenda ser considerado desenvolvido. Não se vislumbra possível atingir os objetivos fundamentais fixados em nossa Constitui­ ção (art. 3º), construindo uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o de­ senvolvimento nacional, com erradicação da pobreza e desigualdades, promovendo o bem de todos, sem uma educação universalizada e de qualidade.

Investir na educação, alocando os recursos públicos maciçamente neste setor é verdadeiramente uma obrigação de todo e qualquer administrador público, não há dúvida. O que importa destacar é como fazer isso. A educação, no Brasil, e as respectivas políticas públicas voltadas ao setor compõem um sistema complexo e que precisa ser muito bem estruturado, organizado e gerido.

Somos uma República Federativa presidencialista, com três esferas de governo bem definidas e três poderes independentes, mais as várias instituições dotadas de autonomia administrativa e financeira, o que torna mais complexa e delicada a tarefa de estruturar um sistema de forma organizada e eficiente para alcançar suas finalidades.

A educação, tema caro ao nosso legislador constituinte, que dele tratou longa­ mente em nosso texto constitucional, com uma seção inteiramente dedicada a esse setor (Capítulo III, Seção I, arts. 205 a 214, sem contar outros dispositivos ao longo

 

 

do texto), previu ser a educação um direito de todos e dever do Estado e da família, assegurando­se pleno acesso a todos, com gratuidade do ensino público e garantia de padrão de qualidade, entre outros princípios.

Tudo isso a ser executado pelas três esferas de governo, ficando a cargo da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, em regime de colaboração (CF, art. 211), sem prejuízo da participação da iniciativa privada (CF, art. 209). E com compartilha­ mento de recursos entre todos, especialmente por meio do Fundeb (Fundo de Manu­ tenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – CF, ADCT, art. 60), em uma clara política pública a ser realizada no âmbito de nosso sistema de federalismo cooperativo, que caracteriza nosso Estado.

Gerir todo esse sistema de modo a fazer com que todos caminhem no mesmo sentido e se voltem a um objetivo único, que é aplicar bem os recursos para melho­ rar esse serviço público fundamental para o desenvolvimento econômico e social do país, não é, a toda evidência, tarefa simples.

Requer, primeiramente, um planejamento bem elaborado e eficiente, o que, no caso da educação, já conta com um tratamento diferenciado, na medida em que a Constituição prevê lei de caráter nacional estabelecendo o Plano Nacional de Educação (PNE) para o período de dez anos. Trata­se de um instrumento da maior relevância para a gestão desse sistema, pois define, para todos os entes da federação, diretrizes, objetivos, metas e estratégias para o setor, bem como os meios a serem utilizados para alcançá­los (CF, art. 214).

O primeiro PNE surgiu com a Lei 10.172/2001, para o período 2001­2010, es­ tabelecendo as principais regras para o setor a serem seguidas por todos os entes da federação, determinando aos entes subnacionais que elaborem seus respectivos planos decenais (art. 2º), exigindo que os planos plurianuais de todos os entes federados se­ jam elaborados de modo a dar suporte às metas estabelecidas (art. 5º) e que todos os poderes se empenhem para a realização dos objetivos e metas dos planos (art. 6º).

Vê­se que o prazo do referido plano já expirou e, não obstante tenha sido apresentado o projeto de lei para sucedê­lo no período 2011­2020, este permanece em discussão no Congresso Nacional, que está falhando gravemente ao não lograr aprová­lo, fazendo com que já entremos no terceiro ano de verdadeira “anomia le­ gislativa” nessa área fundamental, e em período no qual a população clama por mais educação e com qualidade.

O prejuízo é enorme para todos, pois causa insegurança e desordem no siste­ ma jurídico. Veja­se que o PPA (plano plurianual) da União, que planeja a admi­ nistração pública federal, elaborado para o período 2012­2015, bem como os dos estados e Distrito Federal, também elaborados para o mesmo período, foram feitos com base no projeto de lei do PNE ainda não aprovado. E não será diferente com

 

Nem só com royalties se melhora qualidade da educação ••

 

os municípios, que deverão, no segundo semestre deste ano, fazer o mesmo, apresentando suas propostas de PPA para o período 2014­2017 sem que tenha sido aprovado o PNE no qual devem se basear. Mais do que insegurança jurídica, causa desordem na administração pública e respectivos orçamentos e contabilidade pú­ blica, gerando ineficiência geral, com prejuízos ao andamento de projetos, contra­ tações e licitações.

Neste ponto cabe uma ponderação importante. Repetindo o que já escrevi (Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias, nesta edição, p. 259­262), res­ salto que devem as preocupações se concentrar mais na qualidade do gasto do que na quantidade, o que não parece estar ocorrendo.

Em todos os fatos mencionados no início desta coluna, o que se vê é um foco em procurar o aumento dos recursos para a educação, pelas mais diversas vias – criando uma obrigação de gastar 10% dos recursos públicos em proporção do PIB com a educação e a pretensão de alocar 100% das receitas arrecadadas com royal- ties de petróleo no setor. São todas medidas, que, com a melhor das intenções, se imaginam suficientes para resolver o problema. E, por mais estranho que possa ser, comprovadamente não são.

O maior problema da administração pública, por mais curioso que possa pa­ recer, não é a quantidade de recursos, mas sim conseguir administrá­los de forma eficiente. Na educação a situação não é diferente. Também já falei sobre isso, há exatamente um ano, e nunca é demais voltar ao tema (Não falta dinheiro à admi- nistração pública, falta gestão, nesta edição, p. 255­258). As recentes notícias men­ cionadas no início desta coluna apontam claramente neste sentido: “As principais falhas na área educacional no Brasil, segundo pesquisadores, estão relacionadas à má distribuição e à gestão ineficiente dos recursos”;1 dados de recente levantamen­ to da OCDE,2 mostrando que o aumento nos gastos com educação que o Brasil fez nos últimos anos não está resultando em efetiva melhoria em nossos índices, “de­ veriam ser lidos com muita atenção por governantes e pelos manifestantes que fo­ ram às ruas clamar por uma educação melhor, sob pena de insistirmos na tecla errada: aumentar o volume de gastos no setor não deve trazer a qualidade educa­ cional de que precisamos”.3 Mailson da Nóbrega, em recente coluna publicada, é claro e preciso ao afirmar que o problema da educação não é a falta de dinheiro, pois o que a educação brasileira precisa é “de uma verdadeira revolução gerencial e

 

1      Aprendendo a gastar. Folha de S.Paulo, 30 de junho de 2013, p. B8.

2      Education at a glance 2013.

3      Dados novos, problema antigo. Revista Veja, ed. 2.330, 10 de julho de 2013, p. 100.

 

 

de prioridades, inclusive para gastar melhor os recursos disponíveis”,4 no mesmo sentido do apelo de Gustavo Ioschpe.5

Maior prova disso é ver que a preocupação com a quantidade de recursos para a educação é antiga, já vem pelo menos desde a promulgação da Constituição, que em seu texto original, publicado em 1988, prevê que a União deverá aplicar anual­ mente, no mínimo, 18% da receita de impostos e transferências obrigatórias na manutenção e desenvolvimento do ensino, e estados, Distrito Federal e municípios, o mínimo de 25%, destacando­se ainda entes da federação que, por legislação pró­ pria, preveem valores ainda mais altos, como é o caso do estado de São Paulo, cujo percentual é de 30% (CF, art. 255), e do município de São Paulo, com percentual de 31% (Lei Orgânica, art. 208).

E não se pode dizer que, após todos esses anos, a questão da educação, que sem dúvida experimentou avanços nesse período, esteja próxima do ideal almejado pela nossa sociedade, que tem se mostrado atenta a esta questão, como se vê nas ruas.

Não será somente pela obrigação de elevar a meta de aplicação de recursos públicos em educação em proporção do PIB, como determina a Constituição (art. 214, VI) e debate­se no projeto do novo – e já atrasado – Plano Nacional de Edu­ cação, nem pela destinação dos recursos dos royalties de petróleo do pré­sal, que a questão será resolvida.

A sociedade, por todos os seus órgãos representativos, faz muito bem e realiza o excelente trabalho nesta luta pelos recursos para a educação. Certamente isso poderá resultar, ao menos, em aumento de salário aos professores, que precisam e merecem. Poucas causas podem ser mais nobres do que essa, e essa deve ser uma luta incessante de todos.

Todo o apoio deve ser dado aos parlamentares e membros do Poder Executivo no sentido de conseguirem aprovar mais recursos para a educação, mas já passou da hora de canalizarem suas energias para aperfeiçoar a gestão dos recursos que já estão sendo aplicados, sob pena de mandar mais dinheiro para um sistema que ainda não está conseguindo administrar bem o que já tem. E isso pode começar com a aprovação do Plano Nacional de Educação.6

 

 

4      O problema da educação não é a falta de dinheiro. Revista Veja, ed. 2.331, 24 de julho de 2013, p. 32.

5      Dilma, não desperdice nossos recursos nesse sistema educacional. Revista Veja, ed. 2.331, 24 de julho de 2013, p. 104.

6      O Plano Nacional de Educação foi aprovado em 25 de junho de 2014 (Lei 13.005).

 

 

SAÚDE NãO PRECISA Só DE DINhEIRO, MAS DE BOA gESTãO

 

 

 

 

Coluna publicada em 22.10.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-out-22/

contas-vista-saude-nao-dinheiro-boa-gestao>

 

 

 

 

 

Foi­se o tempo em que os médicos usavam termômetro, estetoscópio, medidor de pressão e, principalmente, conversa como seus únicos instrumentos de trabalho. A consulta e os exames eram um ato só. Diagnósticos se faziam a partir dos exames disponíveis: medição de temperatura, pressão e frequência cardíaca. O restante fi­ cava por conta da experiência do clínico em sua conversa com o paciente. Bons tempos, alguns dirão, pois pelo menos tudo se resolvia mais rapidamente, sem ne­ cessidade de ir ao laboratório (eram poucos há duas décadas) para realização de dezenas de exames de nomes e siglas indecifráveis para os leigos. Incrível é consta­ tar que, em não poucas vezes, faziam­se diagnósticos mais corretos e precisos do que atualmente. Mas isso é passado.

O fato é que a medicina se desenvolveu muito. Doenças que há duas ou três décadas eram fatais e incuráveis, como câncer e Aids, hoje não mais o são. É ine­ gável a significativa melhoria na vida das pessoas trazida pelos avanços na área da saúde.

No entanto, esse progresso veio acompanhado de um significativo aumento nos custos e complexidade dos tratamentos, e o financiamento da saúde passou a ser um grave problema a ser enfrentado pelas pessoas e pelo Poder Público.

Deixando de lado os incontáveis litígios entre os particulares e os planos de saúde privados que abarrotam a Justiça brasileira, uma vez que o propósito desta coluna é tratar de Direito Financeiro, passemos para o financiamento do sistema público de saúde.

Nossa Constituição, que recentemente completou 25 anos, foi generosa com a saúde, dando­lhe atenção diferenciada. Em seus artigos 6º e 196, reconhece a saúde

 

 

como um direito social, direito de todos e dever do Estado, em perfeita consonân­ cia com os objetivos fundamentais da nossa República Federativa, enumerados no artigo 3º. Não seria exagero considerá­lo o mais importante direito assegurado pelo Estado brasileiro, e que exige atuação mais efetiva do Estado para torná­lo real, configurando um dos chamados “direitos fundamentais de segunda dimensão”, conforme consagra a doutrina, e que, como tal, importa em custos. Que, nesse caso, como já se pode antever, não são pequenos. Médicos são profissionais de alta qualificação e, portanto, caros. Eles e os demais profissionais da área da saúde também são – ou deveriam ser – muito bem remunerados. No caso da saúde, os custos se agravam em muito diante das novas tecnologias, com aparelhos sofistica­ dos e caros, o mesmo ocorrendo com os medicamentos necessários ao tratamento das doenças.

Garantir direito à saúde é, portanto, um ônus que pesa – e como – sobre os ombros do Estado brasileiro.

Ônus que nem todos os governos gostam de assumir. O maior exemplo é o que se pode observar nos Estados Unidos, que em 1º de outubro de 2013 viram paralisar a administração pública pela não aprovação de sua lei orçamentária pelo Parlamento, o que deixou o governo sem autorização para gastar dinheiro e, con­ sequentemente, pagar as despesas imprescindíveis para o funcionamento do setor público. Motivo? Divergências com relação à implementação da legislação do cha­ mado “Obamacare”, que amplia a participação do setor público no sistema de saúde, facilitando o acesso e reduzindo os custos para a população, o que, conse­ quentemente, aumenta as despesas do Estado americano.1

Sistematizado nos artigos 196 a 200 da Constituição, o sistema de saúde no Brasil prevê ampla atuação do Estado, que deve assegurar acesso universal e igua­ litário de toda a sociedade às políticas públicas voltadas à promoção, proteção e recuperação da saúde.

1 Aliás, para aproveitar a oportunidade, registro que, na coluna de 24 de setembro de 2013, Planejamento municipal precisa ser levado a sério, nesta edição, p. 135­138, chamei a atenção para o possível desinteresse da mídia para a importante data de 30 de setembro, quando seria

– como efetivamente foi – apresentada a proposta de plano plurianual de grande parte dos municípios do país, incluindo São Paulo, e dos projetos de lei orçamentária de Estados e mu­ nicípios em todo o país. Infelizmente constato o acerto da previsão, pois, com raras exceções, o assunto foi tratado no noticiário. Mas há que se lamentar o fato de que, na mesma data, o Parlamento americano deliberou sobre a proposta orçamentária dos Estados Unidos e isso teve grande destaque no noticiário – e continua tendo até hoje, o que mostra estarmos dando mais importância e levando mais a sério o orçamento americano do que o nosso!

 

 

Em um Estado federal como o Brasil, o financiamento público da saúde é especialmente complexo, dadas as peculiaridades do setor. Típica política pública exercida no âmbito do federalismo cooperativo que vigora em nosso país, é finan­ ciada e executada de forma conjunta por todos os entes da federação, o que, evidentemente, exige a participação, cooperação e coordenação entre eles, tanto na execução, quanto no financiamento.

Sendo os entes da federação dotados de autonomia, cujos governantes são eleitos democraticamente pela população, o que leva a um verdadeiro mosaico po­ lítico, com prefeitos, governadores e presidente oriundos de partidos, ideologias e estilos diferentes, vê­se não ser fácil fazer com que todos atuem de forma coordena­ da e cooperativa em função de objetivos comuns.

O artigo 198 da Constituição dá as diretrizes gerais para o setor de saúde, cujas ações e serviços públicos “integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”, regulamentado pelas Leis 8.080 e 8.142, de 1990, e pela Lei Complementar 141, de 2012, em que estão delineados as atribuições de cada ente federado e a forma de financiamento.2

A descentralização dos encargos em matéria de saúde é complexa e delicada, em face das especificidades do setor, uma vez que há múltiplos fatores a serem le­ vados em consideração. Urgência, gravidade, complexidade, custo, demanda – há muitos itens a sopesar na delimitação de quem vai fazer o que e como. E imperfei­ ções nessa alocação geram efeitos perversos para todos. Quantas vezes não se cons­ tata, na área da saúde, a ocorrência de fenômenos conhecidos dos estudiosos de federalismo fiscal como o free rider efect, ou “efeito carona”, em que determinadas unidades da federação, especialmente os municípios, por fornecerem esse serviço público com competência e eficiência, atraem para si pacientes de outros municí­ pios e acabam arcando com as despesas para o tratamento de um cidadão que não reside em seu território. Prefeitos que, em vez de se esforçarem para construir e manter postos de saúde e hospitais que prestem um serviço de boa qualidade, op­ tam por comprar ambulâncias que levam os pacientes para serem atendidos em municípios vizinhos e, com isso, deixam de arcar com altas despesas, onerando outro ente da federação. Organizar todos esses fatores de modo a construir um

2 Vê­se ter o direito sanitário melhor sorte do que o direito financeiro, uma vez que, passados 25 anos da promulgação da Constituição, a legislação infraconstitucional regulamentando seus artigos está em vigor – ainda que tardiamente, pois a Lei Complementar 141 é bastante recente. Já o direito financeiro espera até hoje a lei complementar prevista no artigo 165, § 9º, essencial para a organização das leis orçamentárias, como já alertei em Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias, nesta edição, p. 259­262.

 

 

sistema eficiente e evitar externalidades de toda sorte é tarefa árdua, a exigir muito esforço, estudo e dedicação, que depende ainda de muita vontade política para ser implementado, tornando­o realidade.

Em matéria orçamentária, o Sistema Único de Saúde (SUS) é financiado com recursos “do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”, explicita o § 1º do artigo 198. Ou seja, por todos os entes da federação. Recursos estes cuja distribuição dá­se por um sofisticado mecanismo de financiamento, operacionalizado por meio do Fundo Nacional de Saúde e os fundos estaduais e municipais de saúde, compondo um sistema de transferências intergovernamentais fundo a fundo. Sem esquecer a in­ tensa participação, com remuneração pelos cofres públicos, de entidades públicas, filantrópicas e organizações não governamentais.

A dificuldade em organizar as finanças na área da saúde tem sido ainda agra­ vada pela forte interferência do Poder Judiciário, com decisões determinando o fornecimento de medicamentos e tratamentos caros, exigindo esforço redobrado dos gestores para realocar recursos orçamentários, alterando a programação finan­ ceira dos entes federados. A judicialização da saúde é tema de tal relevância e inte­ resse que motivou a realização de audiência pública no Supremo Tribunal Federal em 2009 para debater o tema, que é por demais complexo para ser analisado nesta coluna, mas seguramente o farei oportunamente.

A saúde é priorizada em termos financeiros, contando com a garantia consti­ tucional de aplicação mínima de recursos no setor por parte de todos os entes fede­ rados, na forma do artigo 198, §§ 2º e 3º da Constituição e na Lei Complementar

  1. Recentemente, a saúde foi contemplada com a destinação de parcela da arre­ cadação dos royalties de petróleo, na forma da Lei 12.858, de setembro de 2013, sem contar outras leis em vias de aprovação que dispõem no mesmo sentido, o que permite vislumbrar não ser por falta de recursos que nossa saúde anda mal.

Uma boa gestão desse complexo sistema de saúde pública é evidentemente fundamental, pois, como já tenho repetido exaustivamente em várias colunas, mais do que dinheiro, o setor público precisa é de uma administração mais eficiente, o que exige estudos, planejamento e medidas não só de curto, mas também e princi­ palmente de médio e longo prazos.

Características que não parecem, à primeira vista, presentes no recente pro­ grama “Mais Médicos”, implantado por medida provisória (MP 621/2013), com a “importação” de médicos realizada de forma ao que tudo indica apressada, deixan­ do entrever que se trata de mais uma das tantas ações governamentais praticadas à revelia do sistema de planejamento governamental e voltadas a obter resultados

 

 

imediatos de curto prazo, contrariando as boas técnicas e princípios da administra­ ção pública.3

Por que vai mal nosso sistema de saúde e qual o remédio para curá­lo são as grandes questões que se colocam. Questões estas cujas respostas muito provavel­ mente não serão dadas pela medicina, mas sim pelo Direito Financeiro e pela Ad­ ministração Pública.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

3 Veja­se neste ponto a precisa e pertinente análise de Élida Pinto, Cláudia Pereira e Gabriel Léger: Importação de médicos tem contradições constitucionais, publicada no ConJur em 6 de julho de 2013.

 

 

 

 

FINANCIAMENTO DA SEguRANçA PÚBLICA PRECISA DE ATENçãO

 

 

Coluna publicada em 6.5.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-mai-06/ contas-vista-financiamento-seguranca-publica-atencao>

 

 

 

 

 

Assunto que sempre está na ordem do dia, a questão da violência e, por con­ sequência, da segurança pública, tem sido objeto de maior destaque nas últimas semanas, em que se tem observado um – no mínimo aparente – aumento da crimi­ nalidade. Crimes que têm chocado a população, greves de policiais, situação prisio­ nal degradante em alguns estados e sucateamento de órgãos de investigação: o noticiário foi farto nos últimos dias em más notícias na área da segurança pública e nos obriga a pensar mais sobre o assunto.

Trata­se de tema que envolve inúmeros aspectos e áreas do conhecimento hu­ mano e, portanto, de grande complexidade não só na sua compreensão, mas tam­ bém e principalmente na busca das melhores soluções para resolver as inúmeras e relevantes questões que ele suscita.

E como usualmente acontece, pouco se aborda o aspecto que é, regra geral, o mais importante: o financeiro.

A segurança pública é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, nas claras palavras do artigo 144 da Constituição. Uma das mais importantes atribui­ ções de todo e qualquer Estado Democrático de Direito, pois não há como se alcançá­

­lo e mantê­lo sem que se garanta a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio, funções que nossa Constituição lhe atribui. Função essen­ cialmente de Estado e bem público com características de indivisibilidade e não espe­ cificidade, a segurança pública deve ser garantida diretamente pelo poder público e pouco se pode contar com a colaboração do setor privado e terceiro setor.

Essas razões colaboram para torná­la um serviço caro – muito caro. Os direi­ tos têm custos, como bem ressaltaram Stephen Holmes e Cass Sustein em sua

 

 

clássica obra (The cost of rights, 2000), e a segurança pública é um de seus exemplos mais evidentes.

A segurança pública, se analisada de forma abrangente, constitui­se em um sistema bastante complexo, pois, além de incluir os órgãos que a compõem mencio­ nados no artigo 144 da Constituição da República (polícias federais, civis, milita­ res e corpo de bombeiros), também envolve o Poder Judiciário, Ministério Público, Força Nacional, Guardas Municipais, assim como todo o sistema de administração penitenciária.1 Poderes, órgãos e instituições, que, como se pode ver, pertencem aos vários entes da federação. Um direito que não se consegue implementar por uma ou poucas ações governamentais, mas por um conjunto de várias políticas públicas que devem se coordenar e complementar para atingir seu objetivo.

Um sistema que, como se pode ver, precisa alcançar resultados mediante a coordenação de entes federados e poderes independentes em todo o país. E, mesmo dentro de um mesmo Poder de um ente da federação, exige a ação conjunta de órgãos sob comandos diferentes. Veja­se, no âmbito do Poder Executivo Federal, as várias polícias (comum, rodoviária, ferroviária); e nos Poderes Executivos dos Es­ tados, as polícias civil e militar.

Vê­se haver uma multiplicidade de comandos, órgãos e orçamentos, cuja coo­ peração é fundamental para atingir o objetivo maior de atender a necessidade pú­ blica de mais segurança e menos violência.

Não é de se surpreender que o financiamento deste serviço público funda­ mental seja caro, complexo e difícil de ser planejado e gerenciado, o que só reforça a necessidade de que sejam priorizados esses aspectos.

Tendo em vista que todos os entes da federação participam na segurança pú­ blica, seus custos se espalham pelos inúmeros orçamentos públicos, órgãos e res­ pectivos programas governamentais, tornando difícil, se não impossível, saber pre­ cisamente quanto do dinheiro público lhe é destinado. Mas algumas informações permitem constatar a elevada dimensão desses gastos.

Expressivas quantidades de recursos são vinculadas à segurança pública por meio de vários fundos orçamentários. No âmbito federal, destacam­se o Fundo Na­ cional de Segurança Pública (FNSP) e o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen),2 cujos montantes, para este ano de 2014, são da ordem de 500 milhões de reais cada

1      E nem incluo as Forças Armadas, que ao se responsabilizar pela defesa nacional, poderiam ser consideradas em uma interpretação lato sensu da segurança pública.

2      Este último recentemente completou 20 anos de existência, tendo sido criado pela Lei Com­ plementar 79, de 1994.

 

Financiamento da segurança pública precisa de atenção            ••

 

um, gerenciados pelo Ministério da Justiça. Isso representa apenas uma parcela mui­ to pequena do que se gasta, pois esses recursos são basicamente destinados à capaci­ tação e qualificação de servidores, modernização e reequipamento dos órgãos de se­ gurança pública e administração penitenciária dos demais entes da federação e financiamento de programas voltados à redução da violência, não incluindo, portan­ to, aquela que é a despesa mais representativa – o pagamento de pessoal.

Há ainda programas específicos no orçamento federal voltados à segurança pública, como o Programa Nacional de Segurança Pública (Pronasci),3 importante fonte de transferências voluntárias destinadas a financiar projetos para os entes subnacionais, em regime de cooperação federativa.

A função segurança pública, no orçamento federal para 2014, prevê gastos na ordem de R$ 8,5 bilhões, e é importante ressaltar que a maior parte dos serviços relacionados à segurança pública está nos orçamentos dos estados, que adminis­ tram as polícias civis e militares estaduais.

No Estado de São Paulo, que tem o maior orçamento entre os estados­mem­ bros de nossa federação, para se ter uma ideia, só na Secretaria da Segurança Públi­ ca, principal responsável pelos programas nesta área, na qual estão as polícias civil e militar, tem orçamento de quase R$ 18 bilhões para este exercício de 2014. Se somados aos R$ 4 bilhões destinados à Secretaria da Administração Penitenciária, perfazem um montante de R$ 22 bilhões. Mas não é só. Programas também im­ portantes para a proteção da sociedade e redução da violência estão em outros ór­ gãos, como a Secretaria da Justiça, que administra o Programa Estadual de Direi­ tos Humanos, o de Perícia Judicial, o de Modernização da Fundação Casa e o de Atenção ao Adolescente e de Integração das Medidas Socioeducativas de Interna­ ção e Semiliberdade, o que permite acrescentar mais R$ 1,5 bilhão a essa conta. Ou seja, o estado de São Paulo destina anualmente em torno de R$ 25 bilhões para tentar assegurar à população uma sociedade com ordem pública e sem violência. É praticamente equivalente aos gastos de toda a cidade do Rio de Janeiro, a segunda maior do país, cujo orçamento municipal para este ano de 2014 é da ordem de R$ 27 bilhões. E mesmo assim, não consegue atingir os objetivos esperados nem remu­ nerar adequadamente seus policiais.

Considerando­se que a segurança pública no Estado de São Paulo conta com a participação do governo federal, não só na transferência de recursos, mas também na atuação direta, por meio dos órgãos federais, como a polícia federal, sem esquecer das ações a cargo dos municípios do estado, muitos dos quais dispõem de guardas

3      Previsto na Lei 11.530, de 2007, alterada pela Lei 11.707, de 2008.

 

 

municipais e outros órgãos e serviços que atuam para colaborar na redução da vio­ lência, chega­se à conclusão de que os valores mencionados estão longe de represen­ tar os reais gastos públicos nessa área, que são muito maiores.

Algo precisa ser feito, pois, apesar dessa quantidade fantástica de dinheiro público, o que se vê, muitas vezes, em todo o país são delegacias mal equipadas, presídios em situação lastimável e policiais sem equipamentos adequados para exer­ cer a função. Policiais que, na maior parte dos órgãos e entes da federação, são mal remunerados, o que se é de lamentar, pois, mais do que em outras profissões, colo­ cam sua vida em risco ao cumprir suas funções.

E, dadas as variedade e quantidade de órgãos e entes da federação envolvidos, não há como se generalizar haver má gestão de recursos certamente presentes em boa parte dos órgãos, como ocorre em toda a administração pública, mas sem dú­ vida com exceções.

Muito há que se fazer. Tramita no Congresso Nacional projeto de lei regula­ mentando o artigo 144, § 7º, da Constituição, voltado a organizar a segurança pública e garantir a eficiência de suas atividades, por meio da criação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e, apesar de todos os fatos e acontecimentos recentes, pouco se debate o assunto.

Há que se dar maior atenção e avançar nas discussões sobre o financiamento da segurança pública, a fim de buscar soluções que fujam da solução simplista de maior aporte de recursos que, nesse caso, é ainda mais difícil de viabilizar dado o expressivo volume de dinheiro envolvido. Debater a prioridade nas políticas públi­ cas de prevenção, afinal melhor é não haver violência, mas sem descuidar da repres­ são, pois sem ela a impunidade impera e corrompe todo o sistema. Conveniência, oportunidade, legalidade, interesse, extensão de participação da iniciativa privada e do terceiro setor, especialmente na área da proteção à criança e ao adolescente e administração penitenciária; forma de financiar a construção e manutenção de presídios, com a utilização de instrumentos como parcerias público­privadas ou outros meios de contratação; realização de audiências por videoconferência para evitar os custos de deslocamento de detentos; penas alternativas, diminuindo os custos do encarceramento –, enfim, há muitas despesas cuja possibilidade de redu­ ção precisa ser avaliada, a fim de verificar se são adequadas e viáveis para dar mais qualidade ao gasto público na área da segurança pública.

Se bem gerenciados, os recursos destinados à segurança pública estão entre os mais bem aplicados, pois os custos da violência são imensuráveis. Mortes de ino­ centes, sensação de insegurança, impunidade, falta de liberdade e tranquilidade são prejuízos que não têm preço.

 

 

AFINAL, quANTO CuSTOu A COPA DO MuNDO PARA A SOCIEDADE BRASILEIRA?

 

 

Coluna publicada em 3.6.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-jun-03/ afinal-quanto-custou-copa-mundo-sociedade-brasileira>

 

 

 

 

 

É “a pergunta que não quer calar” este ano. E que, muito provavelmente, já adianto, ficará sem resposta. O Direito Financeiro e as Finanças Públicas dificil­ mente poderão satisfazer a curiosidade da sociedade brasileira, até porque se trata de uma questão muito mais complexa do que parece à primeira vista.

A começar pelo fato de que os gastos não se resumem à construção de está­ dios, pois abrangem uma complexa infraestrutura de aeroportos, portos, metrôs, rodovias, rede hoteleira, mobilidade urbana, um sem­número de serviços públicos de segurança, logística e tantos outros que é difícil nominar sem esquecer algum.

Mais. É uma despesa distribuída entre o poder público e os particulares, em relações nem sempre claras e simples de serem contabilizadas, explicáveis pela mul­ tiplicidade e diversidade de meios e instrumentos pelos quais se viabilizam.

E, nesse caso, não nos esqueçamos, a relação com o poder público abrange todas as esferas de governo, pois a Copa do Mundo envolveu União, estados e mu­ nicípios, o que é um grande fator complicador para mensurar, avaliar e tornar transparentes essas despesas. “Vivemos um inferno, sobretudo porque no Brasil tem três níveis políticos”, reclamou Jérôme Valcke.1 A frase do Secretário­Geral da FIFA, responsável por acompanhar as obras de infraestrutura para a Copa do Mundo no Brasil, traduz em poucas palavras as dificuldades enfrentadas pela ad­ ministração pública em um país de dimensões continentais como o nosso, cuja organização adota o sistema federativo, e com clara separação de poderes.

 

 

1      Folha de S.Paulo, 11 de maio de 2014, p. C8.

 

 

Desde o início, falou­se que a Copa do Mundo seria realizada com recursos privados. Afirmação que, como já se suspeitava, se mostrou inverídica, pois, ainda que muitas ações tenham sido realizadas pelo setor privado, várias delas acabaram sendo de responsabilidade da administração pública, sem contar as inúmeras situa­ ções em que a despesa “privada” foi, em boa parte, composta por recursos públicos, como veremos ao longo deste texto.

Neste ponto, é importante ressaltar que nem toda despesa pública consta dos orçamentos públicos. É cada vez mais frequente o fenômeno da “desorçamentação” ou das off-budget expenditures, que compreendem uma série de operações financei­ ras que “escapam” da lei orçamentária anual, mitigando a transparência e dificul­ tando o controle.2 E elas estão bem presentes em nossa Copa do Mundo.

Especial atenção merecem os gastos tributários (ou tax expenditures, para usar a expressão consagrada por Stanley Surrey), financiamentos (diretos ou garantidos pelo poder público) e gastos realizados por empresas estatais, além de outros que não são apuráveis pela análise dos orçamentos públicos.

Os chamados “gastos tributários” abrangem inúmeras formas de benefícios fiscais, tais como isenções, diferimentos, facilidades tributárias de diversas nature­ zas que, na prática, resultam em redução de receitas pelo não pagamento de tribu­ tos e devem ser interpretados como verdadeiras despesas públicas. Ainda que os orçamentos devam conter demonstrativo que os contemplem (CF, art. 165, § 6º, e Lei de Responsabilidade Fiscal, art. 5º, II), nem todos os entes da federação cum­ prem o que foi determinado e outros o fazem de forma pouco específica, impedin­ do que se tenha o exato conhecimento de quanto esses valores efetivamente repre­ sentam para os cofres públicos. Foram largamente utilizados por todos os entes da federação, e não há dados suficientes e claros que permitam precisar o valor exato.3

Operações financeiras envolvendo o poder público, quer diretamente pela concessão de empréstimos, quer na forma de garantias, podem onerar o tesouro, e não há como mensurá­las com precisão, deixando uma interrogação sobre quanto custaram muitas das ações governamentais importantes para completar toda a in­ fraestrutura necessária ao evento.4

2 Veja­se, a respeito do tema, o recente trabalho Regime jurídico da despesa pública no Brasil, de Emerson Gomes (Tese de doutorado em Direito Financeiro – USP, 2014, p. 30 e seguintes).

3    Há detalhado relatório de levantamento do rol de renúncias de receitas tributárias, financeiras e creditícias relacionadas ao evento Copa 2014, produzido pelo Tribunal de Contas da União

– TCU (TC 034.303/2011­1, Acórdão 3.249/2012, Plenário, rel. Min. Valmir Campelo, em 28 de novembro de 2012).

4    Vide, por exemplo, o ProCopa Arenas, linha de financiamento do BNDES destinada a “apoio a projetos de construção e reforma das arenas que receberão os jogos da Copa do Mundo de 2014 e de urbanização de seu entorno” (Resolução 1.888/2010/BNDES).

 

Afinal, quanto custou a Copa do Mundo para a sociedade brasileira? ••

 

De outro lado, grandes obras, apesar de terem sido impulsionadas pela reali­ zação da Copa do Mundo, foram e são necessárias para nossa sociedade e não é razoável considerá­las como “gastos da Copa”, pois continuarão sendo úteis inde­ pendentemente do evento. Vide os principais aeroportos do país, já há muito defa­ sados em relação às nossas necessidades, e as obras neles realizadas são o mínimo que se espera para que cumpram suas funções de forma eficiente. Por oportuno, registre­se que nisto a Copa do Mundo foi importante: chamou a atenção para as deficiências na infraestrutura do país, extremamente defasada, não só nos aeropor­ tos, mas em muitas áreas essenciais para o desenvolvimento.

A multiplicidade de entes federados, todos autônomos e com seu próprio or­ çamento, e a necessidade de participação conjunta deles em muitas das ações go­ vernamentais voltadas à realização do evento, em um exemplo de cooperação fede­ rativa que caracteriza o Estado brasileiro, descentralizam a contabilização dos custos. Embora alguns entes da federação tenham criado programas orçamentários específicos,5 outros diluíram as despesas em dotações de programas diversos, impe­ dindo que se possa saber com clareza e transparência os valores aplicados.

Como se pode ver, a questão é complexa e não é fácil computar os gastos pú­ blicos com a Copa do Mundo.

De qualquer forma, alguns valores são interessantes mencionar, e permitem dar uma dimensão aproximada e parcial deles, afastando alguns mitos que foram criados.

Informações recém­divulgadas dão conta de que os custos da Copa do Mun­ do somam R$ 25,8 bilhões, o que corresponde a 9% das despesas públicas anuais em educação,6 e equivale às despesas previstas no orçamento do Estado de São Paulo para a área da segurança pública neste ano de 2014, como mencionado nas páginas 65­68, Financiamento da segurança pública precisa de atenção, nesta edição.

Ainda que devam ser relativizados, dadas as considerações feitas ao longo de tudo o que foi dito anteriormente, há que se reconhecer serem valores de dimensões menores do que se imaginava, ao pensar que com esses recursos seria possível resol­ ver nossos graves problemas, como saúde, educação e segurança pública, serviços públicos prestados pelo Estado que asseguram direitos fundamentais do cidadão.

Além de serem muito caros, esses serviços utilizam­se essencialmente de des­ pesas de custeio, que são permanentes e praticamente incomprimíveis, diferentemente

5   Como exemplificam André Carvalho e Leonardo Dias. Panorama dos investimentos públicos e privados para a Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016. Revista de Direito Ban- cário e do Mercado de Capitais, n. 48, 2010, p. 86­87.

6 Custo da Copa equivale a um mês de gastos com educação. Folha de S.Paulo, 23 de maio de 2014, p. A­8.

 

 

do que foi gasto com a Copa do Mundo, cujas obras de infraestrutura, por serem basicamente despesas de capital, não vão onerar com a mesma intensidade, de for­ ma permanente, os cofres públicos.

Apesar disso, não podemos, de forma alguma, concluir que a Copa do Mundo nos custou pouco, pelo contrário. Nela há muito dinheiro público e não se pode dizer que tenha sido bem gasto, pois, ainda que não fosse suficiente para suprir as falhas nesses serviços públicos cuja melhora é reivindicação permanente da popu­ lação, é de se pensar se não teria sido mais conveniente destinar os recursos para essa finalidade. Sem esquecer do alerta já várias vezes repetido: o importante é gastar bem, e não gastar mais.7

Enfim, vê­se que este assunto é interessante, importante e muito instigante e merece uma análise mais detalhada. Mas é hora de parar de falar sobre Direito Financeiro e começar a torcer. Semana que vem nossa seleção entra em campo. Infelizmente o Direito Financeiro, nesta Copa, não vai levar a taça. Nem uma medalhinha. Mas, seguramente, ganharemos experiência no assunto, extraindo lições úteis para o futuro.

Agora que a conta já foi e está sendo paga, chega de chorar sobre o leite derra­ mado. Pode ter custado caro, mas nosso futebol vai fazer valer cada centavo e nos trazer essa taça!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

7      Coluna Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias, nesta edição, p. 259­261.

 

 

O DIREITO FINANCEIRO PODE SER A SOLuçãO PARA OS SEM-TETO

 

 

Coluna publicada em 29.7.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-jul-29/

poder-publico-financiamento-direito-moradia>

 

 

 

 

 

Há várias semanas, movimentos dos “sem­teto” realizam manifestações nas quais reivindicam aquele que é hoje um direito humano universal e constitucionalmente as­ segurado no Brasil como um direito social: o direito à moradia (CF, art. 6º, caput).

Introduzido em nosso texto constitucional pela Emenda 26, de 14 de fevereiro de 2000 – o que permite dizer estar recentemente contemplado em nossa Consti­ tuição –, o direito à moradia já está há muito consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 19481 e em muitos outros tratados internacionais e constituições pelo mundo afora.

Nada mais coerente com nosso ordenamento jurídico, cuja Constituição, em seu preâmbulo, prevê sermos um Estado Democrático “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem­estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos”, e tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), que não há como se reconhecer presente àqueles que vivem em habitações precárias e sem as míni­ mas condições de segurança e higiene.

Trata­se de um direito fundamental de segunda dimensão que exige presta­ ções positivas do Estado para que se torne real e seja efetivamente exercido. Um direito que tem custos – e não são pequenos, pelo contrário.

 

1 Artigo XXV, 1: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem­estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invali­ dez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle”.

 

 

E, apesar de todo o debate acerca do tema, provocado pelas recentes manifes­ tações, essa questão, e outras que estão diretamente ligadas ao Direito Financeiro, ficaram marginalizadas. Pouco se falou sobre elas.

É certo que as manifestações atuais tiveram como principal motivo a discussão e aprovação do Plano Diretor na cidade de São Paulo, o que deu às questões de direito urbanístico maior relevância. Mas não precisavam, nem deveriam, deixar o Direito Financeiro de lado. Afinal, sem desmerecer os aspectos urbanísticos desse debate, difi­ cilmente o direito à moradia será exercido em sua plenitude sem que se façam ajustes e se construam mecanismos financeiros adequados para solucionar este problema.

Muitas questões – e não seria exagerado dizer, as principais – estão no âmbito das finanças públicas e carecem de maiores discussões em busca de soluções.

Veja­se inicialmente a questão federativa.

Nossa Constituição estabelece, no artigo 23, IX, que é competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de sanea­ mento básico”.

Todos os entes da federação têm, portanto, responsabilidade em garantir con­ dições dignas de habitabilidade aos cidadãos. Mas não há clareza sobre quais sejam as atribuições de cada um, o que evidentemente prejudica sobremaneira as ações governamentais nesse setor.

Trata­se de mais um caso em que se vê presente o federalismo cooperativo que caracteriza nosso Estado, que exige estudos e debates para estabelecer regras claras que permitam a colaboração de forma coordenada entre os entes federados de modo a maximizar os resultados em ações conjuntas. E que devem ser realizadas de forma planejada e benéfica a todos os envolvidos, aperfeiçoando a legislação existente.2

Nota­se também que as ações governamentais no setor habitacional ainda não se mostram coesas, constatando­se haver em todos os entes da federação medidas de várias espécies voltadas a atender as necessidades públicas nesse setor.

É o caso, por exemplo, do “aluguel social” ou “bolsa­aluguel”, benefício con­ cedido em caráter temporário por alguns entes da federação para famílias de baixa renda, ou em áreas de risco, com base na Lei Orgânica da Assistência Social, que tem como objetivos garantir direitos sociais mínimos,3 para o que prevê benefícios

 

2      Com destaque para o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, previsto na Lei 11.124, de 16 de junho de 2005.

3      LOAS – Lei 8.742, de 1993, art. 2º, parágrafo único.

 

O Direito Financeiro pode ser a solução para os sem-teto    ••

 

eventuais destinados a atender necessidades advindas de situações de vulnerabilida­ de temporária,4 entre os quais estão a falta de domicílio, como se vê, inúmeras ve­ zes, em desastres e situações de calamidade pública.5 Regra geral, são benefícios que ocorrem de forma esparsa e casuística, como se vê em casos de enchentes, de­ sabamentos, incêndios ou em remoções de favelas por razões diversas.

Ou ainda de programas especiais de construção de moradias, como, por exem­ plo, o Programa Morar Seguro, instituído pelo estado do Rio de Janeiro, que prevê a “construção de unidades habitacionais para o reassentamento da população que vive em áreas de risco”, instituído em função da “tragédia ocorrida na Região Metropoli­ tana do estado do Rio de Janeiro”, a ser realizado em parceria com as Prefeituras.6

No âmbito federal, destaca­se o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), previsto na Lei 11.977, de 2009, que tem por finalidade criar mecanis­ mos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais, requali­ ficação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para o que prevê uma série de medidas de natureza financeira, entre as quais a concessão de subvenções e participação em fundos públicos financeiros, em ações, no mais das vezes, em regime de cooperação com outros entes da federação.

O Poder Executivo Federal, no orçamento de 2014, administra o programa orçamentário “Moradia Digna”,7 sob comando do Ministério das Cidades, que tem como objetivo “ampliar por meio de produção, aquisição ou melhoria o acesso à habitação, de forma subsidiada ou facilitada, priorizando o atendimento à popula­ ção de baixa renda, com auxílio de mecanismos de provisão habitacional articula­ dos entre diversos agentes e fontes de recursos, fortalecendo a implementação do Programa Minha Casa, Minha Vida”, e nele se constata serem de várias naturezas as iniciativas adotadas: concessão de subvenções, colaboração na provisão ou refor­ ma de unidades habitacionais, melhoria na infraestrutura, apoio a projetos habita­ cionais, além de outras.

E vários são os órgãos envolvidos, como o Ministério das Cidades e a Caixa Econômica Federal, na esfera federal, empresas estaduais e municipais, como CDHU8 e Cohab,9 o que torna ainda mais necessário organizar políticas públicas que permitam a todos atuar de forma coordenada, com unidade de propósitos.

 

4      Lei 8.472, de 1993, art. 22.

5      Decreto Federal 6.307, de 2007, artigos 7º e 8º.

6      Decreto Estadual 42.406, de 13 de abril de 2010.

7      Programa 2.049, orçamento federal de 2014 – Lei 12.952, de 20 de janeiro de 2014.

8      Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano do Estado de São Paulo.

9      Companhia de Habitação de São Paulo (Município).

 

 

Vários fundos financeiros têm direta ligação com o financiamento do direito à moradia, como o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), Fundo Garantidor de Habitação Popular (FGHab), apenas para citar alguns.

Vê­se existir uma multiplicidade de instrumentos de caráter essencialmente financeiro que todos os entes da federação usam e podem usar para, se não resolver, ao menos colaborar para melhorar as condições de moradia que ainda são por de­ mais deficientes em nosso país.

Iniciativas como o Plano Nacional de Habitação (PlanHab),10 do Ministério das Cidades, com previsão de soluções de longo prazo (2009­2023) para os proble­ mas habitacionais, devem ser objeto de atenção e apoio, com ajustes se necessário, especialmente no que tange a seus aspectos financeiros, a fim de dar maior coesão e lógica às medidas nesse setor.

Porém, o mais curioso é saber que tramita há anos no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional 285, de 2008 – a “PEC da Habitação”, e pou­ co ou nada se ouviu falar sobre ela durante os movimentos sociais recentes. Uma pena. Oportunidade que não se deveria perder para promover medida concreta no sentido de se efetivar esse direito tão fundamental para as famílias que têm na mo­ radia a base para uma vida digna.

A PEC da Habitação prevê a inclusão de artigo no Ato das Disposições Consti­ tucionais Transitórias e se fundamenta em instrumentos financeiros para viabilizar a eliminação do déficit habitacional, com a destinação mínima de recursos orçamentá­ rios aos fundos de habitação de interesse social por todos os entes da federação.

Não se pode adiantar que seja a medida mais adequada e capaz de resolver os problemas, pois, como já foi escrito anteriormente neste mesmo espaço, as “vincu­ lações” são instrumentos que, “por si só, pouco representam em termos de melhoria da qualidade do gasto público” e aumento na eficácia de políticas públicas.11

Mas há que se “tirar da gaveta” a referida PEC e retomar o debate.

Já passou a hora de se dar mais atenção a este assunto, até porque sua solução ainda está sendo tomada no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, sendo incipiente a judicialização dessas questões, que, se não resolvidas brevemente, só tenderão a piorar, como se vê pelos sinais que a população nas ruas está emitindo.

 

 

 

10     BRASIL. Ministério das Cidades. Plano Nacional de Habitação. Versão para debates. Brasília: Ministério das Cidades/Secretaria Nacional de Habitação, maio de 2000.

11  Ver Vinculações orçamentárias não são a panaceia dos problemas, nesta edição, p. 207­210.

 

 

MAIORIDADE PENAL, OS 25 ANOS DO ECA E O DIREITO FINANCEIRO

 

 

Coluna publicada em 28.7.2015: <http://www.conjur.com.br/2015-jul-28/ contas-vista-maioridade-penal-25-anos-eca-direito-financeiro>

 

 

 

 

 

Em 13 de julho de 2015, completaram­se 25 anos da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), quando se discute intensamente a possibilidade de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, trazendo para o debate as questões voltadas às políticas públicas de prote­ ção à criança, ao adolescente e ao jovem.

É interessante notar que, apesar de termos leis avançadas e bem elaboradas, no mais das vezes o problema que está subjacente não se mostra próximo da solução que se espera.

Regra geral, a explicação está no fato de que as leis, embora publicadas e em pleno vigor, não são efetivamente colocadas em prática e executadas como previsto em seu texto.

Vê­se que, no mais das vezes, a solução dos problemas não está nas leis nem, consequentemente, na sua alteração ou não. Está na sociedade, nas pessoas e, prin­ cipalmente, na administração pública, que não lhes confere eficácia, e não se tor­ nam reais as prescrições normativas.

Aspectos da maior relevância são relegados a segundo plano, o que compro­ mete as políticas públicas, como é o caso dos aspectos administrativos e financei­ ros. O adequado gerenciamento e financiamento das políticas públicas é funda­ mental para seu sucesso, sendo prioritário dar­lhe total atenção, especialmente neste caso, que é da maior relevância social. Vale refletir sobre o tema para com­ preendê­lo melhor e qualificar o debate.

A proteção à criança, ao adolescente e ao jovem é política pública que se mate­ rializa por um conjunto de ações governamentais e não governamentais que apresenta

 

 

aspectos administrativos bastante complexos, como se poderá ver. Exige sofisticados mecanismos de financiamento e a superação de dificuldades gerenciais.

Complexidade que se constata pela intensa atuação dos poderes e instituições independentes, uma vez que os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o Mi­ nistério Público, a Defensoria Pública, todos eles exercem funções relevantes volta­ das a atingir os objetivos dessa política pública que é prioridade absoluta prevista na Constituição.1

Atuam diretamente na própria execução e, principalmente, controle das ações, como se vê pela obrigatória participação do Poder Judiciário e Ministério Público nas medidas de guarda, tutela, adoção, dos atos infracionais, da fiscalização das entidades governamentais e não governamentais de atendimento e tantas outras.

Interferem também para assegurar os muitos direitos fundamentais previstos na Constituição (art. 227) e legislação infraconstitucional2 que exigem prestações estatais e têm sido objeto de intensa judicialização visando à concretização ante a inércia estatal, como se pode constatar das várias demandas judicializadas por va­ gas em creches (STF, RE 436.996­6 Agr e RE 410.715­5 Agr; STJ, REsp 1.185.474),

dever de proteção integral (STF, RE 482.611 e STF, RE 488.208) e muitas outras. Uma evidência da distância que existe entre o que está previsto na lei e a realidade.

Mais do que isso, não é simples coordenar todos os entes da federação, em um exemplo claro de federalismo cooperativo que, neste caso, mostra­se bastante evi­ dente, com a participação da União, estados, Distrito Federal e municípios.3

Acrescente­se que, ante a sistemática de organização setorial estabelecida na maior parte das administrações públicas, as necessidades das crianças, adolescentes

 

1 Art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá­los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, explora­ ção, violência, crueldade e opressão.

2 Dentre outras, o ECA: artigo 7º – direito à vida e saúde; artigo 53 – direito à educação, à cultura, ao esporte a ao lazer; artigo 60 – direito à profissionalização e à proteção no trabalho, só para citar alguns exemplos; disposições em sentido semelhante estão no Estatuto da Juven­ tude – Lei 12.852, de 5 de agosto de 2013.

3 Veja­se que a cooperação entre entes federados e poderes é intensa, presente em várias situa­ ções, como se vê no próprio texto da lei: “Os entes federados, por intermédio dos Poderes Executivo e Judiciário, promoverão conjuntamente a permanente qualificação dos profissio­ nais que atuam diretamente ou indiretamente em programas de acolhimento institucional e destinados à colocação familiar de crianças e adolescentes, incluindo membros do Poder Judi­ ciário, Ministério Público e Conselho Tutelar” (ECA, art. 92, § 3º).

 

 

e jovens espalham­se por diversas áreas, tais como saúde, assistência social, educa­ ção, segurança pública etc., tornando necessária uma ação conjunta e coordenada de diversos órgãos dentro de uma mesma unidade federativa – sem esquecer que o mesmo ocorre nas demais esferas de governo com as quais os entes federados neces­ sariamente devem de se relacionar.

Não é só. As políticas públicas voltadas para a proteção à criança, ao adolescente e ao jovem estão entre as que mais – e, não seria exagerado dizer, são as que mais

– contam com a participação do terceiro setor, por meio da intensa atuação de instituições não governamentais, muitas recebendo subvenções orçamentárias.4

Para isso, os recursos, principalmente financeiros, são fundamentais.

Já na Constituição há referências ao aporte de recursos públicos ao setor, dire­ tamente (percentual a ser destinado à saúde na assistência materno­infantil – art. 227, § 1º, I), ou por meio de incentivos fiscais (acolhimento e guarda de órfãos e abandonados – art. 227, § 3º, VI), e a criação de programas governamentais espe­ cíficos para atendimento àqueles portadores de deficiência, e também aos depen­ dentes de drogas (art. 227, § 3º, VII).

O ECA, em suas diretrizes, dá ênfase a vários aspectos financeiros, regulando atribuições dos entes federados (art. 88, I), orienta para a criação e manutenção de programas governamentais de forma descentralizada (art. 88, III), e fomenta a manutenção dos fundos nacional, estaduais e municipais (art. 88, IV), principais instrumentos financeiros desta política pública. E chama a atenção para a já men­ cionada necessidade de integração operacional dos órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social (art. 88, V e VI).

No ECA, os principais aspectos financeiros, não obstante sua relevância, vêm tratados nas “disposições finais e transitórias”, especialmente no artigo 260, que cuida das doações para os Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Neste ponto, convém destacar serem os Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente os principais instrumentos financeiros voltados a viabilizar e as políti­ cas públicas destinadas ao setor, que devem ser instituídos e cadastrados pelos entes federativos para melhor gerenciar seus recursos – o que, registre­se, ainda não se materializou integralmente.5

4 A própria legislação reconhece isso e é expressa ao estabelecer que “a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far­se­á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos muni­ cípios” (ECA, art. 86).

5     <http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas­e­adolescentes/cadastramento­de­fundos>.

 

 

O Fundo Nacional para a Criança e Adolescente está previsto no art. 6º da Lei 8.242, de 1991, que criou o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), órgão responsável por geri­lo (art. 2º, X) e que tem várias outras atribuições relevantes em matéria financeira, como a de zelar pela aplicação da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente (art. 2º, I) e acompanhar a elaboração e a execução da proposta orçamentária da União (art. 2º, IX).

Mas não é somente esse o ponto que merece ser destacado no aspecto finan­ ceiro e administrativo. O bom gerenciamento de qualquer política pública parte, inicialmente, de um planejamento bem construído e executado – o que ainda deixa a desejar nessa matéria.

Inicialmente, vê­se que, em âmbito nacional, a proteção à criança, ao adoles­ cente e ao jovem conta com vários planos, nos quais se pode notar falta de coorde­ nação tanto no aspecto temporal, pois abrangem, muitas vezes, períodos diferentes, quanto no próprio conteúdo, com previsões nem sempre coesas entre si. E, no mais das vezes, juridicamente frágeis por sequer estarem aprovados por lei, mas por atos normativos infralegais ou nem isso.

Uma análise do tema permite encontrar o Plano Nacional de Promoção, Pro­ teção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária,6 elaborado por vários órgãos do Poder Executivo Federal e formali­ zado pela Resolução Conjunta CNAS­Conanda 1/2006, em que se constata que objetivos, ações, resultados, indicadores, prazos e metas não são claros e específicos o suficiente para permitir adequados acompanhamento e controle. Elaborado para

o período 2007­2015, é fácil constatar que, faltando seis meses para o final, não será integralmente implementado.

Reparos semelhantes podem ser feitos em outros planos e acrescente­se que, ao analisá­los, evidencia­se o já mencionado caráter multidisciplinar e intersetorial, pois elaborados no âmbito de vários órgãos diferentes da administração pública. Temos o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Prote­ ção ao Trabalhador Adolescente, de 2004, elaborado pelo Ministério do Trabalho e Emprego;7 o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra

 

6 BRASIL. Conanda/CNAS/SEDH/MDS. Plano Nacional de promoção, proteção e defesa do direito das crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária. Brasília: MDS, 2006.

7 BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente. Prevenção e erradicação do trabalho infantil e proteção ao trabalhador adolescente. Brasília, Ministério do Trabalho e Emprego, Secretaria de Inspeção do Trabalho, 2004.

 

 

Crianças e Adolescentes, de 2013;8 a Política Nacional de Educação Infantil – pelo direito das crianças de zero a seis anos à Educação, de 2006, elaborado pelo Minis­ tério da Educação,9 dentre outros.

No aspecto financeiro, o mais relevante é o Plano Plurianual – PPA, válido para toda a administração pública federal. Está em vigor, até o final do ano, o PPA 2012­2015 (Lei 12.593, de 18 de janeiro de 2012). Uma análise superficial deste PPA permite evidenciar claramente as dificuldades e fragilidades administrativas e financeiras a serem enfrentadas. Nele se constata a já mencionada dificuldade ad­ ministrativa decorrente da intersetorialidade das políticas públicas voltadas à pro­ teção da criança, do adolescente e do jovem, espalhadas por diversos programas em várias áreas e órgãos da administração pública, que cuidam de temas direta e indi­ retamente a elas vinculados como educação, cultura, esporte, saúde, segurança, assistência social, trabalho e tantas outras.10

Dentre os programas governamentais contemplados no PPA que se voltam mais diretamente ao setor, pode­se destacar o Programa 2.062 – Promoção dos Direitos de Crianças e Adolescentes, com cinco objetivos, desdobrados em 31 metas,11 e não é difícil constatar que muito do que está previsto não será cumprido.

Vê­se haver esforços de todas as esferas de governo no sentido de observar a prioridade absoluta que a Constituição atribui aos direitos fundamentais da criança, do adolescente e do jovem, e houve efetivamente grandes avanços. Mesmo assim, há ainda muito a fazer e é longo o caminho a percorrer. Se fossem atingidos todos objetivos e metas que constam dos vários planos e do PPA, muito provavelmente a

8 BRASIL. Conanda e SDH. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Brasília: Conanda­SDH, maio de 2013.

9 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Política Nacional de Educação Infantil pelo direito das crianças de zero a seis anos à educação. Brasília: MEC/SEB, 2006.

10 Isto pode ser bem observado no bom trabalho destinado a apurar o “Orçamento Criança e Adolescente”, em que se verificam as dificuldades em se identificar, apurar e calcular os recur­ sos previstos nas leis orçamentárias para a criança e adolescente (Fundação Abrinq; Inesc; Unicef. De olho no orçamento criança. São Paulo, 2005).

11 Entre as quais estão “implantar serviços de atendimento integrado a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual nas 27 capitais”, “implantar serviços integrados de atendimento inicial a adolescentes em conflito com a lei nas 27 capitais”, “equipar 100% dos Conselhos Tutelares dos 1.000 municípios com menor IDI e IDH, localizados nas regiões Norte e Nor­ deste, com sede, computador, telefone e meio de transporte”, “implantar Escolas de Conselhos nas 27 unidades federadas, com modalidade presencial integrada aos programas de ensino à distância”, “universalizar os Conselhos Tutelares, estendendo­os a todos os municípios”, “uni­ versalizar Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, estendendo­os a todos os muni­ cípios”, entre tantas outras.

 

 

situação não estaria tão ruim e os problemas hoje existentes, se não eliminados, seguramente seriam bem menos relevantes e preocupantes, e talvez não fosse neces­ sário cogitar de alterações na legislação. E referidos objetivos e metas integram leis, entre as quais o plano plurianual, razão por que não podem ser considerados ape­ nas promessas, mas compromissos formalmente assumidos e que devem ser cum­ pridos. As leis de natureza orçamentária, como o PPA, têm conteúdo material e caráter impositivo, não são meras peças de ficção, como já se discutiu neste espaço (Orçamento não pode mais ser uma peça de ficção, nesta edição, p. 189­194).

As prescrições da Constituição, do Estatuto da Criança e Adolescente, dos planos, especialmente de natureza financeira, e as muitas normas aplicáveis a esta política pública ainda não se tornaram realidade. Enquanto isso não ocorrer, não há como se reconhecer serem boas ou ruins, sendo, portanto, pouco relevante preo­ cupar­se em alterá­las. Aumentar ou diminuir a maioridade penal, encarcerar ou internar, com 18 ou 16, 14 ou 20 anos, seguramente trará resultados, ainda que eventualmente positivos, pífios. Mantidas ou modificadas, as normas vigentes pre­ cisam, em primeiro lugar, ser cumpridas – e essa é a prioridade.

 

 

SOLuçãO PARA A CRISE

CARCERÁRIA TEM SIgNIFICATIvO REFLExO ORçAMENTÁRIO

 

Coluna publicada em 25.8.2015: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-25/contas- vista-solucao-situacao-carceraria-significativos-reflexos-orcamentarios>

 

 

 

 

 

A situação carcerária no Brasil é um problema antigo, grave e recorrente. A questão voltou ao debate no mundo jurídico com a decisão de 13 de agosto de 2015 em que o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 592.581, nos termos do voto do relator, ministro Ricardo Lewandowski, determinou ao Poder Executivo a realização de obras em estabelecimento prisional, dadas as condições extremamen­ te precárias em que se encontrava.1 Uma decisão interferindo diretamente em política pública que envolve montantes expressivos de recursos públicos, tendo, portanto, significativos reflexos orçamentários.

As políticas públicas voltadas à administração penitenciária estão entre as que mais dependem de recursos públicos para serem bem­sucedidas, fazendo dos ins­ trumentos financeiros à disposição do Estado as “armas” no combate aos perma­ nentes problemas que afligem o setor, o que traz os orçamentos públicos para o centro do debate.

E estão entre as mais complexas no âmbito da administração pública, por envolver os entes da Federação e a participação de todos os poderes, o que, eviden­ temente, exige uma nem sempre fácil “engenharia” para viabilizar a cooperação entre entes, órgãos e instituições dotados de autonomia, tornando necessária uma integração intersetorial, interinstitucional e federativa na sua concepção, organiza­

 

1 Por unanimidade, a Corte Suprema cassou o acórdão do Tribunal de origem (TJ­RS), que havia decidido não competir ao Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a realização de obras em estabelecimento prisional, por configurar invasão indevida em seu campo decisó­ rio, e manteve a decisão do juízo de primeiro grau, reconhecendo a procedência do pedido formulado pelo Ministério Público.

 

 

ção, implementação, gestão e execução, esperando­se dos entes federados “um indispensável senso de cooperação”, como bem colocado pelo ministro Gilmar Mendes.2 O próprio governo federal reconhece que “a situação carcerária é uma das questões mais complexas da realidade social brasileira (…). O equacionamento de seus problemas exige, necessariamente, o envolvimento dos três Poderes da Re­ pública, em todos os níveis da Federação, além de se relacionar diretamente com o que a sociedade espera do Estado como ator de pacificação social”.3

A administração do sistema prisional coloca à prova a capacidade de o Estado fazer valer a Constituição, uma vez que nela está expresso, entre os direitos e garan­ tias fundamentais, que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (CF, art. 5º, XLIX), além de impedir penas cruéis (art. 5º, XLVII) e esta­ belecer que a pena seja cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, idade e sexo do apenado (art. 5º, XLVIII), entre outros. E não é o que se tem observado, diante das muitas constatações de situações degradantes, como o próprio acórdão citado menciona. Estando o encarcerado sob a custódia do Estado, este se torna integralmente responsável por fazer valer os respectivos direi­ tos fundamentais previstos na Constituição. O que não é fácil e exige do Poder Público que, sem prejuízo das inúmeras e legítimas demandas de toda a sociedade, em áreas prioritárias como saúde, educação, segurança pública e outras que tam­ bém importam em elevado aporte de recursos, não possa descuidar dessa que é uma determinação constitucional voltada a assegurar direitos fundamentais para pessoas que estão sob sua exclusiva guarda e responsabilidade, colocando nos om­ bros dos governantes o ônus de fazer as chamadas “escolhas trágicas”.

A adequada alocação dos recursos públicos, associada à gestão eficiente, de forma cooperativa entre os entes federados e os poderes, torna­se fundamental para que se possa dar uma solução para a situação carcerária. Convém não esquecer que resolver esse problema não é somente essencial para manter a dignidade daqueles que estão presos, mas também uma forma de permitir que a pena seja efetivamen­ te um instrumento de ressocialização e consequente pacificação social, em benefí­ cio de toda a sociedade.

No âmbito financeiro, as políticas públicas voltadas à situação carcerária abrangem a participação de todos os entes da Federação, especialmente a União e

2    Segurança Pública e Justiça Criminal, publicada no ConJur, 4 de abril de 2015.

3     BRASIL. Ministério da Justiça. Depen – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamen- to nacional de informações penitenciárias – Infopen. Brasília: Ministério da Justiça – Depen, junho de 2014, p. 6.

 

 

os Estados,4 havendo aporte de recursos dos orçamentos de todos os entes federados envolvidos. Releva destacar também a intersetorialidade das políticas públicas do setor, que incluem questões de saúde pública, educação, segurança e outras, exigin­ do também uma coordenação de várias áreas da administração pública.

Destaca­se como principal instrumento financeiro o Funpen (Fundo Peniten­ ciário Nacional), criado pela Lei Complementar 79, de 7 de janeiro de 1994,5 fundo de natureza contábil que integra o orçamento fiscal da União e principal fonte de recursos para as ações governamentais de grande parte dos entes federados, por meio de transferências voluntárias, via convênios e, no caso de obras pública, por contratos de repasse.6 Faz dos fundos e transferências intergovernamentais voluntá­ rias os instrumentos por excelência que permitem operacionalizar o financiamento desta política pública de forma mais eficiente em nosso federalismo cooperativo.

Chama a atenção saber que boa parte do orçamento deste fundo não é execu­ tada. Ante a atual situação de precariedade do nosso sistema prisional, não há como se admitir que, havendo recursos disponíveis, não sejam utilizados, o que se consta­ ta pelo frequente contingenciamento das dotações orçamentárias do Funpen, que já vem de longa data.7 Põe por terra eventuais argumentações pela aplicação da teoria da reserva do possível como justificativa para o não atendimento das necessidades do setor, não somente em razão da evidente prioridade ante as situações de flagran­ te violação do princípio da dignidade humana, como também pela impossibilidade de se alegar falta de recursos que estão contemplados no orçamento público.

Além da melhor adequação na captação e distribuição dos recursos, nunca se pode esquecer o aperfeiçoamento na gestão pública, repleta de falhas nesse setor, por deficiência no planejamento, ausência de boa governança, ações improvisadas, desinteresse político, falta de capacitação específica de gestores, somando­se fatores que levam a uma situação caótica, como reconheceram recentemente vários espe­ cialistas no tema.8  Pouco vale destinar mais recursos se forem mal utilizados,

 

4    Compreendendo­se sempre, ao mencionar os Estados, também o Distrito Federal.

5     E regulamentado pelo Decreto 1.093, de 23 de março de 1994.

6 Ainda que não represente, em termos quantitativos, os valores mais expressivos, tendo em vista que não incluem as despesas com pessoal, como destaquei em Financiamento da seguran- ça pública precisa de atenção, nesta edição, p. 65­68.

7   Apesar do déficit de 200 mil vagas, Fundo Penitenciário tem R$ 1 bi em caixa – dinheiro não é o problema principal em crise do sistema penitenciário, por Jailton de Carvalho, O Globo, 16 de janeiro de 2014; Fundo penitenciário é alvo de contingenciamentos do governo. Folha de S.Paulo, 20 de fevereiro de 2001.

8 Sistema penitenciário é exemplo de gestão ineficiente no País. O Estado de S.Paulo, 17 de março de 2015.

 

 

tornando a gestão mais eficiente uma necessidade tão premente quanto o maior aporte de dinheiro.9

Há necessidade de se dar especial atenção ao problema, que é potencialmente muito grave, dado o crônico déficit de vagas no sistema carcerário,10 que pode se agravar muito, se não forem implementadas ações estruturais de grande porte e alto custo. Ainda que se tenham tomado medidas recentes de grande relevância em termos de Justiça, e colaborado para reduzir o encarceramento indevido, como os mutirões carcerários e as recém­implantadas audiências de custódia,11 responsáveis, respectivamente, por não deixar pessoas presas indevidamente, liberando­as quan­ do cabível e evitando que fossem encarceradas desnecessariamente, o problema persiste; principalmente por se constatar haver dezenas de milhares de mandados de prisão não cumpridos12 e uma maior eficiência da administração pública na captura de fugitivos levaria a um colapso do sistema, que já conta com mais de 600 mil presos, segundo levantamento recente.13

A persistência dessa situação insustentável sob todos os pontos de vista – hu­ mano, social, jurídico etc. – levou mais uma vez o Poder Judiciário a ser chamado para interferir na gestão pública, compelindo o Poder Executivo a promover as ações governamentais necessárias para assegurar os direitos fundamentais violados. E respondeu asseverando, em repercussão geral, que “é lícito ao Judiciário impor à

 

9 Questão para a qual já chamei a atenção em Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão, nesta edição, p. 255­258.

10 A crise do sistema prisional. O Estado de S.Paulo, em 9 de junho de 2015. Atualmente o déficit de vagas é de 194.650, segundo o Ministério da Justiça (<http://portal.mj.gov.br/data/Pages/ MJD574E9CEITEMID364AC56ADE924046B46C6B9CC447B586PTBRNN.htm>).

11 Entre outras medidas, como a realização de campanhas em favor da ressocialização, estabele­ cimento de parcerias com a sociedade civil para apoiar as ações de reinserção, criação de banco de oportunidades de trabalho, educação e capacitação profissional e o acompanhamento dos indicadores e metas de reinserção e a efetiva participação do Conselho Nacional de Justiça nessa área, como bem destacado pelo ministro Gilmar Mendes (MENDES, Gilmar. Seguran­ ça pública e a responsabilidade do Judiciário, Consultor Jurídico, publicado e disponível desde 5 de abril de 2014). E também a realização de audiências por videoconferência, a imposição de penas alternativas, possibilidade de parcerias público­privadas na construção de presídios, to­ das sendo medidas que podem colaborar para se observar a economicidade na gestão pública neste setor, como já mencionei em Financiamento da segurança pública precisa de atenção, nesta edição, p. 65­68.

12 Segundo informações do Conselho Nacional de Justiça em 2013, havia à época mais de 192 mil mandados de prisão aguardando cumprimento (<http://www.cnj.jus.br/noticias/ cnj/59868­brasil­tem­mais­de­192­mil­mandados­de­prisao­aguardando­cumprimento>).

13  O Brasil conta com uma população prisional de 607.731 pessoas, segundo o Infopen.

 

 

Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetivi­ dade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o res­ peito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes” (RE 592.581, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 13.8.2015).

Mas não é só. Recentemente protocolada,14 está em tramitação a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, movida pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Mais uma oportunidade para que o Poder Judiciário se pro­ nuncie, dessa vez para declarar o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro e, ao final, compelir o Poder Público a tomar uma série de medidas, de natureza cautelar e em caráter definitivo, voltadas a equacionar as “gravíssimas violações dos direitos fundamentais dos presos brasileiros, em seu pro­ veito e em prol da segurança de toda a sociedade”. Entre elas se destacam, no pedi­ do inicial, as medidas de natureza financeira, como impor “o imediato descontin­ genciamento das verbas existentes no Fundo Penitenciário Nacional – Funpen, e vede à União Federal a realização de novos contingenciamentos, até que se reco­ nheça a superação do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasilei­ ro”; determinar ao governo federal que elabore, em três meses, um plano nacional visando a superação dos problemas levantados, no prazo de três anos, plano esse que deve conter a previsão de recursos necessários para a implementação de suas propostas; em seguida, determinar aos Estados que elaborem os respectivos planos, para execução em dois anos, também contemplando a previsão de recursos e cro­ nograma de efetivação das propostas.

Iniciativa ousada e pioneira no Brasil, a medida judicial já foi tomada em ou­ tros países, com destaque para a Colômbia, onde a Corte Constitucional já se pronunciou favoravelmente em pedidos análogos, estabelecendo parâmetros e re­ conhecendo o “estado inconstitucional de coisas” para rejeitar a alegação de insu­ ficiência orçamentária como justificativa para se abster de proteger direitos funda­ mentais e determinando que sejam tomadas medidas administrativas e financeiras voltadas a tornar efetivos esses direitos fundamentais.15

14 PSOL pede intervenção do Supremo no sistema carcerário. Consultor Jurídico, publicado e disponível desde 28 de maio de 2015.

15 Como bem explicitado pelo jurista argentino Horacio Corti (Derechos fundamentales y pres­ supuesto público: uma renovada relación em el marco del neoconstitucionalismo periférico. In: CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando F. Orçamentos públicos e direito financeiro. São

 

 

Seria melhor que Constituição estivesse sendo cumprida, sem necessidade de recorrer ao Poder Judiciário para que se façam valer e ver respeitados os direitos e as garantias fundamentais nela previstos. No entanto, ante a inércia estatal, que nesse caso vem de longa data e se mostra evidente, com graves consequências so­ ciais, é um caminho que se mostra plausível e viável e pode colaborar em muito para que se avance em direção à solução desses graves problemas, como já se tem observado nas áreas da saúde e da educação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Paulo: RT, 2011, especialmente p. 170­174). Veja­se também a petição inicial da citada ADPF 347.

 

 

RECuRSOS SãO FuNDAMENTAIS PARA gARANTIR O DIREITO

DAS PESSOAS COM DEFICIêNCIA

 

Coluna publicada em 12.1.2016: <https://www.conjur.com.br/2016-jan-12/ contas-vista-recursos-sao-fundamentais-direito-pessoas-deficiencia>

 

 

 

 

 

Em 3 de janeiro de 2016 entrou em vigor a Lei 13.146, que instituiu o “Esta­ tuto da Pessoa com Deficiência”,1 e trouxe importantes inovações voltadas a asse­ gurar os direitos dessas pessoas que merecem especial atenção, e no mais das vezes ficam esquecidas, só delas se lembrando aqueles de alguma forma são afetados por alguma restrição, ainda que temporariamente.

Se no dia a dia enfrentamos dificuldades de diversas naturezas para as mais simples tarefas, como se vestir, alimentar, transportar, trabalhar e etc., basta uma lesão, fraturando uma perna ou um braço, para vermos estas dificuldades se torna­ rem um transtorno por vezes até intransponível. E pessoas com deficiências perma­ nentes enfrentam­nas cotidianamente, exigindo uma superação que poucos enxer­ gam e valorizam.

Nada mais justo que o Estado dê atenção a essa situação, e atue para mitigar todos esses obstáculos, proporcionando a todos mais conforto e igualdade de opor­ tunidades, e permitindo que possam se integrar perfeitamente à vida social e serem tão ou mais produtivos que os demais em seu trabalho. Decorrência natural do princípio da igualdade, como proteção da cidadania e da dignidade da pessoa hu­ mana, eliminando as desigualdades sociais das pessoas com deficiência, uma dis­ criminação permitida ante a necessidade de desigualar em busca dessa igualdade.2

1     Também denominada “Lei da Inclusão”, publicada em 6 de julho de 2015, com 180 dias de

vacatio legis.

2   Nesse sentido, JUNQUEIRA, Denise. A responsabilidade do Poder Judiciário frente à política de inserção do deficiente no mercado de trabalho: o direito constitucional como pano de fundo para a implementação dos direitos sociais. Revista de Direito Brasileira – RDB, ano 4, vol. 7, jan.­abr. 2014, p. 105.

 

 

Isto exige, no mais das vezes, a implementação de políticas públicas que, para se tornarem efetivas, dependem de recursos, tornando o aspecto financeiro, como ocorre na maior parte das vezes, um dos mais – senão o mais – importante, e que costuma ser negligenciado, comprometendo os direitos que a nova lei pretende as­ segurar. E justifica chamar a atenção para este aspecto, que é o que se pretende fazer neste espaço.

Como muitas outras, as políticas públicas voltadas a assegurar o efetivo exer­ cício dos direitos às pessoas com deficiência, e que dependem de ações governa­ mentais que importam em gastos públicos, são bastante complexas, e requerem uma elaboração e execução bem estruturada e coordenada pelo poder público, a fim de que produzam bons resultados sem desperdício de recursos.

A Constituição estabelece ser “competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência” (art. 23, II), tornando todos os entes federados responsáveis, devendo fazer valer nosso federalismo co­ operativo, com ações conjuntas e coordenadas voltadas a atingir os objetivos que são comuns.

Às pessoas com deficiência deve­se assegurar o “direito à inclusão social”, cujo conteúdo compreende uma gama de outros direitos, entre os quais o direito à saú­ de, ao trabalho, ao transporte, à vida familiar, à educação, à acessibilidade e à igualdade.3 Vários dos quais, como se pode à primeira vista constatar, dependem de prestações positivas do Estado para que se concretizem.

Observando o Estatuto já mencionado, vê­se haver capítulos destinados a cada um dos aspectos em que se desdobram os vários direitos da pessoa com defi­ ciência, a saber: vida (capítulo 1, arts. 10 a 13), habilitação e reabilitação (arts. 14 a 17), saúde (arts. 18 a 26), educação (arts. 27 a 30), moradia (arts. 31 a 33), tra­

balho (arts. 34 a 38), assistência social (arts. 39 e 40), previdência social (art. 41), cultura, esporte, turismo e lazer (arts. 42 a 45) e transporte e mobilidade (arts. 46 a 52).

Fica claro que os direitos das pessoas com deficiência abrangem várias áreas de atuação do setor público, desde a assistência e previdência social, que lhes assegu­ ram benefícios financeiros, passando por educação, saúde, segurança, transporte e tantos outros, sem esquecer da infraestrutura, que deve sempre se adaptar para atender suas condições particulares.

 

 

3      Nesse sentido, ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas com defi- ciência. 4. ed. Brasília: Ministério da Justiça, 2011. p. 49 e seguintes.

 

 

O Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Plano Viver Sem Limite, instituído pelo Decreto federal 7612, de 2011, já à época evidenciava com clareza que esses direitos serão assegurados com a colaboração de todos os entes federados (arts. 1º, parágrafo único, 9º, 10 e 11), abrangendo várias áreas e órgãos governamentais (arts. 4º, 6º e 12).

O que permite constatar não serem poucos os recursos indispensáveis para que os direitos sejam efetivamente implantados, e que precisam de uma gestão cooperativa e compartilhada entre entes federados, órgãos e instituições, públicas e privadas.

No âmbito da assistência social, destaca­se a garantia de um salário mínimo, benefício de prestação continuada previsto no art. 20 da LOAS.4 O novo estatuto prevê também o auxílio­inclusão, destinado às pessoas com deficiência moderada ou grave (Estatuto da Pessoa com Deficiência – EPD, art. 94).

É amplo o leque no que tange ao direito à saúde, sendo­lhes assegurada aten­ ção integral pelo SUS, extensivo às instituições privadas que dele participem de forma complementar ou recebam recursos públicos (EPD, art. 18). O Estatuto da Criança e Adolescente – ECA (Lei 8.069, de 1990), em seu art. 11, §§ 1º e 2º, também é expresso ao garantir atendimento especializado pelo SUS à criança e adolescente portador de deficiência, incumbindo ao poder público fornecer­lhes gratuitamente medicamentos, próteses e outros recursos que forem necessários ao tratamento, habilitação ou reabilitação.

No aspecto educacional, além dos direitos que contemplam todos os cidadãos, incumbe ao poder público implementar sistema educacional inclusivo, garantindo­

­lhes condições de acessibilidade, atendimento educacional especializado5 e oferta de educação bilíngue, tendo Libras (Língua Brasileira de Sinais) como primeira língua (EPD, arts. 27 e 28).

A Constituição é expressa ao consagrar vários desses direitos, consoante dis­ põe o art. 227, § 1º, II, ao estabelecer que o Estado deve promover “a criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adoles­ cente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a elimi­ nação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação”.

4      Lei Orgânica da Assistência Social – Lei 8.742/1993.

5      Como determina o art. 208, III, da Constituição.

 

 

A infraestrutura merece especial atenção, especialmente pela necessidade de que atenda à acessibilidade e mobilidade das pessoas com deficiência, e não foi es­ quecida pela Constituição, que no art. 227, § 2º, previu lei para dispor sobre nor­ mas de construção e adaptação de logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência (arts. 227, § 2º, e 244).

As diretrizes para o desenvolvimento urbano, incluindo habitação, saneamen­ to básico, transporte e mobilidade urbana, devem contemplar regras de acessibili­ dade aos locais de uso público, por meio de programas em regime de cooperação federativa [Lei 10.257, de 2001 (Estatuto da Cidade), art. 3º, III e IV, com redação dada pelo EPD, art. 113], estando várias delas expressas e detalhadas na Lei 10.098, de 2000, que estabelece as normas gerais e critérios para a promoção de acessibili­ dade às pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.

Instrumentos financeiros como os benefícios fiscais são também de grande utilidade, como as isenções de vários tributos para os portadores de deficiência, destacando­se os que incidem sobre os veículos a eles destinados.

Nota­se que as políticas públicas voltadas à proteção das pessoas com deficiên­ cia mostram­se bem mais complexas do que pode parecer à primeira vista, especial­ mente por envolver todos os entes da Federação e, mais do que isso, vários setores da administração pública, o que exige uma cooperação não somente no âmbito federativo, mas também e principalmente de setores diversos do poder público, sem contar com a necessária colaboração entre os poderes, pois, como se pode constatar, as medidas que importam em ações efetivas voltadas à proteção das pes­ soas com deficiência são das mais variadas naturezas, envolvendo áreas tradicional­ mente existentes nas diversas administrações públicas, como saúde, educação, in­ fraestrutura etc.

A alocação de recursos para as políticas públicas voltadas às pessoas com defi­ ciência reflete essa complexidade que atinge não somente o atendimento desta de­ manda, mas também muitas outras, sendo relevante mostrar as dificuldades en­ contradas para que se destinem recursos públicos para fazer valer os direitos, que, como se vê, têm custos.

Os direitos de pessoas com deficiência foram contemplados no Plano Pluria­ nual (PPA) 2012­2015 da administração pública federal, programa 2063, tendo sido destinado valor ínfimo, menos de 80 mil reais para o período de quatro anos, verdadeiramente simbólico (R$ 79.011). O valor aumentou significativamente no projeto de PPA 2016­2019, que prevê o montante de R$ 1.514.434 para o mesmo programa, que foi mantido (2063 – Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas

 

 

com Deficiência), e desdobra­se em dois objetivos (0442 – promover a efetivação dos direitos das pessoas com deficiência e sua igualdade de oportunidades, por meio do fomento a sua autonomia, independência e segurança; e 0736 – promover a acessibilidade e a equiparação de oportunidades para pessoas com deficiência em todas as áreas da vida em sociedade), cada um com as respectivas metas, iniciativas e órgãos responsáveis.

Vê­se, pela identificação dos vários órgãos responsáveis, a necessidade de coo­ peração entre os diversos setores da administração, como já ressaltado. Embora as principais ações governamentais tenham como órgão responsável a Secretaria de Direitos Humanos,6 também encontramos o Ministério da Educação, o Ministério do Trabalho e Emprego, o Ministério da Cultura, o Ministério das Cidades e o Ministério do Turismo. E isso apenas neste programa, que é diretamente ligado a atender os direitos das pessoas com deficiência, mas não o único, já que muitos desses direitos são, ainda que indiretamente, atendidos em outros programas. Os benefícios assistenciais para pessoas com deficiência, por exemplo, são contemplados em dotações do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; os bene­ fícios previdenciários, no Ministério da Previdência Social; e assim muitos outros.

Alguns entes da Federação criam órgãos próprios para atender os direitos das pessoas com deficiência, como é o caso do Estado de São Paulo, que tem a Secre­ taria de Estado dos Direitos das Pessoas com Deficiência, cuja dotação prevista para 2016 é da ordem de 70 milhões de reais.7 Mesmo assim, não é o único órgão no Estado que cuida do assunto, que tem natureza claramente intersetorial. É o caso, por exemplo, da Delegacia de Polícia das Pessoas com Deficiência, que inte­ gra a Secretaria de Segurança Pública, havendo, portanto, recursos alocados em outros órgãos. Há ainda programas orçamentários em outras unidades, como a ação “Esporte e lazer para pessoas com deficiência”, da Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude,8 a ação “Apoio à pessoa com deficiência”, da Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho,9 além de outras. No Município de São Paulo, há a Secretaria

 

6   Que é diretamente vinculado à Presidência da República. E, integrando a Secretaria de Direi­ tos Humanos, está a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiên­ cia, que cuida das políticas públicas específicas do setor.

7 Órgão 47000, Orçamento para 2016, Lei estadual 16.083, de 28 de dezembro de 2015, dota­ ção de R$ 67.682.512,00.

8 Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude (Órgão 41000), Programa São Paulo Mais Esporte e Lazer (4109), ação Esporte e lazer para pessoas com deficiência (27.812.4109.5117).

9 Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho (Órgão 23000), Programa Oportunidades para inserção no mercado de trabalho (2309), ação Apoio à Pessoa com Deficiência (11.331.2309.6108).

 

 

Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida. Outros entes da Federação também contemplam órgãos específicos, como o Município do Rio de Janeiro (Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência – SMPD).

É interessante notar como o poder público vem tratando essa questão sob o ponto de vista administrativo e financeiro, o que permite analisar se está sendo adequado para atender às políticas públicas para esta finalidade, e eventualmente aperfeiçoar­se.

Leis não faltam para tornar claros os direitos das pessoas com deficiência, e o novo Estatuto vem em boa hora para sistematizá­los e reforçá­los, e não deixar dúvidas quanto à importância e necessidade de que sejam respeitados e – o que é fundamental – efetivamente implantados pelo poder público.

O importante é ficar atento. Sem recursos, dificilmente boa parte dos direitos das pessoas com deficiência se tornará realidade. A lei foi publicada, entrou em vigor, e sua aplicação precisa ser eficiente.

 

 

RELAçãO DAS MuLhERES COM O DINhEIRO PRECISA SER

DESMITIFICADA

 

Coluna publicada em 7.3.2017: <https://www.conjur.com.br/2017-mar-07/ contas-vista-relacao-mulheres-dinheiro-desmistificada>

 

 

 

 

 

Estão enganados aqueles que pensam que esta coluna tratará de roupas, sapa­ tos, cosméticos e idas a shopping centers. Uma falsa visão sobre a relação das mu­ lheres com o dinheiro que precisa ser desmitificada. Nosso dinheiro – o dinheiro público –, como se poderá constatar, é muito bem aplicado se gerenciado pelas mulheres e se a elas for destinado.

Amanhã, dia 8 de março, se comemora o Dia Internacional da Mulher. Ado­ tado pela ONU em 1977, foi uma data conquistada após mais de um século de lutas pela plena igualdade e de direitos que eram negados a elas.

O Estado brasileiro não fica alheio às importantes questões que envolvem as lutas por esses direitos que ainda não foram plenamente alcançados, e que ainda se fazem necessárias não só aqui como em muitos países do mundo.

Isso se pode observar pela existência de órgãos, políticas públicas e seus refle­ xos na atividade financeira do Estado brasileiro, materializada em programas orça­ mentários específicos e em recursos dispersos em dotações diversas, evidenciando a especial atenção que elas merecidamente recebem e que o Direito Financeiro deve lhes dispensar.

É preciso enfatizar a importância de políticas públicas voltadas às mulheres. Talvez poucos saibam, mas já há algum tempo se evidencia que a pobreza não é um fenômeno independente do gênero. Diversos estudos e documentos internacionais mostram que as mulheres são expressiva maioria entre as populações pobres do planeta. Em 1995, o Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvol­ vimento apontava que 70% dos pobres do mundo eram mulheres, que representa­

 

 

vam também dois terços da população analfabeta.1 Passados mais de vinte anos, determinados grupos são mais afetados do que outros pelo multidimensional fenô- meno da pobreza: nos países em desenvolvimento, os índices são maiores entre mães solteiras e mulheres idosas que vivem sozinhas, em comparação com homens de mesmas características.2 Em artigo seminal sobre o tema, a socióloga norte-

-americana Diane Pearce usou, em 1978, a expressão “feminização da pobreza” para caracterizar a expressividade da pauperização feminina naquele momento, a despeito de sua crescente participação na força de trabalho.3 Apesar das inúmeras discussões que o assunto tem levantado desde então entre os especialistas, diversas pesquisas corroboram resultados que indicam a propensão à pobreza de domicílios chefiados por mulheres nos países em desenvolvimento.4

As definições são variadas, e os debates a respeito da ocorrência do fenômeno com estas características no Brasil são muitos, o que não impede a conclusão de que as políticas públicas não devem ser neutras com relação à questão de gênero, pois “[a] existência de uma mesma proporção de homens e mulheres na pobreza não significa que ambos os grupos tenham as mesmas necessidades, que experimentem a pobreza da mesma maneira ou que tenham de seguir os mesmos caminhos para superar essa condição”.5

Segundo a ONU, a taxa de desemprego das mulheres é cerca de duas vezes a dos homens, e, na comparação de homens brancos com mulheres afrodescenden- tes, o percentual de 5,3% aumenta para 12,5%. A maioria das famílias brasileiras é chefiada por mulheres, que também se dedicam às tarefas domésticas. A violência contra as mulheres (feminicídio e estupros) dobrou entre 1980 e 2011, colocando o Brasil na 7a posição dentre os países mais violentos. No Brasil uma mulher é assas- sinada a cada duas horas, na maioria dos casos por homens com os quais têm rela- ções. O número de estupros foi superior a 50.000 em 2012.6

1      HAQ, Mahbul ul (Principal coordinator). Human Develop Report 1995. New York: Oxford University Press, 1995, p. iii.

2      The World’s Women 2015 – Trends and Statistics, United Nations Statistics Div., ch. 8 <https:// unstats.un.org/unsd/gender/downloads/WorldsWomen2015_chapter8_t.pdf>, p. 179.

3      PEARCE, D. The feminization of poverty: women, work and welfare. The Urban and Social Change Review, vol. 11, n. 1, 1978, p. 28.

4 Como pode ser verificado no detalhado estudo de COSTA, J. S.; PINHEIRO, L.; MEDEI- ROS, M.; QUEIROZ, C. A face feminina da pobreza: sobrerrepresentação e feminização da pobreza no Brasil. Brasília: IPEA, 2005.

5    A face feminina…, p. 36.

6   Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/brasil/visao-geral/>. Acesso em: 4 de março de 2017.

 

 

Há que se enfatizar também a complexidade para que seja possível criar e implementar políticas públicas voltadas às mulheres, uma vez que, assim como em outras áreas de atuação do Estado, não são específicas de uma esfera de governo, nem de um único setor da administração pública. As políticas que envolvem as mulheres são múltiplas e de variadas naturezas, tornando-as interfederativas, mul- tissetoriais e transversais, envolvendo no mais das vezes uma complexa relação en- tre órgãos, poderes, instituições e entes da federação.

Estas políticas públicas exigem a articulação de diferentes órgãos governa- mentais, como aqueles responsáveis pelos programas de educação e de saúde.

Por isso, o planejamento é fundamental, e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM),7 no âmbito federal, instituiu em 2004 o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres,8 com 199 ações, distribuídas em 26 prioridades,9 traçadas a partir de quatro linhas de atuação: autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; educação inclusiva e não sexista; saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; e enfrentamento à violência contra as mulheres. Renovado e aperfeiçoado posteriormente em novas edições, o PNPM avança muito no enfrentamento de problemas relacionados às questões de gênero, mas peca, tal como outros planos governamentais, pela sua pouca institucionalização, sequer sendo materializado em lei, o que fragiliza sua implementação e execução, especial- mente por abranger políticas públicas interfederativas.

Daí por que convém analisar os programas orçamentários sob condução da Secretaria de Políticas para as Mulheres, previstos no sistema formal de planeja- mento orçamentário, incluídos nos planos plurianuais e nas leis orçamentárias, on- de se constatam programas por ela gerenciados, como, no âmbito federal, o Progra- ma de Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência (Programa 2016, PPA 2016-2019), que congrega os objetivos de aplicação de recursos públicos para as políticas públicas voltadas às mulheres. É aí que se situam as metas de promoção de autonomia econômica, social, sexual e de garantia de direitos das mulheres (Obje- tivo 0931), visando, por exemplo, a capacitação de mulheres urbanas, rurais, do campo, da floresta e das águas para fortalecer sua participação no mundo do

7    Que é relativamente recente, tendo sido criada em janeiro de 2003.

8 Inspirado no Programa ONU Mulheres, do qual participam vários países, inclusive o Brasil (ONU Mujeres – Informe Anual 2015-2016. New York: ONU, 2016. Disponível em: <http:// www2.unwomen.org/-/media/annual%20report/attachments/sections/library/un-women-

-annual-report-2015-2016-es.pdf?vs=3039>).

9 I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2004.

 

 

trabalho e o fomento à participação em empreendimentos econômicos solidários. A intersecção entre orçamento e políticas voltadas para as mulheres se torna mais evidente quando consideradas as iniciativas deste objetivo, as quais, se bem execu- tadas, seriam poderoso instrumento de ação governamental para a melhoria de sua qualidade de vida e para a igualdade de renda e de bem-estar. Vejam-se as iniciativas de “implementação de ações para a promoção de autonomia econômica voltadas para as mulheres em situação de violência e para a garantia de direitos” (Iniciativa 05CM), as “ações de estímulo ao empreendedorismo das mulheres e de fortaleci- mento da organização e inclusão produtiva, em especial do segmento de mulheres catadoras e quilombolas” (Iniciativa 05CN) e “as ações de apoio à aprovação e implementação do Projeto de Lei 4.857/2009, que trata da igualdade entre homens e mulheres no mundo do trabalho público e privado” (Iniciativa 05CP).

Além de se voltarem à integração econômica e à geração de renda, muitos objetivos visam ainda à participação social, à cidadania e à igualdade de um modo mais amplo. É o que se nota nos programas orçamentários que têm por objetivo promover a “a transversalidade intra e intergovernamental das políticas para as mulheres e de igualdade de gênero, observando as diretrizes do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres” (Objetivo 0935); “fortalecer o processo de participação política, democrática e igualitária das mulheres, nas instâncias de poder e decisão, considerando sua diversidade e especificidades” (Objetivo 0934); e, finalmente, “ampliar a política nacional de enfrentamento de todas as formas de violência con- tra as mulheres, considerando sua diversidade e especificidades” (Objetivo 0998).

A formalização de políticas públicas nos planos e leis orçamentárias, no entan- to, não é suficiente para garantir que sejam executadas, ou se executadas, que resul- tem em benefícios para as mulheres. É preciso que o controle interno, o controle externo e o controle social exerçam seu importante papel fiscalizatório, exigindo o cumprimento do planejamento, analisando os resultados e a eficiência da política planejada, o que nem sempre é preocupação do gestor público. Reavaliar as políti- cas públicas é uma obrigação, assim como implementá-las de forma mais eficiente.

E os gestores públicos não têm sido eficientes na implementação dessas políti- cas públicas, e, em razão dessa deficiência no planejamento e na execução das po- líticas, muito dinheiro é gasto em ações que acabam não resolvendo os problemas. Políticas mal planejadas geram gastos mal planejados, e nem todas chegam a ser implementadas, porque são contingenciadas, e na prática o que se verifica no Brasil é que a violência contra a mulher continua e aumenta a cada ano, a discriminação no ambiente de trabalho se mantém, persiste a falta de capacitação, de educação e de participação mais expressiva na política.

 

 

A educação pública de qualidade, preferencialmente integral, inclusiva e igua- litária, é a principal delas, porque formará cidadãos mais preparados, e as mulheres terão melhores condições de se tornar agentes, acessar empregos permanentes e qualificados, onde serão tratadas sem discriminação.10 Da mesma forma, uma edu- cação melhor e inclusiva propiciará às mulheres melhores condições e iniciativa para participar mais da política, seja nas ações comunitárias, seja no poder legisla- tivo ou no executivo, onde serão gestoras do dinheiro público, função que já estão desempenhando com eficiência na sua vida privada, apesar de tantos percalços.

A Finlândia é exemplo de eficiência na política pública de educação, o que resulta na proteção dos direitos da mulher também.11 Foi o primeiro país da Euro- pa a conceder às mulheres, em 1906, o sufrágio universal. As finlandesas foram também as primeiras no mundo a obter a elegibilidade nas eleições parlamentares, com plenos poderes políticos numa sociedade ainda patriarcal.12 Os países nórdicos figuram entre os três melhores índices em igualdade de gêneros. A lista foi divul- gada pelo Fórum Mundial de Economia em 2015. A Islândia está em primeiro lugar, seguido da Finlândia e Noruega (empatadas) e depois a Suécia (a Dinamarca ocupa a 14a posição). Nesse ranking o Brasil está na 85a posição.13

A situação brasileira está tão distante dos países nórdicos porque, ao contrário de lá, por aqui temos um país continental com acentuada desigualdade social, uma violência generalizada, uma das piores políticas de educação do mundo, e neste ano 2017, mais de 12 milhões de desempregados, muitos dos quais mulheres.

E as mulheres são reconhecidamente gestoras boas e responsáveis. Quando as mulheres conseguem ocupar cargos ou funções antes reservadas somente aos ho- mens, elas têm um excelente aproveitamento e são eficientes tanto nos negócios como na economia14, e também na área pública.

Veja como pouco aparecem em escândalos de corrupção, má gestão e outros problemas dessa natureza; quase não estão presentes em casos rumorosos como a

10     <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-03/mulheres-precisam-ocupar-diferen- tes-areas-de-trabalho>

11  <http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2016/10/24/1144860/conheca-4-

-paises-melhores-sistemas-educacionais.html#>              e     <https://finland.fi/pt/vida-amp-

-sociedade/o-poder-da-simplicidade-do-sistema-educacional-finlandes/>

12     <http://www.finlandia.org.br/public/default.aspx?contentid=109006>

13     <http://www.brasileiraspelomundo.com/finlandia-igualdade-de-generos-na-socieda- de-061628146>

14     SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 260-261.

 

 

“lava-jato”, “mensalão” e outros. A própria legislação já reconheceu esta qualidade. Na Lei 11.977, que dispõe sobre o programa “Minha Casa Minha Vida – PMCMV”, em seu art. 35, estabeleceu que os “contratos e registros efetivados no âmbito do PMCMV serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher”, e nos casos de separação, será registrado em nome da mulher.15

Instrumentos financeiros muito úteis, os fundos permitem a alocação dire- cionada e mais segura de recursos que viabilizam a implementação e execução das políticas públicas. É importante nesse sentido estar atento para aqueles que são voltados às questões de gênero, como é o caso do Projeto de Lei 7371/2014, que cria o Fundo Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, até hoje um grave problema no setor, e que necessita ser combatido, para o que fundos como esse têm especial relevância, sendo a aprovação desse projeto de lei uma medida importante para solucioná-lo. Há também destinação específica de recur- sos de fundos às políticas para as mulheres, como a prevista no FUNPEN (Fundo Penitenciário Nacional), que prevê recursos para manutenção de casas de abrigo destinadas a acolher vítimas de violência doméstica16 e para a implantação e ma- nutenção de berçário, creche e seção destinada à gestante e à parturiente nos esta- belecimentos penais.17

Veja-se que há muito o que fazer pelas mulheres, e o Direito Financeiro tem um papel importante a desempenhar.

Que amanhã as mulheres comemorem seu dia, e que este dia sirva de reflexão para os nossos gestores públicos darem a elas a atenção que merecem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

15 Lei 11.977, art. 35-A. Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido no âmbito do PMCMV, na constância do casamen- to ou da união estável, com subvenções oriundas de recursos do orçamento geral da União, do FAR e do FDS, será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuados os casos que envolvam recursos do FGTS. (Incluído pela Lei 12.693, de 2012).

16   Lei Complementar 79/1994, art. 3º, XIV, com redação dada pela Lei Complementar 119/2005.

17   Lei Complementar 79/1994, art. 3º, XV, com redação dada pela Lei Complementar 153/2015.

 

 

uNIvERSIDADES PÚBLICAS AgONIzAM PELA FALTA DE RECuRSOS

 

 

Coluna publicada em 19.9.2017: <https://www.conjur.com.br/2017-set-19/ contas-vista-universidades-publicas-agonizam-falta-recursos>

 

 

 

 

 

A crise financeira que assola o país está se assemelhando a um verdadeiro “furacão” que não para de produzir vítimas. E mostra como a má gestão pode pro- duzir resultados muito piores do que desastres naturais de grandes proporções. Enquanto “Irma” destelhou casas, causou danos materiais e até mortes, por aqui alguns anos de administrações que foram um verdadeiro desastre, e nada natural, provocaram a destruição de nossas universidades públicas que levaram décadas para serem construídas.

Nas últimas semanas chamou especial atenção o caso da Universidade Esta- dual do Rio de Janeiro – UERJ, que está “agonizante”, asfixiada por falta de recur- sos, tendo recebido até uma “extrema unção” do governo federal, que insinuou deva ser extinta.1

Mas não é a única. A Universidade de São Paulo – USP já teve o auge de sua crise há pouco tempo, e ainda sofre com o orçamento apertado. As universidades federais também estão em colapso. A Universidade Federal de Sergipe – UFS amea- çou suspender as atividades, a Universidade de Brasília – UnB anunciou um déficit acumulado de R$ 10 milhões de reais no ano e o desligamento de funcionários terceirizados, a Universidade Federal de Santa Maria – UFSM demitiu funcioná- rios e suspendeu obras em andamento e a Universidade Federal do Rio de Janeiro

1 O Parecer Conjunto 1/2017/CORFI/COREM/COPEM/COAFI/COINT/SURIN/STN/ MF-DF propõe a extinção de mais empresas públicas e revisão do papel do Estado, e entre as medidas de ajuste sugere “a revisão da oferta de ensino superior” (Parecer do Ministério da Fazenda sugere o fim da UERJ. Jornal do Brasil, 5 de setembro de 2017; Tesouro sugere “revi- são da oferta” de universidades públicas do Rio. Portal UOL, 5 de setembro de 2017).

 

 

– UFRJ ameaça suspender os pagamentos das bolsas de iniciação científica.2 Um cenário desolador, como registra Sabina Righetti em percuciente análise do tema.3 Em resumo, a crise financeira instalou o caos no ensino público superior. E uma crise que não escolhe ente federado, haja vista que abrange várias universidades federais e também estaduais.

A questão do financiamento das universidades é bastante interessante sob o ponto de vista do Direito Financeiro, e há várias questões que merecem abordagem e melhor reflexão.

Nosso federalismo cooperativo fica bem evidente no âmbito da educação, em que a Constituição distribui as receitas e encargos entre os entes federados, estabe- lecendo um regime de cooperação para a prestação desse serviço público funda- mental para o desenvolvimento do país. E onde se vê uma distribuição que procura respeitar critérios de eficiência alocativa, deixando a cada ente federado a responsa- bilidade para atender a necessidade em matéria educacional que melhor se ajusta às suas características. É o que justifica a atribuição prioritária aos municípios da res- ponsabilidade pelo ensino fundamental e educação infantil (CF, art. 211, b), onde a mobilidade do usuário é baixa. Já no ensino superior, em que o usuário tem faci- lidade de locomoção, os níveis mais próximos do governo central mostram-se mais adequados sob o ponto de vista federativo, evitando as distorções do “efeito-caro- na” (free-rider effect).4

Daí por que a maior parte das universidades públicas integra a administração pública federal, e apenas alguns Estados financiam o ensino público superior, man- tendo universidades próprias.

Nossa Constituição dá especial destaque ao ensino superior e às universida- des, assegurando-lhes “autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial” (art. 207, caput). A autonomia financeira de órgãos que integram o ente federado, à semelhança dos poderes, ainda que fixada constitucio- nalmente, é sempre relativa, até porque a capacidade arrecadatória de que dispõem

 

 

2   Acabou o dinheiro: universidades públicas estão perto do colapso, por Gabriel Castro, Gazeta do Povo, 8 de agosto de 2017.

3 RIGHETTI, Sabine. Crise nas universidades, Ciência e Cultura, vol. 69, n. 2, São Paulo, abr./jun. 2017.

4 Falei sobre o tema em O orçamento público e o financiamento da educação no Brasil. In: HORVATH, Estevão; CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando F. (Org.). Direito Financei- ro, Econômico e Tributário. Homenagem a Regis Fernandes de Oliveira. São Paulo: Quartier Latin, 2014. p. 481-496.

 

Universidades públicas agonizam pela falta de recursos          ••

 

é muito pequena, insuficiente para fazer frente às vultosas despesas nas quais incor- rem, como as relativas ao pagamento de pessoal.

Sendo assim, a regra é dependerem de dotações orçamentárias, com recursos oriundos essencialmente do sistema próprio de arrecadação do ente federado, e que se soma a outras fontes de naturezas diversas, como as arrecadações próprias, trans- ferências, contratos, doações e outros. E são valores expressivos.

No âmbito federal, há inclusive um volume do anexo da lei orçamentária de 2017 (vol. V) especificamente destinado a detalhar as despesas do Ministério da Educação, que congrega as instituições de ensino superior federais. Prevê para este exercício de 2017 um montante superior a 100 bilhões de reais (R$

107.517.408.946,00), distribuído entre dezenas de universidades, institutos, fun- dações e hospitais.5

Nos Estados que mantêm instituições de ensino público superior, a situação não é diferente. Em São Paulo, destacam-se as três universidades públicas esta- duais: USP (Universidade de São Paulo), Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e Unesp (Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho), cujas do- tações orçamentárias para o exercício financeiro de 2017 são, respectivamente, R$ 5.052.466.860,00, R$ 2.711.717.611,00 e R$ 2.497.059.952,00, perfazendo

um total, para as três universidades, superior a 10 bilhões de reais. A UERJ foi contemplada com dotação orçamentária superior a 1 bilhão de reais para o exer- cício financeiro de 2017.6

Alguns instrumentos importantes para assegurar a autonomia financeira das universidades públicas podem ser encontrados, como nos Estados acima citados, e colaboram para torná-las mais independentes sob o ponto de vista da gestão finan- ceira, o que, como se pode constatar, parece não ter sido suficiente para evitar as crises pelas quais têm passado.

No Estado de São Paulo criou-se um compromisso político de se destinar às três universidades estaduais um porcentual (9,57%) da arrecadação do ICMS, o que se materializa juridicamente pela inserção de tal determinação nas leis de dire- trizes orçamentárias, que se renovam anualmente, criando o que André Carvalho denomina “vinculação simbólico-institucional”.7

 

 

5      Lei Orçamentária Federal de 2017 (Lei 13.414, de 10 de janeiro de 2017, vol. V).

6      R$ 1.113.007.786,00, cf. Lei Estadual-RJ n. 7574, de 17 de janeiro de 2017, vol. II, p. 370, Unidade orçamentária 4043 – Fundação Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

7      CARVALHO, André Castro. Vinculação de receitas públicas. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 43.

 

 

O Rio de Janeiro optou por dar uma garantia constitucional à UERJ, fazendo constar de sua Constituição a destinação do porcentual mínimo de 6% da receita tributária líquida.8

No entanto, apesar de todas essas garantias, vê-se que não se conseguiu evi- tar esse colapso financeiro. Disso é importante extrair algumas lições. Uma delas é de que as vinculações (entendidas em seu significado “lato sensu”, abrangendo aquelas que importam na destinação de receitas específicas a determinados gas- tos, as despesas mínimas obrigatórias e outros instrumentos do gênero) não são uma panaceia para os problemas financeiros.9 Nos casos citados em que elas es- tavam presentes, vê-se que o fato de a recessão econômica provocar a redução das receitas tributárias (hipótese do Rio de Janeiro) e do ICMS (no caso de São Paulo) fez com que houvesse uma queda nos recursos destinados às universidades públicas, e estas, sem margem para reduzir suas despesas, viram-se diante de uma situação de insustentabilidade financeira difícil de reverter. Outra lição é que as universidades padecem da falta de gestores preparados, como ressaltou José Matias-Pereira, professor de finanças públicas da UnB, que considerava esse colapso uma “tragédia anunciada”.10 Aperfeiçoamentos na gestão dos recursos públicos são cada vez mais necessários em toda a administração pública, e na área da educação a situação não é diferente.11 Em se tratando de áreas prioritárias como a educação, as vinculações são mais do que bem-vindas, e colaboram para evitar que gestores despreparados reduzam os recursos que deveriam lhe ser des- tinados, realocando-os para setores menos relevantes. Mas não podem ser mal aplicados, especialmente em épocas de crise financeira, em que os recursos ficam cada vez mais escassos, e portanto mais valiosos.

Há muitos hospitais universitários entre as unidades orçamentárias que in- tegram o ensino superior do Brasil hoje. Agora que as universidades públicas estão verdadeiramente na UTI, é hora de elas mostrarem sua utilidade, antes que nos próximos orçamentos passemos a encontrar funerárias no orçamento da educação…

 

 

8 Art. 309, § 1º: O poder público destinará anualmente à Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, dotação definida de acordo com a lei orçamentária estadual nunca inferior a 6% da receita tributária líquida, que lhe será transferida em duodécimos, mensalmente.

9 Como já foi abordado em Vinculações orçamentárias não são a panaceia dos problemas, nesta edição, p. 207-210.

10  Acabou o dinheiro: universidades públicas estão perto do colapso, texto já citado anteriormente.

11  Ver Nem só com royalties se melhora qualidade da educação, nesta edição, p. 55-58.

 

 

É PRECISO TRANSPARêNCIA

NO SISTEMA TARIFÁRIO E DE SuBSíDIO DO TRANSPORTE COLETIvO

 

 

Coluna publicada em 9.1.2018: <https://www.conjur.com.br/2018-jan-09/contas-vista- preciso-transparencia-sistema-tarifario-transporte-coletivo>

 

 

 

 

 

Nem bem começou o ano, mal foram lavados os pratos da ceia, ainda não deu tempo de desmontar a árvore de Natal nem o presépio, e já começam a chegar as contas para pagar e os aumentos das tarifas públicas. Dizem que o ano só começa depois do Carnaval, mas isso não vale para a sanha arrecadatória do Estado. Além dos impostos, como o IPTU e o IPVA, cujos “carnês” já estão debaixo da porta, anuncia-se o aumento das tarifas públicas, e o transporte coletivo sai na frente.

As passagens de ônibus e metrô em São Paulo foram para R$ 4,1 o que, em uma megalópole que faz do transporte coletivo uma necessidade da qual não se pode abrir mão, tem um peso significativo no bolso do cidadão, que faz uso, no mais das vezes, de várias conduções para ir e voltar diariamente de casa ao traba- lho. Uma tarifa que tem um viés bastante regressivo, uma vez que os mais pobres são os que, em regra, mais dependem desse serviço público nas grandes metrópoles.

É interessante notar também como as coisas mudam. Não faz muito tempo, em 2013, o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus levou milhares de pessoas às ruas, gerando protestos em todo o país.2

Após anunciado o aumento, pouco se falou no assunto, sem que a situação tenha se alterado significativamente.

 

 

1  “Tarifa de ônibus, trem e metrô será de R$ 4 em 2018”. O Estado de S.Paulo, 27 de dezembro de 2017.

2 Tema abordado em No fundo, protestos envolvem questões orçamentárias, nesta edição, p. 165- 168, e em Um ano depois, fica a pergunta: quem pagou a conta dos protestos de junho?, nesta edição, p. 173-176.

 

 

E, apesar da importância social do sistema de transporte coletivo, dado o peso que representa no bolso do cidadão mais pobre, e da despesa que representa para os cofres públicos, quando estes subsidiam o serviço, como é o caso de São Paulo, os critérios para fixação das tarifas são pouco claros e transparentes.

É preciso dar mais atenção a esse tema.

O transporte foi recentemente introduzido na Constituição como um dos direitos sociais (Constituição, art. 6º, com a redação dada pela Emenda Constitu- cional 90, de 2015), mas isso parece não ter feito grande diferença. Continuam sendo pagas tarifas que se reputam altas e sem a contrapartida de um transporte eficiente e confortável.

As formas de financiamento desse direito, especialmente nos casos de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e outras metrópoles, que envolvem vários sistemas de transporte coletivo, como ônibus, metrô, trens, vans, todos interligados entre si, e gerenciados por mais de um ente da federação, são múltiplas, complexas e de di- fícil compreensão. Mais um tema diretamente ligado ao Direito Financeiro que, mais do que qualquer outro, afeta diretamente o dia a dia de milhões de pessoas, é muito pouco abordado pelos estudiosos,3 representa um ponto obscuro das contas públicas e dá margem a toda sorte de desvios de recursos públicos.4

Nas grandes metrópoles, a questão federativa tem especial destaque, uma vez que há necessidade de cooperação entre os entes federados, dada a necessária cone- xão entre sistemas de transporte operados pelos municípios, como o transporte coletivo urbano, sistemas operados pelos estados, como trens metropolitanos e me- trôs, e até mesmo a União, responsável pelos aeroportos.

A multiplicidade de formas de organização e contratação dos serviços de transporte coletivo abre um amplo leque de opções que o Direito Administrativo nos fornece, com permissões, concessões, parcerias e outras formas de contratação.5

3 Entre as exceções merece destaque a coluna de Ingo Sarlet, Direito fundamental ao transporte traz novos desafios a velhos problemas, publicada no ConJur em 25 de setembro de 2015. De qualquer forma, o aspecto financeiro, que envolve a questão das tarifas e subsídios, estranha- mente parece não despertar o interesse de acadêmicos e pesquisadores.

4   Não são poucos os casos de corrupção, especialmente no âmbito dos municípios, que envolvem o financiamento do sistema de transporte coletivo. Só para citar o caso mais recente, veja-se o escândalo envolvendo o empresário Jacob Barata Filho, no Rio de Janeiro, o “Rei do Ônibus” (“Barata na prisão, o império dos transportes do Rio na berlinda”. El País, 4 de julho de 2017; “Justiça do Rio decreta nova prisão do empresário Jacob Barata Filho”. O Estado de S.Paulo, 16 de novembro de 2017).

5 O município de São Paulo, por exemplo, refere-se a elas expressamente no artigo 172 da sua Lei Orgânica: “Compete à Prefeitura planejar, organizar, implantar e executar, diretamente ou

 

 

Uma pluralidade de instrumentos que são usados pelos diversos municípios, não havendo uniformidade quanto a isso. Em São Paulo, a evolução das formas de contratação já demonstrou ter havido várias experiências ao longo do tempo, e a regulamentação dada pela Lei municipal 13.241, de 2001, evidencia a complexida- de da organização desse sistema.6 Isso sem contar as questões envolvendo a infraes- trutura que se faz necessária para o funcionamento adequado e eficiente do sistema de transporte coletivo, o que evidentemente, torna o financiamento do sistema ainda mais complexo.

E as dificuldades para estabelecer a melhor, mais correta, justa e eficiente for- ma de operacionalizar a organização e remuneração do sistema é evidente, com inúmeras possibilidades, desde o estabelecimento de uma política tarifária baseada no controle pelo custo, remunerando o prestador pelos custos incorridos, acresci- dos de uma remuneração como contraprestação pelos serviços; regulada por um preço máximo (price cap), que incentiva as empresas a controlar os custos; ou por meio do cálculo de uma taxa de retorno (rate-of-return), estabelecendo-se uma re- muneração adequada aos ativos empregados. Todas apresentando vantagens e des- vantagens sob vários aspectos, o que exige uma análise técnica profunda que per- mita identificar qual apresenta melhores resultados para cada situação,7 uma vez que a forma de financiamento escolhido importará em consequências para as esco- lhas que se fará em relação a quem e quanto se paga pelo serviço, bem como pela sua qualidade, eficiência e rapidez.

É relevante também destacar que o transporte coletivo vem sendo atualmente remunerado por tarifas, não obstante tenha características que permitem enqua- drar a remuneração como tendo a natureza de taxa, uma vez que se trata de um serviço público específico, divisível e que a Constituição expressamente reconhece como tendo caráter essencial.8 Nesse sentido, foi claro Estevão Horvath em texto

sob regime de concessão, permissão, ou outras formas de contratação, bem como regulamen- tar, controlar e fiscalizar o transporte público, no âmbito do Município”.

6  Já foi operado pela Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), cujo serviço lhe foi outorgado em 1946; em 1995 criou-se a SPTrans, sociedade de economia mista que faz contratações públicas e gerencia até hoje o sistema; a Lei 13.241/2001 prevê que os serviços do Sistema de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros na Cidade de São Paulo serão prestados sob os regimes público e privado (art. 1º).

7   CARVALHO, André C.; CONTANI, Eduardo. Perspectivas na prestação dos serviços públi- cos de transporte na América Latina. In: IGLESIAS, Enrique (coord.). Os desafios da América Latina no século XXI. São Paulo: EDUSP, 2015. p. 342-343.

8 Art. 30, “V – Compete aos Municípios organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte cole-

 

 

sobre o tema, reconhecendo a consequência de ficar a cobrança sujeita ao regime jurídico próprio dos tributos, entre os quais o da estrita legalidade e da anteriorida- de.9 Mas não é o que vem sendo observado, como se vê expressamente na própria Lei Orgânica do Município de São Paulo, que, em seu artigo 178, estabelece que as “tarifas dos serviços públicos de transporte são de competência exclusiva do Muni- cípio, e deverão ser fixadas pelo Executivo”,10 cabendo-lhe enviar à Câmara Muni- cipal, em até cinco dias úteis antes da entrada em vigor da tarifa, as planilhas e outros elementos que lhe servirão de base, divulgando amplamente para a popula- ção os critérios observados.11

Deixando de lado a discussão sobre a natureza jurídica do valor cobrado pelo serviço de transporte coletivo urbano, que extrapolaria o que se pretende abordar nesse texto, o fato é que os municípios têm o dever de proporcionar um transporte que atenda às necessidades da população, um direito constitucionalmente reconhe- cido, cabendo-lhe gerenciar a prestação desse serviço, mediante tarifa acessível.12

No que se refere às tarifas, não se pode esquecer a multiplicidade de formas de pagamento, que abrangem bilhetes únicos, múltiplos, integrados com outros siste- mas, cobrança por tempo, por viagem, bem como os vários benefícios existentes, como gratuidades e reduções (idosos, estudantes, pessoas com deficiência, desem- pregados). Releva destacar que as gratuidades têm forte impacto financeiro, esti- mando-se que menos da metade dos usuários (47,02%) efetivamente pagam a tarifa, e, desses, apenas cerca de 2/3 de forma integral.13 E há ainda outras formas de gra-

 

tivo, que tem caráter essencial”. A Lei Orgânica do Município de São Paulo também reconhe- ce a essencialidade do serviço: “Art. 177. Ao operador direto não será admitida a ameaça de interrupção, nem a solução de continuidade ou deficiência grave na prestação do serviço pú- blico essencial de transporte coletivo urbano” (g.n). No mesmo sentido dispõe o art. 172, pa- rágrafo único: “Lei disporá sobre a organização e a prestação dos serviços de transportes públi- cos, que têm caráter essencial”.

9      Tarifa de transporte coletivo urbano. Revista de Direito Tributário, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 65, 1993, p. 155.

10     E na Lei paulistana 13.241, de 2001, que no artigo 5º, VI, considera a tarifa um preço público.

11  Artigo 178, parágrafo único, com a redação dada pela Emenda 7/91.

12 Lei Orgânica do Município de São Paulo, artigo 7º, III: “É dever do Poder Municipal, em cooperação com a União, o Estado e com outros Municípios, assegurar a todos o exercício dos direitos individuais, coletivos, difusos e sociais estabelecidos pela Constituição da República e pela Constituição Estadual, e daqueles inerentes às condições de vida na cidade, inseridos nas competências municipais específicas, em especial no que respeita a locomoção através de transporte coletivo adequado, mediante tarifa acessível ao usuário”.

13 Ofício do Poder Executivo endereçado à Câmara Municipal justificando o reajuste da tarifa, de 1º de janeiro de 2017, Quadro 4 anexo (Ofício 001/17 SMT.GAB).

 

 

tuidade que não estão contabilizadas nos dados fornecidos pelo Poder Executivo, como bem observado no minucioso estudo de Fernando Machado, tais como me- nores de seis anos de idade, policiais militares, guardas-civis metropolitanos, cartei- ros, gestantes participantes do Programa Mãe Paulistana, oficiais de Justiça do Tra- balho e conselheiros participativos municipais,14 o que torna bastante difícil calcular o exato custo de um passageiro transportado pelo sistema.

O gigantismo do sistema de transporte coletivo por ônibus na cidade de São Paulo pode ser visto em alguns números. No início do ano passado, registrava uma frota total de mais de 14 mil veículos, que rodava mais de 84 milhões de quilôme- tros, transportando quase 240 milhões de passageiros por mês.15

Alega-se que a sustentabilidade financeira desse sistema não tem sido possível apenas com os recursos das tarifas, exigindo subsídios do setor público, com o aporte de recursos orçamentários para complementá-lo, que, em São Paulo, consta de dotação específica no orçamento municipal (“compensações tarifárias do siste- ma de ônibus”) em valores extremamente expressivos, da ordem de R$ 280 mi- lhões por mês.16

No entanto, como já se pode notar, há ainda muita obscuridade nos cálculos e valores citados, até pela complexidade de um sistema que chega a ser confuso, fazendo com que a clareza dessas informações não seja suficientemente segura para permitir que se saiba exatamente como, quem e de que forma é financiado esse sistema de transporte coletivo. Não sabemos quem exatamente está pagando essa conta, nem quanto. Saber o justo valor da tarifa e o montante do subsídio é ainda um grande mistério. Um mistério que envolve muito dinheiro público e corrupção. E afeta diariamente o bolso do cidadão mais pobre.

E, curiosamente, como bem observou Lalo de Almeida, passados mais de quatro anos, parece que a reivindicação original dos protestos de 2013 permanece órfã, não demonstra ter sido incorporada pelos partidos brasileiros, e a questão do aumento do subsídio quase desapareceu da agenda. Bem lembra que há um con- senso cada vez maior no urbanismo sobre o papel do transporte como direito-meio,

14 MACHADO, Fernando T. H. F. Tarifa zero para todos os usuários de ônibus no Município de São Paulo – um sonho possível? Anais do Congresso Nacional de Transporte da ANTP, junho de 2017.

15   Conforme ofício citado.

16 Quadro 6 anexo ao Ofício 001/17 SMT.GAB – R$ 278.399.397 mensais, correspondendo a cerca de 41% do custo total do sistema. In: Fernando Machado, Tarifa zero…, op. cit.

 

 

que permite o acesso à educação, à cultura e ao trabalho, e já está na hora de incor- porar a mobilidade urbana como um direito da cidadania.17

Para isso, é preciso ter organização e transparência no complexo sistema tari- fário e de subsídio do transporte coletivo, especialmente nas grandes metrópoles, sem o que não há como conter esse foco de desperdício de recursos públicos e de corrupção. Quem sabe assim possamos começar o ano mais tranquilamente, sem sustos nem dissabores com tantos aumentos nas contas a pagar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

17  Lalo de Almeida. Redução da tarifa não é populismo. Folha de S.Paulo, 22 de julho de 2017.

 

 

DIREITO FINANCEIRO TEM RESPONSABILIDADE NOS AvANçOS DA PROTEçÃO AO TRABALHADOR

 

 

Coluna publicada em 1.5.2018: <https://www.conjur.com.br/2018-mai-01/

contas-vista-dia-trabalho-direito-financeiro>

 

 

 

 

 

O 1º de maio é data mundialmente consagrada para comemorar o Dia do Trabalho.1 Sua origem remonta à grande manifestação de trabalhadores seguida de greve geral ocorrida em Chicago em 1886, pela qual reivindicavam redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias, e resultou em violência e mortes. Desde então vários movimentos sociais utilizaram a data de 1º de maio para lutar pelos direitos dos trabalhadores. No Brasil, o Decreto 4.859, de 1924, assinado pelo pre- sidente Arthur Bernardes, declarou feriado nacional o dia 1º de maio, consagran- do-o à “confraternidade universal das classes operarias e á comemoração dos mar- tyres do trabalho”.

O trabalho é um dos direitos sociais assegurados pelo artigo 6º da Constituição, que também garante direitos diretamente a ele relacionados, como a previdência social.

O artigo 6º é pródigo em medidas de proteção e garantia do direito ao traba- lho, e no Brasil há instrumentos próprios para dar maior ênfase à proteção desses direitos, como é o caso de manter um ramo do Poder Judiciário a ele especifica- mente destinado.

Os direitos têm custos, “não nascem em árvores”,2 sendo desnecessário esten- der-se em argumentações mais densas para chegar a essa conclusão, e nossa Cons- tituição atribuiu responsabilidade ao Estado de provê-los.

1 Ou, como talvez fosse mais correto, Dia do Trabalhador, para se enfatizar mais o sujeito do que o objeto da relação.

2 Como expressam com muita propriedade as obras The cost of rights, de Stephen Holmes e Cass Sustein, e Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores, de Flávio Galdino.

 

 

Embora seja competência privativa da União legislar sobre trabalho (art. 22, I), todos os entes federados devem colaborar para promover as medidas voltadas a tornar o direito ao trabalho efetivo e respeitado.

Nossa ordem econômica tem como um de seus fundamentos a valorização do trabalho (art. 170, caput), o mesmo ocorrendo com a ordem social (art. 193).

Vê-se, pois, haver por parte de nosso ordenamento jurídico uma especial aten- ção e valorização do direito ao trabalho, o que traz como consequência uma obri- gação do nosso Estado em atuar ativamente para não só proteger, mas fomentar e garantir seu pleno exercício.

E isso importa em ações efetivas nessa direção, que não podem se resumir a produzir legislação protetiva do trabalho.

A organização da administração pública brasileira reflete essa orientação. Na administração pública federal há um Ministério do Trabalho, responsável por mui- tos programas governamentais.3 Muitos Estados da Federação também consti- tuem órgãos específicos para tratar do tema. No Estado de São Paulo, por exemplo, como ocorre também em outros entes da federação, pode-se encontrar a Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho,4 que gerenciam vários programas do setor, como o “Sistema público e emprego e renda” (programa 2302, com dotação orça- mentária de 68 milhões de reais) e “Relações do trabalho e empreendedorismo” (programa 2308, com dotação orçamentária de 12 milhões de reais).

E os custos dessa necessária proteção do direito ao trabalho não são peque- nos. O Ministério do Trabalho tem dotação no orçamento de 20185 de R$ 90.528.747.064,00. Isso representa apenas uma parcela do que o governo gasta nessa área, sendo sempre bom lembrar a multissetorialidade que lhe é inerente, abrangendo outros setores da administração pública, como educação, saúde, meio ambiente, sem contar a previdência social – esta última representando uma das maiores “fatias” do orçamento federal.6 Ou mesmo a Justiça do Trabalho, a maior da administração pública federal, só perdendo em dimensão para a Justiça dos Estados, se somados todos os tribunais estaduais do país.

 

3     <http://trabalho.gov.br/>.

4 <http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/orgaos-governamentais/secretaria-do-emprego-e-re- lacoes-do-trabalho/>. A Secretaria de Emprego e Relações do Trabalho do Estado de São Paulo tem dotação prevista no orçamento de 2018 de R$ 121 milhões (Lei estadual 1.646, de 2018).

5   Lei federal 13.587, de 2018.

6    E que não trataremos neste texto, dada a amplitude do tema, tratado há um ano, em 2 de maio de 2017, com o título: É preciso ter cautela e transparência para debater a reforma da previdência, nesta edição, p. 269-274.

 

Direito financeiro tem responsabilidade nos avanços da proteção ao trabalhador    ••

 

E mais: Estados e Municípios também despendem significativas quantias para assegurar o pleno exercício do direito ao trabalho, o que demonstra a impor- tância e a atenção, também sob o ponto de vista financeiro, que o trabalho repre- senta na atuação da administração pública.

O gasto público voltado a promover e proteger o direito ao trabalho é mais um dos muitos temas pouco estudados e abordados, razão pela qual esse Dia do Trabalho mostra-se um momento oportuno para trazer algumas informações sobre o assunto.

No âmbito orçamentário, o principal programa é o de número 2071, “Promo- ção do Trabalho Decente e Economia Solidária”, cujos recursos previstos para este ano de 2018 alcançam o montante de 63 bilhões de reais (R$ 62.947.148.277,00), com várias ações que o integram, como o seguro-desemprego, o abono salarial, gestão do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), qualificação social e profissio- nal de trabalhadores, fomento e fortalecimento da economia solidária, sistema de informações sobre a inspeção do trabalho – SFIT, entre outras.

Outros instrumentos no âmbito do Direito Financeiro de natureza orçamen- tária merecem especial destaque quando se trata de assegurar, proteger e incentivar o pleno exercício do direito ao trabalho.

O principal deles é o Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT. Fundo espe- cial de natureza contábil-financeira, constitui-se em unidade orçamentária vincu- lada ao Ministério do Trabalho, e tem com principal fonte de recursos o PIS (Pro- grama de Integração Social) e o PASEP (Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público), sendo responsável por financiar o seguro-desemprego, o abono salarial, e programas de educação profissional e tecnológica e de desenvolvimento econômico.7

Há programas importantes sob o comando de outros órgãos, evidenciando não ser o Ministério do Trabalho o único responsável pelas ações voltadas a prote- ção do direito ao trabalho, que tem natureza multissetorial, como já destacado. É o caso do Bolsa-Família, que, embora não tenha relação direta com benefícios liga- dos ao trabalhador, seu caráter assistencial tem importantes reflexos na proteção aos trabalhadores, sendo de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Social.

Um instrumento financeiro relevante em matéria de proteção ao trabalhador é o FGTS – Fundo de Garantia do Tempo e Serviço, criado pela Lei 5.107, de

 

7      Lei 7.998, de 1990, artigo 10.

 

 

1966, e atualmente regulado pela Lei 8.036, de 1990, por meio do qual se criou um sistema de contas vinculadas em nome dos trabalhadores, geridas por um Conse- lho Curador específico e operadas pela Caixa Econômica Federal.

Mas a pluralidade de órgãos e programas que envolvem o que se pode cha- mar de “rede de proteção ao trabalho” pode ser considerada bem mais ampla do que isso, bem como o montante de recursos envolvidos. Estudo da Escola de Eco- nomia de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (EESP-FV) estima em 200 bi- lhões de reais, divididos entre governo e empresas, equivalendo a 4% do PIB, distribuídos em 16 programas. Um sistema que, segundo o estudo realizado, foi elaborado de forma pouco coordenada e planejada ao longo de 50 anos, resultan- do em desarticulação entre os programas e benefícios, havendo muitas vezes so- breposição, como pode ser observado entre o seguro-desemprego e o FGTS, e entre o abono-salarial e o bolsa-família. Evidencia a necessidade de um melhor aproveitamento dos recursos, de modo a se criar um sistema mais integrado e efi- ciente de proteção ao trabalhador.8

É bom aproveitar a data de hoje para refletir sobre esses relevantes aspectos financeiros que envolvem a responsabilidade do poder público na proteção aos trabalhadores e na garantia do pleno exercício do direito ao trabalho.

Vê-se que há ainda muito que fazer, e o Direito Financeiro tem uma grande responsabilidade nesse campo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

8 Estudo “Rede de proteção ao trabalhador no Brasil: avaliação ex-ante e proposta de redese- nho”, promovida pela EESP-FGV e liderada pelo Prof. Ricardo Paes de Barros, do Insper (Rede de proteção ao trabalho custa 200 bi e é ineficiente, diz estudo. Valor Econômico, 4 de abril de 2018).

 

 

AuMENTO DA vIOLêNCIA LEvA A RETROCESSO NAS PRIORIDADES ORçAMENTÁRIAS

 

 

Coluna publicada em 26.6.2018: <https://www.conjur.com.br/2018-jun-26/contas-vista- aumento-violencia-leva-retrocesso-prioridades-orcamentarias>

 

 

 

 

 

“Se os governadores não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios.”

(Darcy Ribeiro, 1982)

Há quatro anos, escrevi sobre o tema da segurança pública e iniciei dizendo: “Assunto que sempre está na ordem do dia, a questão da violência e, por conse- quência, da segurança pública tem sido objeto de maior destaque nas últimas semanas, em que se tem observado um – no mínimo aparente – aumento da criminalidade”.1

Vários fatos relevantes ocorridos nas últimas semanas justificam retomar o assunto. O curioso – e lamentável – é ver que a forma de iniciar esta coluna pode ser exatamente a mesma de quatro anos atrás. Ou seja: aparentemente, nada mudou.

O caso do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, que repercutiu no mundo todo; o assassinato da menina Vitória Gabrielly, em Araçariguama, interior de São Paulo, causando indignação e revolta no país inteiro; o garoto Marcos Vi- nícius, há poucos dias vítima fatal de uma bala perdida durante operação policial na comunidade da Maré, nos já corriqueiros tiroteios urbanos no Rio de Janeiro; e tantos outros que ocupam o noticiário quase diariamente.

Um grau de violência que ultrapassa os limites do tolerável (se é que há al- gum limite que possa ser aceito…), cada vez mais difícil de justificar, especial-

1      Financiamento da segurança pública precisa de atenção, publicada em 6 de maio de 2014, nesta edição, p. 65-68.

 

 

mente em se tratando de uma necessidade pública que sempre esteve entre as prioridades da sociedade brasileira, e mesmo assim não se consegue uma solução para o problema.

O direito à segurança pública é inerente ao Estado Democrático de Direito, estando previsto na Constituição como sendo “um dever do Estado, direito e res- ponsabilidade de todos” para a “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (Constituição, art. 144, caput), o que lhe confere a característica de um “direito humano, pelos valores que protege e resguarda para uma qualidade de vida comunitária tranquila e pacífica”, compreendendo uma ampla gama de direitos, sendo verdadeiro meio de garantia dos direitos fundamen- tais de todo cidadão, como a vida, liberdade, propriedade e tantos outros.2

Como todo direito que tem sua dimensão prestacional, no direito à segurança pública o aspecto financeiro é fundamental para que seja viabilizado. A Medida Provisória 841, de 11 de junho de 2018, reorganizou o mais relevante instrumento financeiro para as políticas públicas no setor, o Fundo Nacional de Segurança Pú- blica, criado em 2001 (Lei 10.201), dispondo sobre as receitas e destinação de seus recursos, trazendo medidas importantes, como o aporte de recursos das loterias federais para compor a arrecadação do fundo. Porém, causará prejuízo de quase R$ 1 bilhão ao Fies (Fundo de Financiamento Estudantil). Causará também cancela- mento de transferências à Cruz Vermelha, às Apaes e às Santas Casas.3 E até recur- sos destinados à construção de presídios. Ou seja, a conhecida frase do antropólogo Darcy Ribeiro não só parece atual como se transformou em uma profecia que se cumpriu quase à perfeição. Afinal, já se passaram muito mais de 20 anos – quase 40, para ser mais preciso –, e o que se constata é que estão tirando recursos desti- nados à educação para aplicar na punição.

Dinheiro não nasce em árvores, e a priorização da segurança pública tornou necessária uma “escolha trágica” nas prioridades orçamentárias. E essa medida pro- visória permitiu materializar com clareza a opção anunciada por Darcy Ribeiro.

Tudo isso decorre da já exaustivamente denunciada falta de planejamento e da adoção da técnica de gestão “administração-bombeiro”, que vive para apagar incêndios e agir de improviso, técnica essa nunca defendida por qualquer estu- dioso, mas amplamente utilizada por todas as esferas de governo.

 

 

2      Valter SANTIN. Controle judicial da segurança pública. 2. ed. São Paulo: Verbatim, 2013. p. 47-48.

3      Temer prevê tirar R$ 1 bi do Fies para financiar Segurança Pública. Folha de S.Paulo, 21 de junho de 2018, p. B1.

 

 

O imprescindível Plano Nacional de Segurança Pública se perde nos mean- dros da burocracia do Congresso Nacional para só aparecer quando a violência volta a chamar a atenção, para em seguida voltar a descansar nas prateleiras.

Veja-se que o problema da segurança pública é antigo e recorrente, tanto que a coluna escrita quatro anos atrás já alertava para os mesmos fatos hoje observados.

E o avanço da criminalidade, que não é novidade, apenas se torna mais agudo em função de fatos que vez por outra chamam a atenção da sociedade, levou recen- temente à criação do Ministério Extraordinário da Segurança Pública,4 dividindo funções antes exercidas pelo Ministério da Justiça. Uma medida evidentemente improvisada, pois não se cria um ministério “da noite para o dia”, sem estudos de viabilidade e conveniência, muito menos por medida provisória, até porque a ur- gência e relevância das questões de segurança pública são tão antigas que não po- dem surpreender ninguém.

Com isso, surge um ministério que, embora possa ser até desejável sob o ponto de vista administrativo, começa a funcionar no improviso, sem que esteja organi- zado adequadamente, sob todos os pontos de vista. Seus recursos humanos, mate- riais e orçamentários estão alocados em órgãos anteriormente ligados ao Ministério da Justiça, nem sequer há previsão no orçamento, indicando que não havia inten- ção de criá-lo nem no ano anterior quando a lei foi elaborada. Menos ainda no plano plurianual, nos quais devem estar previstos os programas de duração conti- nuada, como muitos que afetam a segurança pública, não obstante os problemas sejam conhecidos há décadas. E agora, evidentemente, passa a funcionar com ajus- tes sendo feitos “com o carro em movimento” e em “alta velocidade”, já que as medidas são muitas, intensas e necessárias. Mais uma técnica de gestão desaconse- lhada por qualquer especialista no tema, mas visivelmente a mais utilizada pela administração pública. Nem site próprio o ministério tem, prejudicando inclusive a transparência de suas ações. Assim fica difícil dar certo.

Soma-se a isso a já igualmente improvisada intervenção federal no Rio de Ja- neiro, que, feita emergencialmente e às pressas, tem dificuldades de produzir resul- tados efetivos, especialmente em se tratando de questão complexa como esta.5

Vê-se que a luta, que era para ser desigual em favor do Estado, que tem todos os meios a seu dispor para enfrentar o problema, vem encontrando dificuldades

 

4      Medida Provisória 821, de 26 de fevereiro de 2018.

5      Ver Colapso financeiro leva ao caos social e à intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, nesta edição, p. 47-52.

 

 

para combater o crime – este, sim, cada vez mais bem organizado e “eficiente”. Não sujeito às “amarras” do setor público, os criminosos se organizam e agem com mui- to mais rapidez e facilidade, avançam cada vez mais, e parecem estar ganhando o jogo. Um jogo desleal, pois um dos lados não precisa obedecer ao árbitro, seja ele do campo, principal, assistente ou de vídeo. Esperemos que até o final da Copa não sejam eles a levantar a taça!

Não se pode esquecer que as medidas na área da segurança pública envolvem cooperação federativa6 – vide a recente intervenção federal no estado do Rio de Janei- ro, com a participação do Exército e da Força Nacional de Segurança,7 o que torna ainda mais necessário o planejamento, sem o que é muito difícil fazer com que os entes federados possam agir com eficiência para resolver os graves problemas do setor.

Curioso notar que não faltam estudos para identificar os problemas do setor, elaborados pelo próprio governo, e até mesmo as possíveis soluções. Recente publi- cação do Ipea em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Atlas da Violência 2018,8 já na sua 12a edição, registra números assustadores, como o elevado número de homicídios, que no Brasil é 30 vezes superior ao de toda a Eu- ropa, e um dos mais elevados na América Latina.9 Nele destaca-se a necessidade de melhoria na gestão, com a implementação de um sistema de governança capaz de articular todos os entes federados e criar condições para a coordenação entre os Poderes e as polícias, e com isso ter uma arquitetura institucional que possa plane- jar e executar as políticas públicas do setor.10

Mas somente o conjunto de fatos que vem assustando a população e que tem chamado a atenção nos últimos meses agilizou a tramitação do Susp (Sistema Único de Segurança Pública), já há tempos circulando nos escaninhos do Congresso Nacio- nal, para cuja necessidade de aprovação já havia feito referência na coluna publicada há quatro anos, e se materializou na Lei 13.675, de 11 de junho de 2018, criando a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e instituindo o Susp, além de determinar à União que institua o Plano Nacional de Segurança Pú- blica e Defesa Social. Agora é ver se será cumprido – uma outra batalha a ser vencida.

6 Nesse aspecto, veja-se a Lei 11.473, de 10 de maio de 2007, que dispõe sobre a cooperação fe- derativa no âmbito da segurança pública.

7 Por oportuno, criada também “na base do improviso”, por meio de decreto presidencial (De- creto 5.289, de 2004), sendo um programa de cooperação federativa, e não um órgão consti- tucionalmente previsto como integrante do sistema de segurança pública, tal como previsto no artigo 144 da Constituição.

8      CERQUEIRA, Daniel (coord.). Atlas da Violência 2018. Brasília: IPEA-FBSP, 2018.

9      O Atlas da Violência. O Estado de S.Paulo, 22 de junho de 2018.

10     CERQUEIRA, Atlas da Violência 2018, p. 89.

 

 

O fato é que os recursos aplicados na segurança pública são muitos. O orça- mento federal do Ministério da Justiça, que até o início do ano abrangia os progra- mas hoje sob comando do Ministério Extraordinário da Segurança Pública, tem dotação que supera os R$ 15 bilhões. Se acrescentarmos o Ministério da Defesa, somam-se mais R$ 100 bilhões.11 Considerando que a maior parte dos serviços de segurança pública fica sob responsabilidade dos estados, sem contar as atribuições dos municípios, esses valores aumentam exponencialmente. No estado de São Pau- lo, a Secretaria da Segurança Pública gerencia mais de R$ 21 bilhões.12 E esses re- cursos não são os únicos, pois muitas ações voltadas à segurança pública podem estar relacionadas com outros órgãos.

Em suma: é muito dinheiro, não pode ser desperdiçado nem mal aplicado. Estamos em uma verdadeira guerra, não se admitem erros. Com tantos recursos, é possível ter uma situação muito melhor do que a que se está vivenciando. Não é mais possível continuar “apagando incêndios”, o que devemos deixar para o Corpo de Bombeiros, não para os administradores públicos.

Este 26 de junho é o Dia Internacional contra o Abuso e Tráfico Ilícito de Drogas, uma boa data para refletir sobre essa que é uma das maiores, se não a maior, fonte de violência e fomentadora do crime organizado.

E, sem prejuízo das medidas emergenciais que precisam ser tomadas durante uma guerra, já passou da hora de pensar nas medidas de longo prazo, que vão levar à solução definitiva da questão. O editorial do O Estado de S.Paulo do último dia 22 foi preciso: “O problema da violência somente será enfrentado quando o Brasil contar com uma rede de ensino básico de qualidade. A educação é decisiva para diminuir a exclusão social e a violência”.13 Para isso, é preciso manter as prioridades orçamentárias no rumo certo, como destacou Élida Pinto neste mesmo espaço no último dia 19: “Diante do conflito da escassez orçamentária e financeira, educação básica pública, universal, equitativa e de qualidade deve vir primeiro”.14

Se assim não for, daqui a 20 anos a frase de Darcy Ribeiro continuará sendo atual.

 

 

 

 

 

11  Orçamento federal de 2018 – Lei 13.587, de 2018.

12     Orçamento de São Paulo 2018 – Lei estadual 16.646, de 2018.

13     O Estado de S.Paulo, O Atlas da Violência, 22 de junho de 2018.

14     Élida Graziane Pinto, Quão menos farinha, maior há de ser a prioridade da educação básica, publicada em 19 de junho de 2018.

 

 

 

 

MuSEu quEIMADO ExPõE

A INCOMPETêNCIA DOS “BOMBEIROS DE gRAvATA”

 

 

Coluna publicada em 18.9.2018: <https://www.conjur.com.br/2018-set-18/contas- vista-museu-queimado-expoe-incompetencia-bombeiros-gravata>

 

 

 

 

 

Há anos esta coluna vem denunciando a malfadada “administração-bombei- ro”, que rege nossa administração pública há tempos imemoriais e transforma os gestores públicos em “apagadores de incêndios”, verdadeiros “bombeiros de gravata” incapazes de planejar e implementar uma gestão mais eficiente no setor público.1

No último dia 2, o pior aconteceu, e as consequências da “administração-

-bombeiro” não poderiam ter sido, infelizmente, melhor ilustradas. O incêndio que consumiu o acervo e praticamente destruiu o edifício do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, evidenciou quão nefasta pode ser a má gestão do patrimônio públi- co, e os imensuráveis danos que é capaz de causar.

Mais uma vez o Brasil ocupa o noticiário internacional, e desta vez para dar uma lição de incompetência administrativa que consegue causar prejuízos não só para o país, mas para o mundo todo, uma vez que transforma em cinzas registros da história que não interessam apenas a nós brasileiros.

Se for possível extrair algo de positivo nessa tragédia, é a oportunidade para compreender como funciona o financiamento da cultura no Brasil, e os instrumentos

1 Vide as colunas, todas disponíveis no livro Levando o Direito Financeiro a sério – a luta continua, edições anteriores, disponível em: <https://www.blucher.com.br/livro/detalhes/levando-o-direi- to-financeiro-a-serio-1410>. LDO é instrumento eficiente para a administração pública, nesta edi- ção, p. 151-154; Refinanciar dívidas nada mais é do que postergar problemas, nesta edição, p. 433- 438; Direito Financeiro precisa avançar, e a hora é agora, nesta edição, p. 263-268; Crise leva as finanças públicas ao “estado de calamidade”, nesta edição, p. 439-442; Decisões financeiras funda- mentais são tomadas na lei de diretrizes orçamentárias, nesta edição, p. 155-160; Que venha 2017, e traga boas notícias para o Direito Financeiro, nesta edição, p. 275-280.

 

 

que poderiam – e ainda podem – ser úteis para ajudar a preservar nosso patrimônio histórico e cultural. As chamas que destruíram o Museu Nacional acenderam as luzes sobre a importância da cultura e as formas pelas quais se dá a atuação gover- namental nesse setor.

O setor de cultura é, à semelhança de outros, bastante complexo em termos de organização da administração pública. Envolve todos os entes da federação, exigin- do uma cooperação federativa para que as políticas públicas possam ser bem imple- mentadas; e o intenso grau de intersetorialidade torna a boa integração dos diversos órgãos da administração pública essenciais para que se alcancem bons resultados. E é interessante notar também que as especificidades regionais e locais em matéria de cultura estão fortemente presentes. Em um federalismo que optou pela forte centralização dos recursos na União, não é simples operacionalizar a distribuição federativa dos recursos públicos para a área da cultura e fazer chegar os recursos suficientes nos locais certos para a finalidade adequada. Razões de sobra para que o tema mereça mais atenção, especialmente por parte dos estudiosos, que pouco o abordam em seus trabalhos acadêmicos.

Acresça-se a isso algumas dificuldades. Uma delas é impor-se como priorida- de, uma vez que, em épocas de crise econômica e escassez de recursos, em que a população clama pela melhor atenção para necessidades básicas, como saúde, edu- cação e segurança, invariavelmente o corte dos gastos públicos tende a atingir im- piedosamente o setor de cultura. Fica difícil convencer gestores, e mesmo a socie- dade, a liberar recursos para museus, exposições e eventos culturais quando faltam escolas, creches e postos de saúde. Mas é sempre bom refletir sobre o assunto, como alertou Fabrício Mota recentemente.2

Por isso mesmo é importante conhecer a organização do nosso sistema de cultura, especial e destacadamente em seu aspecto financeiro, e as formas pelas quais o poder público pode financiar as diversas políticas do setor. O “Direito Fi- nanceiro da Cultura” nunca foi conhecido nem explorado, e surge a oportunidade para reparar essa falha – ou pelo menos dar início a esse processo.

Se dependesse do ordenamento jurídico, o Brasil estaria bem em matéria de cultura. Nossa Constituição reserva-lhe papel de destaque, destinando-lhe uma seção própria, (Título VIII, Capítulo III, Seção II), com dispositivos (arts. 215 a 216) que estabelecem os princípios e dão os contornos da proteção jurídica à cultu- ra nacional. Às vésperas de nossa Constituição completar 30 anos, já passou da hora de conhecê-los melhor e de lhes dar a devida importância.

 

2      Fabrício Mota, coluna O incêndio no Museu Nacional e as prioridades no uso de recursos públicos, ConJur, publicada em 6 de setembro de 2018.

 

 

Temos um Sistema Nacional de Cultura juridicamente bem estruturado, or- ganizado em regime de colaboração federativa, de forma descentralizada e partici- pativa, cujos princípios e estrutura estão delineados no artigo 216-A.3 Um sistema que evidencia a importância da participação da sociedade, que atua fortemente na formulação e implementação de suas políticas por meio de órgãos e conselhos. E respeita o princípio federativo, estabelecendo políticas culturais em regime de coo- peração entre os entes federados e os agentes públicos e privados.

As diretrizes vêm expressas em um Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual (dez anos, segundo a Lei 12.343, de 2 de dezembro de 2010, que o ins- tituiu). A cultura, ao lado da educação, é um dos poucos setores que conta com um planejamento em âmbito nacional. O plano atualmente vigente prevê 14 diretrizes, 36 estratégias e 275 ações, com 53 metas estabelecidas pelo Ministério da Cultura.4 E temos um interessante e inovador exemplo de “planejamento federativo voluntá- rio por adesão”, em que os estados e municípios aderem voluntariamente ao Siste- ma Nacional de Cultura, por meio de acordos de cooperação federativa, elaboran- do seus respectivos planos de cultura, e assim habilitam-se a integrar programas governamentais do setor e receber recursos e assistência técnica para a implementa- ção de políticas públicas do setor.

Não é preciso refletir muito para notar haver um grande distanciamento entre a teoria e a realidade, pois, se efetivamente observados e levados a sério todos os dispositivos dessa sofisticada e bem montada estrutura jurídica, a situação hoje não poderia ser o verdadeiro caos em que se encontra. Nem teríamos um de nossos mais importantes museus destruído por um incêndio decorrente da má conserva- ção de suas instalações constatadas e denunciadas há anos.

Nesse sistema, o orçamento público federal não deixa de ser a grande fonte de recursos para o desenvolvimento da cultura nacional, por meio de transferências voluntárias, com destinação de recursos federais vinculados a programas específi- cos, por meio de convênios e instrumentos congêneres.

Mas a amplitude de possibilidades de financiamento não se restringe ao orça- mento público, e isso ficou claro com as discussões surgidas após o desastre que abateu o Museu Nacional no Rio de Janeiro.

 

3 Vide o documento Estruturação, institucionalização e implementação do Sistema Nacional de Cultura, do Ministério da Cultura. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/docu- ments/1099729/1429051/Documento+B%C3%A1sico+do+SNC.pdf/685edb37-c1c7-4018- 96ef-37a7fd97c99c>.

4    BRASIL. Ministério da Cultura. As metas do Plano Nacional de Cultura. Disponível em:

<http://www.cultura.gov.br/documents/10883/11294/METAS_PNC_final.pdf/>.

 

 

A cultura é uma das áreas que mais desperta interesse do terceiro setor e do setor privado no aporte e gerenciamento de recursos. Vindos do país e do exterior.5 No intenso debate que se levantou após o incêndio do Museu Nacional, ficou evi- dente serem inúmeras as possibilidades de financiamento, público, privado ou mis- to, disponíveis para o fomento das atividades culturais e da preservação, divulga- ção, exploração e aproveitamento do nosso patrimônio histórico e artístico. Mas que, nesse caso, apareceram tarde demais. Antes tarde do que nunca, diz a sabedo- ria popular, e esperemos que a tragédia – ao que tudo indica, anunciada, avisada, comunicada… – sirva para evitar outras.6

O BNDES colaborou para elaborar projetos de lei criando modelos de fundos patrimoniais (endowments) voltados a captar recursos de doações e estabelecer mo- delos de gestão e sustentabilidade financeira para museus e bibliotecas,7 e, logo após o incêndio, os “bombeiros de gravata” apressaram-se a publicar as medidas provisórias 850, que “autoriza o Poder Executivo federal a instituir a Agência Bra- sileira de Museus – Abram”, e 851, que “autoriza a administração pública a firmar instrumentos de parceria e termos de execução de programas, projetos, e demais finalidades de interesse público com organizações gestoras de fundos patrimo- niais”. Como de costume, “fechando a porteira depois que a boiada fugiu” e evi- denciando o caráter “marqueteiro” da medida, como uma resposta – mais do que atrasada – aos acontecimentos, e claramente feita (ou desengavetada…) às pressas.

A multiplicidade e fartura de instrumentos existentes não deixa dúvidas de que não é por falta de dinheiro que esse patrimônio se perdeu, e sim por má gestão. Ou desleixo, como prefere Marcos Lisboa.8 Uma tragédia de erros, define a manchete de O Globo.9 E que vem de longa data, não sendo possível atribuir a eventuais restrições orçamentárias recentes, como querem fazer crer os responsáveis pela atual gestão.10

5 Havendo registros de que o próprio Museu Nacional teria recusado oferta milionária do Banco Mundial para reforma e modernização de sua infraestrutura (Há 20 anos, universidade recusou verba para reforma do museu incendiado. Folha de S.Paulo, 4 de setembro de 2018).

6 “Museu Nacional do Rio pode sofrer incêndio, diz secretário”. In: EBC – Agência Brasil, 3 de novembro de 2004.

7 BNDES quer regulamentar modelo de sustentabilidade financeira para museus. Folha de S.Paulo, coluna Mônica Bergamo, 10 de setembro de 2018.

8 Marcos Lisboa. Cúmplices: incêndio no Museu Nacional foi obra de longo desleixo. Folha de S.Paulo, 9 de setembro de 2018.

9   Manchete de O Globo de 4 de setembro de 2018: “A tragédia de erros do Museu Nacional”.

10 Nesse sentido, veja-se o texto de Marcos Mendes, O Museu e o teto. O Estado de S. Paulo, 14 de setembro de 2018.

 

 

Como já alertado há anos neste mesmo espaço, não falta dinheiro à administração pública, falta gestão,11 e esse é só mais um exemplo para se somar a tantos outros.

A própria forma pela qual os museus integram a administração pública é va- riada. O Museu Nacional integra a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a quem compete gerenciá-lo, e de seu orçamento saem os recursos com os quais se financia. Semelhante ao Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiran- ga, que integra a Universidade de São Paulo (USP). E que, por sinal, também se encontra em situação lamentável e só não foi vítima de tragédia semelhante por estar fechado há anos à espera de uma reforma, que nem sequer começou e está prometida para terminar no longínquo ano de 2022…12

Vejam a multiplicidade de instrumentos que o Direito Financeiro oferece para resolver os problemas de financiamento da cultura. Temos um imenso cardápio de possibilidades à disposição dos gestores, que só a incompetência justifica não en- contrar uma opção adequada.

O orçamento para a cultura, infelizmente, não é dos maiores, embora esteja longe de ser pouco dinheiro. O orçamento público federal prevê, para o Ministério da Cultura, o principal responsável pela gestão dos programas do setor, o montan- te, neste ano de 2018, de R$ 2.523.883.310.13 Por isso é importante não só ser bem gerido, como aproveitá-lo com zelo e competência e criar todas as oportunidades que se oferecem para ampliar as possibilidades de financiamento do setor, e assim evitar que se repitam tragédias como a do Museu Nacional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

11 Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão, nesta edição, p. 255-258. Veja-se tam- bém interessante reflexão de Élida Graziane Pinto em texto recente, Quem terceiriza o plane- jamento queima o passado e penhora o futuro, coluna publicada no ConJur em 11 de setembro de 2018.

12   Em SP, Museu do Ipiranga fechou há 5 anos para reforma por problemas de infraestrutura.

G1, 3 de setembro de 2018.

13   Lei 13.587, de 2 de janeiro de 2018 – Orçamento da União para 2018.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PLANEJAMENTO, ORçAMENTO E gESTÃO

 

 

 

 

 

 

Planos de governo são essenciais para a escolha do próximo presidente ••
Planejamento municipal precisa ser levado a sério ••
Descaso com o planejamento deixa o país sem rumo ••
Poder Judiciário: 2014 é o ano do planejamento estratégico ••
LDO é instrumento eficiente para a administração pública ••
Decisões financeiras fundamentais são tomadas na Lei de Diretrizes Orçamentárias ••
No primeiro ano de mandato, não se cumprem promessas ••
No fundo, protestos envolvem questões orçamentárias ••
E o ano começa sem a aprovação do orçamento federal ••
Um ano depois, fica a pergunta: quem pagou a conta dos protestos de junho? ••
Vivemos no país das finanças públicas mal-assombradas ••
O Direito Financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 começou mal ••
Orçamento não pode mais ser uma peça de ficção ••
Vereador não pode apenas homologar a Lei Orçamentária ••
Parlamentar pode, sim, propor lei em matéria financeira ••
Poderes não são independentes sem autonomia financeira ••
Vinculações orçamentárias não são a panaceia dos problemas ••
Natal é tempo de correr com a execução orçamentária ••
O final de ano, as dívidas e os “restos a pagar” ••
Emendas ao orçamento e o desequilíbrio de Poderes ••
Durante as eleições, pense bem para quem vai entregar a chave do cofre ••
Hora é de “apertar o cinto” e contingenciar gastos ••
Orçamento impositivo é avanço para administração ••
Aprovação do “orçamento impositivo” é insuficiente  
para dar credibilidade à Lei Orçamentária ••

 

 

Crise econômica pode criar “orçamento recurso-zero” ••
Flexibilidade orçamentária deve ser usada com moderação ••
Uso político dos instrumentos de Direito Financeiro deve ser combatido ••
Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão ••
Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias ••
Direito Financeiro precisa avançar, e a hora é agora ••
É preciso ter cautela e transparência para debater a reforma da Previdência ••
Que venha 2017, e traga boas notícias para o Direito Financeiro ••
O “mecanismo orçamentário” nem os caminhoneiros conseguem parar ••
Pautas-bomba ameaçam explodir o Orçamento de 2019 ••
O novo Presidente e o Direito Financeiro: o que podemos esperar? ••
Uma facada na “caixa-preta do Sistema S” em defesa da universalidade orçamentária ••
Novos governos, novas esperanças de avanços no Direito Financeiro ••

 

 

PLANOS DE gOvERNO SÃO ESSENCIAIS PARA A ESCOLHA

DO PRóxIMO PRESIDENTE

 

Coluna publicada em 21.10.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-out-21/contas- vista-planos-governo-sao-essenciais-escolher-proximo-presidente>

 

 

 

 

 

Neste domingo, decidiremos quem será o novo Presidente da República e, em muitos Estados da Federação, serão definidos os Governadores.

A escolha de um candidato a Presidente ou Governador, desnecessário falar, é decisão extremamente importantes e deve ser muito bem refletida.

Para isso, o mínimo que cada eleitor deve fazer é analisar bem os candidatos e, principalmente, seus planos de governo, em que devem estar expressas as posi- ções que pretendem adotar naquela que é seguramente sua principal função: a condução da administração pública pelo período do mandato.

Chamou a atenção nessas eleições o aparente desprezo que a maior parte dos candidatos demonstrou pela apresentação do plano de governo, muitos deixando para fazê-lo já no meio da campanha, alguns divulgando documentos genéricos e simplificados, outros sequer o apresentando, outros ainda sendo acusados de ter um programa “escrito a lápis” e tantas outras manifestações de desapreço por aque- le que deveria ser o principal documento no qual o eleitor deve se basear para esco- lher seu candidato.1 Ajustes nesses “planos de governo” ao longo da campanha, ao sabor da repercussão que observam na mídia para diversas questões, evidenciam uma inequívoca improvisação de um governo que terá de começar a trabalhar pou- cos meses após as eleições.

 

 

 

1      Aécio diz que seu programa de governo “virá a caneta, não a lápis”. Valor Econômico, 23 de setembro de 2014, entre outras notícias sobre o assunto.

 

 

A obrigação imposta pela legislação eleitoral, de exigir as propostas defendidas pelo candidato por ocasião do registro da candidatura,2 é cumprida, muitas vezes, com desdém, como se fosse uma formalidade equivalente a juntar fotografia e cer- tidões criminais. Para os eleitores que quiserem consultar, as propostas registradas por todos os candidatos junto ao Tribunal Superior Eleitoral estão disponíveis no endereço eletrônico3 onde podem ser encontradas as propostas dos atuais postulan- tes à Presidência, candidatos Dilma Rousseff (Mais mudanças, mais futuro, 25 pá- ginas) e Aécio Neves (Diretrizes gerais – plano de governo – Aécio Neves – PSDB – 2014, 76 páginas).

O mínimo que se espera de um postulante à Presidência da República é que ele saiba o que pretende fazer ao assumir o cargo e deixar isso claro a seus eleitores, permitindo que estes possam escolher estadistas, e não personalidades; que possam eleger com base em programas, e não em pessoas.

Como já defendi anteriormente,4 deveria a legislação exigir que os candidatos apresentassem um plano de governo detalhado, verdadeira antecipação do plano plurianual (PPA), por ocasião do registro da candidatura, de modo a obrigá-los não somente a pensarem, refletirem e construírem uma linha de conduta para seu pe- ríodo de governo, como também criar um documento que permita ao eleitor co- brar o candidato eleito após assumir o cargo, exigindo o cumprimento dos com- promissos assumidos.

Nesse sentido está a previsão do artigo 6º, § 2º, do projeto de Lei de Qualida- de Fiscal, em tramitação no Congresso Nacional com vistas a substituir a Lei 4.320, de 1964, que regula os orçamentos públicos.5 Prevê a redação que “o PPA6 conside- rará o plano de governo do candidato eleito Chefe do Poder executivo, devendo todos os candidatos registrar o respectivo plano de governo na Justiça Eleitoral em até dois meses antes da data do pleito eleitoral, em primeiro e único turno”.

Evidentemente, não há como exigir nesse documento o mesmo detalhamento do PPA, até porque o candidato só terá pleno conhecimento da administração pública e poderá dispor das informações necessárias após assumir o cargo. Exceção

2 Lei 9.504 de 30 de setembro de 1997, art. 11, § 1º: “O pedido de registro deve ser instruído com os seguintes documentos: IX – propostas defendidas pelo candidato a Prefeito, Governa- dor de Estado e a Presidente da República” (redação dada pela Lei 12.034, de 2009).

3  <divulgacand2014.tse.jus.br/divulga-cand-2014/menu/2014>.

4  No primeiro ano de mandato, não se cumprem promessas, nesta edição, p. 161-164.

5 BRASIL, Senado Federal, Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Parecer do relator, Senador Arthur Virgílio, sobre os Projetos de Lei do Senado 229 e 248, de 2009.

6     Plano Plurianual, previsto no art. 165, I da Constituição.

 

 

feita aos que se candidatam à reeleição, que têm a obrigação, ainda que não legal, de apresentar um plano minucioso e detalhado dado o privilégio de estar condu- zindo a administração há mais de três anos, com todas as informações à sua dispo- sição, além da experiência adquirida. Mesmo assim, vê-se que muitos não o fazem.

A função precípua do Presidente da República é conduzir a gigantesca máqui- na da administração pública federal, cujo orçamento para este ano de 2014 está na ordem de R$ 2,5 trilhões,7 e não se pode fazê-lo sem um planejamento sério, con- fiável, detalhado e bem elaborado. A Constituição atribui ao Presidente da Repú- blica remeter ao Congresso Nacional o plano de governo no início de cada sessão legislativa (art. 84, XI), enviar ao Congresso Nacional os projetos de PPA (Plano Plurianual), da lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e da lei orçamentária anual (art. 84, XXIII) e, findo o exercício financeiro, prestar contas das atividades finan- ceiras realizadas (art. 84, XXIV).

Atualmente, o principal instrumento de planejamento governamental é o pla- no plurianual, que, embora tenha um viés orçamentário, é o que está sendo utiliza- do para materializar juridicamente o plano de governo dos entes da federação. O projeto de PPA federal deve ser elaborado e encaminhado ao Congresso Nacional em até oito meses após a posse,8 o que só pode ser feito se o candidato já tem esta- belecidas suas prioridades e, respeitando aqueles que o elegeram, deve elaborá-lo de acordo com os compromissos que assumiu em sua campanha e o levaram à vitória nas eleições. Em alguns entes da Federação, o prazo é ainda mais curto, como é o caso do Município de São Paulo, que, sem prejuízo do plano plurianual, adota o Programa de Metas, que prevê a apresentação de um detalhado planejamento até 90 dias após a posse.9

Releva notar, na linha do que se observa, um forte desprezo pelo planejamen- to governamental, que, em muitos casos, cabe ao governante apenas priorizar ações já previstas e em andamento, uma vez que o planejamento já existe, cabendo-lhe apenas cumprir a parte que lhe cabe no período do mandato. O melhor exemplo está na educação, em que, após longos e intensos debates, foi recentemente aprova- do (com atraso de quatro anos) o Plano Nacional de Educação (PNE);10 setor em que já estão estabelecidas, em detalhes, as prioridades e metas da administração

7     Orçamento da União para 2014 – Lei 12.952, de 20 de janeiro de 2014.

8 Constituição Federal, ADCT, artigo 35, § 2º, I: “o projeto do plano plurianual, para vigência até o final do primeiro exercício financeiro do mandato presidencial subsequente, será enca- minhado até quatro meses antes do encerramento do primeiro exercício financeiro”.

9    Lei Orgânica do Município de São Paulo, artigo 69-A.

10   Lei 13.005, de 25 de junho de 2014.

 

 

pública para os próximos dez anos, de modo que caberá aos eleitos apenas e tão somente definir, do que já está previsto, o que será feito no período de seu manda- to. E mesmo assim, isso não é feito, ou sequer levam o PNE em consideração.

É interessante observar também, ao acompanhar as campanhas eleitorais, um desconhecimento sobre as competências do Presidente da República. Da mesma forma que muitos candidatos ao Poder Legislativo levantam bandeiras de temas diretamente relacionados às funções do Poder Executivo, fazendo promessas que não estão em sua alçada de atribuições, como realização de obras públicas, execu- ção de tarefas e implementação de políticas públicas, por vezes até da responsabili- dade de outro ente da federação, o inverso também se constata.

O candidato a Presidente da República, a quem cabe exercer o comando do Poder Executivo Federal, é chamado a opinar sobre temas como redução da maioridade pe- nal, aborto, legalização de drogas, orientação sexual e outros que, não obstante impor- tantes, devem ser objeto de debate e deliberação no âmbito do Poder Legislativo.

Já questões que estão entre suas atribuições são pouco mencionadas, como a política externa, uma vez ser de competência privativa do Presidente da República manter relações com estados estrangeiros e celebrar tratados, convenções e atos internacionais (CF, art. 84, VII e VIII), bem como exercer o comando supremo das Forças Armadas (art. 84, XIII) e declarar guerra (art. 84, XIX).

Outros temas da maior relevância, embora sejam da alçada do Poder Legis- lativo, dependem fortemente da participação do Poder Executivo, que deve cons- truir um bom projeto para levar ao debate. É o caso, citando um exemplo no âmbito do Direito Financeiro, da sempre presente “reforma tributária” – que, na verdade, é financeira, uma vez que as principais questões referem-se às atribui- ções de competências tributárias e partilhas de receitas, exigindo uma reconstru- ção do federalismo fiscal, com forte impacto nas relações entre os entes federa- dos, muito mais difíceis de ajustar que as relações tributárias entre fisco e contribuintes. O receio de desagradar uns e outros e a vontade de tentar agradar a todos levam à opção pelo silêncio sobre o tema ou a referência a propostas va- gas, impedindo que o eleitor saiba o que o candidato pretende fazer nesta e em outras questões, como se pode constatar ao consultar as propostas de governo de praticamente todos os candidatos.

A verdade é que, como já tive oportunidade de mencionar anteriormente,11 o planejamento claro e transparente, fundamental para uma gestão pública eficiente,

11  Planejamento municipal precisa ser levado a sério, nesta edição, p. 135-138.

 

 

importa em escolher prioridades. E, por consequência, indicar o que e quem não será contemplado pelo novo governo – e isso nenhum candidato quer fazer.12

Os planos de governo apresentados pelos candidatos estão aí (Aécio Neves – Brasil: o novo jeito de governar – Plano de governo de Aécio Neves e Aloysio Nunes – 2015-2018,13 273 páginas; e Dilma Rousseff – Mais mudanças, mais futuro – Pro- grama de Governo Dilma Rousseff – 2014, 42 páginas)14 e, embora pouco conhecidos e divulgados, devem ser a ferramenta para a escolha do próximo domingo. Ainda é tempo de analisá-los e votar naquele que melhor represente você, leitor e eleitor e mostre ser capaz de conduzir a administração pública em direção aos objetivos fundamentais consagrados pela Constituição.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

12     Planejamento municipal precisa ser levado a sério, nesta edição, p. 135-138.

13     <www.aecioneves.com.br>.

14     <www.dilma.com.br>.

 

 

 

 

PLANEJAMENTO MuNICIPAL PRECISA SER LEvADO A SÉRIO

 

 

Coluna publicada em 24.9.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-set-24/ contas-vista-planejamento-municipal-levado-serio>

 

 

 

 

 

Na próxima segunda-feira (30/9), o prefeito do Município de São Paulo e os prefeitos da grande maioria dos Municípios do país apresentarão o projeto de Plano Plurianual (PPA) para o período de 2014-2017. A Constituição prevê o PPA no artigo 165, I e § 1º, devendo a apresentação do PPA federal ocorrer “até quatro meses antes do encerramento do primeiro exercício financeiro”, conforme estabelecido “proviso- riamente” no Ato das Disposições Transitórias da Constituição, artigo 35, § 2º, I, mas admite-se que essa norma tem natureza federal, aceitando-se que os demais entes da federação fixem datas próprias,1 como é o caso do Município de São Paulo, que estabelece o dia 30 de setembro, nos termos do artigo 138, § 6º, II, da sua Lei Orgâ- nica, o que também ocorre com a maioria dos demais municípios. É um momento muito relevante para a administração pública municipal, pois, como já expus em coluna anterior (No primeiro ano de mandato, não se cumprem promessas, nesta edição,

  1. 161-164), é nele que deverá estar materializado o plano de governo, explicitando-se as políticas públicas, programas e ações governamentais a serem implantados, conti- nuados, incentivados e desenvolvidos ao longo dos próximos quatro anos. Ou, de outro lado, também os que serão encerrados, descontinuados e desincentivados. É lá

1 Uma diferença de prazos que se justifica em face de nosso federalismo cooperativo, em que muitas das receitas dos entes subnacionais, especialmente dos municípios, provêm de transfe- rências intergovernamentais oriundas da União e do Estado, sendo prudente conhecer antes a proposta orçamentária dos referidos entes federados e as perspectivas de concretização das transferências, conferindo maior credibilidade às previsões de receitas transferidas às leis orça- mentárias municipais. E, no caso do PPA, releva também conhecer as previsões federais e es- taduais de dados econômicos e sociais, tais como inflação, PIB, câmbio etc. que influenciarão nas previsões de arrecadação das receitas municipais.

 

 

que se verificarão se as promessas de campanha efetivamente estão contempladas e, portanto, aumentando a expectativa de que venham a ser cumpridas e onde se espera encontrar a previsão de quais serão os investimentos públicos e políticas econômicas e sociais.

Trata-se de documento de fundamental importância não só para a adminis- tração pública, mas também para toda a sociedade, para os demais entes federados, o setor privado, o terceiro setor, enfim, a todos e a cada um de nós. Todos os cida- dãos dependem, de alguma forma, em algum momento, das informações sobre o que os municípios pretendem fazer nos próximos anos, para que possam tomar suas próprias decisões.

Infelizmente, observa-se que não se tem dado a devida atenção ao tema e esse importante momento pode eventualmente até passar despercebido do público e não merecer a atenção da mídia. Até porque a apresentação da proposta de plano plurianual coincidirá com a apresentação da própria proposta de lei orçamentária anual do município para o ano de 2014, não só de São Paulo, como da grande maioria dos municípios do país, e será simultânea à apresentação da proposta de lei orçamentária dos Estados. Com todos esses documentos surgindo no mesmo dia, e referindo-se as propostas de lei orçamentária anual a questões voltadas ao curto prazo, não é de se estranhar que se sobreponham, em termos de interesse do públi- co, às diretrizes de médio prazo contidas nos planos plurianuais.

O planejamento governamental no Brasil é constituído por um sistema com- plexo e tem no PPA seu principal instrumento jurídico, como já exposto em deta- lhes na coluna anterior à qual já me referi. Não é o único, uma vez que as demais leis orçamentárias, como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a própria Lei Orçamentária Anual (LOA) compõem esse sistema que abrange também muitas outras leis importantes, especialmente aquelas destinados a setores específicos da ação governamental, como é o caso do Plano Nacional de Educação.

Embora não se possa conceber atualmente a gestão de administrações públicas complexas, como é o caso dos entes que compõem nossa federação – União, Esta- dos, Distrito Federal e municípios –, e de órgãos e instituições públicas que os inte- gram, como o Poder Judiciário, Ministério Público, Universidades Públicas e tantos outros, sem um sistema de planejamento governamental bem elaborado e executa- do, parece que esta cultura ainda não está plenamente consolidada entre nós.

Vê-se que técnicas de planejamento e orçamento que começaram a surgir há um século, voltadas a buscar maior eficiência na administração pública, com orça- mentos elaborados por programas, contabilizando-se as despesas de forma a buscar resultados, medindo e avaliando desempenho, incorporaram-se à administração

 

Planejamento municipal precisa ser levado a sério          ••

 

pública apenas formalmente. Definições de estratégias, materializando-as nos ins- trumentos de planejamento governamental, com o estabelecimento de objetivos e metas de curto, médio e, por vezes, até longo prazo, parecem ficar apenas no papel e na boa intenção daqueles que elaboram os documentos, pois, na prática, nem sempre são executados, nem fiscalizados com o devido rigor, mitigando a credibi- lidade que deveriam merecer.

Planos plurianuais municipais, especialmente de municípios menores, são ela- borados com base em modelos que se repetem ano a ano, sem uma efetiva preocu- pação dos prefeitos de nele incorporarem as previsões para o que se vai fazer no decorrer do mandato. Mudam-se os prefeitos, alternando-se o partido e a ideologia de quem governa, com o povo esperançoso de mudanças, mas da leitura do PPA pouco ou nada se consegue constatar, deixando transparecer que nada vai se alterar.

Nota-se descaso com a cooperação federativa no planejamento, como se pode verificar na área de educação, em que o próprio governo federal ainda não aprovou o Plano Nacional de Educação, já se tendo esgotado há anos a vigência do anterior, como mencionado em outra coluna (Nem só com royalties se melhora a qualidade da educação, nesta edição, p. 55-58). E muitos municípios, que deveriam elaborar os Planos Municipais de Educação, para completar o sistema de planejamento neste setor fundamental para o desenvolvimento econômico e social do país, permane- cem inertes. Segundo dados recentes do IBGE, 259 municípios paulistas ainda não elaboraram os respectivos planos e, no Brasil, são 2.181 municípios.2 Outras áreas, como saúde, apresentam distorções da mesma natureza. E não esqueçamos que a população foi às ruas recentemente exigindo melhorias nesses setores.

Um bom planejamento, dotado de clareza e transparência, é imprescindível para uma gestão eficiente e uso proveitoso dos recursos públicos. Planejar é esco- lher prioridades, ainda que essas escolhas sejam difíceis e importem em deixar de lado muitas ações relevantes – afinal, é para isto que os governantes são eleitos, esse é seguramente o maior ônus que pesa sobre seus ombros. Mas esta clareza e trans- parência nem sempre interessam aos que estão no alto comando da administração pública, que hesitam em desagradar a quem quer que seja, preferindo a opção po- lítica de, ainda que aparentemente, atender a todos, sem deixar claras as priorida- des, até para não tornar transparente o que e quem não foi contemplado.

Daí porque, muitas vezes, nos deparamos com planos plurianuais genéricos, excessivamente abrangentes, incluindo praticamente tudo e para todos, deixando para a fase de execução, de forma opaca, a efetiva escolha do que vai ou não ser

2      <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/>.

 

 

feito, tornando inúteis os instrumentos de planejamento para os fins a que se des- tinam. Muitas vezes, elaborados sem estudos e análises prévias sobre a realidade do município e seus problemas, transformam-se em documentos que não apontam as soluções adequadas e os meios para resolvê-los. Mais do que isso, deixam a critério do governante decidir ao sabor dos acontecimentos, tomando decisões aleatoria- mente para resolver problemas imediatos, de forma descoordenada e sem critérios, o que só tende a agravar as distorções da administração pública no médio e longo prazo.

Governar um município sem um plano plurianual sério, bem elaborado, pre- cedido de estudos de cenários internos e externos, com escolhas criteriosas e demo- cráticas de prioridades, fixando estratégias claras e bem definidas é como coman- dar um transatlântico no meio do oceano sem mapa, instrumentos de navegação e, principalmente, sem saber o porto de destino. Pouco importa cuidar da adequada limpeza, funcionamento da cozinha, da casa de máquinas e de tudo o mais que é necessário se o navio está verdadeiramente à deriva, pois o comandante sequer sabe para onde vai. “Navegar é preciso”, já diziam os navegadores antigos, na frase imor- talizada por Fernando Pessoa em seu poema. Mas é fundamental que se saiba a direção a seguir. Afinal – e aqui ousamos discordar do poeta e dos navegadores – viver também é preciso. E viver bem, com dignidade, sem pobreza e desigualdades, como diz nossa Constituição.

“Deixa a vida me levar (vida leva eu!)”, diz a nossa música popular. É um belo refrão e é muito agradável ouvi-lo cantado por Zeca Pagodinho. Ajusta-se com perfeição às folgas de final de semana, alegra um dia de sol, com churrasco e cerveja, de bermuda e chinelos. Pode até ser um lema de vida. Mas não cai bem na caneta dos burocratas, com seus ternos e gravatas, durante a semana. Não é um lema a ser seguido pela administração pública. Esta precisa é de um bom planejamento, que se faz com seriedade, estudos criteriosos, programas bem cons- truídos, resultados e metas ambiciosos, porém factíveis, para concretizar políticas públicas que vão conduzir aos objetivos fundamentais da sociedade e explicitados na Constituição.

Que nossos prefeitos não nos deixem à deriva. Vamos levar a vida na direção que nós queremos!

 

 

DESCASO COM O PLANEJAMENTO DEIxA O PAíS SEM RuMO

 

 

 

 

Coluna publicada em 22.9.2015: <http://www.conjur.com.br/2015-set-22/ contas-vista-descaso-planejamento-deixa-pais-rumo>

 

 

 

 

 

A apresentação da proposta orçamentária da União para o exercício de 2016, realizada em 31 de agosto de 2015,1 foi a principal notícia dos últimos dias, espe- cialmente pelo inusitado fato de ter sido encaminhada com a previsão de déficit, o que teria precipitado a queda do Brasil em ranking de agência de classificação de risco. É importante constatar e destacar que, em situações como essa, se percebe a real importância do orçamento público para o país e a vida das pessoas.

Porém, o que chama ainda mais a atenção é justamente um fato para o qual não se deu nenhum destaque, ocorrido no mesmo dia:2 a apresentação do Plano Plurianual (PPA) da União para o período 2016-2019, que atualmente é o principal instrumento jurídico de planejamento governamental. Ofuscado pelas notícias so- bre o orçamento, o PPA, documento responsável pela definição dos rumos do país para os próximos quatro anos, acabou sendo deixado de lado.3

Poucos viram o documento que foca as ações do governo em “desenvolvimen- to, produtividade e inclusão social”, estabelecendo as diretrizes estratégicas de mé- dio prazo, e que deve – ou deveria – balizar todas as ações governamentais. E, atualmente, em face da ausência de planos nacionais, acaba direcionando as ações dos demais entes federados, dado nosso federalismo cooperativo em que os entes subnacionais guardam forte dependência dos recursos concentrados no governo federal. Um documento que requer, mais do que a formalidade de ser aprovado por

1      Nos termos em que determina a Constituição – ADCT, artigo 35, § 2º, III.

2      Também por determinação Constitucional – ADCT, artigo 35, § 2º, I.

3      Uma das poucas referências está na curta notícia publicada pelo jornal Valor Econômico em 31 de agosto de 2015: Plano Plurianual foca em educação, inclusão e redução de desigualdades.

 

 

lei após ser analisado pelo Congresso Nacional nos próximos quatro meses, uma efetiva demonstração, por parte do governo, de que será levado a sério – o que não parece estar ocorrendo, dada a pouca atenção que lhe tem sido dispensada. Indício claro de que não terá qualquer efeito para os fins que justificam sua existência.

Uma lamentável constatação do que já é público e notório: o descaso com o qual se tem tratado o planejamento das ações governamentais nos últimos anos. Falha que seguramente é uma das principais – se não a principal – responsáveis pelo descalabro fiscal e má gestão pública que se vê presente atualmente.

Inúmeros atos se somam de modo a não deixar dúvidas sobre o desprezo que este governo, principalmente no âmbito federal, tem pelo planejamento.

A começar pelo pífio plano de governo apresentado pela atual presidente por ocasião do registro de sua candidatura à reeleição,4 um documento por demais simples, vago e pouco específico, o que é injustificável para quem estava no coman- do do governo federal havia quase quatro anos, com todas as condições para deta- lhar com precisão e riqueza de detalhes o que pretenderia fazer ao assumir um se- gundo mandato.

Em junho do ano passado, tivemos uma das poucas boas notícias em matéria de planejamento, com a aprovação, quatro anos atrasada, da lei do Plano Nacional de Educação (Lei 13.005, de 25 de junho de 2014), que, se espera, seja seguida com atenção, rigor e de forma prioritária, especialmente quando se anuncia como lema de governo o “Pátria Educadora”. No entanto, a segurança quanto a isso começa a ruir quando o ministro da Educação nomeado dura poucos meses no cargo e é substituído, gerando insegurança quanto à gestão do setor.

E, em junho deste ano, esgotou-se o prazo para que estados e municípios apre- sentassem os respectivos planos estaduais e municipais, e muitos entes federados ainda não cumpriram a determinação legal, dificultando a gestão cooperativa des- sa área, comprometendo a fiel execução do plano.

Paralelamente, o lema da “Pátria Educadora” é protagonizado não pelo Mi- nistério da Educação, mas pela Secretaria de Assuntos Estratégicos,5 e veem-se previstas iniciativas na mesma política pública por órgãos diversos e por instru- mentos diferentes, gerando uma desorganização administrativa que compromete todo o funcionamento da máquina estatal. E já se noticia que o governo decidiu “engavetá-lo”, antes mesmo de ter sido implantado: “O Palácio do Planalto decidiu

4      Planos de governo são essenciais para a escolha do próximo presidente, nesta edição, p. 129-134.

5      BRASIL. SAE. Pátria educadora: a qualificação do ensino básico como obra de educação na- cional. Brasília, abril de 2015.

 

 

manter engavetado o projeto ‘Pátria Educadora’, mote do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, que até hoje não saiu do papel. O plano, lançado no discurso de posse da presidente, foi elaborado pelo ministro da Secretaria de As- suntos Estratégicos (SAE), Mangabeira Unger, e prevê metas na área educacional. Mas uma disputa de protagonismo político entre Mangabeira e o ministro da Edu- cação Renato Janine Ribeiro, na prática inviabilizou sua implementação”.6 Recen- temente, saiu do cargo o ministro responsável pela Secretaria de Assuntos Estraté- gicos e idealizador do plano, o que deve sepultá-lo de vez. Com previsões para organizar a estrutura de cooperação federativa na educação, é mais um prejuízo à gestão daquela que foi anunciada como a área prioritária do governo. Fatos lamen- táveis, exigindo que a sociedade organize-se para exercer um efetivo controle social sobre o cumprimento das metas e estratégias nele fixadas, cobrando a fiel execução do plano.

Mas não é só. Pouco antes da apresentação das propostas de lei orçamentária e do plano plurianual, leis que formalmente regem o planejamento governamental e que deverão ser submetidas à apreciação do Congresso Nacional, surge a “Agenda Brasil”, por iniciativa do presidente do Senado, com medidas de diversas naturezas, voltadas a pautar a ação governamental nos próximos anos, que se alteraram no decorrer de poucos dias, e já quase não se fala mais no assunto.7 E, com isso, cada vez menos se sabe quais são os objetivos que o país pretende alcançar, os meios para fazê-lo e quem os define.

O descaso não termina aí. Por ocasião da apresentação da proposta orçamen- tária deste ano, surpreendem as notícias informando ter sido decidido na véspera, um domingo, que haveria a previsão de déficit e respectivo montante: “Depois de desistir de recriar a CPMF, o governo decidiu neste domingo (30) encaminhar ao Congresso sua proposta de Orçamento da União para o próximo ano com uma previsão de déficit primário (…) O tamanho do déficit estava sendo definido na noite de domingo e ainda passará por uma última análise nesta segunda-feira (31), quando a proposta precisa ser enviada ao Congresso”.8

É absolutamente injustificável e inaceitável que decisões dessa importância, envolvendo bilhões de reais e sobre os assuntos mais relevantes, sejam tomadas de inopino, na véspera, deixando clara a total falta de compromisso com o planejamento; principalmente porque a lei orçamentária é apenas a parte final de todo um proces-

 

 

6      Planalto paralisa mote do 2º mandato. O Estado de S.Paulo, 13 de setembro de 2015. No mes- mo sentido, a notícia de 15 de setembro, Impasse e caos na educação.

7      <www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/08/12/agenda-brasil>.

8      Dilma manda orçamento ao Congresso com déficit. Folha de S.Paulo, 31 de agosto de 2015.

 

 

so de planejamento governamental e se insere no contexto de um ordenamento jurídico que deve ser coeso, respeitando-se o Plano Plurianual vigente e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), ser coeso, devendo a Lei Orçamentária guardar coerência com o Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que precedem.

E na Lei de Diretrizes Orçamentárias, proposta em abril para ser aprovada até o final de junho, devem estar previstos, no anexo de metas fiscais, as metas relati- vas a receitas, despesas, resultados nominal e primário e o montante da dívida pú- blica.9 O projeto apresentado – que até o momento não foi aprovado, em desacordo com o que estabelece a legislação vigente – fez constar previsão de superávit primá- rio no montante de R$ 104 bilhões para o governo central e R$ 126 bilhões para o setor público (art. 2º do projeto).

Agora, quatro meses depois, é apresentado o projeto de lei orçamentária em desacordo com o projeto de LDO. E poucos dias após ser apresentado o projeto de lei orçamentária deficitário, ante a repercussão negativa, já se fala em alterar a pre- visão de déficit, com propostas de novas fontes de receita, como a recriação da CPMF, que havia sido expressamente descartada alguns dias antes. E pasmem! Em decisões tomadas, novamente, no domingo da véspera: “O anúncio, que foi objeto de reuniões no fim de semana e será amarrado após um encontro de ministros na manhã desta segunda, é a primeira resposta às cobranças do mercado por ter envia- do um Orçamento com déficit, medida que levou a agência Standard & Poor’s a tirar o selo de bom pagador do país no dia 9, agravando a crise”.10

É assustador pensar que decisões fundamentais para o país, que deveriam ser objeto de estudos profundos, bem elaborados, submetidos à reflexão e discussão qualificadas, foram tomadas enquanto a Ponte Preta goleava o Santos e Faustão apresentava suas videocassetadas. Simplesmente inacreditável.

Tudo leva a crer que os desmandos em matéria orçamentária ocorridos no fi- nal do ano passado, especialmente no que se refere ao desrespeito ao sistema de planejamento orçamentário, estão para se repetir. Presenciamos pela primeira vez uma LDO modificada no final do ano, com a alteração da previsão da meta de superávit primário, apenas para evitar seu formal descumprimento; e a LDO do ano em curso foi aprovada com mais de seis meses de atraso, já no exercício seguin- te, como expus na coluna O direito financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 come- çou mal, nesta edição, p. 183-188. Escrevi, à época, que é “difícil saber, a essa altu-

9      Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar 101, de 2000), art. 4º, I, a e § 1º.

10     Dilma prepara corte superior a R$ 22 bi. Folha de S.Paulo, em 14 de setembro de 2015

 

 

ra, o que poderá ser feito para surpreender, pois a impressão é que todos os limites da improvisação e desconsideração total pelo ordenamento jurídico em matéria financeira foram ultrapassados”. Pelo que se vê, não demoramos para descobrir…

No final deste mês, a maior parte dos estados da federação deve apresentar seus respectivos planos plurianuais. Espera-se que não sigam o exemplo do governo federal, e elaborem um documento que, além de sério, consistente e bem elabora- do, dê demonstrações inequívocas que será o guia da administração pública esta- dual pelos próximos quatro anos.

Há dois anos, ao tratar da apresentação das propostas de planos plurianuais municipais, ponderei que “governar um município sem um Plano Plurianual sério, bem elaborado, precedido de estudos de cenários internos e externos, com escolhas criteriosas e democráticas de prioridades, fixando estratégias claras e bem definidas, é como comandar um transatlântico no meio do oceano sem mapa, instrumentos de navegação e, principalmente, sem saber o porto de destino. Pouco importa cui- dar da adequada limpeza, funcionamento da cozinha, da casa de máquinas e tudo o mais que é necessário, se o navio está verdadeiramente à deriva, pois o comandan- te nem sequer sabe para onde vai”.11 Muito mais grave é governar um país de di- mensões continentais como o nosso, onde não deveria haver espaço para o improvi- so, que parece estar sendo adotado como verdadeiro método de administração.

Os fatos estão deixando cada vez menos dúvida de que o comandante (ou se- ria comandanta?) não tem a menor ideia da rota a seguir, talvez nem saiba onde está. Não é nada bom estar dentro de um navio à deriva. Os icebergs estão por aí, a qualquer momento pode-se deparar com um deles no caminho, sem tempo de desviar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

11  Planejamento municipal precisa ser levado a sério, nesta edição, p. 135-138.

 

 

 

 

PODER JuDICIÁRIO: 2014 É O ANO DO PLANEJAMENTO ESTRATÉgICO

 

 

Coluna publicada em 4.2.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-fev-04/ contas-vista-poder-judiciario-2014-ano-planejamento-estrategico>

 

 

 

 

 

A segunda-feira (3/2) marcou a abertura formal do Ano Judiciário de 2014.

Trata-se de um ano especialmente relevante para o Poder Judiciário, e não é em razão de qualquer julgamento importante que se avizinha. Nem de questão jurídica, por mais estranho que possa parecer – e sim relacionada à Administração Pública e ao Direito Financeiro.

Neste ano serão tomadas as decisões que definirão os rumos do Poder Judiciá- rio para o futuro, pois em 2014 elaborar-se-ão os planejamentos estratégicos pluria- nuais da maior parte dos tribunais do país.

O planejamento estratégico, como bem define o ministro do Supremo Tribu- nal Federal Ricardo Lewandowski, “consiste em antecipar racionalmente as ações visando a atingir determinados objetivos do modo mais econômico possível. Signi- fica, em suma, prever os distintos cenários que o futuro pode materializar, identi- ficando, em tempo hábil, eventuais ameaças ou possíveis oportunidades”; significa “conceber um objetivo e coordenar todas as ações para atingi-lo, integrando-as em um conjunto único. As ações singulares, intermediárias, periféricas e circunstan- ciais, enfim, todas as ações, quaisquer que sejam elas, devem subordinar-se a um fim último colimado, evitando-se a dispersão de esforços”.1 O planejamento estra- tégico do Poder Judiciário materializa-se em um documento no qual se definem a missão, a visão de futuro e os valores da instituição, fixando-se os objetivos estra- tégicos, com as respectivas metas, indicadores e as ações com as quais se pretende atingi-los.

 

 

1      Planejamento estratégico do Poder Judiciário. Revista Justiça & Cidadania, nov. 2011, p. 17-18.

 

 

Em 2009, foi publicada a Resolução 70 do Conselho Nacional de Justiça, que instituiu a obrigação para todos os tribunais de elaborar os respectivos planejamen- tos estratégicos, com abrangência mínima de cinco anos. Verdadeiro divisor de águas em matéria de administração do Judiciário, essa norma é a mais relevante para a modernização na gestão dos tribunais, inserindo-os no contexto de uma evolução pela qual vem passando a administração pública desde a década de 1990. Represen- tou, como já escrevi anteriormente, “o início de uma nova e importante fase no planejamento da ação governamental, que é a transposição das técnicas de planeja- mento orçamentário, financeiro e administrativo para órgãos da administração pú- blica”, compatíveis com uma sociedade moderna que se torna cada vez mais dinâmi- ca e exige uma administração competente, com ações eficientes, eficazes e efetivas.2

Considerando que a grande maioria dos tribunais instituiu seu planejamento pelo referido período mínimo, terão vigência nos anos de 2010 a 2014, encerrando-

-se, portanto, ao final deste ano.

Elaborar um planejamento estratégico é tarefa complexa, pois exige pesquisas, estudos e análises minuciosos, discussões com os interessados, ouvindo-se todos aqueles que integram o órgão e também os cidadãos, que são os beneficiários finais de sua atividade, para que sejam estabelecidas democraticamente as prioridades que melhor reflitam o interesse público. Sopesar todas essas informações, à luz das mais modernas técnicas de administração pública, para elaborar um documento que represente fiel e efetivamente as diretrizes a serem seguidas e que seja dotado de legitimidade e credibilidade, de modo a engajar todos os seus integrantes na busca dos resultados almejados, requer tempo, trabalho e dedicação. Necessário, pois, canalizar as energias durante este ano para cumprir esta que será a mais im- portante tarefa do Poder Judiciário.

Sabe-se que o que mais falta na administração pública, e nela os tribunais não são exceção, é boa gestão, e melhorar a administração com a implementação de métodos mais modernos é a área em que há mais espaço para grandes avanços.3

O primeiro e mais relevante passo para qualquer administração, pública ou privada, que almeje obter bons resultados, é o planejamento sério e bem elaborado, pois é nele que constam as diretrizes, objetivos e metas a seguir, sem o que toda a gestão fica sem sentido. São muitas as demandas, inúmeros os interesses e interes-

2 CONTI, José Mauricio. Planejamento e responsabilidade fiscal. In: SCAFF; CONTI (org.). Lei de Responsabilidade Fiscal – 10 anos de vigência. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 52-53.

3     Veja também, nesta edição, p. 135-138, Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão.

 

 

sados; não havendo prioridades estabelecidas com critério, o gestor não tem parâ- metros para tomar suas decisões. A partir do plano traçado, é que se elaboram os projetos, que passam a ter coerência, coesão e integração. Governar sem um bom planejamento “é como comandar um transatlântico no meio do oceano sem mapa, instrumentos de navegação e, principalmente, sem saber o porto de destino. Pouco importa cuidar da adequada limpeza, funcionamento da cozinha, da casa de má- quinas e tudo o mais que é necessário, se o navio está verdadeiramente à deriva, pois o comandante sequer sabe para onde vai”, já escrevi anteriormente.4

No caso da Administração Pública, a responsabilidade é ainda maior, pois se lida com dinheiro público, e a falta de planejamento resulta invariavelmente em grandes desperdícios de recursos que pertencem a todos nós.

Em se tratando do Poder Judiciário, há que se dar especial relevo por ser a principal instituição na administração da Justiça. Decisões e ações do Poder Judi- ciário afetam e conduzem os demais órgãos, pessoas e instituições essenciais à Jus- tiça. É por iniciativa do Poder Judiciário que se define a instalação de novos fóruns e comarcas, é ele quem conduz os processos e, mais recentemente, implanta siste- mas de processo eletrônico aos quais terão de se adaptar o Ministério Público, a Defensoria, a Advocacia, auxiliares da Justiça e os cidadãos. Daí porque se torna mais relevante o planejamento de seu futuro e suas ações, tornando-os transparen- tes e previsíveis, a fim de que todos que dele dependam e com ele se relacionam possam também se planejar.

Poucos se dão conta, mas vários dos tribunais que integram o Poder Judiciário de todo o país têm dimensões que superam muitos estados da Federação e a maior parte dos municípios. Para que se tenha uma noção, o Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior do país, tem orçamento para este ano de 2014 da ordem de R$ 8,4 bilhões, praticamente equivalente ao dos estados de Alagoas e Sergipe (R$ 8,3 bi- lhões e R$ 8,2 bilhões, respectivamente), e maior do que os orçamentos dos estados do Acre, Amapá, Roraima e Rondônia, e do de cidades como Curitiba, Fortaleza e Salvador, além de superar o de órgãos como o Senado, a Câmara dos Deputados e o Ministério Público da União.5 Não é razoável que todos os entes da federação sejam obrigados a ter um planejamento de médio prazo, como o plano plurianual previsto no art. 165, I, da Constituição, e não se exigir o mesmo para os Tribunais. São eles, atualmente, órgãos da Administração Pública cujo tamanho e complexi-

4   Planejamento municipal precisa ser levado a sério, nesta edição, p. 135-138.

5 Todos os dados em valores aproximados, em bilhões de reais, referentes ao orçamento de 2014: Acre – 5,3; Amapá – 5,1; Roraima – 2,9; Rondônia – 6,9; Curitiba – 7,6; Fortaleza – 6,4; Salva- dor – 6,4; Senado – 3,8; Câmara dos Deputados – 4,9; e Ministério Público da União – 4,7.

 

 

dade tornam imprescindível, ainda que integrando um ente federado, seguir as mesmas exigências a que somente estes últimos estavam formalmente sujeitos.6

Criado em 18 de março de 2009 pela já mencionada pela Resolução 70 do CNJ, o planejamento estratégico vigente não foi construído com a perfeição dese- jável em todos os tribunais, não só pela exiguidade do prazo – menos de um ano –, como também, e principalmente, pelo pioneirismo da experiência, inovadora na quase totalidade dos tribunais. Neste ano, com a experiência adquirida e os dados coletados, todos terão a oportunidade de aperfeiçoá-lo, superando as dificuldades do anterior e produzindo um documento que é fundamental para uma gestão que se pretenda moderna e eficiente.

Assim é que os tribunais, com o apoio dos respectivos Núcleos de Gestão Es- tratégica (Res. CNJ 70/2009, art. 3º), devem elaborar e implementar este novo planejamento estratégico, com a participação efetiva de serventuários e magistra- dos de primeiro e segundo graus (idem, art. 2º, § 4º), assegurando alinhamento com os respectivos orçamentos, de forma a garantir os recursos necessários à exe- cução (idem, art. 2º, § 3º). Além de assegurar os recursos orçamentários, há que se compatibilizar o planejamento estratégico com o plano plurianual do respectivo ente da Federação que integram, evitando incongruências e inconsistências que mitiguem sua credibilidade e prejudiquem a execução, controle e fiscalização.

No Poder Judiciário, o planejamento, ao menos de médio prazo, tem relevân- cia maior do que em outros órgãos da administração. Isso se deve, especialmente, ao curto mandato de seus presidentes, fixado em dois anos pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional, insuficiente para que tomem adequado conhecimento da máquina administrativa e possam, neste espaço de tempo, elaborar, implementar e gerir projetos novos. Essa frequente alternância dos gestores pela exiguidade no tempo do mandato torna ainda mais importante um planejamento dotado de se- gurança jurídica, dada a necessidade de continuidade administrativa7 e de um sistema eficiente de gerenciamento de projetos.

Acrescente-se que, nos tribunais, o cargo de cúpula cabe a um magistrado, do qual não se exige formação nem prática em administração pública, como também

6 “Somadas essas e outras circunstâncias à dimensão de alguns órgãos da administração pública, esta só poderá ser eficiente se as técnicas de planejamento forem aplicadas também a esses ór- gãos, especialmente aqueles dotados de alto grau de autonomia, em que se torna pouco viável a imposição de normas e procedimentos. É o caso, por exemplo, dos Poderes da República, dos Ministérios Públicos e dos Tribunais de Contas”, já escrevi em Planejamento e responsabilidade fiscal…, op. cit., p. 52-53.

7   Vide os “considerandos” da Resolução 70/2009.

 

 

ocorre com os entes federados de forma geral. Estes últimos, no entanto, contam, no mais das vezes, com quadros técnicos permanentes especializados em gestão pública, e seus mandatários exercem o cargo por quatro anos, facultada a reeleição, o que não ocorre nos tribunais.

Não se deve esquecer ainda que podem ser aproveitadas as experiências dos demais tribunais com os projetos bem-sucedidos do banco de boas práticas de gestão do Poder Judiciário do Conselho Nacional de Justiça,8 e com ele colaborar, inserindo os projetos exitosos para que sejam também utilizados pelos outros tribunais.

O Poder Judiciário, hoje, está cada vez menos isolado, interage com os de- mais, interfere no orçamento público impulsionando políticas públicas em um ativismo judicial que é crescente e participa de forma intensa nas áreas da saúde; educação; proteção à criança e ao adolescente, a idosos e deficientes; e em progra- mas que envolvem todos os entes da federação, transformando-se no “grande pro- tagonista da cena estatal neste início do século 21”, como bem observou o Desem- bargador José Renato Nalini, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, em artigo recente.9

Vê-se que não será fácil. Coordenar tudo isso é uma tarefa complexa, não te- nham dúvidas. Mas o Poder Judiciário exerce, hoje, papel fundamental para que o país atinja os objetivos expressos no artigo 3º da Constituição, agindo em harmo- nia com os demais poderes, nos termos do artigo 2º. E planejar é o primeiro e principal passo nessa missão que precisa ser cumprida, ainda que pareça, à primei- ra vista, muito difícil.

Mas sonhar nunca é demais. E “os magistrados também devem sonhar. So- nhar com um Judiciário forte e unido que ocupe o lugar de destaque que seus membros merecem no cenário social e político deste País, para que possam, em conjunto e individualmente, colaborar de modo efetivo na construção de uma so- ciedade mais livre, mais justa e mais solidária”.10

 

 

 

 

 

 

 

8      Res. CNJ 70/2009, idem, artigo 4º – <http://www.cnj.jus.br/estrategia/index.php/boaspraticas/>.

9      O que esperar da Justiça? O Estado de S.Paulo, 2 de janeiro de 2014, p. A2.

10     Min. Ricardo Lewandowski, Planejamento estratégico do Poder Judiciário, op. cit., p. 19.

 

 

 

 

LDO É INSTRuMENTO EFICIENTE PARA A ADMINISTRAçÃO PÚBLICA

 

 

Coluna publicada em 9.4.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-abr-09/ contas-vista-ldo-instrumento-util-gestao-administracao-publica>

 

 

 

 

 

Na segunda-feira da semana que vem, dia 15 de abril de 2013, será divulgada a nova Lei de Diretrizes Orçamentárias da União para 2014, o que seguramente, como tem ocorrido todos os anos, será objeto do noticiário, dada a importância que essa lei tem assumido nos últimos anos. A Lei de Diretrizes Orçamentárias – a LDO – foi uma inovação da legislação brasileira, cujo desenho surgiu durante os trabalhos da Assembleia Constituinte, sendo introduzida em nosso ordenamento jurídico pela Constituição de 1988, e seu papel tem sido cada vez mais relevante na condução dos rumos de nossas finanças públicas.

Prevista no artigo 165, § 2º da Constituição Federal, tem por função estabe- lecer anualmente as metas e prioridades da administração pública para as despesas de capital (essencialmente investimentos públicos) e programas de duração conti- nuada. Trata-se de verdadeiro “elo de ligação” entre o plano plurianual, com previ- são para quatro anos, e a lei orçamentária, que fixa as receitas e despesas de cada ano. Cumpre função relevante no sistema de planejamento da ação governamental, pois obriga os administradores públicos a definir, a cada ano, quais programas previstos no plano plurianual serão contemplados e quanto se pretende realizar. Evita-se, com isso, o irresistível hábito de “deixar para a última hora”, de modo a postergar o cumprimento dos programas para o final do plano plurianual, o que, no mais das vezes, inviabiliza alcançar as metas fixadas, até porque, no último ano do PPA, em regra quem está no exercício do mandato é outro governante (No pri- meiro ano de mandato não se cumprem promessas, nesta edição, p. 161-164).

Durante os trabalhos da Assembleia Constituinte, aventou-se a possibili- dade de um orçamento bianual, válido por dois anos, em substituição ao modelo tradicional, no Brasil e no mundo, de orçamentos anuais. A ideia acabou não vin-

 

 

gando, mas surgiu o projeto de um “pré-orçamento”, com vistas principalmente a aumentar a participação do Poder Legislativo na elaboração da lei orçamentária. Definiu-se, portanto, que haveria essa lei, precedendo a lei orçamentária anual, na qual seriam definidas as prioridades e metas da administração pública para o exer- cício seguinte, orientando a elaboração do orçamento.1

Introduzida no texto da Constituição em 1988, a LDO é obrigatória para todos os entes federados e compõe o sistema, uniforme em nossa federação, de planejamento da ação governamental. Estados e municípios diferem da União em alguns detalhes, como o prazo de encaminhamento e aprovação, que atualmente, no âmbito federal, está regulado, ainda provisoriamente, pelo artigo 35, § 2º, II do ADCT, que determina seja o projeto de lei encaminhado pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo “até oito meses e meio antes do encerramento do exercício finan- ceiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa” – daí a data de 15 de abril que se avizinha. Outros entes federados, por vezes, estabelecem datas diferentes, como é o caso do estado de São Paulo, que prevê o encaminhamento do projeto até o dia 30 de abril (Constituição Estadual, art. 174, § 9º, 2).

Desde a promulgação da Constituição, passando pela Lei de Responsabilida- de Fiscal, em 2000, até os dias atuais, a Lei de Diretrizes Orçamentárias foi tendo suas atribuições ampliadas, representando um papel cada vez mais importante na organização das finanças públicas, exercendo hoje funções bem maiores do que aquelas inicialmente estabelecidas, de orientação da lei orçamentária e fixação das diretrizes e metas da administração pública.

Já no próprio texto original da Constituição de 1988, vê-se, no artigo 99,

  • 1º, que compete à LDO, em ação conjunta dos Poderes, estipular os limites fi- nanceiros para a apresentação das propostas orçamentárias dos tribunais. Trata-se de um dos mais, se não o mais, relevante instrumento para a plena eficácia da au- tonomia financeira do Poder Judiciário, pois retira do Executivo a possibilidade de interferir em seu orçamento, uma vez que, ao elaborar sua proposta dentro dos li- mites da LDO, aprovada pelo Legislativo, não pode ter os valores reduzidos ou modificados por ato do Executivo – o mesmo vale para o Ministério Público (CF, art. 127, § 3º). Com a Emenda Constitucional 45, de 2009, essa função da LDO estendeu-se também à Defensoria Pública (CF, art. 134, § 2º).

O artigo 165, § 9º, da Constituição Federal, previu a edição de lei comple- mentar para dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei or-

1      Veja-se, neste tema, o trabalho de José Roberto Rodrigues Afonso, Memória da Assembleia Constituinte de 1987/1988: as finanças públicas.

 

LDO é instrumento eficiente para a administração pública            ••

 

çamentária anual, além de estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como as condições para instituição e fun- cionamento de fundos. Tal lei complementar ainda não foi publicada, não obstan- te os vários projetos em andamento (Responsabilidade orçamentária precisa de me- lhorias, nesta edição, p. 259-262). Com isso, muitas lacunas existem, pois esses assuntos estão sendo regulados pela Lei 4.320/1964, já em vias de completar 50 anos. Suprir essas lacunas tem sido uma função, inúmeras vezes, cumprida pelas leis de diretrizes orçamentárias, como se tem notado ao longo dos últimos anos.

Além disso, em 2000, com a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Comple- mentar 101, de 5 de maio), que estabeleceu normas de finanças públicas voltadas à responsabilidade na gestão fiscal, a LDO passou a ser importante instrumento de viabilização de normas que pudessem regular e limitar os gastos públicos, o que ampliou sobremaneira seu papel no ordenamento jurídico das finanças públicas. Entre eles, várias merecem destaque.

Regulamentar e estabelecer critérios e forma de limitação de empenho (LRF, art. 4º, I, b), por exemplo, permite que se organize a execução orçamentária, esta- belecendo regras e limites, ao contingenciamento, evitando que o Poder Executivo, no exercício de sua função de comando na execução orçamentária, venha a des- cumprir a lei orçamentária, desviando-a de seu curso, e frustrando a aplicação da lei que havia sido legitimamente aprovada. Coloca, assim, freios aos abusos de há muito observados em matéria orçamentária, em que o Poder Executivo, fazendo uso do contingenciamento, superpõe-se indevida e não democraticamente aos de- mais Poderes e entes da federação, subjugando-os pela não liberação dos recursos previstos no orçamento.

Estabelecer normas para controle de custos e avaliação dos resultados dos pro- gramas orçamentários (LFR, art. 4º, I, c) é fundamental para que se consolide um sistema eficaz de planejamento e orçamento preocupado com o bom desempenho da administração pública, pois permite que se estabeleçam regras claras para ava- liação do cumprimento das metas, asfixiando os desvios ilegítimos de recursos públicos pela sua destinação a programas de difícil mensuração, o que sempre faci- litou a malversação de dinheiro público.

Fixar condições e exigências para transferências de recursos a entidades públicas e privadas (LRF, art. 4º, I, d) é outro papel da maior relevância, pois a entrega de recursos orçamentários a terceiros, a fim de que atendam a finalidades públicas, é ato que tem se intensificado cada vez mais, da mesma forma que as fraudes que se asso- ciam a essa prática. Nada mais relevante do que estabelecer e aperfeiçoar as normas que coíbam esses desvios, no que as LDO têm representado importante papel.

 

 

O Anexo de Metas Fiscais (LRF, art. 4º, § 1º), com a fixação de metas para o exercício em curso e os dois subsequentes, a cada ano, é um avanço da legislação em matéria de planejamento, institucionalizando o sistema de “planejamento des- lizante” da ação governamental, em que as necessárias alterações e adaptações des- sas normas passam a ser feitas de forma gradual e formal, mantendo a segurança jurídica e confiabilidade do sistema. Com a avaliação e acompanhamento das me- tas estabelecidas, por métodos precisos e transparentes, os gestores ficam impedi- dos de fazer delas números voltados apenas a cumprir formalidades burocráticas.

O Anexo de Riscos Fiscais (LRF, art. 4º, § 3º) obriga também os administra- dores públicos a pensar nos problemas futuros, exigindo que se preparem antecipa- damente e antecipem as medidas a serem tomadas caso eles venham a se concreti- zar, evitando as sempre presentes ações imediatas e improvisadas, resolvendo problemas ocorridos e que só tenderão a aumentar, fato mais que conhecido em toda a burocracia estatal.

A exigência de que se divulguem os objetivos das políticas monetária, credití- cia e cambial e as metas de inflação (LRF, art. 4º, § 4º) tem se mostrado funda- mental para a transparência que se espera da administração pública, deixando cla- ro, para os setores público e privado e a sociedade em geral, os rumos que se pretendem dar à ação governamental, o que é fundamental para que todos possam se orientar de forma coordenada e planejada.

Espera-se que se dê mais atenção à Lei de Diretrizes Orçamentárias, inovação do ordenamento jurídico brasileiro que tem se mostrado um instrumento útil e eficiente para o sistema de planejamento, orçamento e gestão da administração pública.

Instrumento esse que colabora de forma decisiva para aquele que seguramente será o maior avanço da administração pública brasileira, que é transformar o gestor público naquele agente que conduz a máquina pública pensando para a frente e que um dia deixará de ser o bombeiro que passa a vida a apagar incêndios.

 

 

DECISõES FINANCEIRAS FuNDAMENTAIS SÃO TOMADAS NA LEI DE DIRETRIzES ORçAMENTÁRIAS

 

Coluna publicada em 18.10.2016: <https://www.conjur.com.br/2016-out-18/ contas-vista-decisoes-financeiras-fundamentais-sao-tomadas-ldo>

 

 

 

 

 

Não obstante recentes notícias sobre o avanço da tramitação e possível apro- vação em breve da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com as diretrizes orça- mentárias para 2017,1 isto acabou ainda não ocorrendo, apesar de já estarmos nos aproximando do final do mês de outubro, praticamente três meses após o prazo constitucionalmente estabelecido (ADCT, art. 35, § 2º, I). Mais uma razão para que se volte a chamar a atenção para esse instrumento legislativo sobre o qual já escrevi2 e ao qual não se tem dado a devida atenção. E que esperamos não voltem a ocorrer maus exemplos como o que se observou nos últimos anos, em que chegou ao cúmulo de ser aprovada no ano seguinte.3 E também para algumas questões e decisões importantes no âmbito do Direito Financeiro a ela relacionados.

Cogita-se desta vez de nela fazer constar, como está no texto-base já aprovado na Comissão Mista de Orçamento em 24 de agosto de 2016, a previsão de teto para as despesas públicas, enquanto não se aprova a PEC que pretende dispor de forma definitiva sobre o assunto.4 É uma medida que não integra as funções da LDO, e mais uma vez se utilizaria de forma indevida esse instrumento, como meio para inserir disposições de forma provisória na legislação financeira. Convém sempre lembrar que a LDO é lei de validade temporária, e não deveria ser um verdadeiro

1      Sem CPMF, Comissão de Orçamento aprova a LDO 2017. Valor Econômico, 14 de julho de 2016.

2      LDO é instrumento eficiente para a administração pública, nesta edição, p. 151-154.

3      No caso da LDO para 2015, Lei 13.080, somente publicada em 2 de janeiro de 2015.

4      Governo Temer faz nova ofensiva contra direitos sociais, desta vez na PLDO 2017. INESC.

Disponível em: <http://www.inescr.org.br/noticias>.

 

 

“substitutivo” de leis que tratem de forma geral de matéria orçamentária, como a Lei 4.320. E de aplicação restrita, uma vez que é própria da administração pública federal, não atingindo seus dispositivos as administrações públicas estaduais e municipais.

A questão da fixação de teto para os gastos públicos merece análise mais pro- funda, mas algumas considerações podem ser adiantadas. A ideia básica da pro- posta de emenda constitucional que introduz, no ato das disposições constitucio- nais transitórias, a limitação ao crescimento dos gastos públicos (PEC 241/2016), amplamente noticiada pela imprensa e em discussão no Congresso Nacional, re- centemente aprovada em primeira votação, é a instituição do chamado “Novo Regime Fiscal”, com a duração de vinte exercícios financeiros, isto é, vinte anos. Em contraste com as atuais regras de destinação de recursos públicos, o que have- ria de propriamente novo com esta alteração da Constituição é a fixação, durante o período de vigência, de limite anual para as despesas primárias de cada um dos Poderes, incluídos o Tribunal de Contas, o Ministério Público e a Defensoria Pú- blica da União. Por definição da emenda, ainda, este limite será vinculado de algu- ma forma à inflação, com as despesas de um exercício limitadas àquelas realizadas no período anterior, corrigidas pelo IPCA. Estes limites constariam da Lei de Di- retrizes Orçamentárias, por determinação constitucional.

É fato que, em situação da grave crise econômica, que exige medidas emergen- ciais, limitar os gastos públicos, como a que se tem cogitado, pode ser necessária. Certamente não seria caso a legislação vigente, especialmente a Lei de Responsabi- lidade Fiscal, tivesse sido observada, o que não teria deixado a situação chegar a esse ponto. Mas a irresponsabilidade fiscal dos últimos anos, tantas vezes denun- ciada nesta coluna, não poderia ter levado a resultado diferente. E é sempre bom ressalvar que estabelecer limites para os gastos de forma linear e generalizada é medida no mínimo imperfeita, certamente causará desajustes e injustiças e poderá frear despesas fundamentais para o pleno desenvolvimento econômico e social, como saúde e educação. Espera-se que ao menos possa “dar para o gasto”, como estampa a revista Época na capa da edição desta semana…5

Em face das óbvias dificuldades em aprovar a referida PEC, especialmente em curto prazo e em momento de instabilidade econômica, cogita-se antecipar a me- dida, inserindo-a desde já na LDO. Como cabe à LDO orientar a elaboração do orçamento anual, pretende-se fixar para 2017 a limitação dos gastos mesmo sem o

5      Edição 957, de 17 de outubro de 2016.

 

 

acréscimo constitucional, restrita à vigência anual pela própria natureza do instru- mento que a veicula. Que tipo de gasto seria, porém, atingido com uma limitação desta natureza? A referência é explícita ao gasto primário, aquele que se destina a financiar as despesas não financeiras do governo, isto é, aquele que não se relaciona com a amortização e o pagamento de juros da dívida pública. Por exemplo, as des- pesas para o financiamento dos serviços públicos de saúde e educação, os benefícios da previdência e as despesas sociais em geral, constatando-se que a pressão pela redução dos gastos acaba se concentrando naquelas que afetam diretamente o bem-

-estar da população, o que evidentemente não é desejável.

E também é sempre bom voltar a chamar a atenção para a necessidade de melhoria na gestão pública, verdadeiro foco de vultosos desperdícios de dinheiro público, tema ao qual pouca atenção se dá, como se pode constatar.6 Invariavel- mente as discussões concentram-se na busca do equilíbrio fiscal pela necessidade de aumentar receitas ou reduzir os gastos por meio de limitações como a que se está propondo, e esquece-se daquela que deve ser a principal medida, qual seja, aumen- tar a eficiência do gasto, o que permite fazer mais com menos, evitando desperdí- cios, e permitindo que, sem aumentar a arrecadação, produzam-se melhores resul- tados para a população. Mas que tendem a gerar efeitos em prazos mais longos, e as situações emergenciais acabam fazendo prevalecer medidas que tendem a “apa- gar incêndios”, perpetuando a “administração-bombeiro” à qual já me referi.7

E quando se fala em despesas, esquecem-se outras formas de gastos verdadei- ramente “ocultos”, como os já chamados “gastos tributários”, representados pelos sem-número de benefícios fiscais, nem sempre suficientemente transparentes e por vezes de eficácia duvidosa, sem contar os benefícios creditícios.8

Outra despesa de enorme relevância, à qual se deve dar maior atenção e trans- parência, e ser objeto de debates que permitam decisões mais democráticas, está na dívida pública, que consome parcela elevadíssima do orçamento público, e neste campo a LDO atualmente cumpre importante papel.

Alguns argumentos apontam para a inconveniência de restringir, por determi- nação normativa, o gasto com juros, pois isso comprometeria um dos principais

 

6  Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão, nesta edição, p. 255-258.

7   Direito Financeiro precisa avançar, e a hora é agora, nesta edição, p. 263-268.

8   Vide as operações do BNDES, já mencionadas no texto BNDES tem o dever de colaborar com a transparência dos gastos públicos, nesta edição, p. 411-416. As “equalizações” do Plano Safra, que tanto problema têm dado na questão do impeachment, e outras. A questão também foi bem observada pelo jornalista José Paulo Kupfer em coluna publicada recentemente (Balança dese- quilibrada. O Estado de S.Paulo, 10 de outubro de 2016). E foi manchete da Folha de S.Paulo de 16 de outubro de 2016: “Bolsa-empresário” resiste ao ajuste fiscal em 2017.

 

 

instrumentos de condução da política monetária e de controle da inflação, além de promover interferências nem sempre eficazes em valores que são preços determina- dos pelo mercado. Como aponta o economista Samuel Pessoa, a estratégia para reduzir o custo da dívida pública (ou seja, reduzir os gastos financeiros do governo) não passa ao largo da questão fiscal, mas é por ela influenciada: o controle do gas- to primário representa um indicador de solvência do Estado que, refletindo-se nas expectativas dos credores atuais e potenciais, reduz o preço cobrado para lhe em- prestar dinheiro. Em síntese, “a redução do gasto primário causa queda do gasto financeiro. O contrário não ocorre. Em geral acontece o inverso: redução do gasto financeiro induz, por meio de escolhas do Congresso Nacional, a aumento do gas- to primário”.9

Sendo assim, nada mais razoável do que decidir democraticamente sobre essa despesa, e a melhor oportunidade para fazê-lo está justamente na LDO.

Um dos dispositivos da LDO que tem assumido maior relevância atualmente é justamente o que cumpre a função de estabelecer as metas de resultado nominal e primário e montante da dívida pública referentes ao exercício financeiro a que se refere e aos dois subsequentes,10 e ao fixar as metas de resultado para o exercício financeiro subsequente, tem balizado todo o gasto público.

A LDO, como as demais leis de natureza orçamentária, é de iniciativa priva- tiva do Chefe do Poder Executivo, a quem cabe formular sua proposta. Mas, é sempre bom lembrar, é aprovada pelo Legislativo, a quem cabe a palavra final a respeito. Sendo assim, a fixação da meta de resultado tem uma importância ímpar, cuja decisão deve ser tomada pelos representantes eleitos, inicialmente o Chefe do Poder Executivo e definitivamente pelo Parlamento, que devem abrir o debate e, de forma democrática e transparente, definir este valor, que terá substancial relevância na questão da dívida pública, sendo este o principal momento em que se poderá discutir esta questão que hoje é fundamental. Até porque, por ocasião da votação da lei orçamentária anual, uma vez proposta, não mais será permitido ao Poder Legislativo emendá-la no que tange ao serviço da dívida, em face da vedação cons- titucional do art. 166, § 3º, II, b.

Esse dispositivo inclusive fundamentou uma das acusações que deram origem ao pedido de impeachment da Presidente, pois a abertura de crédito adicional em

 

9   PESSÔA, Samuel. E os juros?. Folha de S.Paulo, 26 de junho de 2016.

10 LRF, art. 4º, § 1º: “Integrará o projeto de lei de diretrizes orçamentárias Anexo de Metas Fiscais, em que serão estabelecidas metas anuais, em valores correntes e constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário, e montante da dívida pública, para o exercí- cio a que se referirem e para os dois seguintes”.

 

 

montante superior ao que previa a meta de superávit primário fixada pela LDO era uma das restrições que foram descumpridas. O que só demonstra a relevância cada vez maior que hoje assume no âmbito das finanças públicas.

Vê-se, pois, tratar-se de decisão que precisa ser tomada com base em informa- ções claras, abrangentes e confiáveis, submetidas a amplo debate, com transparên- cia, a fim de que seja respeitada, para que não seja mais alterada posteriormente, como ocorreu várias vezes nos últimos anos, destruindo completamente a sua cre- dibilidade, e tornando a meta fixada pela LDO uma verdadeira “mentira fiscal”, como já me referi anteriormente.11

Outro dispositivo ao qual não se tem dado a devida atenção é fundado no art. 9º, § 2º, da Lei de Responsabilidade Fiscal, que permite à LDO ressalvar despesas suscetíveis de contingenciamento, o que as privilegia na fase de execução orçamen- tária. Uma forma de tornar claras as prioridades. A importância deste dispositivo é particularmente grande, dadas algumas peculiaridades do orçamento brasileiro, em que as legítimas opções políticas pelas despesas a serem realizadas durante o exercício são feitas não apenas no momento em que a lei orçamentária é elaborada, mas também naquele em que ela é executada. Esta fase não tem se constituído apenas como uma etapa de aplicação dos montantes previstos, mas, desde que se entenda que as dotações constituem um teto, na execução do orçamento tomam-se diversas decisões acerca da oportunidade e conveniência de se realizarem determi- nados gastos, muitas vezes optando por suspender a aplicação dos recursos previs- tos para assegurar melhores resultados.12 E o mencionado dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal oferece ao legislador a faculdade de incluir determinadas despesas imunes ao contingenciamento, dada a relevância conferida a estes gastos. O anexo da LDO que vier a estabelecer esta proteção permite, portanto, oferecer maior estabilidade a algumas despesas no momento da execução.

A LDO teve suas funções ampliadas para além das funções constitucional- mente definidas, em muito se descolando de seu propósito original: orientar a ela- boração do orçamento anual a partir da definição de grandes prioridades.13 Weder de Oliveira analisa a gênese desta lei especial e aponta o contraste entre o propósito inicial, destinado a oferecer orientação de alto nível, a partir de grandes números, à lei orçamentária, e a feição efetivamente tomada pela atuação do legislador. Se é verdade que as leis de diretrizes orçamentárias muitas vezes se dedicam a preencher

 

11  Desrespeito ao Direito Financeiro afastou Dilma do cargo de Presidente, nesta edição, p. 429-432.

12     Orçamento não pode mais ser uma peça de ficção, nesta edição, p. 189-194.

13     Direito Financeiro precisa avançar, e a hora é agora, nesta edição, p. 263-268.

 

 

lacunas da legislação complementar e a determinar procedimentos de elaboração orçamentária, de outro lado há um aspecto relevante desempenhado por esta lei ao guiar o orçamento a partir de uma grandeza relevante: as metas de resultado do governo. Como sintetiza o autor citado, “[d]isso resulta que, com exceção do tema meta de resultado primário, a função ‘orientar a elaboração da lei orçamentária anual’ seja desempenhada intensamente em outras perspectivas, que se poderiam dizer regulatórias, procedimentalistas e microalocativas, e que têm interessado mais aos congressistas”.14

Espera-se que se dê mais atenção e seriedade à LDO, permitindo assim que democraticamente sejam tomadas decisões fundamentais, como a definição das prioridades dos gastos públicos, dimensão do esforço a ser feito para o pagamento da dívida e outras que, neste momento de crise, exigem que todos participem da definição de quais serão os sacrifícios e quem serão os prejudicados e beneficiados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

14     OLIVEIRA, Weder de. Gênese, funcionalidade e constitucionalidade da Lei de Diretrizes Orça- mentárias. São Paulo: Fadusp, 2016. p. 415.

 

 

NO PRIMEIRO ANO DE MANDATO, NÃO SE CuMPREM PROMESSAS

 

 

Coluna publicada em 20.11.2012: <http://www.conjur.com.br/2012-nov-20/ contas-vista-primeiro-ano-mandato-nao-cumprem-promessas>

 

 

 

 

 

As eleições acabaram, prefeitos e vereadores estão eleitos, os vencedores feste- jaram. Daqui a pouco mais de um mês, tomam posse. E começarão a trabalhar. Expectativas, muito justas e até óbvias, se formam em torno dos novos prefeitos e vereadores, que assumem comprometidos a tornar reais todas as promessas feitas poucos meses antes, ao longo da campanha eleitoral.

Sem querer estragar a festa, nem frustrar expectativas, aproveito o momento para algumas considerações em torno do sistema orçamentário brasileiro, que tem algumas peculiaridades sobre as quais é interessante refletir.

A boa gestão da administração pública não pode prescindir de um sistema de plane- jamento da ação governamental, envolvendo aspectos de longo, médio e curto prazos.

O aspecto essencial do ordenamento jurídico que cuida do planejamento da ação governamental dos entes federados está previsto no artigo 165 da Constitui- ção Federal, que estrutura o sistema em função de três leis: o plano plurianual (PPA), a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e a lei orçamentária anual (LOA).

O plano plurianual é válido por quatro anos e nele estão contidos as diretrizes, objetivos e metas da administração pública para as despesas de capital e programas de duração continuada. O projeto de lei do PPA deve ser apresentado pelo chefe do Poder Executivo ao Poder Legislativo até quatro meses antes do encerramento do primeiro exercício financeiro,1 para, após aprovado, vigorar até o final do primeiro exercício financeiro do mandato subsequente.

 

1      Na esfera federal, nos termos do artigo 35, § 2º, I do ADCT-CF. Os prazos podem variar conforme o estado e o município. Em geral, estados e municípios costumam definir, nas

 

 

A lei de diretrizes orçamentárias tem por finalidade estabelecer as metas e prioridades da administração pública para as despesas de capital do exercício finan- ceiro subsequente e orientar a elaboração da lei orçamentária anual, entre outras funções. Trata-se de lei anual, a ter seu projeto encaminhado pelo chefe do Poder Executivo ao Poder Legislativo até oito meses e meio antes de findo o exercício financeiro,2 produzindo parte de seus efeitos até a aprovação da lei orçamentária e parte durante o exercício financeiro subsequente, em função de disposições que cuidam da execução da lei orçamentária.

E a lei orçamentária – o orçamento propriamente dito –, que define as receitas e despesas para o exercício financeiro subsequente, tem seu projeto apresentado, todos os anos, pelo chefe do Poder Executivo ao Poder Legislativo até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro.3

A análise cuidadosa desses prazos permite constatar algumas questões interessantes.

Os prefeitos recém-eleitos, por força da legislação eleitoral, tomam posse e iniciam seu mandato no próximo dia 1º de janeiro. Exatamente na data em que começa a ser executada a lei orçamentária (Lei 4.320/1964, art. 32).

Ocorre que o orçamento a ser executado, como se pode ver, teve seu projeto apresentado pelo prefeito atualmente em exercício e aprovado pela câmara de verea- dores dessa legislatura – e não da que vai tomar posse. Mais do que isso. Segue as determinações impostas pela lei de diretrizes orçamentárias aprovada no primeiro semestre do ano em curso. Que, por sua vez, está em consonância com o plano plurianual,4 elaborado pelo Poder Executivo e aprovado Legislativo atualmente no exercício do poder.

Em outras palavras, e não há como concluir de outra forma: se observado o ordenamento jurídico, caberá ao prefeito eleito, durante o primeiro ano de manda- to, cumprir o que foi estabelecido por seu antecessor!

respectivas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais, esse prazo estendido em um mês, ou seja, até três meses antes do encerramento do primeiro exercício financeiro.

2 Na esfera federal, nos termos do artigo 35, § 2º, II do ADCT-CF. Pode haver pequenas varia- ções de datas nos estados e municípios, conforme estabelecido pelas respectivas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais.

3 Na esfera federal, nos termos do artigo 35, § 2º, III do ADCT-CF. Pode haver pequenas varia- ções de datas nos estados e municípios, conforme estabelecido pelas respectivas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais.

4   Lei de Responsabilidade Fiscal, artigo 5º.

 

No primeiro ano de mandato, não se cumprem promessas   ••

 

O sistema de planejamento da ação governamental está, em linhas gerais, bem construído, e há de ser respeitado, tanto pela óbvia razão de estar fundado em nor- mas constitucionais e legais vigentes, como também por ser coerente com as mo- dernas técnicas de gestão, que exigem uma ação planejada, tanto mais eficientes quanto maior a segurança jurídica que lhes der sustentação.

No entanto, os prazos estabelecidos pela legislação eleitoral provocam esta si- tuação5 que pode gerar frustrações, tanto nos recém-eleitos, pelas dificuldades em implementar seus programas, como nos eleitores, ávidos pelo atendimento rápido de suas necessidades e das expectativas depositadas nos novos governantes.

Há meios de contornar, ainda que em parte, esta situação. Toda lei orçamen- tária é dotada de mecanismos de flexibilidade, permitindo que seja alterada, com a finalidade de adaptar a execução orçamentária às alterações surgidas no decorrer do exercício financeiro, mas sem desviar o curso do que nela foi estabelecido. Para isso, são previstos créditos adicionais, possibilidades de remanejamentos e outros instrumentos. Em prol da segurança jurídica e da boa gestão, no entanto, não se pode usar desses mecanismos para modificar significativamente o conteúdo da lei orçamentária, aprovada de forma legítima nos exatos termos da legislação vigente.

Há que se lembrar ainda de algumas restrições constitucionais importantes, como a vedação do início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentá- ria anual (CF, art. 167, I), bem como a proibição de dar início, sem prévia inclusão no plano plurianual, a investimentos cuja execução ultrapasse um exercício finan- ceiro, o que caracteriza, inclusive, crime de responsabilidade (CF, art. 167, § 1º).

Sendo assim, o primeiro ano de mandato não é, em regra, destinado a cumprir as promessas de campanha – ou, pelo menos, boa parte delas –, mas sim dar conti- nuidade aos projetos em andamento e planejar os próximos anos, elaborando o plano plurianual que regerá a administração pública nos quatro anos subsequentes.

De qualquer forma, não é desarrazoado refletir sobre esses fatos, até para su- gerir eventuais alterações que possam minimizar esta situação que é, e parte, incoe- rente, pois obriga o administrador a gerir a máquina pública de forma, muitas ve- zes, sem sintonia com a vontade popular que, não raro, votou esperando mudança de rumos, que acabará por retardar a acontecer.

Modificações nos prazos dessas leis, sejam elas de natureza eleitoral, alterando a data de eleições e/ou início de mandato, ou ainda nas datas de tramitação das leis orçamentárias, mesmo que apenas em anos eleitorais, são algumas possibilidades.

 

5      Prefeito no 1º ano do mandato cumprir o estabelecido pelo sucessor.

 

 

E aproveitar a oportunidade para ajustar uma antiga distorção ainda em vigor no que tange aos prazos de tramitação das leis de natureza orçamentária. Vejamos.

Há uma coerência no sistema de planejamento da ação governamental, com leis que se coordenam de modo a fazer com que o plano plurianual condicione a elaboração da lei de diretrizes orçamentárias que, por sua vez, delimita os parâme- tros a serem seguidos pela lei orçamentária anual.6

Observem que a apresentação do projeto de lei do plano plurianual deverá ser feita pelos próximos prefeitos no final do ano que vem (2013), para vigorar a partir do início do exercício subsequente (2014). No entanto, a lei de diretrizes orçamen- tárias, que deverá guardar coerência com o plano plurianual, será elaborada no primeiro semestre do ano que vem (2013), condicionando a elaboração da lei orça- mentária anual, a ser aprovada no final de 2013 para vigorar em 2014, e contendo dispositivos capazes de regular a execução orçamentária, que ocorrerá ao longo de 2014. Dessa forma, no exercício de 2013, a LDO será elaborada antes do plano plurianual; e a lei orçamentária, concomitantemente ao plano plurianual; e todas produzirão efeitos em 2014, tornando, evidentemente, inviável a perfeita coerência entre elas. Há que se pensar em uma solução legislativa para resolver essa distorção.

E lanço uma sugestão sobre outra questão, para refletir. É fato ser o plano plurianual uma lei complexa, que exige o conhecimento da máquina administrati- va para ser elaborada de forma precisa e adequada. No entanto, representa verda- deiro plano de governo, em que se expõem, de forma concreta, os programas e ações governamentais que se pretendem implantar e desenvolver durante o manda- to. Não seria descabido exigir dos candidatos, por ocasião do registro das respecti- vas candidaturas, ainda que em versão simplificada, um esboço do plano plurianual que pretende apresentar no início de seu mandato. Permitiria a seus eleitores votar de forma mais consciente, escolhendo aquele que, além de demonstrar seriedade, comprometimento e conhecimento dos problemas que pretende administrar, evi- dencia ter em mente as soluções concretas que pretende aplicar.

Aos legisladores, concito-os a pensar sobre os assuntos levantados. Aos prefeitos, desejo-lhes boa sorte em seus mandatos.

E aos eleitores, que tenham um pouco de paciência…

 

 

 

6 Como já escrevi em: CONTI, José Mauricio. Planejamento e responsabilidade fiscal. In: SCAFF, Fernando F.; CONTI, José Mauricio. Lei de responsabilidade fiscal. 10 anos de vigên- cia – questões atuais. Florianópolis: Conceito Editorial/IBDF, 2010, p. 51.

 

 

NO FuNDO, PROTESTOS ENvOLvEM quESTõES ORçAMENTÁRIAS

 

 

 

 

Coluna publicada em 2.7.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-jul-02/ contas-vista-fundo-protestos-envolvem-questoes-orcamentarias>

 

 

 

 

 

Já se completou um ano que esta coluna divulga as questões relevantes no âmbito do Direito Financeiro, e procuramos trazer ao público um pouco mais de informação, em linguagem simples e acessível, sobre esse “tema que teima” em ser ainda desconhecido e aparentemente árido, não obstante sua enorme relevância no dia a dia de todos nós.

Não poderia haver melhor oportunidade para demonstrar essa importân- cia do que analisar as manifestações que tomaram conta do país nos últimos dias. Isso porque elas envolvem, em sua gênese, uma questão essencialmente orçamentária.

Redução nos preços das passagens de ônibus, ou mesmo o “passe livre”, nada mais é do que uma decisão que reflete uma escolha da sociedade sobre o que pre- tende do Estado enquanto ente responsável pelo financiamento e implementação das inúmeras políticas públicas que vão satisfazer as necessidades de todos.

“A decisão de gastar é fundamentalmente uma decisão política”, já nos disse Regis de Oliveira,1 devendo os governantes ouvir e fazer respeitar a vontade da so- ciedade, a quem cabe decidir sobre a aplicação do dinheiro público.

Daí porque a especial atenção que se deve dar a dois aspectos sobre os quais o Direito Financeiro já se volta há muito tempo e cada vez mais se tornam relevantes: democracia e transparência.

Democracia para fazer com que os instrumentos voltados a melhor ouvir a po- pulação sejam efetivamente implementados, de modo a tornar as leis orçamentárias

 

1      OLIVEIRA, Regis Fernandes. Curso de direito financeiro. 4. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 292.

 

 

o reflexo exato daquilo que a sociedade espera que o poder público faça com o di- nheiro que é dela.

Transparência para que todos possam tomar decisões conscientes e adequadas, sabendo exatamente o que foi, é e será feito com o dinheiro público, e da melhor forma. Mais do que isso: como, quando, e por quem será feito.

Todos esses e tantos outros são aspectos que compõem uma decisão nada sim- ples, que deve ser tomada de forma democrática, consciente e transparente – como disse há poucos dias José Marcos Domingues de Oliveira, do que precisamos é de um orçamento sério, transparente e democrático (É necessário orçamento sério e prestação de contas, publicada no ConJur dia 21 de junho de 2013).

É fato que o orçamento é uma lei complexa, contendo informações jurídicas, econômicas, contábeis e administrativas, acessíveis a poucos. Em um país organi- zado na forma federativa, com clara separação de poderes, a dificuldade se torna ainda maior, tornando necessária a compatibilização de políticas públicas de inte- resse nacional, que envolvem, no mais das vezes, diversos entes da federação, com a necessidade de participação de vários poderes, tendo que se respeitar a autonomia de todos eles, que devem agir em cooperação, mitigando e superando seus interes- ses próprios em prol do bem comum.

Mesmo em questões como o transporte coletivo, atribuição do município (CF, art. 30, V), sob o comando do Poder Executivo, em que essas dificuldades podem parecer menores, por não envolver diretamente outros poderes e entes fede- rados, muitas decisões há que se tomar. Regimes de contratação, formas de remu- neração, coordenação com outros sistemas de transporte gerenciados por outras unidades da federação e tantos outros aspectos mostram que a administração pú- blica não é tarefa simples.

Também não é fácil saber precisamente o que a população pretende nos inú- meros programas que compõem o orçamento público. “Encargos Gerais”, “Partici- pação Societária”, “Suporte Administrativo”, “Política Externa”, “Resíduos Sóli- dos”, “Controle Externo”, “Biodiversidade” são apenas exemplos de denominações de alguns programas entre as centenas que compõem os orçamentos da União, estados e municípios. Vê-se a difícil tarefa que é traduzir os anseios populares nas descrições de programas e respectivas ações, indicadores, metas e resultados que vão compor o orçamento público.

Há instrumentos para isso. Orçamentos participativos, audiências públicas e tantas outras técnicas previstas na legislação tornam mais democrática a elaboração do orçamento. E a evolução cada vez mais intensa da transparência fiscal permite às pessoas conhecer detalhes sobre o gasto público, tornando-as mais conscientes e

 

No fundo, protestos envolvem questões orçamentárias  ••

 

responsáveis com o dinheiro público e capazes de colaborar mais e melhor na ela- boração e fiscalização da lei orçamentária.

Ouvir o povo e representá-lo. Para isso existem os políticos. Eleitos são, e a sociedade lhes paga cara estrutura, com assessores, técnicos, órgãos e toda uma dispendiosa máquina estatal para que, justamente, traduzam a voz das ruas na lei orçamentária, que deve expressar da forma mais fiel possível a destinação desejada para os recursos públicos. Para isso pedem votos com os quais serão eleitos, sendo o momento mais importante do exercício do mandato recebido justamente a elabo- ração e aprovação da lei orçamentária, quando se define a destinação do dinheiro público.

Momento de decisões fundamentais e importantes. E difíceis. Decisões que podem importar em “escolhas trágicas”, aproveitando do sugestivo título da obra de Guido Calabresi e Philip Bobbit.2 Ou “trágico-políticas”, como também coloca com propriedade Fernando Scaff neste mesmo espaço (Reserva do possível pressupõe escolhas trágicas, publicada no ConJur em 26 de fevereiro de 2013).

Será mesmo? Talvez.

Talvez sim porque, como se ouviu de declarações de vários governantes nesse período, o passe livre, ou a redução no valor das passagens, vai importar em dimi- nuição dos investimentos em saúde, educação e outros de suma relevância – caso que, efetivamente, seria uma escolha efetivamente “trágica”: ônibus grátis versus menos vagas em hospitais é um dilema que ninguém gostaria de ser obrigado a decidir.

Talvez não porque, como já mencionei em coluna anterior (Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão, nesta edição, p. 255-258), há muito dinheiro sendo desperdiçado sem nenhuma contrapartida útil à sociedade, em valores que, se apurados, impressionariam pelo montante. E que, sem necessidade de muitos cálculos, permitiriam constatar que a verdadeira escolha seja “ônibus grátis versus administração deficiente”, que não é nem um pouco trágica, muito menos difícil de ser tomada. Mas que, curiosamente, tem se mostrado difícil de ser implementa- da, e sem uma explicação plausível, pois não se consegue compreender a quem in- teressa a má administração, em que todos saem perdendo.

As “escolhas trágicas” só se mostrarão presentes e necessárias se e quando a administração pública estiver trabalhando em perfeita sintonia entre os poderes, órgãos públicos e entes federados, com uso das mais modernas técnicas de gestão,

2      Tragic Choices. The conflicts society confronts in the allocation of tragically scarce resources. New York: W. W. Norton & Company, 1978.

 

 

sem desperdício de recursos públicos. Aí sim, poder-se-ia admitir que os recursos estão limitados e o aumento ou destinação para uma finalidade importará em re- dução ou exclusão de outra despesa.

Não parece ser o caso, não tenho dúvida de que estamos longe disso. Segura- mente é possível ter ônibus grátis, ou atender a muitas outras reivindicações (e vê-se que não faltam…) sem grandes sacrifícios ou “escolhas trágicas”.

O fato é que, do que se pode ver nas ruas, uma conclusão é certa: os políticos não estão fazendo bem o seu trabalho.

Falham os que ocupam cargos no Poder Executivo, por não serem bons ges- tores, mostrando-se incapazes de tornar a administração pública uma máquina moderna e eficiente.

Falham os que integram o Poder Legislativo, por não estarem traduzindo a vontade da população na definição dos gastos públicos que tem dado demonstra- ções de que prefere ônibus grátis a estádios para a Copa do Mundo.

O povo brasileiro tem mostrado nos últimos dias insatisfação com seus polí- ticos e deixando-lhes um recado bastante claro: querem ser ouvidos e ter sua voz bem traduzida e respeitada. Devem eles, mais do que nunca, dar maior atenção à lei orçamentária e ao trato com o dinheiro público, pois o povo está mostrando do que é capaz.

 

 

E O ANO COMEçA SEM A APROvAçÃO DO ORçAMENTO FEDERAL

 

 

 

 

Coluna publicada em 15.1.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-jan-15/ contas-vista-ano-comeca-aprovacao-orcamento-federal>

 

 

 

 

 

Estamos em 2013, com as esperanças sempre renovadas de um ano melhor e as expectativas otimistas, como deve ser. Mas há que se reconhecer não ter o ano começado muito bem para o Direito Financeiro.

Além da não desejada, mas de certa forma esperada, falta de aprovação dos critérios de rateio do FPE (Reformular o FPE para adequar o federalismo fiscal, nes- ta edição, p. 23-28), que já fez o governo federal começar o ano com uma grave inconstitucionalidade, desobedecendo acórdão do Supremo Tribunal Federal, acrescenta-se que o orçamento federal não foi aprovado.

A lei orçamentária é, depois da Constituição, a mais importante para o país, como já disse o ministro Ayres Britto (ADI-MC 4.048-1/DF, j. 14.5.2008, p. 38), e é a base de todo o sistema orçamentário. No Brasil, é lei anual, correspondendo o exercício financeiro ao ano civil, de 1º de janeiro a 31 de dezembro, como determi- na a Lei 4.320/1964, artigo 34. Deve, portanto, ser renovada tempestivamente, sob pena de gerar graves consequências para o país, para a administração pública e para os gestores públicos. O princípio da legalidade, no âmbito do Direito Financeiro, exige que toda despesa seja autorizada por lei, e a lei orçamentária é fundamental para cumprir esse papel.

Ocorre que nem sempre se consegue aprovar o orçamento até o final do ano, gerando a situação de “anomia orçamentária”, iniciando-se o exercício financeiro seguinte sem orçamento e, consequentemente, sem autorização para efetuar os gas- tos públicos, paralisando a administração.

 

 

A situação não é nova e, no âmbito federal, já houve casos bastante graves, como ocorreu em 1994, em que a lei orçamentária, que deveria ter sido aprovada até o final de 1993, só veio a sê-lo em novembro de 1994!1

Várias são as possibilidades de resolver a questão da falta de orçamento, que, registre-se, pode ocorrer por diversas razões além da não aprovação tempestiva: não apresentação do projeto de lei, rejeição do projeto de lei, veto, etc. A doutrina já se debruçou sobre o tema, defendendo as mais diversas teses: prorrogação do orça- mento vigente, aprovação do projeto por decurso de prazo, abertura de créditos orçamentários específicos ou a regulamentação prévia da situação pela Constitui- ção ou pela lei.

O Brasil já adotou, e continua adotando, a última hipótese, qual seja, estabe- lecendo normas admitindo essa possibilidade e regulamentando a situação. As Constituições de 1946 e 1967 previram a aprovação do projeto de lei orçamentária por decurso de prazo (arts. 74 e 68, respectivamente).2 A Constituição de 1988 é omissa nesse aspecto e, atualmente, a situação vem sendo regulada, no âmbito fe- deral, por dispositivos reiterados nas Leis de Diretrizes Orçamentárias que, usual- mente, contemplam autorizações para a execução provisória do projeto de lei orça- mentária dentro dos limites fixados, em geral 1/12 da dotação prevista para cada mês. Com isso, evita-se a paralisação da administração enquanto não aprovada a lei orçamentária.

É o que está previsto, por exemplo, na LDO da União para 2013,3 artigo 50, que enumera taxativamente as despesas que poderão ser executadas.

Trata-se, no entanto, de medida de caráter provisório e limitado, uma vez que não dá liberdade ao gestor para todos os gastos, sendo tão somente um paliativo enquanto não se consegue a aprovação do orçamento, cuja demora causa evidentes prejuízos a toda a população. E isso sem contar o caráter pouco democrático da qual se reveste, uma vez que se coloca em execução, sem ter passado pelo crivo do Poder Legislativo, essa lei tão importante.

No ano de 2007, ao se encerrar o exercício financeiro sem a aprovação da lei orçamentária federal para 2008, foi baixada a Medida Provisória 405, de 18 de dezembro de 2007 (posteriormente convertida na Lei 11.658), abrindo créditos extraordinários no valor global de praticamente R$ 5,5 bilhões para grande parte

1      Lei 8.933, de 9 de novembro de 1994.

2      Veja-se com um pouco mais de detalhes em CONTI, José Mauricio (coord.), Orçamentos públicos – a Lei 4.320/1964 comentada, 3. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 127-129.

3      Lei 12.708, de 17 de agosto de 2012.

 

E o ano começa sem a aprovação do orçamento federal  ••

 

da administração pública federal. Significou, basicamente, uma antecipação do orçamento, feita por Medida Provisória, instrumento jurídico inadequado para isto, em face de expressa disposição constitucional (CF, art. 62, § 1º, d), cabível somente para situações que importassem em despesas imprevisíveis e urgentes, de- correntes de guerra, comoção interna ou calamidade pública (CF, art. 167, § 3º).

A norma foi objeto de ação declaratória de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal (ADI-MC 4.048-1/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 14.5.2008), que, em decisão paradigmática, mudando a orientação até então vigen- te naquela Corte, determinou a suspensão da sua vigência, uma vez que não esta- vam presentes os requisitos constitucionalmente exigidos, a saber, a imprevisibili- dade e a urgência, mesmo porque não se estava em situação de guerra, comoção interna ou calamidade pública. Como bem posto na decisão, “(…) ‘guerra’, ‘como- ção interna’ ou ‘calamidade pública’ são conceitos que representam realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de consequências imprevisíveis para a or- dem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extraordinárias. A leitura atenta e a análise inter- pretativa do texto e da exposição de motivos da MP 405/2007 demonstram que os créditos abertos são destinados a prover despesas correntes, que não estão qualifi- cadas pela imprevisibilidade ou pela urgência. A edição da MP 405/2007 configu- rou um patente desvirtuamento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários”.

Ou seja, nossa Suprema Corte, de forma clara e inequívoca, reconheceu não ser cabível, em face do ordenamento jurídico vigente, a edição de medidas provisó- rias abrindo créditos extraordinários para “antecipar o orçamento”, em virtude de sua não aprovação tempestiva, autorizando despesas que não são imprevisíveis e urgentes, e fora do contexto de guerra, comoção interna ou calamidade pública.

Muito bem.

E o que vemos no apagar das luzes de 2012?

A Medida Provisória 598, de 27 de dezembro de 2012, abrindo créditos ex- traordinários no montante de R$ 47 bilhões para os Orçamentos Fiscal e da Segu- ridade Social!

Não me consta que o Brasil tenha declarado guerra recentemente, desconheço qualquer comoção interna ou calamidade pública ocorrida na última semana de dezembro que justifique a medida. A única calamidade pública visível é a jurídica, com a edição dessa medida provisória!

E se alguém pensa que, na extensa lista de rubricas orçamentárias beneficiadas pelos créditos extraordinários estão contempladas despesas imprevisíveis e urgentes,

 

 

basta abrir o anexo I, e a primeira dotação que vai encontrar é de R$ 10 milhões para “comunicação e divulgação institucional da Câmara dos Deputados”! E por aí vai…

É por demais flagrante o desrespeito à Constituição e à decisão do Supremo Tribunal Federal.

O Direito Financeiro tem sido pródigo em exemplos de afronta à Constitui- ção e ao ordenamento jurídico como um todo.

Mas começar o ano “dando de ombros” à decisão que estabeleceu o prazo máximo de vigência dos critérios de rateio do Fundo de Participação dos Municí- pios para o dia 31 de dezembro de 2012, continuando a cumprir lei já declarada inconstitucional como se nada tivesse acontecido, e agora “completar a obra” edi- tando medida provisória em situação absolutamente idêntica à que já foi reconhe- cida como indevida pela nossa Suprema Corte, é ultrapassar todos os limites.

Já passou a hora de se exigir e cobrar um mínimo de respeito à Constituição e à nossa Suprema Corte.

O Direito Financeiro não merece isso. Aliás, o Direito não merece. Melhor dizendo, ninguém merece…

 

 

uM ANO DEPOIS, FICA A PERguNTA: quEM PAgOu A CONTA DOS PROTESTOS DE JuNHO?

 

 

Coluna publicada em 1.7.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-jul-01/ contas-vista-ano-depois-quem-pagou-conta-protestos-junho>

 

 

 

 

 

Não, não me refiro às vidraças quebradas e outros vandalismos. Estou falando de outra conta. Uma conta que parece não fechar.

Completou-se um ano desde que todo o país se viu contaminado por uma onda de protestos que, se todos se recordam, iniciou-se por manifestações insurgin- do-se contra o aumento de 20 centavos na passagem de ônibus urbano em São Paulo. E que depois incluíram reclamações contra o aumento dos pedágios, gastos com a Copa do Mundo, corrupção e um sem-número de outras reivindicações, como melhorias na saúde, educação e tantas outras.

O fato é que boa parte das reivindicações surtiram efeito. Os ônibus urbanos e o metrô em São Paulo não tiveram suas passagens aumentadas, nem os pedágios. Aumentos que, à época, eram considerados “essenciais” para manter o equilíbrio orçamentário, dos contratos com os parceiros privados e a ordem nas contas públi- cas, tanto no governo municipal quanto no estadual em São Paulo, e o mesmo ocor- reu nas demais unidades da federação também atingidas pela onda de protestos.

À época, o prefeito Fernando Haddad “estimou em 175 milhões de reais o gasto adicional até o fim do ano com o congelamento da tarifa em 3 reais (em vez de 3,20 reais). Até 2016, esse custo extra chegará em 2,7 bilhões de reais”. Infor- mou ainda que esse custo “significaria deixar de construir 200 mil casas populares ou abrir mão de 10% do investimento previsto para o mandato”. Para o Estado de São Paulo, do governador Geraldo Alckmin, o congelamento dos bilhetes de metrô e trem representaria “uma perda anual de receita de 210 milhões de reais”, valor com o qual “seria possível construir 30 escolas técnicas ou 30 ambulatórios no in- terior”. No Rio de Janeiro, em que os ônibus tiveram redução de R$ 2,95 para

 

 

R$ 2,75, estimou-se um “rombo de até 500 milhões de reais no orçamento da pre- feitura”, valor próximo ao que se gastaria para a manutenção de 70 clínicas.1

Pois um ano já se passou, as passagens continuam com o mesmo valor e, apa- rentemente, nada de mais grave aconteceu com as contas públicas.

Mas não é só.

No final do ano passado, o prefeito de São Paulo propôs novos valores para o IPTU, justificando-o como fundamental para o equilíbrio nas contas, até em ra- zão do suposto “rombo” causado pelo alegado aumento nas despesas com o subsí- dio das passagens de ônibus. Com o reajuste suspenso em razão de decisão judicial, as receitas extras não vieram.

A questão que se coloca é: deixaram de ser construídas as 200 mil casas popu- lares em São Paulo? Houve redução de 10% dos investimentos públicos? Os pau- listas ficaram sem as 30 escolas técnicas ou ambulatórios? O Rio de Janeiro deixou de manter 70 clínicas?

Até o momento não se veem explicações plausíveis, convincentes e, principal- mente, claras sobre esse ajuste nas contas públicas. Afinal, como essa conta foi paga? Quem pagou?

Questões que deveriam ter a resposta expressa nos orçamentos públicos e res- pectivos relatórios e balanços. Mas não parece ser o caso.

As leis orçamentárias definem as receitas e despesas públicas dos entes da fe- deração todos os anos, estabelecendo e definindo o que vai ser feito com o dinhei- ro público, delineando os exatos valores a serem gastos em cada uma das ações governamentais – razões suficientes para tornar essas leis as mais importantes do ordenamento jurídico depois da Constituição.2

Os orçamentos públicos surgiram inicialmente como instrumentos voltados ao controle das finanças públicas, evoluíram para assumir importantes funções na gestão do setor público, sendo atualmente fundamentais também para o planeja- mento governamental.

Para cumprir aquela que sempre foi e continua sendo uma função essencial desta lei tão importante, qual seja, a de controle das finanças e, consequentemente, de toda a atuação governamental, os orçamentos públicos devem ser peças dotadas de clareza e transparência, permitindo que sejam compreensíveis e capazes de

 

1      Revista Veja, versão digital, edição histórica, n. 2.327, ano 46, n. 26, de 26 de junho de 2013, reportagem especial “Os sete dias que mudaram o Brasil – A conta é para todos”, p. 3.

2      Min. Carlos Ayres Britto, ADI-MC 4.048-1/DF, j. 14.5.2008, p. 92 dos autos.

 

Um ano depois, fica a pergunta: quem pagou a conta dos protestos de junho?               ••

 

revelar com exatidão as atividades financeiras do Estado, a fim de que todos pos- sam saber o que se fez, o que se faz e o que se fará com o dinheiro público. Somen- te assim será possível, não apenas aos órgãos encarregados da fiscalização financei- ra e orçamentária, mas também e principalmente à sociedade, exercer o controle sobre a atividade financeira do Estado.

A transparência passa a assumir uma importância que a torna hoje um dos mais – se não o mais – relevantes princípios orçamentários, e a ela tem sido dada cada vez mais atenção.

A Lei de Responsabilidade Fiscal, em seus artigos 48 a 49, ao tratar da trans- parência na gestão fiscal, exige que se dê ampla divulgação às leis orçamentárias, prestações de contas e relatórios fiscais, por todos os meios, para que se amplie o acesso público a essas informações, além de incentivar a participação popular na elaboração das leis orçamentárias.

A observância dessas e de outras normas é essencial para que se tenha uma efetiva participação popular e controle social sobre a atividade financeira do Esta- do, que está expressa nas leis orçamentárias, responsáveis por traduzir, nas descri- ções dos programas e respectivas dotações, o que a sociedade deseja fazer com os recursos que entrega para o poder público. O ordenamento jurídico brasileiro, hoje, reflete um novo padrão de gestão da coisa pública, caracterizado pela partici- pação popular e responsabilização dos administradores, na busca de uma adminis- tração pública cada vez mais transparente e responsável.3

Ao decidir o que fazer com o dinheiro público – sempre escasso para a admi- nistração que precisa dele para cumprir suas funções e, invariavelmente, excessivo para os contribuintes que devem pagar seus tributos e tarifas –, escolhas hão de ser feitas, afinal os recursos não permitem atender a tudo e a todos. No mais das vezes, “escolhas trágicas”, como já se fez referência em outras colunas publicadas neste mesmo espaço.4

Os ônibus podem até ser “grátis”, como pretenderam os manifestantes em ju- nho de 2013. Tudo depende de decisões que cabe à sociedade tomar e ao poder pú- blico atender, alocando os recursos orçamentários da forma desejada pela sociedade, tendo-se em consideração que essa gratuidade é ilusória e alguém pagará essa conta.5

3      ASSONI FILHO, Sérgio. Transparência fiscal e democracia. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009, p. 171.

4      No fundo, protestos envolvem questões orçamentárias, nesta edição, p. 165-168, e Passe livre no trans- porte depende de reserva do possível, publicada em 16 de julho de 2013 no ConJur, além de outras.

5      CARVALHO, André C. Direito da infraestrutura: perspectiva pública, São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 318.

 

 

Ou seja, trata-se, substancialmente, de definir quem financia o que e como. Em outras palavras: a sociedade como um todo pagando impostos ou os usuários pagan- do tarifas.

Para se tomar uma decisão e fazer escolhas, é imprescindível ter informação sobre as opções. Saber as consequências. Permitir que se avaliem os custos e bene- fícios. E isso só é possível com transparência nas contas públicas. É, pois, funda- mental que os orçamentos públicos sejam dotados da mais absoluta transparência, sem o quê as escolhas deixam de ser democráticas e fragilizam-se a fiscalização das contas públicas e o controle social das atividades governamentais. E transparência não se resume a tornar públicas as informações. É preciso que sejam compreensí- veis e úteis.6

É evidente que os orçamentos públicos são leis que estampam peças comple- xas de contabilidade pública, até porque não é possível haver simplicidade na dis- criminação de despesas da ordem de R$ 2,5 trilhões, como é o caso do orçamento da União para este exercício financeiro de 2014.

Mas deveriam ser suficientemente claros para permitir que se respondam às questões colocadas desde o início deste texto. Afinal, quando se decidiu por não aumentar uma série de tarifas, escolhas foram feitas. É importante saber quais fo- ram elas, quem as fez e quais as consequências dessas escolhas.

Será que os recursos que faltaram vieram de melhorias na gestão, o que já não era sem tempo, pois há muito se sabe que o dinheiro público pode ser mais bem utilizado?7

Ou não. Podem ter sido tirados recursos de outras áreas tão ou mais impor- tantes do que o transporte coletivo. Nesse caso, quais teriam sido? A população está de acordo com isso? Foi consultada? Participou de alguma forma dessa deci- são? Quem tomou a decisão? Foram os governantes? Ou foram burocratas que realocaram recursos sem que ninguém saiba de onde saíram?

São muitas as perguntas. A transparência na gestão fiscal mostra, cada vez mais, sua relevância. Mostra também que é um princípio incipiente já começou a produzir resultados, mas está longe do ideal. Há ainda um longo caminho a percorrer.

Todos nós aguardamos as respostas.

 

 

6 RUBINSTEIN, Flávio. Notas sobre a transparência fiscal no Direito Financeiro. In CONTI, José Mauricio e SCAFF, Fernando F. (coords.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: RT, 2011, p. 905.

7  Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão, nesta edição, p. 255-258.

 

 

vIvEMOS NO PAÍS DAS FINANçAS PÚBLICAS MAL-ASSOMBRADAS

 

 

Coluna publicada em 22.8.2017: <https://www.conjur.com.br/2017-ago-22/ contas-vista-vivemos-pais-financas-publicas-mal-assombradas>

 

 

 

 

 

Nos últimos dias a crise econômica que parece não cessar trouxe à tona um dos muitos problemas enfrentados pelo Direito Financeiro, mais especificamente pelos orçamentos públicos. O orçamento, lei já reconhecida como a mais impor- tante logo após a Constituição,1 tem múltiplas funções atualmente, destacando-se o controle, a gestão e o planejamento, tendo a transparência assumido relevância fundamental para que essas funções sejam cumpridas.

O orçamento deve conter todas as receitas e despesas, expondo a atividade financeira do Estado, e deixar claro o que é feito com o dinheiro público. Um or- çamento bem elaborado, com clareza, abrangência e transparência não só orienta toda a administração pública, como também permite à sociedade, com todos os agentes sociais e econômicos, ter maior segurança no planejamento de suas pró- prias atividades. Um instrumento que sempre foi e é cada vez mais indispensável para o desenvolvimento econômico estável e equilibrado.

Nosso orçamento experimentou um longo caminho para chegar onde está. E, como se verá, falta muito para atingir o ideal. Ainda precisamos avançar, e notícias recentes indicam retrocessos, mostrando que há ainda obstáculos a vencer, e não são poucos.

“Capitais criam ‘orçamentos paralelos’ para ocultar gastos e fechar as contas”, noticiou a Folha de S.Paulo em 7 de agosto de 2017.2 Elenca a notícia as várias dis-

1      Min. Carlos Ayres Britto, ADI-MC 4.048-1/DF, j. 14.5.2008, p. 92 dos autos.

2      <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/08/1907747-capitais-criam-orcamentos-pa- ralelos-para-ocultar-gastos-e-fechar-as-contas.shtml>.

 

 

torções observadas na execução orçamentária de cidades brasileiras, onde se consta- taram operações que “contornavam” a transparência das informações orçamentá- rias, como Porto Alegre, em que gastos ocorriam “na prateleira”; ou Curitiba, em que foi descoberta a existência de um sistema de execução orçamentária paralelo ao oficial. E no Rio de Janeiro, despesas executadas “desapareciam” do sistema por meio de um “servidor fictício”. E, assim, com “receitas bilionárias, os três municí- pios descobriram ‘orçamentos paralelos’, descolados das contas oficiais e nos quais centenas de gastos eram feitos de maneira informal, sem nenhum tipo de registro no orçamento”.3

A realização de despesa pública submete-se a um regime jurídico próprio e rigoroso, para garantir a legalidade e a correta aplicação dos recursos, e tem várias fases que precisam ser cumpridas. Inicia-se com o empenho da despesa, “ato ema- nado de autoridade competente que cria para o Estado obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição”, reservando-se o valor no orçamento para permitir o pagamento, sendo então o valor liquidado para só então proceder-

-se ao pagamento (Lei 4.320/1964, arts. 58 a 65). No entanto, constataram-se ca- sos de determinação da execução das despesas sem prévio empenho, dando origem a um verdadeiro “caixa dois”, ficando as obrigações do Poder Público, como sugere a notícia, em uma verdadeira “nuvem orçamentária”, sem registro no orçamento. Criavam-se assim “esqueletos”, com obrigações de pagamentos “escondidas no ar- mário”, que poderiam aparecer a qualquer momento e sem aviso, onerando os pró- ximos gestores, surpreendidos com gastos sem qualquer previsão ou registro.

Em um dos exemplos citados na notícia, o prefeito Marchezan Júnior, de Por- to Alegre, informou ter encontrado R$ 20 milhões em despesas “na prateleira”, sem empenho, o equivalente a 1,7% do orçamento; em outro exemplo, Rafael Greca, prefeito de Curitiba, diz ter encontrado ainda mais, R$ 614 milhões, em despesas sem empenho, o equivalente a 7% do orçamento.

São operações que violam os preceitos da legislação financeira, e já foram apu- radas pelo sistema de fiscalização, como se pode constatar de decisões do Tribunal de Contas da União: “A assunção de dívida com fornecedores originária de despesas não registradas na contabilidade indica que essas foram realizadas sem prévio empe- nho e não observaram o princípio contábil da competência, o que viola o art. 42 da Lei Complementar 101/2000 (LRF) e os artigos 35, 60, 88 e 90 da Lei 4320/1964”;4

 

3      Notícia citada.

4      Acórdão 11461/2011, enunciado.

 

 

“É ilegal a autorização para realizar despesa sem prévio empenho, pois contraria o art. 60 da Lei 4.320/1964”.5

Essa realização de despesas sem respaldo nas dotações orçamentárias e sem prévio empenho atenta contra diversos dispositivos legais, como mencionado, de- monstrando o pouco caso e a falta de seriedade dispensados às normas de Direito Financeiro. Disso resulta total insegurança aos contratantes, falta de transparência e ausência de planejamento, dificultando sobremaneira a fiscalização, dando mar- gem a toda sorte de irregularidades, mau uso e desvio de recursos públicos.

Mas não é só a realização de despesas sem o necessário empenho prévio que provoca essas distorções; no Rio de Janeiro, como consta da notícia, empenhos eram cancelados, e despesas que deveriam ser pagas “desapareciam” temporaria- mente, para evitar que contabilmente constassem como valores a pagar deixados para os exercícios financeiros subsequentes.

Já chamamos a atenção em colunas anteriores para várias questões que cola- boram para esse déficit de transparência orçamentária. É o caso das despesas que ficam à margem do orçamento por razões várias, conhecidas como off-budget ex- penditures (evidenciando que o problema não é uma exclusividade nacional…), o que se pode verificar na ampla gama de “gastos tributários”, como os benefícios creditícios que tratamos na coluna BNDES tem o dever de colaborar com a transpa- rência dos gastos públicos.6

Irregularidades nas despesas de final de ano, com transferência abusiva de restos a pagar para o exercício seguinte, criam o que também tem sido denominado um “orçamento paralelo” que o gestor deve cumprir no exercício subsequente, ten- do em vista as muitas despesas já empenhadas e não pagas no exercício anterior. Já se transformaram em prática corriqueira na administração pública, estando pre- sentes nos vários entes federados.7

As famosas “pedaladas fiscais” também importaram em postergação de paga- mentos de forma a que ficassem “escondidos” na contabilidade pública e obscure- cessem despesas no orçamento. Foram severamente punidas com o afastamento da Presidente de seu cargo por impeachment. Mas parece que, apesar disso, não foi suficiente para fazer com que os governantes tenham respeito pelas normas de Di- reito Financeiro.

É uma pena, pois o avanço do Direito Financeiro é um caminho sem volta.

 

 

5      Acórdão 423/2011, enunciado. No mesmo sentido: Acórdãos TCU 7.206/2012 e 1.335/2012.

6      Publicada nesta edição, p. 411-416.

7      O final de ano, as dívidas e os “restos a pagar”, nesta edição, p. 215-218.

 

 

Retomando o que havia mencionado no início da coluna, a evolução dos or- çamentos percorreu um longo caminho. Nesse percurso, cabe destaque aos princí- pios da unidade e da universalidade, bem como do orçamento bruto, que buscam a plenitude orçamental. São regras clássicas do orçamento – justamente aquelas que permitem sua adequada organização para atingir os fins nele designados. A Lei 4.320/1964, logo em seu artigo 2º, caput, estabelece que a “Lei de Orçamento conterá a discriminação da receita e despesas de forma a evidenciar a política eco- nômico-financeira e o programa de trabalho do governo, obedecidos os princípios de unidade, universalidade e anualidade”, especificando e detalhando seu conteú- do (§§ 1º e 2º); “compreenderá todas as receitas, inclusive as operações de crédito autorizadas por lei” (art. 3º), e “todas as receitas e despesas constarão da Lei de Orçamento pelos seus totais, vedadas quaisquer deduções” (art. 6º). O princípio da unidade, destaca Giuliani Fonrouge, permite apreciar se há equilíbrio orçamen- tário (pois todas as despesas e receitas estão contidas em um único documento), permite conhecer a magnitude do orçamento, dificulta manobras contábeis e per- mite o controle parlamentar.8 Referindo-se à universalidade, Heleno Torres destaca que “a dispersão de receitas ou despesas em distintos orçamentos não asseguraria transparência valorativa das finanças públicas, daí a necessidade de ter-se a acomo- dação de todos em um documento único, para o controle das finanças públicas”, decorrendo da exigência do “holismo orçamentário, a partir da unidade que exige todas as receitas e despesas identificadas no orçamento”.9 Esse conjunto de princí- pios mostra ser necessário que a autoridade orçamentária tenha conhecimento do conjunto das finanças para que tome sua decisão e, assim, exerça seu poder de au- torização e controle, sem que seja induzida a erro.10 E se a Constituição prevê, no artigo 165, § 5º, a separação da lei orçamentária em três partes (o orçamento fiscal, de investimentos das estatais e da seguridade social), isto não significa o afasta- mento do princípio da unidade. Ao contrário, todas as três peças compõem um mesmo documento, dividido de forma a conferir maior racionalidade a cada um de seus componentes, mas levados em conjunto ao Poder Legislativo. São princí- pios orçamentários que não admitem desvios, como está ocorrendo. Um retrocesso inaceitável.

 

8 GIULIANI FONROUGE, Carlos M. Derecho Financiero. 5. ed. Buenos Aires: Depalma, 1993. vol. 1. p. 184-185.

9  Direito Constitucional Financeiro. São Paulo: RT, 2014. p. 379.

10 Ver, a propósito, LOCHAGIN, Gabriel. A unificação dos orçamentos públicos pela Constitui- ção de 1988. In: CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando F. Orçamentos públicos e Direito Financeiro. São Paulo: RT, 2011, p. 198.

 

 

Do jeito que as coisas caminham, persistindo a crise e a consequente falta de recursos, com a criatividade e o “jeitinho” brasileiro atuando “a todo vapor”, a dou- trina do Direito Financeiro terá daqui a pouco que incorporar ao seu vocabulário a expressão “orçamento-fantasma”, em substituição à referência “peça de ficção”! Como se já não bastasse a “súmula-fantasma”…11 Receio que os Tribunais de Con- tas constatem que, quanto mais fiscalizam, mais assombração aparece!

Esse verdadeiro “mundo” de orçamentos paralelos, caixas-pretas, súmulas-

-fantasmas e esqueletos escondidos no armário nos coloca em um verdadeiro “mu- seu de horrores” financeiro. E são tantos os envolvidos e tantas as irregularidades, que dessa vez não vai dar para dizer que o culpado é somente o mordomo…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

11  Benefícios fiscais, partilha de receitas e a “súmula-fantasma” do STF, nesta edição, p. 35-40.

 

 

 

 

O DIREITO FINANCEIRO PRECISA SER LEvADO A SÉRIO, E 2015 COMEçOu MAL

 

 

Coluna publicada em 10.2.2015: <http://www.conjur.com.br/2015-fev-10/ contas-vista-direito-financeiro-levado-serio-2015-comecou-mal>

 

 

 

 

 

O ano de 2015 não começou nada bem para o Direito Financeiro. Não só para o Direito Financeiro, mas para as finanças públicas de forma geral. A bem da verdade, o ano de 2014 já terminou muito mal.

O final do ano passado foi marcado, na esfera federal, pelas “maquiagens contá- beis” que ficaram bastante conhecidas, incluindo as “pedaladas fiscais”1 e outros tru- ques que nos deram um verdadeiro curso de “contabilidade criativa” e, apesar deles, as contas não fecharam no final do ano, obrigando o governo a tomar outras medidas tão ou mais lamentáveis quanto. E nada impediu que o ano terminasse com o registro do primeiro déficit nas contas desde 1997.2 Para piorar as coisas, a “contabilidade criativa” se mostrou contagiosa e já contaminou as estatais, com a Petrobras divul- gando seu balanço com enorme atraso e sem incluir os prejuízos com a corrupção.3

O destaque coube para a alteração da LDO de 2014 (Lei 12.919/2013) no apagar das luzes, pois previa um superávit primário que se verificou inalcançável e, para evitar o descumprimento da lei, o “jeitinho” foi alterá-la, acabando com o superávit.4 Para conseguir aprovar a alteração na lei, o governo federal produziu

1   Atenção, caro leitor: pedalar faz mal à saúde!, nesta edição, p. 391-394.

2 Governo registra o primeiro déficit nas contas desde 1997, manchete da Folha de S.Paulo de 30 de janeiro de 2015; Contas públicas fecham 2014 com rombo inédito de R$ 32,5 bilhões. Folha de S.Paulo, 31 de janeiro de 2015.

3   Petrobras divulga balanço sem incluir perdas por corrupção, Exame.com, 28 de janeiro de 2015.

4 Acabar com a meta de superávit é irresponsabilidade fiscal, nesta edição, p. 395-400 e O que es- perar em 2015 para o cumprimento das metas fiscais? de André Carvalho e Gabriel Lochagin, publicada em 27 de dezembro de 2014 no ConJur.

 

 

uma das mais inacreditáveis normas já vistas. O Decreto 8.367, de 28 de novembro de 2014, “regulamentou” a inaceitável prática de troca de favores da liberação de recursos de emendas parlamentares pela aprovação da alteração na referida LDO, oficializando a “chantagem” para pressionar o Poder Legislativo – uma verdadeira “cereja no bolo” para as barbeiragens jurídicas em matéria orçamentária.

Já a LDO de 2015 (Lei 13.080), apesar de ter sido encaminhada em 15 de abril, para ser aprovada até o final de junho, só foi aprovada em 2 de janeiro de 2015, mais de seis meses após a data estabelecida na Constituição – um recorde histórico. E, ao que tudo indica, sem a adequada deliberação, pois aprovada em votação-relâmpago!5 Nunca antes na história desse país a LDO federal foi publica- da com tanto atraso.

Começamos o ano de 2015 sem orçamento. E sem grandes expectativas de que seja aprovado em breve. O que, pelo que se vê, está se tornando uma constan- te.6 E neste ano, mesmo sem o orçamento ter sido aprovado, já foi feito o “contin- genciamento preventivo”7 por meio do Decreto 8.389, de 7 de janeiro de 2015, reduzindo a possibilidade de gastos que haviam sido prévia e provisoriamente au- torizados cinco dias antes pela LDO 2015!!!

Um escárnio.

Difícil saber, a essa altura, o que poderá ser feito para surpreender, pois a im- pressão é que todos os limites da improvisação e desconsideração total pelo ordena- mento jurídico em matéria financeira foram ultrapassados.

Vivemos um descalabro fiscal, na bem lançada expressão de Celso Ming,8 e que, como se vê, não é só fiscal, mas também, e principalmente, jurídico.

Correta a percepção de José Marcos Domingues expressa recentemente: esta- mos em uma verdadeira guerra contra o Direito Financeiro, que resulta em incer- teza financeira e insegurança jurídica.9

É preocupante notar que, neste ano de 2015, há várias medidas importantes a serem tomadas no âmbito do Direito Financeiro, e esperamos não sejam contami- nadas pelos maus exemplos que estão se sucedendo.

 

5      Congresso aprova a LDO de 2015 em votação relâmpago. O Estado de S.Paulo, 17 de dezem- bro de 2014.

6      E o ano começa sem a aprovação do orçamento federal, nesta edição, p. 169-172.

7      Sobre esse assunto, leia Hora é de apertar o cinto e contingenciar gastos, nesta edição, p. 227-230.

8      Descalabro fiscal. O Estado de S.Paulo, 30 de janeiro de 2015.

9      Falsidade orçamentária mostra falta de planejamento, publicada em 7 de fevereiro de 2015, no ConJur.

 

 

A começar pela aprovação dos planos plurianuais no âmbito federal e estadual, que deverão ser apresentados para debate no Poder Legislativo no segundo semestre e aprovados até o final do ano, definindo o rumo desses entes federados para os próximos quatro anos.

Ainda no aspecto do planejamento, não se pode esquecer que estados e muni- cípios terão até o próximo dia 25 de junho para elaborar seus próprios planos de educação, em cumprimento ao disposto no art. 8º do Plano Nacional de Educação

– PNE (Lei 13.005, de 25 de junho de 2014). Na mesma data deverá ser aprovada a Lei de Responsabilidade Educacional (PNE, Anexo, Estratégia 20.11).

E os tribunais devem apresentar e adequar os respectivos planejamentos estra- tégicos até o próximo dia 31 de março, em cumprimento à Resolução CNJ 198, de 1º de julho de 2014, artigo 16, com a previsão das estratégias e metas para 2020, o que é fundamental para uma gestão eficiente de todo o sistema de Justiça.10

Aliás, em matéria de planejamento, oportuno reparar mais uma “pérola” – para usar a expressão de editorial recente da Folha de S.Paulo11 – produzida no tema, quando o Prefeito de São Paulo, vendo que não vai cumprir metas previstas no Programa de Metas da Prefeitura de São Paulo (que, registre-se, são elaboradas por ele mesmo, pois veiculadas por Decreto),12 declarou que “o que você faz é des- lizar o planejamento para a frente. Você vai deslizando as medidas tomadas”.13

O “planejamento deslizante” integra o rol das modernas técnicas de planeja- mento orçamentário por meio do qual se prevê uma atualização periódica (em ge- ral anual) dos planos de médio ou longo prazos, de modo a suavizar e tornar pre- visíveis as necessárias atualizações e ajustes no planejamento, conferindo maior previsibilidade e segurança jurídica ao sistema. Está contemplado em nossa legisla- ção por meio dos anexos de metas e riscos fiscais das leis de diretrizes orçamentá- rias. É um instrumento previsto no Direito Financeiro que nada tem a ver com a postergação do cumprimento das metas, pois visa dar segurança jurídica ao sistema de planejamento, e não o contrário.

A postergação das metas seria mais bem definida como um “planejamento escorregante” (cuidado para não cair!). Se a contabilidade pode ser criativa, por que não o Direito Financeiro? Fica a sugestão para esse neologismo a ser incluído nos próximos manuais de Direito Financeiro…

10     Poder Judiciário: 2014 é o ano do planejamento estratégico, nesta edição, p. 145-150.

11  Deslizamento na saúde, publicado em 26 de janeiro de 2015, no ConJur.

12     <http://planejasampa.prefeitura.sp.gov.br/metas/>.

13     Haddad já admite “deslizar” metas anunciadas para depois de 2016. Folha de S.Paulo, 25 de dezembro de 2014.

 

 

Imprescindível levar a sério o planejamento, para o qual esta coluna já chamou a atenção por várias vezes,14 pois a falta de planejamento está prestes a nos deixar sem água15 e luz.16 “A falta de visão e planejamento de longo prazo é o problema grave a ser enfrentado pelo Brasil”, e as crises atuais revelam que o “hábito de pensar e plane- jar o futuro precisa ser mais demandado dos governantes e fazer parte da reforma educacional do país”, como bem colocou Henrique Meirelles recentemente.17

Mas não é só.

No final deste ano vence mais uma vez o prazo de vigência da DRU – desvin- culação de receitas da União, conforme prevê o artigo 76 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição. Aliás, ressalte-se, trata-se de artigo inserido nas dis- posições “transitórias” da Constituição em 1994, pela Emenda Constitucional de Revisão 1, inicialmente com a denominação de Fundo Social de Emergência. Ve- jam só. Vários anos após ter sido promulgada a Constituição, um dispositivo é in- cluído no Ato das Disposições Transitórias, cuja função é regular provisoriamente alguns temas e, desde então, vem sendo reiteradamente renovado, por sucessivas emendas constitucionais. Não há como reconhecer seriedade em medidas como essa. Sem contar que a DRU tem permitido a realocação de recursos de áreas prio- ritárias como saúde e educação para outras, nem tão prioritárias assim. Perpetuar sua reedição é fato para se lamentar.

O orçamento impositivo deve voltar ao centro das atenções, após ter sido ob- jeto de intensa discussão ano passado18 e, sem que a votação da Proposta de Emen- da Constitucional que o instituía tivesse sido concluída, foi “provisoriamente” con- templado na LDO de 2014. Agora, o recém-eleito presidente da Câmara dos Deputados promete retomar o debate,19 deixando uma esperança para dar mais seriedade à lei orçamentária.

Já escrevi, e volto a repetir, que o “Direito Financeiro tem sido pródigo em exemplos de afronta à Constituição e ao ordenamento jurídico como um todo”,20 e esse Governo está se superando ao produzir tantos exemplos.

 

14     Veja, entre outros textos, Planejamento municipal precisa ser levado a sério, nesta edição, p. 135-138.

15     Desafios federativos precisam ser vencidos para superar a falta d’ água, nesta edição, p. 29-34.

16     Esquizofrenia no planejamento da infraestrutura aumenta os gastos, de Fernando Scaff, publica- da em 27 de janeiro de 2015, no ConJur.

17  O país do futuro. Folha de S.Paulo, 1º de fevereiro de 2015.

18     Orçamento impositivo é avanço para a administração, nesta edição, 231-234.

19     Vou por para votar o Orçamento impositivo, diz Cunha. O Estado de S.Paulo, 3 de fevereiro de 2015, p. A4.

20     E o ano começa sem a aprovação do orçamento federal, nesta edição, p. 169-172.

 

 

O Direito precisa ser levado a sério, adaptando e tomando emprestada a feliz expressão de Dworkin e, nesse quesito, o Direito Financeiro deve merecer especial atenção, pois tem sido muito maltratado, como se pode notar.

Mas, como dizem, o ano só começa depois do Carnaval.

Sendo assim, é melhor tirar as fantasias do armário, decorar o samba-enredo da escola favorita e cair na folia, esperando que 2015 não traga mais surpresas ne- gativas para o Direito Financeiro. Melhor rir para não chorar, e renovar as esperan- ças de que, ao começar para valer, 2015 mude as expectativas!

 

 

 

 

ORçAMENTO NÃO PODE MAIS SER uMA PEçA DE FICçÃO

 

 

 

 

Coluna publicada em 2.6.2015: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-02/

contas-vista-orcamento-nao-peca-ficcao>

 

 

 

 

 

A lei orçamentária já foi reconhecida no Brasil, em decisão do Supremo Tri- bunal Federal, como a mais importante depois da Constituição.1

No entanto, ato como o que ocorreu nos últimos dias, em que, em meio às medidas de ajuste fiscal, realizou-se um dos maiores – se não o maior – contingen- ciamento de que se tem notícia,2 indica que o orçamento não será cumprido tal como aprovado. Uma medida que, embora necessária para o equilíbrio das contas públicas, em nada colabora para dar seriedade e segurança jurídica a essa lei tão importante. Os contingenciamentos, tema sobre o qual já discorri especificamente em coluna anterior,3 e, como se pode ver, já se tornaram praxe na Administração Pública, estão cada vez mais intensos, distanciando o orçamento aprovado pelo Poder Legislativo daquele efetivamente cumprido pelo Poder Executivo, tornando excessiva a discricionariedade exercida ao longo da execução orçamentária e miti- gando a credibilidade da lei orçamentária, que passa a se aproximar de uma “peça de ficção”.

A lei orçamentária já foi muito criticada por ser essa “peça de ficção”, verda- deira “formalidade” a ser cumprida pelos entes federados, para a qual não se davam atenção e respeito. Situação que não deixava de ser verdadeira até o início da década

 

1   “A lei orçamentária é a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abai- xo da Constituição”, Min. Carlos Britto, p. 92 dos autos, STF, Tribunal Pleno, ADI 4.048 (rel. Min. Gilmar Mendes, j. 14.5.2008).

2 Governo anuncia corte no Orçamento de quase 70 bilhões, Valor Econômico, 22 de maio de 2015, dentre outras.

3   Hora é de “apertar o cinto” e contingenciar gastos, nesta edição, p. 227-230.

 

 

de 1990, em que estávamos sob um regime de alta inflação, sem moeda estável e confiável e de desorganização nas contas públicas. Mas que começou a se alterar a partir de 1994, com a estabilização da moeda, e se consolidou com a publicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000. A estabilização da moeda e o aperfeiçoa- mento da legislação em matéria de finanças públicas mudaram esse quadro, e não há mais como reconhecer nem aceitar a lei orçamentária como uma peça de ficção.

No entanto, ainda há muito o que fazer para que a lei orçamentária passe a ocupar legitimamente o papel que lhe cabe, e foi corretamente reconhecido, de lei mais importante do ordenamento jurídico depois da Constituição.

Para que a lei orçamentária possa ter a eficácia e seriedade que justifiquem estar nesta posição de destaque, e sua elaboração torne-se o foro de discussão apro- priado para as decisões sobre a adequada alocação dos recursos públicos, com a definição das políticas públicas, programas e ações governamentais que serão efe- tivamente realizados, e o Poder Legislativo torne-se o verdadeiro responsável por dar a palavra final, há alguns aperfeiçoamentos que se fazem necessários.

Em primeiro lugar, é preciso que apresente números confiáveis e representati- vos da realidade financeira do País, especialmente em termos de arrecadação, de modo a evitar que, logo após a publicação da lei orçamentária, já se reconheçam como inatingíveis os valores previstos, motivando contingenciamentos gigantescos como o que ora se apresenta. Algumas vezes de forma verdadeiramente despropo- sitada, como o que ocorreu este ano com o orçamento federal, em que, ainda antes de ter sido aprovado, promoveu-se o contingenciamento fundado nas autorizações provisórias da lei de diretrizes orçamentárias (LDO) que havia sido aprovada pou- cos dias antes – um só ato já foi capaz de pôr abaixo a credibilidade dos números apresentados não só no orçamento, mas também na LDO.4

O artigo 12 da Lei de Responsabilidade Fiscal é claro ao estabelecer que “as previsões de receita observarão as normas técnicas e legais, considerarão os efeitos das alterações na legislação, da variação do índice de preços, do crescimento econômico ou de qualquer outro fator relevante e serão acompanhadas de demonstrativo de sua evolução nos últimos três anos, da projeção para os dois seguintes àquele a que se re- ferirem, e da metodologia de cálculo e premissas utilizadas”. Um dispositivo legal que precisa ser efetivamente cumprido, pois sua estrita observância impede a apresentação de números pouco confiáveis, deixando para a execução orçamentária os ajustes que se tornarão cada vez mais indispensáveis ante os inevitáveis erros nas previsões.

 

4      O direito financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 começou mal, nesta edição, p. 183-188.

 

 

Previsões estas que, como determina a lei ora mencionada, devem ser feitas em observância a normas técnicas e legais, e não fundadas no “incrementalismo” vi- gente na maior parte dos entes federados, em que as previsões são feitas com base no orçamento executado no ano anterior, acrescido de algum valor a título de ex- pectativas simplistas de provável aumento na arrecadação.

Por oportuno, abandonar a técnica do “orçamento incrementativo” é medi- da que se impõe para que as previsões da lei orçamentária sejam mais adequadas e próximas da realidade e evitem inúmeras outras distorções, inclusive na fase de execução orçamentária, como os indesejados gastos em final de exercício,5 inclu- são exagerada de despesas em restos a pagar6 e a manutenção de programas que já não se mostram mais úteis e necessários. O orçamento precisa deixar de ter “caráter geológico”, na bem-humorada expressão criada recentemente por Del- fim Netto, mostrando que os programas “se acumulam em camadas” e nunca terminam.7

Necessário também que se dê efetivo e integral cumprimento ao art. 4º da LRF, que confere à lei de diretrizes orçamentárias várias atribuições, destacando-

-se, entre outras também relevantes, a de regulamentar o já citado contingencia- mento, estabelecendo “critérios e forma de limitação de empenho” (art. 4º, I, b), o que evitaria seu uso impróprio, dando maior segurança e transparência a um ins- trumento por vezes necessário para ajustar eventuais imprecisões ao longo da exe- cução orçamentária que, se espera, sejam cada vez menores. Relevante também que a LDO estabeleça normas que regulamentem o controle de custos e avaliação dos resultados dos programas financiados com recursos dos orçamentos (art. 4º, I, e), o que é fundamental para permitir a fiscalização, não só pelo sistema de controle já estabelecido constitucionalmente, mas também e principalmente pela sociedade, tornando transparente e factível a verificação de quanto custam e o que se espera da aplicação do dinheiro público tal como previsto na lei orçamentária.

É preciso também que se reconheça e se atribua efetivamente o caráter impo- sitivo à lei orçamentária, abandonando a tese, que boa parte da doutrina já deixou de lado, de que o orçamento é lei meramente “formal”, “autorizativa”, sem caráter “mandatório” ou “impositivo”, tornando facultativas suas disposições. Entendimento que não se coaduna com o atual sistema de planejamento governamental, em que

5      Natal é tempo de correr com a execução orçamentária, nesta edição, p. 211-214.

6      O final do ano, as dívidas e os restos a pagar, nesta edição, p. 215-218.

7      Antonio Delfim Netto, Por que não começar do começo de 2017? Valor Econômico, coluna publicada em 12 de maio de 2015.

 

 

as leis orçamentárias representam os principais instrumentos e dependem de seu fiel cumprimento para que se concretizem as ações tal como planejadas. Tornaria desnecessárias emendas constitucionais, como a recentemente publicada (Emenda Constitucional 86, de 2015), para criar o “orçamento impositivo”, e ainda de forma pouco abrangente, restringindo-se aos valores inseridos nos orçamentos pelas emendas parlamentares.8

Com efeito, não é mais possível deixar de reconhecer o caráter material da lei orçamentária, ante as inúmeras funções por ela exercidas no âmbito do planeja- mento, gestão e controle, cujos dispositivos contêm autorizações, proibições e de- terminações, e vinculam a ação do administrador a perseguir os objetivos e metas,9 e afastar, pelo critério da concretude de uma lei orçamentária, o seu controle de constitucionalidade.10

Nesse sentido já caminha a jurisprudência, o que é de suma importância para permitir aquele que é um dos mais importantes avanços em curso em matéria or- çamentária – o controle de constitucionalidade. Uma evolução que ainda não se completou e é fundamental para dar maior credibilidade e segurança jurídica às leis orçamentárias.

O controle de constitucionalidade das leis orçamentárias, inicialmente não admitido pela nossa Suprema Corte, por reconhecê-la como leis formais, “de efei- tos concretos”,11 passou a ser aceito, com o surgimento das primeiras decisões ad- mitindo a possibilidade de controle de constitucionalidade da lei orçamentária. Cabe destaque à ADI 2.925, que reconheceu “adequado o controle concentrado de constitucionalidade quando a lei orçamentária revela contornos abstratos e autôno- mos, em abandono ao campo da eficácia concreta”, mas a inflexão mais significa- tiva deu-se na ADI 4.048, já citada no início deste texto, leading case que não deixa mais dúvidas sobre a possibilidade de controle de constitucionalidade das leis orça- mentárias, reconhecendo que estas não podem ficar insuscetíveis de controle

8 Sobre a questão do orçamento impositivo, veja os textos: Orçamento impositivo é avanço para administração, nesta edição, p. 231-234. Aprovação do orçamento impositivo não dá credibilida- de à lei orçamentária, nesta edição, p. 235-240 e Poderes Judiciário e Executivo firmam pacto de combate à corrupção, publicada no ConJur em 25 de março de 2015.

9 FARIA, Rodrigo. Natureza jurídica do orçamento e flexibilidade orçamentária. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito da USP, 2009.

10 CHRISTOPOULOS, Basile. Controle de constitucionalidade de normas orçamentárias. Tese de Doutorado, Faculdade de Direito da USP, 2014, p. 121.

11   STF, ADI 1640, entre outras.

 

 

judicial, embora ainda não reconheça por completo a possibilidade de amplo con- trole de conteúdo das normas orçamentárias.12

A recente ação (ADPF) movida pelo PSOL13 traz ao debate a tese do “estado inconstitucional de coisas”, mostrando que muito ainda se pode esperar em termos de avanço no que tange ao controle de constitucionalidade que envolva matéria financeira. Mas isso é tema que vale uma análise mais detalhada e fica para uma próxima oportunidade.

Enfim, já é hora de deixar no passado a ideia de que a lei orçamentária é uma peça de ficção para colocá-la em seu devido lugar e ocupar merecidamente o espa- ço que lhe cabe, que é o de lei mais importante depois da Constituição.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

12 Nesse sentido, com a análise da evolução da jurisprudência do STF, veja-se CORREIA NETO, Celso de Barros. O orçamento público e o Supremo Tribunal Federal, texto inte- grante da obra Orçamentos públicos e direito financeiro (CONTI, José Mauricio e SCAFF, Fernando F. (coords.). São Paulo: RT, 2011, p. 111-126). Ainda na mesma obra, vejam-se ASSONI Filho, Sérgio. Controle de constitucionalidade da lei orçamentária, p. 21-40, e NEME, Eliana F. e ARAUJO, Luiz Alberto D. O controle de constitucionalidade de normas orçamentá- rias, p. 203-214.

13 PSOL pede intervenção do Supremo no sistema carcerário, Consultor Jurídico, publicado e dispo- nível desde 28 de maio de 2015.

 

 

 

 

vEREADOR NÃO PODE APENAS HOMOLOgAR A LEI ORçAMENTÁRIA

 

 

 

 

Coluna publicada em 25.9.2012: <http://www.conjur.com.br/2012-set-25/ contas-vista-vereador-fundamental-elaboracao-lei-orcamentaria>

 

 

 

 

 

Avizinham-se as eleições municipais e, dentro de alguns dias, serão eleitos prefeitos e vereadores em todo o país. Há algumas semanas, assistimos ao horário eleitoral, em que proliferam as propostas com as quais os candidatos pretendem convencer o eleitorado.

Décadas se passam e chama a atenção, neste cenário, um fato bastante inusi- tado: o desconhecimento pelos candidatos a vereadores e também pelos eleitores das funções do Poder Legislativo Municipal e, por conseguinte, das atribuições que os vereadores exercerão assim que eleitos.

A competência dos municípios é bastante restrita e está, em sua maior parte, delineada nos artigos 30 e 31 da Constituição, sendo parte dessa competência exer- cida pelo Poder Legislativo ou com sua participação. Entre elas, destacam-se: a) legislar sobre assuntos de interesse local; b) suplementar a legislação federal e esta- dual no que couber; c) legislar sobre tributos municipais; e d) legislar em matéria de ordenamento territorial, planejamento, uso e ocupação do solo urbano, dentre outras.1

O exercício dessa competência, no mais das vezes, não é muito intenso. Não são muitos, e nem sempre relevantes, os assuntos de interesse local que exigem leis para serem regulados; os tributos municipais, por sua vez, em regra, têm legislação estabilizada, exigindo poucas alterações, sem contar a pequena margem que lhes resta para inovações, em função do detalhamento da legislação complementar, como é o caso do ISS. Em alguns municípios, há maior relevância, efetivamente,

 

1      Constituição Federal, artigo 30, com as adaptações cabíveis.

 

 

na legislação sobre uso e ocupação do solo, talvez um dos poucos itens dessa breve lista que exigem uma participação mais efetiva do legislador municipal.

Como se vê, são poucas as atribuições de um vereador. Infelizmente, pois ne- nhum político está mais próximo do povo que o vereador. Nenhum político é ca- paz de identificar com mais precisão as reais necessidades da população, levando, portanto, a voz do povo para dentro da administração pública.

Pior é ver que essas atribuições, já pequenas, são, por vezes, indevidamente reduzidas. Cito como exemplo a generalizada ideia de que não têm eles iniciativa legislativa em qualquer projeto que envolva despesa pública, concessões de incenti- vos fiscais e outras que tratam de matéria financeira. Ficam tolhidos em sua capa- cidade de apresentar projetos de lei, já que, no mais das vezes, estes referem-se às matérias citadas. E, por incrível que pareça, injustificada e inexplicavelmente, pois tal entendimento não passa de verdadeiro boato! Não há qualquer plausibilidade jurídica nessa tese sobre a qual já discorri longamente2 e, desta feita, remeterei o leitor ao texto já publicado, para oportunamente voltar ao tema.

Há que se ressaltar, ainda, dois pontos relevantes em que se observam graves desconhecimentos a respeito das atribuições de um vereador, integrante do Poder Legislativo Municipal.

O primeiro deles é a clareza quanto à sua função como membro do Poder Legislativo. Ou seja, as atribuições do vereador limitam-se ao que compete ao Po- der Legislativo, o que muitos parecem desconhecer tal a quantidade de manifesta- ções e promessas que envolvem atribuições de outros poderes, especialmente o Exe- cutivo. Vereador é eleito para cumprir as funções que lhe cabem como legislador, tais como as que foram sucintamente enumeradas nos parágrafos anteriores.

Evidente que, em sendo um legítimo representante da população, age bem em fazer chegar ao Poder Executivo as necessidades daqueles que o elegeram, mas essa não é sua verdadeira função. E, como se verá a seguir, há meios mais adequados que lhe permitem atender ao interesse público que estão no âmbito de suas atribuições constitucionais.

O segundo ponto relevante é a consciência de que integra o Poder Legislativo Municipal. O Brasil é uma Federação e, como tal, composta de entes federativos de três esferas: federal, estadual e municipal. Há divisão de competências, recursos,

 

2      CONTI, José Mauricio. Iniciativa legislativa em matéria financeira. CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando F. (coords.) Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: RT, 2011,

  1. 283-307. Ver também coluna Parlamentar pode, sim, propor lei em matéria financeira, nesta edição, p. 199-202.

 

Vereador não pode apenas homologar a Lei Orçamentária ••

 

encargos, de modo que cada esfera de governo tem sua competência delimitada pela Constituição. Os esforços dos vereadores hão de se concentrar naquilo que é da alçada municipal, pois são outros os representantes legitimados a agir na esfera estadual e federal.

Por outro lado, há competências da maior relevância a serem exercidas pelos vereadores, e o que se nota é o desconhecimento a respeito delas. A principal é jus- tamente a atuação no âmbito das finanças públicas.

O orçamento público é a lei anual, que define os gastos públicos. Quanto se vai gastar, onde vai ser aplicado o dinheiro, quem vai fazê-lo e para quê. É lei, de iniciativa do prefeito, mas submetida à aprovação pela Câmara, cabendo aos verea- dores debatê-la, com poderes para apresentar emendas e adequar o projeto encami- nhado pelo Poder Executivo aos reais interesses da população. Os recursos públicos municipais só poderão ser gastos se previstos no orçamento. Ou seja, toda e qual- quer ação governamental municipal que importe em despesa tem de estar contem- plada na lei orçamentária. Em suma: os vereadores têm a palavra final para decidir o que será feito com todo o dinheiro público municipal!

E mais: cabe ao Poder Legislativo municipal fiscalizar as contas públicas, pois é o titular do controle externo da administração municipal, e julgará anualmente as contas apresentadas pelo Prefeito.3 Dispõe de poderes de fiscalização da ativida- de financeira da administração pública municipal, cabendo-lhe analisar, investi- gar, denunciar irregularidades, enfim, exercer na plenitude seus poderes como fiscais do dinheiro público. Um julgamento desfavorável das contas gera consequên- cias extremamente graves, evidenciando a relevância da decisão. O reconhecimen- to da regularidade das contas, por outro lado, em tese, demonstra que a lei orça- mentária foi fielmente cumprida, tendo sido o dinheiro público correta e adequadamente aplicado. Em outras palavras: aos vereadores compete definir o que será feito com o dinheiro público e fiscalizar sua correta destinação. Desneces- sário dizer, a esta altura, que os vereadores cumprem a mais relevante função no âmbito municipal, representada pela deliberação, aprovação e fiscalização do orça- mento público municipal.

É oportuna a pergunta, que deixo ao leitor e eleitor responder: quantas vezes se viu na propaganda eleitoral referência ao exercício dessas atribuições?

Por essas razões, é importante que vereadores e eleitores procurem se informar a respeito das reais funções do Poder Legislativo Municipal, bem como das com- petências e encargos afetos aos municípios. Os Poderes públicos têm o dever de

3      Constituição Federal, artigo 31.

 

 

esclarecer melhor a população a respeito dessas informações, permitindo ao eleitor escolher correta e conscientemente seu candidato e, ao vereador, exercer melhor a sua função, fazendo valer, sem distorções, o princípio democrático expresso no artigo 1º de nossa Constituição.

Deve ainda ser uma luta de todos tornar efetivas as funções dos vereadores, permitindo que exerçam na plenitude seu mandato, sem subterfúgios que miti- guem seu poder que já não tem a dimensão merecida.

Cito, apenas para exemplificar, os orçamentos municipais.

Têm os vereadores hoje, na esmagadora maioria dos municípios, uma ínfima participação na elaboração e execução da lei orçamentária, em função de costumes arraigados que praticamente anularam a participação e influência dos vereadores naquilo que é a sua mais relevante função. Leis orçamentárias são aprovadas com altíssimas margens de remanejamento,4 tornando-as quase inúteis como peças le- gislativas, por transferir ao prefeito o poder de alterá-las sem necessidade de autori- zação da Câmara e fazendo com que os orçamentos públicos, que há alguns anos eram verdadeiras peças de ficção, continuem se portando como tais na maior parte dos municípios.

Vê-se a concessão de pequenas verbas a título de dotação para atender emen- das parlamentares, transformando o poder de decidir sobre as despesas públicas em uma disputa por verdadeiras migalhas e anulando qualquer iniciativa de interferir nas políticas públicas municipais. Sem contar os municípios em que não há dota- ção alguma para as emendas parlamentares, reduzindo a participação dos vereado- res à mera homologação da proposta orçamentária.

É oportuno o momento para esta reflexão, pois já passou da hora de resgatar a importância e dignidade das funções daquele que é o político mais próximo do povo, representante mais fiel das necessidades da sociedade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4      Autorizações antecipadas para que o Poder Executivo abra créditos suplementares, nos termos do art. 7º da Lei 4.320/1964.

 

 

PARLAMENTAR PODE, SIM, PROPOR LEI EM MATÉRIA FINANCEIRA

 

 

 

 

Coluna publicada em 4.7.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-jun-04/ contas-vista-parlamentar-sim-propor-lei-materia-financeira>

 

 

 

 

 

Escrevo a respeito de um tema sobre o qual já publiquei,1 mas que ainda me intriga e merece nova abordagem, desta vez em tom menos acadêmico, que permi- te atingir um público mais amplo, razão pela qual este espaço se mostra ideal.

Trata-se da iniciativa de leis em matéria financeira, assunto que, curiosamen- te, ainda se mostra desconhecido não somente pelo público, mas também pelos maiores interessados nele, que são os parlamentares de todo o país.

O processo legislativo, conjunto de atos por meio do qual são formadas as leis e demais normas que compõem nosso ordenamento jurídico, é basicamente com- posto de três fases. A iniciativa, por meio do qual o processo é deflagrado; a cons- titutiva, na qual se dá a tramitação e aprovação; e a fase de integração e eficácia que compreende a promulgação e publicação. Embora seja um processo, em tese, pró- prio do Poder Legislativo, ele conta com a participação dos demais poderes, espe- cialmente do Executivo, que tem competência para a iniciativa em vários temas, cabendo-lhe ainda a sanção, na fase final de aprovação, além de muitas outras in- tervenções.

No âmbito das finanças públicas, a distribuição das atribuições em matéria de processo legislativo mostra-se mais sensível, dado o grande poder envolvido no

 

1 Iniciativa legislativa em matéria financeira. In: CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando F. (coords.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: RT, 2011, p. 283-307. Tendo em vista que o tema já foi abordado nesta publicação, argumentos desenvolvidos e trechos escritos serão por vezes reproduzidos, ainda que não com a exata redação, dado o outro estilo de lin- guagem adotado, razão pela qual me permito não colocar aspas. E remeto o leitor ao texto original já publicado, caso tenha interesse em se aprofundar no tema.

 

 

controle sobre os recursos públicos. Torna-se necessário construir um cuidadoso sistema que permita a participação dos poderes nesse processo de forma a evitar que uma desigual distribuição venha a permitir que um se sobreponha ao outro.

Sendo o Poder Executivo o principal responsável pela condução da adminis- tração pública, a ele cabem importantes atribuições no processo legislativo orça- mentário, destacando-se a iniciativa privativa (ou reservada) e vinculada dos proje- tos de leis orçamentárias anuais, de diretrizes orçamentárias e planos plurianuais (art. 165 da Constituição). Trata-se de competência que lhe confere um grande poder, sendo, no entanto, coerente e necessária, até porque o Poder Executivo de- tém o comando da maior parte da administração pública, compreendendo os ór- gãos responsáveis pela arrecadação de recursos e de coordenação do processo de elaboração e execução orçamentárias.

Mas há um aspecto extremamente curioso e que chama a atenção. Trata-se de fato sobejamente conhecido, sendo verdadeiramente “público e notório”, que são de iniciativa legislativa os projetos de lei em matéria financeira em geral, tais como os que envolvam gasto público, leis tributárias e outras questões orçamentárias. Inicia- tiva privativa esta que, em sendo aplicada – como de fato tem sido – aniquila qua- se toda a possibilidade de o Poder Legislativo iniciar o processo legislativo, pois passam a ser raros os casos de projetos de lei que tenham relevância e não envolvam as questões mencionadas. Como bem definiu recentemente o presidente da Câma- ra de Vereadores de São Paulo, vereador José Américo (PT), fica o Poder Legislati- vo “de mãos atadas”.2

O vereador queixa-se da impossibilidade de legislar sobre política tributária e de elaborar projetos que gerem despesas, sugerindo que se reflita sobre isso (“A ideia de que os Legislativos não podem elaborar projetos que gerem custos extras precisa ser revista”, diz ele), expressando o pensamento de quase todos os parla- mentares do País, de todas as esferas de governo, e pede apoio em favor de emenda constitucional que restaure as prerrogativas do Poder Legislativo.

A norma, no entanto, não precisa ser revista. E não precisa pelo simples fato de que tal vedação simplesmente não existe. Mas a “ideia” precisa.

Curioso por saber a origem dessa “vedação”, descobri-a consultando a Consti- tuição anterior, na qual constava, em seu artigo 57, I, que “é da competência exclu- siva do presidente da República a iniciativa das leis que disponham sobre matéria financeira” (Constituição brasileira de 1967, com redação da Emenda Constitucional

 

 

2      José Américo Dias. Um Legislativo de mãos atadas. Folha de S.Paulo, em 2 de maio de 2013,

  1. A6.

 

Parlamentar pode, sim, propor lei em matéria financeira          ••

 

1, de 1969; a Constituição de 1967, texto original, tinha a mesma redação, alteran- do-se o artigo, que era de número 60, I). Ocorre que tal dispositivo desapareceu na Constituição de 1988, não havendo, por conseguinte, por que prevalecer esta ini- ciativa privativa das leis que disponham sobre matéria financeira. Trata-se de nor- ma que deixou de constar de nossos textos legais, mas que parece se recusar a sair do ordenamento jurídico, pois continua sendo cumprida, como se pode notar.

Construção jurisprudencial, poder-se-ia cogitar. Também não. Submetida a questão à nossa Suprema Corte, pouco após a promulgação da Constituição Fede- ral de 1988, o ministro Celso de Mello bem observou que “a Constituição Federal de 1988 não reproduziu em seu texto a norma contida no artigo 57, I, da Carta Política de 1969, que atribuía ao Chefe do Poder Executivo da União a iniciativa de leis referentes a matéria financeira, o que impede, agora, vigente um novo ordena- mento constitucional, a útil invocação da jurisprudência que se formou, anterior- mente, no Supremo Tribunal Federal, no sentido de que tal constituía princípio de observância necessária, e de compulsória aplicação, pelas unidades federadas” (ADI-MC 352, relator ministro Celso de Mello, julgado em 28 de agosto de 1990). E completa e ratifica, pouco depois, em outro julgado, ao asseverar que a regra da iniciativa reservada é exceção, sendo aplicável somente se prevista expressamente no texto, não se presumindo nem comportando interpretação ampliativa (ADI 724-6/RS, relator ministro Celso de Mello, julgado em 7 de maio de 1992).

A suposta restrição à iniciativa legislativa em matéria financeira não está nem na lei, nem na jurisprudência.

E também na doutrina não encontra respaldo, pois, além do texto que escrevi, outros autores já haviam anteriormente sustentado essa mesma tese.3

E não há que se falar em eventual disposição legal expressa nesse sentido nos demais entes da federação estabelecendo a vedação para a iniciativa do Poder Le- gislativo nessa matéria, pois “as regras básicas do processo legislativo federal são de absorção compulsória pelos Estados-membros em tudo aquilo que diga respeito – como ocorre às que enumeram casos de iniciativa legislativa reservada – ao princí- pio fundamental da independência e harmonia dos poderes, como delineado na Constituição da República” (ADI 276-7/AL, relator ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 13 de janeiro de 1997).4

 

3      FERRARI Filho, Sérgio A. Plebiscito, matéria orçamentária e iniciativa privativa. Parecer 14/1999 – SAFF. Revista Direito, vol. 4, n. 7, Rio de Janeiro, jan.-jun. 2000, p. 247-267.

4      No mesmo sentido: ADI 2.731-0/ES, j. 20.3.2003 e ADI 2.892-8/ES, j. 19.2.2004, ambos de relatoria do Min. Carlos Velloso.

 

 

Ouve-se dizer que, na administração pública, vigora o não escrito e não jurí- dico princípio do “sempre foi assim”, e talvez seja essa a explicação mais plausível para esse fenômeno, em que essa “norma” permanece plenamente eficaz, apesar de não mais existir!

Para um país em que muitos se queixam das “leis que não pegam”, fica o re- gistro, ainda que eventual, dessa “lei” que “pegou” até demais, pois continua sendo cumprida mesmo depois de excluída do texto da Constituição…

Não pode ser outra a conclusão: nossos parlamentares têm iniciativa para pro- por leis que disponham sobre matéria orçamentária (salvo, evidentemente, as leis orçamentárias – PPA, LDO e LOA), tributária e mesmo as que envolvam aumento de despesa pública.5

E finalizo, com licença do presidente Barack Obama para adaptar seu slogan de campanha, mandando meu recado aos parlamentares de todo o país: yes, you can!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

5      Ressalvadas aquelas em que há disposições constitucionais expressas, tais como a criação de cargos e remuneração de servidores.

 

 

PODERES NÃO SÃO INDEPENDENTES SEM AuTONOMIA FINANCEIRA

 

 

 

 

Coluna publicada em 27.8.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-ago-27/ contas-vista-poderes-nao-sao-independentes-autonomia-financeira>

 

 

 

 

 

O governo federal deve apresentar até o final desta semana a proposta de or- çamento para 2014, obedecendo ao prazo previsto no artigo 35, § 2º, do Ato das Disposições Transitórias da Constituição. Trata-se de um ato extremamente im- portante para toda a sociedade, para o qual todos devem voltar suas atenções uma vez que é na lei orçamentária que se define precisamente o que o governo vai fazer, quanto, como e onde vai gastar o dinheiro que é de todos nós.

Há muitas questões importantes que se definem neste momento. Desta vez, destacarei apenas uma delas, que é a do respeito à autonomia financeira dos Po- deres, em especial do Judiciário, e das instituições também contempladas pela Constituição com maior autonomia sobre seus orçamentos – caso do Ministério Público e Defensoria Pública. Faço isso porque a questão pode voltar ao noticiá- rio nestes próximos dias, como já tem ocorrido há muitos anos, como consequên- cia de embates entre os poderes decorrentes do desrespeito à autonomia financei- ra que se tem constatado por ocasião da apresentação da proposta orçamentária da União.1

Escrevo a respeito de assunto sobre o qual já discorri longamente2 e, desta vez, cuidarei dele de modo mais sucinto, deixando ao leitor que tenha interesse mais específico a indicação desta fonte com informações mais completas.

1 Que, como já mencionado, deverá ocorrer até o final desta semana. Na maior parte dos esta- dos, a apresentação proposta orçamentária ocorre no final de setembro, na forma prevista em legislação específica de cada um.

2 CONTI, José Mauricio. A autonomia financeira do Poder Judiciário. São Paulo: MP Editora, 2006, 223p.

 

 

A Constituição assegura, logo no artigo 2º, a independência dos três Poderes

– Legislativo, Executivo e Judiciário. A independência pressupõe autonomia, e esta tem em seu aspecto financeiro o pilar mais importante. Não há independência sem autonomia financeira. Isso vale para os Poderes da República, entes da Federação, países e até mesmo para cada um de nós.

Por essa razão é que a Constituição volta a tratar do tema, de forma precisa e detalhada, no artigo 99 assegurando ao Poder Judiciário autonomia administrativa e financeira.

Há que se lembrar estarem as finanças públicas do Estado sob controle con- junto dos Poderes Executivo e Legislativo, que dividem as atribuições nesta maté- ria. De forma sucinta, vê-se que esta competência da mais alta relevância política é partilhada entre esses dois Poderes de forma razoavelmente equitativa. O Poder Executivo tem a iniciativa das leis orçamentárias, principal instrumento das finan- ças públicas, que são submetidas ao Poder Legislativo, a quem cabe propor emen- das e aprovar o texto final. A execução orçamentária é uma atividade essencialmen- te comandada pelo Poder Executivo, enquanto a fiscalização financeira e orçamentária é de titularidade do Poder Legislativo.

O Poder Judiciário e demais instituições independentes ficam praticamente excluídos desse processo, o que os fragiliza bastante em matéria de finanças públi- cas. Daí porque a necessidade que lhes sejam dadas garantias para se fazer respeitar a imprescindível autonomia financeira, sem a qual não se concretiza a independên- cia de poderes assegurada pelo artigo 2º de nossa Constituição. Justificam-se, pois, dispositivos constitucionais específicos como é o caso do artigo 99, com referência ao Poder Judiciário, artigo 127, § 3º, no que tange ao Ministério Público, e o arti- go 134, §§ 2º e 3º, para a Defensoria Pública.3

Entre as várias garantias que se verificam no artigo 99 da Constituição, a mais relevante é aquela contida no § 1º, segundo o qual “os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os de- mais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias”.4

Embora a lei orçamentária seja de iniciativa privativa e vinculada do Poder Executivo, cabe ao Judiciário estipular a parcela do orçamento que prevê seus

3 E não se deve esquecer os Tribunais de Contas, instituições fundamentais para a fiscalização das contas públicas, para o que devem ser independentes, tendo o texto constitucional lhes assegura- do, em vários dispositivos, garantias voltadas a preservar sua independência funcional.

4    No mesmo sentido dispõe os artigos anteriormente citados, referindo-se ao Ministério Público e à Defensoria Pública.

 

Poderes não são independentes sem autonomia financeira           ••

 

próprios gastos. Não pode haver interferência do Executivo, uma vez que os limites dentro dos quais deva ser apresentada estão previamente fixados na lei de diretrizes orçamentárias, aprovada pelo Poder Legislativo, e que antecede (ou deveria antece- der…) a apresentação da proposta de orçamento.

Infelizmente esse dispositivo constitucional não vem sendo cumprido da for- ma como se espera. Muitos entes da federação – entre os quais, o estado mais rico da Federação, que é São Paulo – sequer fazem constar o limite de despesas do Poder Judiciário na lei de diretrizes orçamentárias, deixando um vácuo legislativo inacei- tável, pois não estabelece os parâmetros para a apresentação da proposta por parte do Poder Judiciário, que fica, por conseguinte, livre para apresentar o orçamento da forma que entende adequada. Essa proposta, por sua vez, ao ser incorporada ao projeto de lei orçamentária do Estado, tem sofrido “cortes” em seus valores, promo- vidos pelo Poder Executivo de forma absolutamente inconstitucional,5 em flagran- te afronta à autonomia financeira do Poder Judiciário, fato que é recorrente nesse período todos os anos, esperando-se que neste venha a ser uma exceção.

Mais do que isso, estabelece o dispositivo6 que tais limites devem ser estabele- cidos conjuntamente com os demais Poderes, o que é solenemente ignorado por praticamente todos os entes da Federação. Entre eles, está incluída a União, que os estabelece unilateralmente, sem qualquer consulta ou deliberação tomada de forma consensual, como exige expressamente a Constituição.

Não há como se negar a importância da independência do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, para o que a autonomia financeira afigura-se como elemento indispensável. Permitir que os Poderes interfiram, por qualquer meio, uns nos outros, mitigando a sua independência, é ferir esta que, além de cláusula pétrea, configura um dos pilares nos quais se sustenta nosso Esta- do Democrático de Direito. Ao Poder Judiciário cabe tomar decisões sobre causas da maior relevância, muitas delas contrariando interesses de outros Poderes, ou mesmo de importantes e influentes membros dos Poderes da República. Nada mais atual do que ver o exemplo do chamado “mensalão”, processo criminal cujas decisões finais estão sendo tomadas e resultará na prisão de políticos poderosos. Não há como conceber que o Poder Judiciário possa estar, nesta e em outras situa- ções, subjugado pelos demais Poderes por qualquer razão, inclusive e especialmente

 

 

5 Conforme já argumentei em CONTI, José Mauricio. A Lei de Diretrizes Orçamentárias e a autonomia financeira do Poder Judiciário. Revista Forum de Direito Financeiro e Econômico – RFDFE, Porto Alegre, Forum, ano 1, n. 1, mar./ago. 2012, p. 34.

6 Que, por sinal, como já registrado, é equivalente para o Ministério Público e Defensoria Pú- blica, nos termos dos artigos já citados.

 

 

financeira. Veja-se, neste mesmo caso, o papel do Ministério Público, a quem cou- be formular e sustentar a acusação contra os réus.

Há que se notar – e lamentar – o que tem ocorrido com o Poder Legislativo, muitas vezes constrangido pelo Poder Executivo a tomar medidas com as quais não está de pleno acordo, por pressões de natureza financeira a que fica submetido, como se tem visto na questão da liberação de recursos para as emendas parlamen- tares ao orçamento, assunto já abordado em duas colunas anteriores (Emendas ao orçamento e desequilíbrio de poderes, nesta edição, p. 219-222, e Orçamento imposi- tivo é avanço para a administração, nesta edição, p. 231-234).

Há outras formas pelas quais se pode assegurar, ou melhorar, a autonomia financeira dos Poderes e instituições constitucionalmente independentes, tais como gerenciamento de fundos, participações previamente fixadas na receita orçamentá- ria e vinculações. E é também evidente que a autonomia financeira deve vir sempre e necessariamente acompanhada de boa gestão dos recursos, pois o que mais im- porta é usar bem o dinheiro público. Mas esses são assuntos para outras colunas. Respeitar as propostas orçamentárias apresentadas pelos Poder Judiciário, Ministé- rios Públicos e Defensorias Públicas já é um passo importante que os Poderes Exe- cutivos de toda a Federação podem dar para mostrar que estamos em Estado De- mocrático de Direito que cumpre sua Constituição.

 

 

vINCuLAçõES ORçAMENTÁRIAS NÃO SÃO A PANACEIA DOS PROBLEMAS

 

 

 

 

Coluna publicada em 8.4.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-abr-08/ contas-vista-vinculacoes-orcamentarias-nao-sao-panaceia-problemas>

 

 

 

 

 

Há vinte anos, em 1º de março de 1994, surgia o Fundo Social de Emergên- cia, por meio da Emenda Constitucional de Revisão 1, de 1994, que o instituiu acrescentando os artigos 71 a 73 no Ato das Disposições Constitucionais Transitó- rias. Precursor da Desvinculação de Receitas da União (DRU), prevista na Emen- da Constitucional 27, de 2000, ambos tratam da polêmica questão orçamentária das vinculações de receitas. Uma boa oportunidade para trazer o tema para debate.

Vê-se o tempo todo, e não é de hoje, notícias sobre soluções para inúmeros problemas baseadas nas “vinculações”. Vinculações de todo o tipo. Vincular recur- sos para a saúde, educação, moradia e tantas outras políticas públicas. Soam como se vincular receitas para determinadas finalidades fosse a solução milagrosa para todos os problemas da área.

Curioso e interessante notar como as vinculações atraem o interesse dos legisla- dores, que, agindo com boa-fé e as melhores intenções, têm enorme apreço por criar leis “vinculando” receitas para finalidades que têm apelo popular e interesse público, como se assim fazendo estivessem, num passe de mágica, resolvendo todos os proble- mas. Tanto exageraram nisso que esse ânimo só pode ser contido por meio de norma constitucional, hoje erigida ao status de princípio orçamentário – o “princípio da não afetação”, ou, para parte dos autores, “princípio da não vinculação”, que em nosso ordenamento jurídico vem contemplado no artigo 167, IV, da Constituição.

Se assim não fosse, seguramente nossos chefes de Poder Executivo dos vários entes da federação e administradores públicos em geral pouca ou nenhuma discricio- nariedade teriam na gestão das finanças públicas, uma vez que todos os recursos es- tariam previamente destinados a algum gasto. Administrar resumir-se-ia a contemplar o fluxo dos recursos “carimbados”, sem que fosse possível nele interferir.

 

 

Mesmo submetida à forte limitação constitucional, as vinculações continuam a existir e aumentar, tanto que motivaram a edição das emendas constitucionais mencionadas no início desta coluna, estabelecendo “desvinculações” gerais, permi- tindo uma maior discricionariedade na alocação dos recursos no orçamento público.

Esquecem-se os legisladores, administradores e a sociedade de modo geral que as vinculações, por si só, pouco representam em termos de melhoria da qualidade do gasto público. Sei que palavras como essas soam como um “balde de água fria” nos esperançosos legisladores e mesmo na sociedade em geral, que vê nelas uma verdadeira “luz no fim do túnel” para inúmeras deficiências na atenção ao cumpri- mento de direitos fundamentais do ser humano que ao Estado cabe prover. Mas é a dura realidade.

Cumpre observar que os orçamentos públicos, quaisquer que sejam eles – da União, estados ou municípios –, contemplam muito dinheiro. Só para que se tenha uma ideia, o da União compreende valores na ordem de 2,5 trilhões de reais; o do Estado de São Paulo, próximo de 190 bilhões, e o do Município de São Paulo, 50 bilhões. Muitos desses recursos estão de alguma forma “vinculados”, quer seja por vinculações propriamente ditas, quer seja por estarem destinados a despesas obri- gatórias – outra figura orçamentária de engessamento dos gastos públicos – e, por- tanto com pouca margem de discricionariedade na decisão sobre a alocação do gasto.

Apenas para ilustrar o leitor, embora seja questão técnica, convém abrir parên- teses para esclarecer haver certa confusão no uso do termo “vinculação”, inclusive por parte do legislador. O termo “vinculação” é apropriado para referir-se às hipó- teses em que se estabelece uma ligação entre receitas e despesas específicas, um “elo normativo entre uma fonte e um destino”, como é o caso, por exemplo, da “CIDE-

-combustíveis” para o financiamento da infraestrutura de transportes (CF, art. 177, § 4º, II, c). Outra coisa são os gastos ou despesas mínimas obrigatórias, em que há determinação constitucional ou legal para compelir o administrador a apli- car um mínimo de recursos públicos, arrecadados em um determinado exercício, para certa finalidade. É o que ocorre, por exemplo, na educação, em que a Consti- tuição, no seu artigo 212, prevê que caberá à União aplicar anualmente, “nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos […] na manutenção e desen- volvimento do ensino”.1 Registro, ainda, o uso impróprio da expressão em nossa

 

1      Sobre o tema, recomendo a leitura da obra Vinculação de receitas públicas, de André Castro Car- valho, que tratou com muita propriedade do tema (São Paulo: Quartier Latin, 2010).

 

Vinculações orçamentárias não são a panaceia dos problemas   ••

 

Constituição, ao chamar de vinculação as repartições de receitas tributárias utili- zadas no nosso sistema de federalismo fiscal, como se vê no artigo 167, IV.

Mesmo assim, a margem de “manobra” dessa enorme quantidade de recursos orçamentários, pelas várias possibilidades existentes no âmbito da administração pública, por técnicas administrativas, contábeis, jurídicas e de outra natureza ainda é grande. Soluções simples permitem contornar com relativa facilidade as vincula- ções. Veja-se, por exemplo, uma criação de contribuição com recursos vinculados à área da saúde, como ocorreu por certo período com a CPMF. Criar um tributo novo, com recursos destinados à saúde, importa em um significativo aumento da destinação de recursos para a saúde, não é mesmo? Não necessariamente. Os recur- sos até então destinados à saúde não eram em boa parte “vinculados”, de modo que, em tese, nada impede de, havendo recursos agora exclusivos para a área da saúde, os que lhe eram anteriormente alocados deixem de sê-lo, voltem-se para despesas em outras áreas, ficando a saúde agora financiada pelos recursos vinculados da re- ferida contribuição. A “vinculação” criada foi importante instrumento para assegu- rar arrecadação de dinheiro para a saúde, mas efetivamente pode não representar acréscimo de um único centavo ao setor.

Mesmo a vinculação para uma determinada área não é simples de se operacio- nalizar. Muitos são os recursos com destinação específica para a educação, obri- gando o administrador a gastá-los apenas e tão somente nessa área. Mas o que é exata e precisamente educação e quais gastos podem ser considerados inerentes a ela? Não há dúvidas quanto ao salário dos professores e aos gastos com material escolar. Mas há muitas outras despesas que permitem extensas discussões, muitas delas já objeto de debates e decisões, tanto no âmbito acadêmico quanto em órgãos que tratam do tema, como os Tribunais de Contas, ou mesmo no próprio Poder Judiciário. É o caso, por exemplo, apenas para citar alguns, do pagamento de salá- rios de aposentados e pensionistas, da merenda escolar, campanhas educativas, en- fim, há uma extensa gama de possibilidades que permitem tornar por demais elás- tico o que pode e o que não pode ser considerado gasto com educação. E assim o é em outras áreas: saúde, segurança, justiça, entre outros.

E nem discorrerei sobre a comprovada ineficácia de vinculações ou aumento nas receitas como medida que melhore, por si só, determinado setor ou política pública. As recentes propostas de vinculações de recursos para a educação, quer pela destinação de recursos dos royalties do petróleo, quer pela “vinculação” de 10% do PIB, esbarram na constatação de que o Brasil já gasta com educação valo- res proporcionalmente equivalentes aos países desenvolvidos, como já mencionei em coluna anterior, sem que isso tenha resultado em efetiva melhora na prestação

 

 

do serviço.2 Melhorias na gestão produzem mais efeito do que aumento nos gastos, como já disse tempos atrás.3

O que se vê é uma verdadeira “guerra” entre o Poder Executivo e o Legislativo, este querendo vincular, e aquele, desvincular recursos. Uma disputa de poder na arena do orçamento público.

As vinculações são apenas instrumentos dessa guerra. Instrumentos que po- dem ser úteis para nos proteger dos maus governantes, obrigando-os a aplicar re- cursos nas áreas mais importantes; mas prejudicam os bons governantes, tirando-

-lhes a discricionariedade para usar o dinheiro público da forma que pode se mostrar mais adequada ao interesse da coletividade. As vinculações, tal como as facas, não são boas ou más. Bom ou ruim é o uso que se faz delas. Tanto podem ser úteis para salvar vidas, como fazem os médicos com seus bisturis, como para acabar com elas, como fazem os assassinos.

Uma guerra cujo foco está de todo equivocado, pois a questão principal não é para onde destinar os recursos, mas sim como utilizá-los bem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2      Nem só com royalties se melhora a qualidade da educação, nesta edição, p. 55-58.

3      Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão, nesta edição, p. 255-258.

 

 

NATAL É TEMPO DE CORRER COM A ExECuçÃO ORçAMENTÁRIA

 

 

Coluna publicada em 11.12.2012: <http://www.conjur.com.br/2012-dez-11/ contas-vista-natal-tempo-correr-execucao-orcamentaria>

 

 

 

 

 

O Natal está chegando, com ele o final de ano, as festas e, em breve, o novo ano. Época oportuna (ou inoportuna?) para algumas considerações sobre a execução orçamentária, tema talvez um tanto quanto inadequado para esse período festivo…

Retomo hoje, nesta coluna, assuntos que, de certa forma, já foram objeto de referência anteriormente com a finalidade de chamar a atenção para algumas ques- tões interessantes.

O sistema orçamentário brasileiro tem como ponto central a lei orçamentária, que cada ente da nossa Federação (União, estados, DF e municípios) deve elaborar, aprovar e executar anualmente.

Nossas leis orçamentárias têm vigência pelo período de um ano, que corres- ponde ao ano civil, por força da legislação nacional aplicável (Lei 4.320, de 1964, art. 34), produzindo seus efeitos, portanto, de 1º de janeiro a 31 de dezembro de cada ano.

Nem sempre foi assim, nem todos os países seguem essas datas, mas a conve- niência ou não de mantê-las é objeto de outra discussão, a ser feita oportunamente (algumas observações acerca deste tema o leitor poderá ver na minha coluna de 20 de novembro de 2012 – No primeiro ano de mandato, não se cumprem promessas). Sendo assim, as despesas nelas previstas devem ser efetuadas nesse período, caso contrário terão de ser novamente inseridas no orçamento para que os valores pos- sam ser gastos no próximo exercício.

Como já escrevi na coluna de 31 de agosto de 2012 (Não falta dinheiro à ad- ministração pública, falta gestão, nesta edição, p. 255-258), “Gastar dinheiro públi- co não é fácil, e nem deve ser. Submetidas a uma série de procedimentos e controles,

 

 

com a louvável finalidade de evitar desvios e mau uso dos recursos públicos, a des- pesa pública é um ato complexo. Previsão legal no orçamento, licitações, empenho, cronogramas, liquidações, enfim, há um longo percurso até o desembolso”.

Da dotação consignada no orçamento, no início do ano, até o efetivo desem- bolso, há um longo caminho a percorrer, como se pode observar, e esse percurso exige organização, disciplina e muito trabalho, o que nem sempre se verifica na imensa administração pública brasileira. A complexidade em se concretizar o gasto público, aliada a um possível – talvez provável, ou certo… – comportamento de “deixar para a última hora”, faz com que, todos os anos, invariavelmente, às véspe- ras do Natal, os administradores públicos se vejam às voltas com a necessidade de gastar os recursos previstos no orçamento, sob pena de, não o fazendo, correrem o risco de ficar sem eles no ano seguinte.

Abro um pequeno parênteses nesse ponto para esclarecer a “perda” de recursos que não foram gastos.

O Brasil adota o que é usualmente chamado de “orçamento incrementativo”. E o que significa exatamente isso? A elaboração da lei orçamentária é uma tarefa complexa, em que são necessários estudos e debates – técnicos e políticos – envol- vendo toda a sociedade, uma infinidade de pessoas e órgãos, para que, ao final, se possa chegar à lei orçamentária aprovada, na qual estão discriminadas as receitas, bem como as despesas, detalhadas por órgãos, programas, ações governamentais etc. Seria ideal que a cada ano todos esses detalhes fossem minuciosamente anali- sados e debatidos a fim de que cada orçamento pudesse representar com a maior fidelidade possível os anseios da população.

É o que se propõe com a adoção da técnica orçamentária do “orçamento base zero”, já tentada algumas vezes, sem o esperado sucesso. As dificuldades de imple- mentação dessa técnica levam à generalidade dos países em adotar a técnica do “orça- mento incrementativo”, por meio do qual os debates a cada novo orçamento partem do orçamento elaborado e executado, de modo que as alterações ocorrem pontual e gradualmente, com poucas possibilidades de grandes e repentinas transformações.

Dessa forma, há uma tendência à manutenção dos programas, ações governa- mentais e respectivas dotações, ano após ano. Como consequência, valores de do- tações previstas em uma lei orçamentária e não utilizados terão grande possibilida- de de serem “cortados” do orçamento seguinte, pois ele será elaborado com base no que foi previsto e executado no exercício anterior. E as dotações que forem utiliza- das, ainda que mal utilizadas, mantidas.

Compreensível, embora não plenamente justificável, o comportamento dos gestores públicos, ao passar o final de ano correndo para gastar dinheiro público,

 

Natal é tempo de correr com a execução orçamentária          ••

 

quando deveriam estar mais preocupados em escolher o peru e acompanhamentos para as festas natalinas…

Fechados parênteses, volto ao tema central já chamando a atenção para um paradoxo: como se falar em correr para gastar o dinheiro previsto no orçamento? Significa que o dinheiro está sobrando, quando todos sabem que está faltando?

Pois é. Sobrando e faltando ao mesmo tempo, difícil de explicar, mas os ges- tores públicos não terão dificuldade em entender e confirmar. Estranho, mas real e verdadeiro.

O pior são as consequências nocivas que esse comportamento causa às finan- ças públicas.

Na ânsia de gastar, por vezes impera o “vale-tudo”. Não importa se o gasto é útil, necessário, atende ou não ao interesse público, já que a prioridade passa a ser “limpar o caixa” a qualquer custo. Nessa hora, muito do escasso dinheiro público é desperdiçado com despesas de menor relevância, por vezes desconectadas do sis- tema de planejamento das ações governamentais, causando distorções nos rumos da administração.

Priorizam-se despesas de fácil execução, que dispensam procedimentos com- plexos, como licitações, que inviabilizariam o gasto do dinheiro antes de findo o exercício.

Na falta de tempo para avaliar prioridades, promove-se uma “caça ao tesouro” em que ganham os mais rápidos, mais espertos e mais sortudos.

Certamente, ficam felizes os contemplados, destinatários dos recursos, bens ou serviços para os quais as dotações foram generosamente liberadas.

Quem perde sou eu, você, somos nós – afinal é o dinheiro público que vai para o ralo.

O assunto aparece com alguma frequência na mídia nessa época do ano, ainda que não se possa identificar à primeira vista. No O Estado de S.Paulo de 7 de dezem- bro de 2012 (Por acordo no orçamento, Dilma libera R$ 3,4 bilhões em emendas), anuncia-se que “para aprovar a proposta orçamentária de 2013 antes do recesso parlamentar, o governo se comprometeu a liberar R$ 3,4 bilhões em emendas de parlamentares nos próximos dez dias. Pelo acordo fechado com a oposição, cada um dos cerca de 100 deputados e senadores do DEM, do PSDB e do PS vai ter empe- nhados R$ 5 milhões de suas emendas ao Orçamento deste ano até o dia 20 de dezembro, data prevista para a votação no plenário do Congresso da proposta orça- mentária para o ano que vem. Para os quase 500 parlamentares da base aliada, o Palácio do Planalto vai empenhar R$ 6 milhões em emendas orçamentárias”.

 

 

Mais um uso para este verdadeiro “peru de Natal” que são os recursos ainda não gastos no final de exercício: a barganha com os parlamentares, a que já me referi na coluna de 3 de julho de 2012 (Emendas ao orçamento e desequilíbrio de poderes, nesta edição, p. 219-222). A liberação de recursos das dotações contingen- ciadas desde o início do ano, cujo gasto deveria ser feito de forma planejada e transparente, transforma-se em “moeda” para a “compra de votos” necessária à aprovação da lei orçamentária.

Lei orçamentária que, por sua vez, contemplará dotações para despesas que os parlamentares exigiram nela inserir, sem o que não votariam a lei orçamentária. Contemplará também dotações de interesse do governo, para as quais a inserção no orçamento, por vezes, custou algumas liberações de recursos orçamentários que estavam “sobrando” no final do ano. Dotações essas que, após inseridas, serão con- tingenciadas à espera do final do ano seguinte e, assim, segue o “ciclo orçamentá- rio” (que, frise-se, não é o significado que a doutrina do Direito Financeiro dá à expressão…).

Certamente a estória se repetirá no ano seguinte, como já vem ocorrendo há anos (ou décadas, quiçá séculos…).

Mas um ano novo é sempre época de renovação das esperanças. Que a quebra desse “círculo vicioso orçamentário” entre na lista de desejos.

E um feliz 2013 a todos!

 

 

O FINAL DE ANO, AS DÍvIDAS E OS “RESTOS A PAgAR”

 

 

Coluna publicada em 17.12.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-dez-17/

contas-vista-final-ano-dividas-restos-pagar>

 

 

 

 

 

Final de ano é tempo de festas e confraternizações. Mas é época também de refletir sobre o ano que passou, em todos os sentidos. Pensar no que se fez e no que se projeta para o ano seguinte. E é hora também de acertar as contas. Tempo de balanço. Para as pessoas, as empresas e também o setor público.

É o momento em que aparecem as consequências daquele hábito arraigado de deixar tudo para a última hora: falta o dinheiro, adiam-se pagamentos, parcelam-se dívidas. Muitas vezes, criam-se novos compromissos – afinal, o Natal está aí, todos querem presentes. Difícil dizer se é um hábito de todos ou apenas de nós, brasileiros.

O fato é que esse (mau) hábito reflete-se na administração pública, que parece reproduzir o comportamento das pessoas e também posterga a quitação de suas contas.

Pagamentos que deveriam ter sido feitos ao longo do ano são deixados para o ano seguinte. Cria-se o que tecnicamente se chama de “restos a pagar”,1 ou seja, a administração pública compromete-se no final do ano a fazer pagamentos de des- pesas empenhadas no exercício, deixando-os para que se concretizem no exercício financeiro seguinte, onerando o próximo orçamento.

É até compreensível o uso moderado desse instrumento.

Afinal de contas, nossas leis orçamentárias, como nos demais países, têm vi- gência temporária, em atenção ao princípio da anualidade, que, por disposição

 

1    As “despesas empenhadas, mas não pagas até o dia 31 de dezembro”, previstas no art. 36 da Lei 4.320, de 1964, e 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar 101, de 2000.

 

 

legal (Lei 4.320/1964, art. 34), corresponde ao ano civil, iniciando-se em 1º de janeiro e terminando em 31 de dezembro,

A anualidade orçamentária, erigida à condição de princípio pelos doutrinado- res, é, de um lado, uma necessidade, uma vez que os orçamentos públicos exercem as funções de controle, gestão e planejamento e, para isso, torna-se imprescindível que se estabeleça um período determinado para que sejam previstas e autorizadas as receitas e despesas, a fim de que possam ser controladas.

Por outro lado, a existência de um prazo fixo para a vigência da lei orçamen- tária causa alguns problemas e distorções,2 uma vez que a atividade financeira do setor público compreende um conjunto de atos que se realizam continuamente.

Daí porque a necessidade de mecanismos, como é o caso dos restos a pagar, que permitam adaptar a necessária temporariedade da lei orçamentária com a diversidade de situações que decorrem da atividade financeira ininterrupta do setor público.

Infelizmente, o que se tem observado é seu uso abusivo, generalizando-se a inscrição de valores em restos a pagar, fazendo com que o ano se inicie com expres- sivos valores já empenhados, criando-se um verdadeiro “orçamento paralelo”, que dificulta o planejamento e a gestão e torna menos transparentes os gastos públicos.

Intensifica-se, ainda, a disputa pela liberação desses recursos no exercício se- guinte, em um jogo sujeito a interferências políticas e de toda ordem, com regras pouco claras e transparentes.

O legislador tem estado atento a isso e várias são as limitações impostas para a inscrição em restos a pagar, com vedações voltadas a evitar abusos e descontrole das contas públicas, além da previsão de relatórios que procuram dar maior trans- parência. Mas, lamentavelmente, isso parecer não estar sendo suficiente, pois o que se vê é um crescimento constante desses valores.

Constata-se ser necessário o aperfeiçoamento da legislação em matéria de fi- nanças públicas, e isso passa pela revisão da ideia de anualidade orçamentária, a fim de tornar nossas leis orçamentárias mais coerentes com a modernização da administração pública.

Com efeito, atualmente a lei orçamentária insere-se no contexto de um siste- ma orçamentário, coordenando-se com outras leis que abrangem períodos mais amplos da atividade financeira do Estado, que não prescinde de previsões de médio

 

2   Natal é tempo de correr com a execução orçamentária, nesta edição, p. 211-214, em que mostrei que a aproximação do final do exercício leva a uma “corrida” para a execução apressada da lei orça- mentária, com a finalidade de evitar a perda das dotações consignadas no orçamento.

 

O final de ano, as dívidas e os “restos a pagar”          ••

 

e até mesmo longo prazos, como a lei de diretrizes orçamentárias, o plano pluria- nual, plano nacional de educação e outras, que vêm exercendo funções cada vez mais relevantes. Já há muito se fala também no princípio da plurianualidade,3 ten- do em vista o reconhecimento de que as despesas do setor público são, no mais das vezes, de caráter plurianual, com o que o sistema orçamentário deve ser compatível.

A lei anual de diretrizes orçamentárias, para citar uma dessas novas e impor- tantes atribuições, atualmente incorpora o anexo de metas fiscais (LRF, art. 4º, 1º), com previsões para o exercício a que se refere mais os dois seguintes, institucio- nalizando o chamado planejamento “deslizante” (ou “rolante”, como preferem al- guns autores), adaptando a anualidade orçamentária ao planejamento plurianual e permitindo maior segurança jurídica para as despesas que extrapolam o exercício financeiro. Essas despesas, hoje, são fundamentais para assegurar o desenvolvi- mento econômico e social, especialmente em função das grandes obras de infraes- trutura, cada vez mais necessárias para melhorar o bem-estar de nossa sociedade. Basta ver as imprescindíveis obras voltadas a favorecer a mobilidade urbana, pro- blema crescente nas grandes metrópoles, que exigem altos investimentos em trans- portes coletivos de massa, como o metroviário, vias rápidas e outros; ou ainda as grandes obras voltadas à produção de energia, como usinas hidrelétricas. Todas obras de grande vulto, fundamentais para o país, e cuja implantação ultrapassa em muito o período do exercício financeiro.

Os contratos com o Estado cada vez menos se esgotam no curto prazo, e é necessário assegurar o seu cumprimento pelo poder público. Nosso sistema jurídi- co precisa estar preparado e adequado para dar segurança jurídica, em todos os aspectos, especialmente financeiros, para esses investimentos que ultrapassam a vigência da lei orçamentária.

Os projetos de lei em curso voltados a substituir a Lei 4.320, de 1964,4 suge- rem mecanismos de aperfeiçoamento nesse sentido, como a introdução de um ane- xo e novas regras que garantem recursos paras os empreendimentos plurianuais, possibilidade de carregar dotações orçamentárias para o próximo exercício (“carry-

-over” ), além de melhor regulamentação para os restos a pagar. Com isso, evitam-

-se ou reduzem-se os efeitos indesejáveis de uma anualidade orçamentária rígida, causadora das já citadas ineficiências na gestão financeira do Estado.

A administração pública e o sistema orçamentário precisam se adaptar aos novos tempos, e muito há que se fazer, como se pode ver.

 

 

3      José Afonso da Silva, O orçamento-programa no Brasil. São Paulo: RT, 1973, p. 134.

4      Sobre os quais já me referi no texto Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias, nesta edição, p. 259-262.

 

 

E as pessoas e governantes também podem colaborar, e muito, mudando há- bitos que, embora pareçam fazer parte de uma cultura, não são nada saudáveis para as finanças públicas, muito menos para as particulares. Endividar-se não é por si só um mau hábito, pelo contrário, é muitas vezes um incentivo e motor do crescimen- to e desenvolvimento. Exige apenas planejamento e responsabilidade.

É hora de aproveitar os últimos dias que faltam para o fim do ano e acertar nossas contas. Pode ser difícil convencer nós brasileiros a não ter dívidas, mas ano novo é o momento para fazer as promessas e, quem sabe, desta vez seja diferente. Vamos esperar que todos, especialmente nossos governantes, deixem as dívidas pagas em 2013 e vamos começar 2014 com dinheiro para os novos projetos. Um feliz 2014 a todos, com muito dinheiro no bolso e no caixa. E sem “restos a pagar”!

 

 

EMENDAS AO ORçAMENTO E O DESEquILÍBRIO DE PODERES

 

 

Coluna publicada em 3.7.2012: <http://www.conjur.com.br/2012-jul-03/ contas-vista-emendas-orcamento-desequilibrio-poderes>

 

 

 

 

 

A chamada “CPI do Cachoeira” trouxe de volta ao debate questão que há muito reclama solução em nosso processo orçamentário. Noticiou a imprensa re- centemente um “pico” de “liberação” de emendas parlamentares por ocasião da formação da referida CPI, fato constatado também em outras oportunidades.1

Toda a problemática deste tema requer uma explicação ao leitor sobre o fun- cionamento do nosso sistema de elaboração da lei orçamentária anual (LOA) dos entes federados, que é interessante explicitar, a fim de que se possa ter uma exata compreensão do problema e a dimensão de sua importância no funcionamento de nossa democracia representativa e, com isso, chamar a atenção para este já velho problema, esperando que possa provocar a reflexão para possíveis soluções.

Os entes que compõem a Federação brasileira – União, estados, Distrito Federal e municípios – têm sua atividade financeira explicitada nas leis orçamentárias, de vigência anual, compreendendo as receitas e despesas para o exercício financeiro. Nela estão definidos os destinos dos recursos públicos e, portanto, onde e como será aplicado o seu, o meu, o nosso dinheiro. Definem-se quais programas e respectivas ações governamentais serão implantados, continuados, encerrados, quanto se desti- nará a cada um, evidenciando as políticas públicas que cada esfera de governo desen- volverá durante o período. Faz da lei orçamentária, como já reconheceu o ministro Carlos Ayres Britto, a lei infraconstitucional mais importante para o país.2

1 Gasto do governo com varejo político dispara após a crise. Liberações para emendas parlamen- tares agora superam R$ 350 mi por mês. Folha de S.Paulo, cad. Poder, 6 de maio de 2012.

2    “Abaixo da Constituição, não há lei mais importante para o país, porque a que mais influencia o destino da coletividade” (STF, Tribunal Pleno, ADI 4.048-MC/DF, rel. Min. Gilmar Men- des, j. 14.5.2006, voto do Min. Carlos Britto, p. 92).

 

 

Delicada, portanto, a questão da distribuição das atribuições entre os Poderes quando se trata da lei orçamentária. Nosso ordenamento jurídico prevê que a ini- ciativa legislativa é privativa do Poder Executivo, submetendo-se o projeto encami- nhado ao Poder Legislativo para deliberação e aprovação. Aprovada a lei, o Poder Executivo assume o comando da execução orçamentária, e todo o processo é fisca- lizado pelos sistemas de controle interno e externo das finanças públicas, este últi- mo sob o comando do Poder Legislativo, com auxílio dos Tribunais de Contas. Vê-se haver uma razoavelmente bem distribuída partilha de atribuições no que tange às leis orçamentárias, que, se não fossem as distorções causadas pelo mau uso do sistema, comporia um bem construído processo orçamentário. Mau uso este que, como se verá, ocorre justamente na questão das emendas parlamentares.

E onde estão essas distorções?

Em sendo uma lei, o orçamento público submete-se ao crivo do Poder Legis- lativo, a quem cabe deliberar sobre a proposta encaminhada pelo Poder Executivo, podendo, por conseguinte, alterá-la. Isto se dá por meio as emendas parlamentares, cuja regulamentação está constitucionalmente prevista no artigo 166, § 3º, da Constituição Federal.

Apresentado o projeto de lei orçamentária ao Poder Legislativo, no segundo semestre de cada ano,3 os parlamentares oferecem suas emendas, que, em tese, sujei- tam-se tão somente às limitações estabelecidas no artigo 166, § 3º, exigindo-se com- patibilidade com o plano plurianual e lei de diretrizes orçamentárias, sendo vedadas emendas que incidam sobre dotações para pessoal, serviços da dívida e as transferên- cias intergovernamentais. E o mais relevante: indiquem os recursos necessários para atendê-las, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesas. Ou seja: não cabe aos parlamentares “criar receita” para atender suas emendas parlamentares.

Apresentar emendas, propondo novas opções de gastos, com a indicação dos recursos necessários para atendê-las, importando em cortar outras despesas já in- cluídas no projeto de lei orçamentária pelo Poder Executivo, evidentemente causa- rá uma grande disputa política pela respectiva aprovação, com a dificuldade prática de analisar as milhares de emendas apresentadas pelas centenas de senadores e deputados,4 cada uma com sua peculiaridade de inclusão de uma nova despesa com

3   Mais precisamente, na esfera federal, no final do mês de agosto, em cumprimento ao disposto no artigo 35, § 2º do ADCT, que determina seja o projeto apresentado quatro meses antes de findo o exercício financeiro.

4 81 Senadores e mais de 500 deputados na esfera federal compõem o Congresso Nacional, responsável pelo Orçamento da União.

 

Emendas ao orçamento e o desequilíbrio de Poderes    ••

 

o recurso oriundo do corte de outra despesa, tudo isso no exíguo prazo de menos de quatro meses.

A praxe dos Parlamentos praticamente consolidou a sistemática de definir previamente, em acordo entre os líderes de ambos os Poderes, uma “cota” para as emendas parlamentares, estabelecendo-se um montante fixo, a ser contabilizado em rubrica específica durante a tramitação do projeto, para servir de “fonte de re- cursos” para atender a demanda das emendas parlamentares.

Duas graves distorções na participação do Poder Legislativo – e, por conse- guinte, da vontade popular – no processo orçamentário se vislumbram a partir dessa prática: a primeira delas é a redução da influência dos parlamentares no or- çamento público, que, exceto no que se refere ao montante destinado à “cota das emendas parlamentares”, pouco ou nada interferem na elaboração da peça orça- mentária, e, portanto, na decisão sobre a alocação dos recursos públicos; a segunda é a limitação da ação dos parlamentares à inclusão de despesas de caráter eminen- temente paroquial e localizado, visando atender a demandas de menor vulto, geral- mente destinadas a interesses específicos de sua base de apoio eleitoral. Inviabiliza, por conseguinte, a participação efetiva dos representantes do povo, eleitos para compor o Parlamento, na definição das políticas públicas e nas grandes questões relacionadas à alocação dos recursos, fazendo do Poder Executivo praticamente o único responsável pelas escolhas que vão definir os programas a serem cumpridos pelo ente federado.

Mas o pior ainda está por vir e é o que fica claramente evidenciado na notícia referida no início deste texto.

Aprovada e publicada a lei orçamentária, inicia-se a fase de execução, na qual as despesas se concretizarão, com a efetiva entrega dos recursos que constam das dotações orçamentárias para o cumprimento dos programas governamentais nela estabelecidos.

Nesse processo, compete ao Poder Executivo comandar a liberação dos recur- sos, e as várias circunstâncias que envolvem as inevitáveis e sempre presentes imper- feições na previsão de arrecadação e mesmo no fluxo das despesas tornam necessá- rio haver mecanismos de flexibilidade que permitam a adequação das liberações de recursos ao ingresso de receitas.

Entre os vários instrumentos está o contingenciamento (ou limitação de em- penho, nos termos da legislação vigente), por meio do qual não se autorizam as despesas até que se torne adequada e oportuna a respectiva liberação, descon- tingenciando-se, então, os valores orçados e efetivando-se a entrega do dinheiro. Criado para adaptar o fluxo de entrada com a saída de recursos, permitindo um

 

 

adequado gerenciamento das finanças, o que se vê é uma distorção no uso desse instrumento.

Uma vez que se sabem quais as dotações orçamentárias inseridas no orçamen- to pelas emendas parlamentares, cuja liberação dos recursos é de evidente interesse do parlamentar que a patrocinou, o contingenciamento das referidas dotações, para liberação oportuna, transformou o processo orçamentário em verdadeiro ins- trumento de “compra” de apoio político do Legislativo por parte do Executivo. As dotações consignadas às emendas parlamentares são liberadas, como se tem reite- radamente constatado, por razões de interesse político, e não financeiro. Desvia-se, dessa forma, o contingenciamento, instrumento de flexibilidade orçamentária des- tinado a melhor gerenciar o fluxo de recursos, de sua verdadeira finalidade, que é adaptar as inconstâncias da atividade financeira para buscar atingir o fiel cumpri- mento da lei orçamentária tal como aprovada, para outra que não lhe é própria, a saber, a de moeda de troca entre os Poderes por apoios políticos circunstanciais.

A análise da liberação de recursos contingenciados contemplados por emendas parlamentares, mostrando coincidência com as datas de votações importantes no Congresso Nacional, tal como constatado pela imprensa, não deixa margem a dúvidas sobre esse desvio de finalidade que se vem constatando no processo orçamentário.5

Urge aproveitar mais essa oportunidade em que o tema volta à tona para que se intensifiquem os esforços no sentido de criar mecanismos mais eficientes de participação do Poder Legislativo no processo orçamentário, bem como de contro- le da atividade de execução orçamentária pelo Poder Executivo, a fim de que o Orçamento Público cumpra seu papel de lei, que, de fato, represente as escolhas da população sobre a aplicação dos recursos públicos e sejam estas cumpridas tal como aprovadas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

5    R$ 84,5 milhões em 9 de março de 2012, logo após a rejeição, pelo Senado, de indicação para a ANTT; R$ 47,5 milhões em 27 de março de 2012, véspera da votação da Lei Geral da Copa; e R$ 40,3 milhões em 20 de abril de 2012, dia seguinte à criação da “CPI do Cachoeira” (no- tícia citada, vide nota 1).

 

 

DuRANTE AS ELEIçõES, PENSE BEM PARA quEM vAI ENTREgAR A CHAvE DO COFRE

 

Coluna publicada em 26.8.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-ago-26/

eleicoes-pense-bem-quem-entregar-chave-cofre>

 

 

 

 

 

“No dinheiro está o princípio vital do organismo político; o tesouro é o cora- ção do Estado; a gerência das finanças envolve a supremacia sobre a ação do gover- no” (Rui Barbosa).

As sábias palavras de um dos maiores gênios brasileiros continuam mais atuais do que nunca. Poucas palavras que muito explicam, como veremos.

A corrida (ou guerra?) eleitoral já começou. Vê-se, sem sombra de dúvida, que os cargos mais disputados são os de Chefe do Poder Executivo – no caso desta eleição, Governadores de Estado e Presidente da República.

Em nosso país, cuja Constituição consagra o Estado Democrático de Direito (art. 1º), com separação de poderes (art. 2º), isso não deixa de ser curioso, pois o Poder Legislativo é o principal responsável pela elaboração e aprovação das leis a que todos estamos sujeitos. Deveria, pois, ser o mais “importante”, que tem mais “poder”1 e, consequentemente, o mais cobiçado.

Mas não é o que ocorre.

Observe que, na prática, quem tem mais poder é o Chefe do Poder Executivo. É isso que justifica serem eles mais conhecidos e esses cargos mais cobiçados e ob- jeto de desejo da grande maioria dos políticos. Veja você mesmo, caro leitor. Per- gunto-lhe: você sabe quem é o Presidente (ou seria Presidenta? Solicito ajuda dos gramáticos!) da República? O Governador do Estado? O Prefeito do Município? A resposta é em regra positiva e segura. E o Presidente do Congresso Nacional? Da

1      No sentido coloquial do termo, sem entrar em discussões mais profundas sobre o exato conte- údo e significado da expressão, uma vez não ser o propósito deste breve texto.

 

 

Assembleia Legislativa? Da Câmara Municipal? Quem é o Presidente do Supremo Tribunal Federal? Dos demais Tribunais Superiores? E do Tribunal de Justiça? Essas últimas são mais difíceis, não é mesmo? As respostas nem sempre são certas e, no mais das vezes, com hesitações.

E porque isso ocorre? De onde vem esse “poder maior”, essa supremacia, do Poder Executivo?

A resposta, embora não seja tão difícil, é pouco conhecida. E quem nos dá é o Direito Financeiro. Rui Barbosa nos indica o caminho para chegar a ela.

As leis orçamentárias, que definem as receitas e despesas, são, como já tenho repetido, fazendo coro à nossa Suprema Corte, as mais importantes do ordenamen- to jurídico depois da Constituição.2

E, em todo o processo que envolve as leis orçamentárias, desde sua elaboração, passando pela execução e fiscalização, no chamado ciclo orçamentário, o Poder Executivo tem papel destacado. Não deveria ser o principal, uma vez que em nosso Estado Democrático de Direito “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes” (CF, art. 1º e parágrafo único), que tem (ou deveria ter…) no Poder Legislativo seu mandatário mais fiel, como bem colocou o ministro Luiz Fux: “Se, por certo, não só o Poder Legislativo busca raízes de legitimidade no povo, já que, como afirma a Constituição Federal de 1988, é deste último que todo o poder emana (CF, art. 1º, parágrafo único), nem por isso se pode ignorar que cabe ao Parlamento, na lógica que perpassa a tripartição dos poderes, a primazia no papel de caixa de ressonância da vontade popular, derivada (i) da forma de provi- mento de seus cargos pela via do batismo democrático e, simultaneamente, (ii) da composição plúrima a espelhar os diversos segmentos da sociedade”.3

Mas a realidade, nesse caso, não é muito coerente com a teoria, como se verá.

A importância das leis orçamentárias reflete-se no ciclo orçamentário, em que se observa haver extremo cuidado em dividir as diversas fases entre os poderes Exe- cutivo e Legislativo, atribuindo-se competências a ambos, de modo a deixar evi- dente a presença do sistema de “freios e contrapesos”. Em síntese, o Poder Executi- vo tem a iniciativa da lei orçamentária, que é aprovada pelo Poder Legislativo, cabendo ao Executivo conduzir a sua execução, que o Legislativo fiscalizará.

Muitos são os poderes do Executivo na primeira fase do ciclo orçamentário, a começar pela prerrogativa de apresentar a proposta de orçamento, conforme

 

2      Ministro Carlos Ayres Britto, STF, ADI-MC 4.048-1/DF, j. 14.5.2008, p. 92 dos autos.

3      STF, ADI-MC 4.663.

 

Durante as eleições, pense bem para quem vai entregar a chave do cofre             ••

 

expressamente dispõe o artigo 165 da Constituição, o que já é por demais significativo, tendo em vista as limitações do Poder Legislativo em propor emendas ao projeto (CF, art. 166, § 3º).

Limitações estas que, na prática, são muito maiores do que prevê nossa Cons- tituição. Isso porque já se institucionalizou, na generalidade dos entes que com- põem nossa federação, a prática de definir previamente uma “cota” para as emen- das do Poder Legislativo,4 sujeitando nossos parlamentares a propor alterações no montante estabelecido (em geral, valores que não atingem 1% do orçamento total), que não alteram de forma relevante o orçamento – o que o torna, de fato, uma lei quase integralmente de autoria do Poder Executivo.

O Poder Legislativo, contudo, é quem tem a palavra final em matéria de fi- nanças públicas: cabe a ele aprovar as leis orçamentárias.

Mas a supremacia do Poder Executivo aparece de forma mais evidente na fase de execução orçamentária, na qual tem papel predominante e fica clara sua função de gestor das finanças públicas.

A lei orçamentária, como toda e qualquer lei, existe para ser cumprida. Tem, no entanto, algumas peculiaridades que permitem reconhecer legítimo e necessário sujeitar-se a algum grau de flexibilidade em sua execução. Elaborada com base em previsões de arrecadação, que vão estabelecer o montante de receitas e consequente limite das despesas, vê-se haver inúmeros fatos futuros e incertos que impedem seja a lei executada um espelho daquela que foi aprovada.

Flexibilidade esta que, embora necessária, deve ter sua extensão reduzida ao mínimo, restringindo-se as possibilidades de alteração do que foi aprovado. Mas não é o que acontece.

Generalizou-se a prática de estabelecer autorizações prévias para que o Execu- tivo abra créditos suplementares (Lei 4.320, de 1964, art. 7º, I), as chamadas “mar- gens de remanejamento”, de tal forma exageradas, que dispensam toda e qualquer necessidade de lei para aprovar referidos créditos responsáveis por alterar o orça- mento. Uma verdadeira delegação do Poder Legislativo ao Poder Executivo para conduzir a execução orçamentária da forma que lhe aprouver, aumentando, dimi- nuindo, remanejando e transferindo recursos, de modo a descaracterizar as dota- ções que inicialmente constavam das leis orçamentárias.

O contingenciamento, instrumento destinado a adequar o fluxo da atividade financeira do Estado, compatibilizando o ingresso com a saída de recursos, tem sido utilizado de maneira ilegítima pelo Poder Executivo, limitando o empenho

 

4      Emendas ao orçamento e o desequilíbrio de Poderes, nesta edição, p. 219-222.

 

 

para postergar os gastos com a finalidade de “criar dificuldades para vender facili- dades”, como já exposto em coluna anterior.5

Transferências voluntárias, importante mecanismo para adequar a partilha de recursos e minimizar distorções na distribuição das receitas em nosso sistema fede- rativo, têm sido utilizadas pelos Poderes Executivos da União e dos Estados não como instrumentos de um federalismo cooperativo, mas sim de subordinação po- lítica dos entes subnacionais, criando relações de dependência que ferem o princí- pio federativo.6

São muitas as distorções, vários os desvios, que distanciam a teoria da rea- lidade e mostram que, em matéria orçamentária, o sistema de “freios e contrape- sos” não está funcionando como deveria. O Poder Executivo, em nosso país, sem que a Constituição autorizasse, se apossou do tesouro, o “coração do Estado”, con- trolando o dinheiro público, “princípio vital do organismo político”, o que lhe tem dado a supremacia das ações governamentais, para usar as precisas palavras de Rui Barbosa.

As eleições se aproximam. É hora de pensar bem em quem votar. Todos que- rem pegar a “chave do cofre”. Fique atento para quem vai entregá-la.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

5      Hora é de “apertar o cinto” e contingenciar gastos, nesta edição, p. 227-230.

6      Transferências voluntárias geram desequilíbrio federativo, nesta edição, p. 19-22.

 

 

HORA É DE “APERTAR O CINTO” E CONTINgENCIAR gASTOS

 

 

Coluna publicada em 11.3.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-mar-11/ contas-vista-hora-apertar-cinto-contingenciar-gastos>

 

 

 

 

 

Foi amplamente noticiado na mídia, em fevereiro de 2014, o “corte” de R$ 44 bilhões no orçamento da União deste ano de 2014. Fato semelhante ocorreu, no mesmo período, com o município de São Paulo e outros entes da federação.

Este “corte” orçamentário é o conhecido “contingenciamento” para os versa- dos no tema. Ou, para usar a expressão legal, “limitação de empenho”.1 Termos técnicos aparentemente difíceis de compreender para aqueles que não atuam na área, mas que, pode-se notar, de grande importância, tanto que o assunto foi man- chete nos principais meios de comunicação.

Embora a notícia venha com a aparência de novidade, trata-se de fato corri- queiro, já institucionalizado pela administração pública brasileira, tem ocorrido todo início de ano e é importante e interessante compreendê-lo melhor.

O orçamento público, “a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abaixo da Constituição”, nas felizes palavras do ministro Carlos Ayres Britto,2 contém a previsão de receitas e despesas para o exercício financeiro, que é anual (Lei 4.320, de 1964, art. 34). Deve haver, pois, grande preocupação em de- mocratizar sua elaboração, de modo que, tendo seu processo iniciado pelo Poder Executivo, por força de determinação constitucional (CF, art. 165, III), transfor- me-se em uma lei que represente com a maior fidelidade possível os interesses da sociedade. E, principalmente, não se pode descuidar de sua execução, para que a lei cumprida seja a imagem da que foi aprovada.

 

1      Vejam-se artigos 4º e 9º da LRF, dentre outros artigos e diplomas legais.

2      STF, ADI-MC 4.048-1/DF, j. 14.5.2008, p. 92 dos autos.

 

 

Sendo o orçamento anual, a previsão das receitas e despesas no orçamento contém valores que representam a atividade financeira durante todo o ano. Assim, as receitas nele previstas não correspondem a dinheiro existente e disponível, mas sim a uma estimativa da arrecadação que se concretizará ao longo de todo o exer- cício financeiro. O mesmo ocorre com as despesas, cuja previsão orçamentária, ato necessário para que sejam autorizados os gastos, por força do princípio da legalida- de orçamentária, representa valores a serem despendidos durante o exercício finan- ceiro. Essa autorização anual, para que se concretize, depende da arrecadação, com a qual deve guardar compatibilidade, razão pela qual a dotação orçamentária não autoriza, por si só, a realização da despesa.

Cabe ao Poder Executivo, responsável maior pela gestão das finanças públicas e que exerce o comando da execução orçamentária na maior parte da administra- ção pública, estabelecer a programação financeira, dando cumprimento à lei orça- mentária, ao “assegurar a liberação automática e oportuna dos recursos necessários à execução dos programas anuais de trabalho” (Decreto-lei 200, art. 17). Por meio da programação financeira, compatibiliza-se a arrecadação com o gasto e ajusta-se o ritmo da execução do orçamento ao fluxo de recursos, observando o estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 9º), que vincula o contingenciamento à necessidade de ajuste fiscal se verificada a frustração de receitas. Infelizmente não é o que se tem reiteradamente notado, pois “seu uso indiscriminado tem se firmado mais como um elemento das relações de poder existentes entre Executivo e Legis- lativo do que como uma ocorrência fundamentada na lei e na sistemática constitu- cional das atribuições parlamentares no orçamento público”.3

Ao fazê-lo, o Poder Executivo deve controlar o fluxo de recursos de forma ao mesmo tempo prudente, evitando o descontrole de contas e, de outro lado, corajo- sa, impondo o ritmo adequado sem “frear” desnecessariamente os investimentos e a concretização das políticas públicas.

Deve também usar o contingenciamento tão somente como medida de ajustes na programação financeira do Estado, sem desviar-se dos programas e respectivos objetivos, resultados e metas previstos na lei orçamentária. Não pode ser um meio de transferir a decisão sobre onde, como e quanto gastar para o Poder Executivo, que lamentavelmente tem se utilizado desse instrumento para cumprir a lei orça- mentária da forma que lhe convém. Muito pior é usar o contingenciamento para

 

3 Como exposto com precisão por Gabriel Lochagin, em recente dissertação de mestrado defendida junto à USP (A flexibilidade da execução orçamentária, São Paulo, 2012, p. 152- 153).

 

Hora é de “apertar o cinto” e contingenciar gastos          ••

 

postergar despesas com vistas a “criar dificuldades para vender facilidades”, prática nada republicana, porém corriqueira, disseminada em toda a administração públi- ca, e que tem sido utilizada como instrumento de cooptação de apoio político, cor- rupção e desvios de toda ordem, tema ao qual já me referi anteriormente em várias oportunidades.4 Isso poderia ser facilmente evitado se a lei fosse cumprida, pois o artigo 4º, I, b da LRF delega às leis de diretrizes orçamentárias disporem sobre cri- térios e forma de limitação de empenho, o que poucos entes da federação fazem.

O contingenciamento é um importante instrumento de política financeira e gestão das finanças públicas, pois, além das funções já mencionadas, pode ser uti- lizado para privilegiar despesas mais relevantes, conferindo-lhes maior segurança jurídica ao garantir que não sejam passíveis de limitação de empenho, como auto- riza expressamente o artigo 9º, § 2º da LRF.

Já há algum tempo observa-se, no início do ano, a edição de decretos de pro- gramação financeira e cronogramas de desembolso “conservadores”, estabelecendo “contingenciamentos preventivos” severos das despesas, com a clara intenção de “sinalizar o mercado” de que o governo pretende agir de forma a conter seus gastos e cumprir compromissos como os de atingir as metas de superávit primário. Daí surgirem as notícias dos chamados “cortes”, que, de fato, não necessariamente o são, pois o contingenciamento nada mais é do que uma postergação da despesa, não implicando em uma efetiva redução de gastos.

Trata-se, em verdade, de atos muito mais voltados a produzir efeitos midiá- ticos do que representativos de medidas concretas de maior controle e rigor nas contas públicas. Alexandre Schwartsman, em artigo recente, mostra que, em com- paração com anos anteriores, os gastos no âmbito do orçamento federal continuam aumentando, a despeito dos contingenciamentos. Estes, na feliz expressão utilizada pelo autor, só têm “cortado vento”.

E, por vezes, os “cortes” recaem sobre os investimentos, despesas importantes para o desenvolvimento social e econômico, quando poderiam atingir despesas de custeio em setores menos relevantes, onde o desperdício se mostra mais presente e o aproveitamento dos recursos está dissociado do interesse público.

Há, pois, que se dar maior atenção a este instrumento que, não à toa, tem ocupado, com frequência e destaque, o noticiário. Além de receber a devida e

4 Vejam-se especialmente Emendas ao orçamento e o desequilíbrio de poderes, nesta edição, p. 219- 222, Transferências voluntárias geram desequilíbrio federativo, nesta edição, p. 19-22 e Orça- mento impositivo é avanço para a administração, nesta edição, p. 231-234.

 

 

merecida atenção, deve-se exigir que seja utilizado com seriedade, a fim de que possa ter a necessária credibilidade.

Os contingenciamentos, em verdade, são como as promessas de regime, cujos sacrifícios se prometem “começar na próxima segunda-feira” – ou, para ser mais adequado a estes dias, “depois do Carnaval”. Mas todos sabem que, da promessa à prática, há um longo caminho a percorrer. O Estado brasileiro anda acima do peso. Não se apertam os cintos com promessas, é necessário muito mais do que isso. Precisamos de medidas mais concretas e efetivas para cortar as “gordurinhas”. E que não são poucas…

 

 

ORçAMENTO IMPOSITIvO É AvANçO PARA ADMINISTRAçÃO

 

 

Coluna publicada em 7.5.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-mai-07/ contas-vista-orcamento-impositivo-avanco-administracao>

 

 

 

 

 

As declarações do presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN),1 ao manifestar intenção em acelerar a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional 565/2006, que altera e acrescenta artigos da Constitui- ção com a finalidade de tornar obrigatória a execução de dotações orçamentárias, traz de volta o debate sobre o “orçamento impositivo”.

Trata-se de questão antiga, já de há muito objeto de discussões intensas, e de fundamental importância para a democracia, o equilíbrio e independência de po- deres e até mesmo a autonomia dos entes federados, mas sobre a qual não há con- senso entre os estudiosos do Direito Financeiro.

Não obstante ser um tema complexo, que dá margem a longas discussões, objeto de vários trabalhos que o abordam com profundidade, não posso deixar de aproveitar a oportunidade para, ainda que de modo sucinto e simplificado, abordar o tema e fazer algumas considerações para que se possa compreendê-lo.

A lei orçamentária tem características peculiares que a diferem substancial- mente das demais leis. Tem natureza temporária – vale por um exercício financei- ro, segundo a legislação vigente hoje no Brasil – e, ao definir a atividade financeira, cada ente federado, por esse período, depende, no âmbito das receitas, de previsões da arrecadação de recursos a se concretizarem futuramente. No que toca às despe- sas, aloca recursos para gastos cuja realização depende, muitas vezes, de uma série de fatores nem sempre controláveis e previsíveis.

 

1      Veja-se artigo Orçamento respeitosamente impositivo. Folha de S.Paulo, 14 de abril de 2013, seção Tendências/Debates, p. A3.

 

 

Vê-se, pois, que é lei cujo cumprimento não é possível exigir com o rigor que se espera das demais normas que compõem o ordenamento jurídico.

Daí surgirem divergências quanto ao caráter “mandatório” dos dispositivos da lei orçamentária, especialmente no que tange às despesas. Seriam meras “autoriza- ções” para gastar, sem que houvesse obrigação de efetivar o gasto (“orçamento au- torizativo”), ou teriam caráter “impositivo”, de modo que, havendo previsão na lei orçamentária, o governante deve cumpri-la, efetuando o gasto de modo a dar cum- primento às ações governamentais em cujas dotações estão alocados os recursos (“orçamento impositivo”)?

Trata-se de questão a exigir, evidentemente, um estudo minucioso do tema, o que não é compatível com estas breves palavras.2

Mas não impede que se possa contextualizá-la em função das discussões sobre a mencionada PEC, esclarecendo as relevantes consequências.

É possível adiantar, desde logo, que qualquer posição que venha um dia a se consolidar em torno do tema seguramente não poderá ocupar nenhum dos extre- mos. Ou seja, não se pode conceber que o orçamento seja uma lei apenas no aspec- to formal, com dispositivos dotados de caráter meramente autorizativo, sob pena de torná-lo um instrumento inócuo para o planejamento e gestão governamentais, além de mitigar a importância de todo o processo legislativo, especialmente a par- ticipação do Congresso em sua discussão e aprovação. E também não é possível reconhecer em seus dispositivos um caráter mandatório de tal forma rígido e pre- ciso que se permita assegurar a execução integral de todos os programas para os quais foram consignadas dotações, uma vez que inúmeros fatores, imprevisíveis e insuscetíveis de controle podem tornar isso impossível, inviável ou até mesmo não oportuno.

É imperioso constatar que a eficácia, a credibilidade e o respeito à lei orçamen- tária exigem que, uma vez aprovada, sua execução deva pautar-se pela busca do fiel cumprimento de seus dispositivos.

Como já mencionei ao tratar do tema, o “papel do processo de execução do orçamento é cumprir, com a maior fidelidade possível, o orçamento aprovado, de modo que se façam apenas os ajustes necessários, no montante imprescindível para

2 E passa pela própria definição da natureza da lei orçamentária, com as possibilidades de con- siderá-la como tendo uma natureza de “lei formal”, pois teria apenas as características de lei por seguir os procedimentos próprios do processo legislativo, “lei material”, ou seja, teria tam- bém o conteúdo próprio de lei, produzindo efeitos concretos, criando relações jurídicas, ou uma natureza sui generis. Mas não é o caso, nestas poucas linhas, de avançar nessa discussão

– fica para uma próxima oportunidade.

 

Orçamento impositivo é avanço para administração   ••

 

adequar a aplicação das receitas arrecadadas no atendimento às necessidades públi- cas, sempre tendo em vista o interesse da coletividade”. Para que isso ocorra, são necessários instrumentos de flexibilidade, a serem utilizados de modo a “cumprir o que foi estabelecido pela lei orçamentária em seu aspecto essencial, para o que se faz necessário realizar ajustes nas previsões e programações orçamentárias durante o curso de sua execução”, sendo necessário compatibilizar “a necessidade de cumprir-

-se fielmente o orçamento, do modo como aprovado pelo Poder Legislativo, com as imprescindíveis alterações que se fazem necessárias ao longo do exercício financei- ro, sem, com isso, descaracterizá-lo e fazer dele uma peça de ficção”.3

Para isso, existem instrumentos como os créditos adicionais, por meio dos quais são aprovadas alterações na lei orçamentária; o contingenciamento, com o qual o Poder Executivo, gestor das finanças públicas e comandante do processo de execução orçamentária, adéqua e compatibiliza a entrada e saída de recursos, os remanejamen- tos são instrumentos, como os créditos adicionais e contingenciamentos.

São úteis e necessários para o processo de execução orçamentária, que, no entanto, devem ser utilizados com parcimônia, pois o abuso e falta de critérios podem fazer deles instrumentos que desviam a execução da lei orçamentária de seu curso, levando o orçamento executado a diferir substancialmente do que foi apro- vado – e tornando-o, portanto, uma lei com pouco ou nenhum conteúdo material, incapaz de produzir os efeitos que lhe são próprios, como o de dar segurança jurí- dica ao sistema de planejamento governamental e gestão pública.

Mas não é o que se tem observado.

A frequência com a qual os Poderes Executivos de todas as esferas de governo abusam desses instrumentos, contingenciando dotações de modo a impedir que se- jam executadas antes de findo o exercício, realocando recursos com base em margens de remanejamento pré-aprovadas e de forma excessiva, e utilizando-se de outras tan- tas manobras orçamentárias, está a exigir uma postura mais rigorosa por parte do Poder Legislativo, voltada a fazer com que a lei orçamentária venha a cumprir efeti- vamente seu papel constitucional, de condutora da atividade financeira do Estado.

E é nesse sentido que caminha a PEC em tramitação ora referida.

Das alterações propostas, destaca-se a inclusão de dispositivo que considera a programação constante da lei orçamentária de execução obrigatória, exigindo au- torização prévia e expressa do Congresso Nacional para eventual cancelamento ou contingenciamento, parcial ou total, da dotação.

 

 

3      CONTI, José Mauricio. A autonomia financeira do Poder Judiciário. São Paulo: MP Editora, 2006, p. 107.

 

 

Com isso, o Poder Executivo deixa de ter excessiva discricionariedade no uso desses instrumentos de flexibilidade orçamentária, que passarão doravante a ser submetidos à aprovação pelo Poder Legislativo, a quem caberá decidir sobre aspec- tos importantes do processo de execução do orçamento público. O orçamento pas- sará a se tornar mais previsível e capaz de conferir maior segurança jurídica à ad- ministração pública e a todos que dela dependem e com ela se relacionem.

Além disso, impedirá o uso distorcido que tem sido feito desses instrumentos, como se vê quando o Poder Executivo obsta a liberação de recursos já consignados no orçamento com a finalidade de fazer deles “moeda de troca” para barganhas políticas diversas, aos quais já me referi em colunas anteriores, a cuja leitura remeto o leitor (veja-se, especialmente, Emendas ao orçamento e desequilíbrio de Poderes, nesta edição, p. 219-222, e Transferências voluntárias geram desequilíbrio federativo, nesta edição, p. 19-22).

A PEC ora referida não tem a pretensão de tornar o orçamento rigorosamente impositivo (até porque isso nem seria possível, dadas as características próprias da lei orçamentária). Vê-se que os propósitos são bem menos ambiciosos do que esse, uma vez que, mesmo aprovada, ainda será insuficiente para assegurar que os pro- gramas de trabalho inseridos no orçamento sejam executados.

Ressalte-se ainda que, conforme declara o deputado Henrique Alves, parece haver intenção de restringir a obrigatoriedade da execução para as dotações orça- mentárias decorrentes das emendas parlamentares, de modo a se fazer respeitar a decisão dos congressistas em relação à pouca colaboração que têm dado na elabo- ração do orçamento, com a aprovação de emendas contendo algumas indicações de gastos públicos pontuais e que, mesmo assim, não vêm sendo respeitadas pelo Po- der Executivo.

Mas, independentemente das razões que a justificam e até do fato de os inte- resses que a sustentam terem dimensões menores do que a questão jurídica de fundo, o fato é que a aprovação dessa emenda constitucional promoverá um impor- tante avanço no sentido de se fazer respeitar a lei orçamentária. Colaborará decisi- vamente para lhe conferir maior eficácia e credibilidade – o que já é uma evolução para o que se espera de um futuro próximo, que é a máxima “impositividade” do orçamento –, e contribuirá para o respeito à democracia, à vontade popular expres- sa por ocasião da aprovação da lei orçamentária, à independência e autonomia dos poderes e ao planejamento e gestão eficiente da administração pública, elementos essenciais para o desenvolvimento econômico e social.

 

 

APROvAçÃO DO “ORçAMENTO IMPOSITIvO” É INSuFICIENTE PARA DAR CREDIBILIDADE à LEI ORçAMENTÁRIA

 

Coluna publicada em 10.5.2015: <http://www.conjur.com.br/2015-mar-10/paradoxo- corte-aprovacao-orcamento-impositivo-nao-credibilidade-lei-orcamentaria>

 

 

 

 

 

A recente aprovação pela Câmara dos Deputados da “PEC do Orçamento Impositivo” (Proposta de Emenda Constitucional 358/2013)1 torna oportuno vol- tar ao assunto, sobre o qual já discorri nesta coluna em maio de 2013 (Orçamento impositivo é avanço para a administração), dada a importância que representa para o Direito Financeiro.

Em um ano que começou mal para o Direito Financeiro, como já destaquei recentemente2 esta deve ser recebida como uma boa notícia.

Não darei o mesmo enfoque da coluna anterior, para a qual remeto o leitor, pois a efetiva aprovação dessa emenda constitucional permite ampliar as reflexões sobre o tema, agora já à luz do texto aprovado, especialmente para esclarecer alguns pontos polêmicos que surgiram durante esse período de discussões.

A PEC promoveu alterações na redação dos artigos 165, 166 e 198 da Consti- tuição, introduzindo modificações no sistema de execução orçamentária, com a finalidade de tornar obrigatória a realização de parte das despesas previstas na lei orçamentária. Vem integrar o ordenamento jurídico após longa tramitação de vá- rias propostas, destacando-se a PEC 22/2000 do Senado Federal, tendo havido impulso e divulgação em 2013, com o debate sobre a PEC 565/2006 na Câmara dos Deputados.

 

1      Câmara aprova PEC do orçamento impositivo em 2º turno. Câmara Notícias (<http://www2. camara.leg.br/camaranoticias/noticias>).

2      Direito Financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 começou mal, nesta edição, p. 183-188.

 

 

A lei orçamentária, já reconhecida como a mais importante depois da Constituição,3 sempre enfrentou problemas com relação à concretização de seus dispositivos, dadas suas peculiaridades, o que originou aos debates até hoje presen- tes sobre sua natureza “autorizativa” ou “impositiva”.

Como tenho defendido, não é coerente com o ordenamento jurídico vigente, que tem a lei orçamentária contextualizada em um sistema de planejamento gover- namental, na qual desempenha papel fundamental, considerar as disposições da lei orçamentária meras “autorizações” para as despesas públicas. Acolher tal interpre- tação é fazer pouco dessa lei tão relevante. Ainda que sejam necessários instrumen- tos de flexibilidade que permitam adequar as disposições da lei orçamentária às inevitáveis intercorrências que surgem no decorrer do exercício financeiro, há que se reconhecer o caráter mandatório – ou “impositivo” – da lei orçamentária.

Os principais aspectos da nova redação da Constituição estão no art. 165,

  • § 9º e 11, ao preverem 1,2% da receita corrente líquida para as emendas parla- mentares individuais ao projeto de lei orçamentária, que se tornam de execução obrigatória, ressalvados apenas impedimentos de ordem técnica, caso em que serão adotadas as medidas especificadas no § 14.4

Outro item importante é a destinação de metade desse montante para as ações e serviços públicos de saúde, criando uma “vinculação” de recursos ao setor. Desde já convém ressalvar que, embora louvável privilegiar área tão fundamental para assegurar o cumprimento de direitos fundamentais como a saúde, as vinculações não são capazes por si só de resolver os problemas, como já destaquei em coluna anterior.5

Fato é que todo e qualquer mecanismo que venha a intensificar o caráter im- positivo da lei orçamentária é importante para conferir maior seriedade e gerar mais confiança aos agentes públicos e privados quanto às previsões das ações

 

3    Min. Ayres Britto, STF, ADI-MC 4.048-1/DF, j. 14.5.2088, p. 92 dos autos.

4     Art. 166. (…)

  • 9º. As emendas individuais ao projeto de lei orçamentária serão aprovadas no limite de 1,2% (um inteiro e dois décimos por cento) da receita corrente líquida prevista no projeto encami- nhado pelo Poder Executivo, sendo que a metade deste percentual será destinada a ações e serviços públicos de saúde.
  • 11. É obrigatória a execução orçamentária e financeira das programações a que se refere o
  • 9º deste artigo, em montante correspondente a 1,2% (um inteiro e dois décimos por cento) da receita corrente líquida realizada no exercício anterior, conforme os critérios para a execu- ção equitativa da programação definidos na lei complementar prevista no § 9º do art. 165.

5   Vinculações orçamentárias não são a panaceia dos problemas, nesta edição, p. 207-210.

 

 

governamentais, tornando, com isso, mais eficiente a gestão pública. Nisso reside a principal virtude dessa alteração constitucional.

Limitar essa obrigatoriedade de cumprimento da lei orçamentária às emendas parlamentares individuais é, no entanto, reduzir demasiadamente o alcance de uma medida que deveria compreender todo o orçamento público – e essa segura- mente é a principal crítica a ser registrada.

A redação prevista inicialmente na PEC 22/2000 não continha essa restrição, dispondo que “A programação constante da lei orçamentária anual é de execução obrigatória, salvo se aprovada, pelo Congresso Nacional, solicitação, de iniciativa exclusiva do Presidente da República, para cancelamento ou contingenciamento, total ou parcial, de dotação” (proposta de redação ao art. 165-A da Constituição),6 mesma redação que constava da PEC 565/2006.

Tendo em vista a sistemática adotada pelo Congresso Nacional de criar uma “cota” para as emendas parlamentares, tema sobre o qual já se falou nesta coluna,7 é em função da execução delas que se estabeleceu uma relação conflituosa entre os Poderes Executivo e Legislativo pelo comando da destinação dos recursos orça- mentários. Daí porque, durante a tramitação da PEC do Orçamento Impositivo, a redação final do texto acabou por restringir a impositividade do orçamento aos valores que nele se inserem por meio das emendas parlamentares individuais e, com isso, perdeu-se uma excelente oportunidade de aprovar a proposta inicial mais abrangente.

É importante aproveitar a oportunidade do debate acerca do assunto para es- clarecer muitas questões controvertidas e críticas ao orçamento impositivo e à pro- posta aprovada, o que se pretende fazer a seguir.

  • O orçamento impositivo “engessa” a atuação do governo e compromete a eficiên- cia da administração

Trata-se de argumento que revela fato em parte verdadeiro. No entanto, isso deve ser visto positivamente, como qualidade, e não defeito. Não há dúvida quanto a promover algum grau de “engessamento” na ação governamental, sob o ponto de vista do Poder Executivo, responsável maior pela condução da execução orçamentá- ria. Mas não se pode afirmar que compromete a eficiência da administração pública.

Sendo o orçamento uma lei, aprovada para estabelecer a destinação dos gastos durante todo o exercício financeiro, o que se espera é seu fiel cumprimento, de

 

6      Diário do Senado Federal, 7 de junho de 2000, p. 11.983.

7      Emendas ao orçamento e o desequilíbrio de Poderes, nesta edição, p. 219-222.

 

 

modo que, no final do exercício, o que nele está previsto seja efetivamente executa- do. Reduzir a flexibilidade e diminuir a discricionariedade do Poder Executivo na execução orçamentária (“engessando-o”) são medidas adequadas para atingir esse objetivo, que dão maior previsibilidade, credibilidade e transparência à lei orça- mentária, além de segurança jurídica à administração pública e a toda a sociedade.

A flexibilidade é inerente ao processo de execução orçamentária, mas deve orientar-se para cumprir o estabelecido na lei orçamentária em seu aspecto essen- cial, limitando-se a proceder aos ajustes que se façam imprescindíveis para adaptar o orçamento às imprevisibilidades surgidas no decorrer do exercício financeiro.

Não se pode concluir que exigir o cumprimento de uma lei tal como aprovada seja motivo de ineficiência administrativa, pelo contrário. A segurança jurídica e a credibilidade conferida à lei, nessa hipótese, são razões para tornar mais eficiente a administração pública.

  • As emendas parlamentares atendem apenas a interesses paroquiais, desorgani- zam o planejamento e o orçamento, prejudicam a gestão e comprometem as políticas públicas

A redução da participação parlamentar na elaboração do orçamento às emen- das parlamentares, com o sistema de “cotas” já institucionalizado, já é por si só uma grave distorção no processo orçamentário, que mitiga a importância da participa- ção do Congresso Nacional na elaboração do orçamento federal.

Deixa-o de lado na discussão sobre a definição da alocação de recursos orça- mentários para as principais políticas públicas, limitando sua participação à inser- ção de despesas que pouco representam, se considerado o orçamento como um todo, ainda que envolvam altas somas de dinheiro público.

Isso deturpa a atuação parlamentar, que volta suas preocupações para atender a demandas locais e específicas de setores e grupos, os chamados interesses “paro- quiais”, o que tem sido duramente criticado, e não sem razão.

Algumas vezes até exageradamente, como se vê da opinião expressa pelo jor- nalista Fernando Rodrigues, que considerou a obrigatoriedade da execução finan- ceira das emendas parlamentares um “desastre gerencial”, prevendo que os candi- datos ao Congresso Nacional, nas campanhas eleitorais, “poderão zanzar pelas ruas com uma plaquinha pendurada no pescoço: valor: 14 milhões”.8 Em sentido seme- lhante escreveu Raul Velloso, que via a PEC como uma “manobra”, verdadeira “brincadeira de mau gosto” que “garantiria uma fatia de R$ 10 milhões da pizza

 

8      Desastre no manejo político. Folha de S.Paulo, 9 de novembro de 2013, p. A2.

 

 

orçamentária para cada parlamentar patrocinar algum gasto junto à sua base de apoio”.9

Como mencionado, restringir a obrigatoriedade da execução orçamentária às emendas parlamentares individuais está longe do ideal, pois o que se espera e dese- ja, para dar seriedade à lei orçamentária, é que o orçamento seja cumprido tal como aprovado, e não somente no que tange às referidas emendas.

Cumpre ressaltar que as emendas parlamentares só podem ser aprovadas se compatíveis com o plano plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias (CF, art. 166, § 3º, I), e, até por representarem pequena parcela do orçamento público, não há como desorganizarem o sistema de planejamento e orçamento, nem comprome- terem a gestão, a implementação e a execução das políticas públicas.

Evidentemente há que se exigir atuação mais responsável do Congresso Na- cional ao usar as emendas para atender o interesse público. Isso, no entanto, não pode comprometer a seriedade da lei orçamentária, nem a obrigatoriedade do cum- primento do que nela foi aprovado, o que é fundamental para dar segurança ao ordenamento jurídico. Nem justificar a transferência do poder de decidir sobre os gastos públicos para o Poder Executivo, como se este fosse mais responsável e com- petente para melhor alocá-los.

  • A PEC do Orçamento Impositivo é um casuísmo

De fato, há de se reconhecer que esta PEC, nas circunstâncias em que foi aprovada, e restrita à obrigatoriedade na execução das emendas parlamentares, evi- dencia uma ação oportunista do Congresso Nacional, que permite entrever o inte- resse em tão somente priorizar o atendimento das destinações de recursos orçamen- tários patrocinados pelos parlamentares.

A questão foi exposta com muita propriedade por José Marcos Domingues recentemente,10 que deixou evidente a inadequação em se privilegiar emendas indi- viduais dos congressistas em detrimento das políticas públicas que devem ser pla- nejadas, refletidas e discutidas em função do bem comum.

Conforme já exposto anteriormente, é evidente que seria muito melhor a apro- vação da PEC original que estendia a obrigatoriedade da execução da lei orçamen- tária como um todo; no entanto, pior é não haver qualquer obrigatoriedade na execução do orçamento, dando margem à interpretação de que se trata de lei

 

9      Proposta inoportuna. Folha de S.Paulo, 10 de agosto de 2013, p. A3.

10     Pelo controle judicial do orçamento impositivo de emendas individuais, publicada em 19 de feve- reiro de 2015, no ConJur.

 

 

meramente autorizativa dos gastos, cuja execução se sujeita à ampla discricionarie- dade do Poder Executivo.

O orçamento impositivo vem valorizar a lei orçamentária, tem por finalidade conferir maior efetividade a seus dispositivos e, razão pela qual, devem ser apoiadas as ações no sentido de implementá-lo.

Por isso, é melhor olhar a restrição às emendas parlamentares não como uma medida casuística, que de fato aparenta ser, mas sim como uma medida excessiva- mente tímida para o que se espera, que é tornar a lei orçamentária uma norma de eficácia plena e de elevada credibilidade.

A PEC aprovada infelizmente não foi abrangente o bastante para fazer com o que o orçamento deixe de ser uma peça de ficção, como desejou a Senadora Ana Amélia ao tratar do tema.11

Mas a nova redação dada à Constituição é um começo. Insuficiente para dar à lei orçamentária a credibilidade e segurança jurídica que se espera da lei mais importante depois da Constituição.

É necessário avançar ainda muito mais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

11  O fim da ficção. Folha de S.Paulo, 10 de março de 2013.

 

 

CRISE ECONôMICA PODE CRIAR “ORçAMENTO RECuRSO-zERO”

 

 

Coluna publicada em 8.3.2016: <https://www.conjur.com.br/2016-mar-08/ contas-vista-crise-economica-criar-orcamento-recurso-zero>

 

 

 

 

 

Voltou-se a falar no chamado “orçamento base-zero”, especialmente em razão da forte crise econômica, em que a escassez torna-se mais intensa, e exige-se a busca de soluções para melhor aproveitar os recursos públicos. O tema apareceu na mídia tam- bém por ter sido expressamente mencionado na proposta “Uma ponte para o futuro”,1 apresentada pelo PMDB no final do ano passado, sendo interessantes e oportunas algumas considerações sobre essa técnica orçamentária pouco conhecida pelo público.

A ideia central da técnica do “orçamento base-zero” (OBZ) consiste em fazer com que, na elaboração da peça orçamentária, em que são definidas todas as ações governamentais e respectivos recursos que lhe serão destinados, cada item seja ava- liado “a partir do zero”, analisando-se a respectiva oportunidade e conveniência de que sejam mantidos e qual a dotação que lhe será destinada. Contrapõe-se à técni- ca tradicional, largamente adotada e predominante do “orçamento incrementati- vo”, em que a elaboração do orçamento parte do que já está sendo feito, realizando-

-se ajustes no orçamento dos exercícios anteriores, ou seja, atua-se na margem, e não na base, de forma incremental.

Trata-se de técnica que aparece na evolução histórica dos orçamentos públicos, típica em épocas de necessidade de contenção de gastos, atribuindo-se sua origem ao governo americano, que a implantou no setor público no Estado da Geórgia, pelo então governador Jimmy Carter, em 1973, e posteriormente no governo fede- ral, baseada na experiência desenvolvida pela empresa Texas Instruments.2

1      Fundação Ulysses Guimarães – PMDB. Uma ponte para o futuro. Brasília, outubro de 2015,

<www.pmdb.org.br>.

2      PHYRR, Peter. The zero-base approach in government budgeting. LYDEN e MILLER, Public Budgeting, 1978, p. 253.

 

 

O orçamento base-zero surgiu a partir de recomendações sobre a qualidade do gasto público, uma preocupação que, como se pode facilmente constatar, não é exatamente nova. A preocupação em desenvolver sistemas de organização do orça- mento que permitissem incluir informações não apenas sobre quais órgãos realiza- riam as despesas, mas o que seria feito com o dinheiro público, é ligada a esse propósito: fazer com que o orçamento público, este documento tão extenso e com- plexo, oferecesse mais informações sobre os objetivos, as funções e os programas a que se destinariam os escassos recursos públicos.

Desde a Comissão Hoover, criada pelo governo americano, a partir do final da década de 1940, a evolução do conceito de performance budget e a ideia de vin- cular as despesas ao desempenho fizeram com que se desenvolvessem técnicas vol- tadas a tornar as previsões orçamentárias menos burocráticas, associando-se os gastos ao planejamento e a metas de desempenho e resultado, quebrando a rotina de elaboração dos orçamentos e rompendo a tendência incremental.

Neste contexto, o orçamento base-zero pretendeu estimular a revisão contínua dos programas e a criatividade dos gestores públicos, com a criação de novas ações governamentais e a eliminação de gastos desnecessários e anacrônicos, bem como a permanência dos programas no orçamento seguinte, além de facilitar a realoca- ção das despesas ano a ano.

Essa técnica tem o mérito de tentar evitar uma série de distorções causadas pela elaboração orçamentária na forma incrementativa, entre as quais se destaca a permanência de gastos desnecessários. Insere-se no contexto de uma das muitas ferramentas desenvolvidas para permitir que os resultados fossem avaliados e que se abandonasse a inércia característica de determinados modelos orçamentários em que programas antigos se acumulam uns sobre os outros e nunca são reavaliados.

Visa, por fim, ao que o economista Delfim Netto recentemente apelidou de “orçamento geológico”: “O orçamento (…) têm caráter geológico. A condição sufi- ciente para um programa estar no orçamento de 2015 é que tenha estado no orça- mento de 2014 e, para ter estado no de 2014, é porque já estava em 2013… E, assim, por uma indução regressiva, qualquer programa – seguramente sem qualquer ava- liação de sua eficácia – terá permanecido (…) A geologia corre por conta dos ‘pro- gramas’ que se acumulam em camadas. Nunca terminam. Vão se somando uns sobre os outros adquirindo, quando preciso, novos nomes ‘fantasia’”.3

3      DELFIM NETTO, Antonio. Por que não começar do começo em 2017? Valor Econômico, 12 de maio de 2015.

 

Crise econômica pode criar “orçamento recurso-zero”  ••

 

Programas que já não são adequados, cuja qualidade e efetividade não são boas, e mantêm-se em razão do “piloto automático”, estão presentes em todos os orçamentos, e foram reconhecidos pelo recém-empossado Ministro do Planeja- mento em pronunciamento recente.4 Uma análise criteriosa dos orçamentos das três esferas de governo levará “à conclusão de que há incontáveis dispêndios, pro- gramas e ações injustificáveis que se perpetuam por inércia sem que sejam questio- nados em termos de eficácia e eficiência”, e, se fossem reavaliados, “muitos seriam eliminados ou redimensionados, e suas dotações canalizadas para promover o equilíbrio fiscal, custear outras despesas ou reduzir a dívida pública”.5

Outra distorção causada pelo orçamento incrementativo aparece nas despesas de final de exercício, já tratadas nesta coluna [Natal é tempo de correr com a execução orçamentária, nesta edição, p. 211-214]. Com a tendência de manutenção dos pro- gramas, ações e respectivas dotações, os gestores públicos esforçam-se para “esgo- tar” os recursos previstos em cada uma delas, ao observar que o final do ano está chegando e os valores ainda não foram gastos, evitando que, no exercício subse- quente, sejam reduzidas ou extintas, ante a inércia decorrente da técnica incremen- tativa. O que, evidentemente, acaba gerando gastos desnecessários, voltados única e exclusivamente para manter o orçamento tal como está.

É importante ressaltar, ao contrário do que tem sido propagado, que a ferra- menta do orçamento base-zero não está necessariamente relacionada ao fim das vinculações,6 sendo possível a convivência de ambas. Embora as vinculações orça- mentárias tenham características que aproximem muito algumas deficiências por ela provocadas das que ocorrem em razão do orçamento incrementativo, por garan- tirem recursos para determinadas áreas independentemente de reavaliação da per- manência dos motivos que a justifiquem, ambas não se excluem. Veja-se, por exem- plo, o caso das despesas mínimas obrigatórias para a área da educação, previstas em nossa Constituição. O fato de se assegurar este gasto mínimo em educação, que tem se mostrado fundamental como garantia financeira a respaldar a implementa-

4 “Temos hoje um conjunto de políticas que são implementadas, mas a avaliação da qualidade e efetividade ainda não é boa (…) Eu preciso sistematicamente, ano a ano, avaliar se determina- do programa social, se determinado investimento deve ou não continuar” (Valdir Simão, na Folha de S.Paulo, editorial “A vez do Social”, publicado em 2 de fevereiro de 2016). No mesmo sentido a entrevista publicada na mesma data com o título “Programas sociais têm de sair do ‘piloto automático’, afirma ministro”.

5  CINTRA, Marcos. Por que não se consegue cortar gastos. Folha de S.Paulo, em 4 de janeiro de 2016.

6 Que já foram objeto de referência neste capítulo, especialmente em Vinculações não são a pana- ceia dos problemas, nesta edição, p. 207-210.

 

 

ção e permanência desse direito social que é fundamental para nosso Estado De- mocrático de Direito, em nada impede que se aplique o orçamento base-zero, ainda que mais restrito. Isto é, mesmo que não se reavalie o volume total já predetermi- nado das dotações, a sua destinação pode ser revista com maior constância. Do montante de recursos aplicados no setor, deve-se reavaliar, programa por programa, ação por ação, a conveniência e oportunidade de cada gasto, extinguindo-se uns, criando-se outros, aumentando ou diminuindo as dotações dos programas confor- me a conveniência e oportunidade em cada caso, sempre tendo em vista os resulta- dos e metas, que devem ser aperfeiçoados de modo a promover a melhoria na qualidade do gasto público. Isto sem que, no final, o gasto total do setor seja infe- rior ao mínimo estabelecido pela Constituição, até porque a realidade mostra que ainda não se atingiu um padrão de educação que permita ser alcançado com gastos inferiores ao que é exigido. O que não é diferente em outros setores, como a saúde.

Não obstante as vantagens do “orçamento base-zero”, esta ferramenta não tem sido utilizada, dados os diversos empecilhos que apresenta para sua implementa- ção. São altos os custos, em tempo e dinheiro, e enormes as dificuldades para que se avaliem as despesas públicas item a item, o que tem dificultado o uso desta téc- nica, explicando em parte seu pouco sucesso.

Mas a crise que assola o país atualmente está promovendo uma preocupação ainda maior.

Sabe-se que, mais do que as vinculações, as despesas obrigatórias assumidas pelos governos, e que praticamente não admitem reduções, são cada vez maiores. Pagamento de servidores públicos, despesas essenciais à manutenção da adminis- tração pública, como energia, água, limpeza, conservação, pagamento de precató- rios, contratos celebrados e já cumpridos etc. compõem um conjunto de gastos que comprometem a quase totalidade do orçamento. Já se estimou que ultrapassem 90% das receitas, e isso em épocas de normalidade da atividade econômica.

Na situação atual, muitos entes da federação já estão com o orçamento integral- mente comprometido no pagamento de despesas de natureza obrigatória, e mais do que isso, já se fala que essas despesas ultrapassam o montante das receitas. Ou seja, não há mais nenhum recurso disponível para qualquer gasto. Governantes veem-se diante da “escolha trágica” de selecionar quem ficará sem receber o que lhe é devido.

Nesta conjuntura, e do jeito que as coisas vão, daqui a pouco a expressão “or- çamento base-zero” vai ficar desatualizada, e a realidade do país vai dar origem a uma nova técnica orçamentária, o “orçamento recurso-zero”!

 

 

FLExIBILIDADE ORçAMENTÁRIA DEvE SER uSADA COM MODERAçÃO

 

 

Coluna publicada em 20.9.2016: <https://www.conjur.com.br/2016-set-20/ contas-vista-flexibilidade-orcamentaria-usada-moderacao>

 

 

 

 

 

Em 31 de agosto de 2016, em cumprimento ao disposto no art. 35, § 2º, III, do Ato das Disposições Transitórias da Constituição, foi apresentada a proposta de orçamento federal para 2017. E nos próximos dias devem ser apresentadas as pro- postas orçamentárias da maior parte dos demais entes da federação, conforme dis- põe a legislação própria de cada um.

Infelizmente é apresentada mais uma vez sem que tenha sido precedida da aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias, que tem a função de balizar o conteú- do da lei orçamentária, o que prejudica e desvaloriza o sistema de planejamento or- çamentário definido pela Constituição e Lei de Responsabilidade Fiscal. Fato co- mum em épocas de turbulência política, como a que ora se apresenta, mas que vem ocorrendo com indesejável frequência, como se tem observado nos últimos anos.

Desnecessário ressaltar a importância do sistema de planejamento governa- mental e, mais ainda, da lei orçamentária que nele se insere, já reconhecida como a mais importante após a Constituição, o que já ressaltei muitas vezes nesta coluna, pois nela se define o que vai ser feito com o dinheiro público.

E não é demais voltar a enfatizar a necessidade de que se lute para aproximar cada vez mais o que consta do orçamento com os desejos da população, tornando-

-o uma peça que efetivamente reflita, de forma democrática e transparente, o que se pretende fazer com os recursos que todos entregamos para o Estado.

Mais ainda, é fundamental que se cumpra o que nele foi aprovado, sendo este um aspecto de suma relevância, e para o qual o ordenamento jurídico ainda não tem dado uma resposta satisfatória.

É antigo o debate no âmbito do Direito Financeiro sobre a “natureza jurídica” da lei orçamentária e seu caráter “autorizativo” ou “impositivo”, ao qual já nos re-

 

 

ferimos anteriormente em outras colunas,1 e não é o caso de voltar ao tema neste texto, cujo objetivo será tão somente esclarecer algumas questões relevantes em torno do assunto.

Recentemente, a aprovação da Lei 13.332, de 1º de setembro de 2016, gerou polêmica ao alterar dispositivo do orçamento federal em vigor (LOA 2016, Lei 13.255, de 14 de janeiro de 2016), dando margem a interpretações equivocadas a respeito de um tema que vale a pena esclarecer e trazer para o debate: o da flexibi- lidade orçamentária. Mesmo porque, no recente caso que levou ao impeachment da Presidente da República, uma das acusações envolve justamente um dos instru- mentos de flexibilidade orçamentária, o que deixa evidente a sua importância.

Sendo a lei orçamentária uma previsão de arrecadação e definição dos gastos que ocorrerão no exercício financeiro subsequente, torna-se evidente que seu cum- primento não tem como se realizar de modo absolutamente fiel, sendo natural e compreensível que o orçamento executado não será idêntico ao que foi aprovado. São muitas as intercorrências havidas desde as previsões que são feitas para a elabo- ração da peça orçamentária até o final de sua execução. Várias alterações nos fatos econômicos e sociais, nem sempre previsíveis e mensuráveis, exigem mecanismos que permitam ajustes ao longo da execução orçamentária.

Daí por que existem os instrumentos de flexibilidade orçamentária, com a finalidade de viabilizar alterações que se mostrem necessárias no orçamento.

A grande questão que se coloca é justamente a dimensão que se deve dar ao uso desses instrumentos. Em diferentes ordenamentos jurídicos a flexibilidade or- çamentária se mostra ora mais ampla, ora mais restrita, com conflitos de diferentes características e graus de profundidade entre os Poderes Executivo e Legislativo.2 O Brasil não escapa a estas questões. E a distribuição de poderes durante a fase de execução orçamentária é elemento central das engrenagens que movem o direito orçamentário, pois é a partir das competências para flexibilizar o orçamento públi- co que se determina a distribuição do poder financeiro.3

1  Orçamento não pode mais ser uma peça de ficção, nesta edição, p. 189-194.

2 O que permite identificar, como bem sistematizado por Gabriel Lochagin, os instrumentos de flexibilidade com participação parlamentar forte, caso em que sua autorização depende de apro- vação prévia e específica do Poder Legislativo; e outros com participação parlamentar fraca, nos quais a aprovação parlamentar ou não é prévia ou não é específica (A flexibilidade da execução orçamentária. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da USP, 2012, p. 95 e seguintes).

3    Algumas considerações sobre o tema em Durante as eleições, pense bem para quem vai entregar a chave do cofre, nesta edição, p. 223-226.

 

 

O orçamento é uma lei, sendo, portanto, evidente que deve e se espera seja cumprida. Tendo em vista as peculiaridades da lei orçamentária, já referidas, uma eventual impossibilidade de sua execução nos exatos termos em que foi aprovada não justifica alterações de tal forma significativas que a desfigure por completo, sob pena de inutilizá-la como instrumento de planejamento, de condução da ativi- dade financeira da administração pública e inviabilizando o controle. É tornar a lei orçamentária “letra morta” e verdadeira “peça de ficção”, como chega a ser conhe- cida, alcunha que não se pode mais permitir que seja merecedora.

Para isso, é necessário que os instrumentos de flexibilidade orçamentária se- jam limitados e seu uso moderado, de modo a fazer com que sejam utilizados para “cumprir o que foi estabelecido pela lei orçamentária em seu aspecto essencial [com] os ajustes nas previsões e programações orçamentárias durante o curso de sua execu- ção, [mantendo-se] a necessidade de se cumprir fielmente o orçamento, do modo como aprovado pelo Poder Legislativo, com as imprescindíveis alterações que se façam necessárias ao longo do exercício financeiro, sem, com isso, descaracterizá-lo e fazer dele uma peça de ficção”.4 Embora indispensáveis, em face da natureza da lei orçamentária, os instrumentos de flexibilidade orçamentária devem ser sempre uti- lizados para alcançar os fins consignados na peça orçamentária, como bem coloca- do por Rodrigo Faria.5

E quais seriam esses instrumentos?

Vale destacar alguns, mais utilizados e representativos, o que será feito a seguir.

Os principais instrumentos de flexibilidade destinados a alterar dotações pre- vistas no orçamento aprovado são os créditos adicionais, previstos nos artigos 40 a 46 da Lei 4.320, de 1964. Há três tipos: os suplementares, os especiais e os extraor- dinários. Os créditos suplementares são abertos para o reforço de dotações que se mostraram insuficientes, os especiais atendem a despesas que não tinham dotação orçamentária específica, e os extraordinários são admitidos para despesas imprevi- síveis e urgentes, conforme dispõe o artigo 167, § 3º, da Constituição. Para cada uma dessas modalidades há diferentes procedimentos legislativos de aprovação.

Os créditos extraordinários admitem abertura por medida provisória (art. 62,

  • 1º, d, da Constituição). A aprovação parlamentar é, portanto, posterior à abertu- ra do crédito, quando o Poder Legislativo é chamado a apreciar a medida de urgên-

4      Como já escrevi em CONTI, José Mauricio. A autonomia financeira do Poder Judiciário. MP Editora, 2006. p. 93. Destaquei.

5      FARIA, Rodrigo Oliveira. Natureza jurídica do orçamento e flexibilidade orçamentária. Disser- tação (Mestrado). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2009. p. 268.

 

 

cia, daí o enfraquecimento de suas possibilidades de controle. Os créditos suple- mentares e os especiais, por sua vez, devem ser abertos por lei, porém com uma exceção diretamente relevante ao caso aqui analisado.

Existe a possibilidade de que a própria lei orçamentária anual preveja uma autorização prévia ao Poder Executivo para a abertura de créditos suplementares dentro de limites quantitativos e respeitadas as condições previstas. Esse instru- mento, denominado margem de remanejamento, é largamente utilizado pelos entes da federação, e confere poderes importantes ao Executivo para manejar o orçamen- to público. Esta autorização é prevista no art. 7º, I, da referida Lei 4.320, o qual, com o intuito de agilizar a execução orçamentária, trata da possibilidade de na lei orçamentária haver dispositivo autorizando o Poder Executivo a abrir créditos su- plementares, limitando a importância e observando os requisitos legais. Permite-se, assim, que seja dispensada a necessidade de um projeto de lei para abrir créditos suplementares, que podem ser baixados por ato do Executivo, desde que respeitados os termos da autorização que lhe foi concedida pela lei orçamentária.

Em face da importância que tem como instrumento de modificação dos orça- mentos aprovados, é recomendável que as margens de remanejamento sejam auto- rizações bem limitadas, tanto em vista dos percentuais permitidos quanto da ob- servância de estritas condições para sua abertura. Comentando estas autorizações prévias à abertura de créditos suplementares, Pontes de Miranda já advertia: “[t]udo aconselha que, no caso dos créditos suplementares, se determinem de antemão os serviços para os quais podem ser abertos e a quanto podem montar de per si e em quais condições”.6 Somente é possível o exercício excepcional do poder de modifi- car as dotações orçamentárias pela via dos créditos suplementares se respeitados os limites da autorização contida na lei orçamentária. Estabelecer os limites e as con- dições do emprego das margens de remanejamento “trata-se de competência parla- mentar. Mais do que isso, tem-se que tal autorização constitui competência exclu- siva do Poder Legislativo, que não a poderia delegar a outro Poder sob pena de renunciar a suas prerrogativas constitucionais”.7

Esse dispositivo estava previsto no orçamento federal de 2015 (Lei 13.115, de 20 de abril), que estabelecia limites de remanejamento de até 20%, mediante o emprego de recursos provenientes de fontes especificadas no artigo 4º desta lei, que

6      PONTES DE MIRANDA, Francisco. Comentários à Constituição da República dos Estados Uni- dos do Brasil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1936. t. 1, p. 547-8.

7      LOCHAGIN, Gabriel. A flexibilidade da execução orçamentária. Dissertação (Mestrado). Fa- culdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2012, p. 135.

 

 

deveriam observar, além do limite quantitativo, diversos requisitos, entre os quais a compatibilidade com a obtenção da meta de resultado primário prevista na LDO (caput do mesmo art. 4º).

Consta também do orçamento federal de 2016 autorização semelhante, po- rém com o limite de 10% para abertura dos créditos suplementares, previsto no artigo 4º. A necessidade de cumprimento da meta de resultado primário já consta- va da lei original. A modificação da lei orçamentária de 2016, veiculada pela Lei

13.332 deste ano, alterou o percentual para 20%, o mesmo que havia sido estabe- lecido para 2015, sem modificar o requisito de cumprimento da meta de superávit primário da LDO. Ou seja, aumentou-se o percentual, ampliando a flexibilidade, o que não é desejável em face do que foi exposto. Perdeu-se a oportunidade de li- mitar o uso indevidamente amplo das margens de remanejamento, o que importou em recuo do que poderia ter sido um avanço com a tentativa, ora frustrada, de re- duzir o percentual que estava vigente na lei orçamentária de 2015. No entanto, não houve alteração no que se refere à exigência de se observar a meta fiscal, cujo des- cumprimento deu origem à ilegalidade que caracterizou um dos crimes de respon- sabilidade motivadores do recente impeachment da Presidente. Não houve neste aspecto, portanto, modificação que importasse em alterar o fato que foi tipificado como conduta ilegal, como chegou a ser difundido.

É relevante ressaltar a necessidade de que os demais entes da federação fiquem atentos a esta questão, pois muitos abrem margens de remanejamento elevadíssi- mas, com percentuais demasiadamente altos, e sem impor outras condições restri- tivas. Um verdadeiro despropósito que precisa cessar, pois promove uma delegação de poderes do Legislativo ao Executivo, fazendo com que a lei orçamentária prati- camente deixe de ter natureza de lei para passar a, de fato, tornar-se ato do Poder Executivo, contrariando o que determina a Constituição.

Há ainda outros instrumentos importantes de flexibilização da execução or- çamentária, com destaque para o contingenciamento, sobre o qual já discorremos na coluna Hora é de apertar o cinto e contingenciar gastos.8

Com a finalidade de empregar os créditos orçamentários em montantes infe- riores aos previstos, promove-se a limitação de empenho e movimentação financei- ra, terminologia usada pela Lei de Responsabilidade Fiscal para tratar dos contin- genciamentos (ou “bloqueios”) de recursos. De acordo com a programação orçamentária e financeira do ente, deve-se proceder à suspensão da execução do gasto tendo em vista, por exemplo, as expectativas de diminuição da arrecadação.

 

 

Trata-se, portanto, de um instrumento de ajuste da execução da despesa aos fluxos de receitas. A ausência de autorização legislativa anterior específica para os atos de contingenciamento faz deles atos com fraco controle parlamentar.

Mas há diversos outros mecanismos de flexibilidade voltados não a gastar menos, mas a gastar mais ou de forma diversa da inicialmente prevista. É o caso, por exemplo, das transposições, remanejamentos e transferências de recursos, que realocam recursos de uma categoria da programação a outra ou de um órgão a outro, conforme previsto na Constituição Federal, no artigo 167, VI. A diferença entre eles é tratada em alguns trabalhos a respeito do orçamento público, que pro- curam diferenciá-los. Caso se trate de alteração de dotações em razão de mudanças na organização administrativa, há remanejamento, como quando se extingue um órgão e se deslocam seus recursos a outro (modificação no plano institucional); caso se reveja a prioridade de programas, fala-se em transposição (modificação no plano programático); e caso se transfiram recursos entre distintas categorias de despesa tem-se propriamente a transferência (modificação no plano dos gastos).9

Há que se registrar ainda a chamada reserva de contingência, “dotação global não especificamente destinada a determinado órgão, unidade orçamentária, pro- grama ou categoria econômica, cujos recursos serão utilizados para a abertura de créditos adicionais” (Decreto-lei 200/1967, art. 91), e que deve constar da lei orça- mentária anual, sendo destinada ao atendimento de passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais imprevistos, cujo uso deve ser estabelecido na lei de diretri- zes orçamentárias (Lei de Responsabilidade Fiscal, art. 5º, II). Com a reserva de contingência, torna-se mais fácil atender a necessidades imprevistas, evitando a necessidade de se anularem dotações específicas já existentes e modificar o orça- mento aprovado.

Como se pode notar, não faltam mecanismos para alterar o orçamento, talvez até em demasia. O ideal seria que fossem utilizados somente quando necessário, o que não se verifica na realidade, em uma prática que se perpetua e parece que não vai cessar.

O fato é que os orçamentos são leis por demais relevantes, é preciso garantir que sejam cumpridos da forma mais fiel possível, pois somente assim poderão ser levados a sério.

 

 

 

9      Ver MACHADO JR., José Teixeira; REIS, Heraldo da Costa. A Lei 4.320 comentada e a lei de responsabilidade fiscal. 31. ed. Rio de Janeiro: IBAM, 2002/2003. p. 108.

 

 

uSO POLÍTICO DOS INSTRuMENTOS DE DIREITO FINANCEIRO DEvE SER COMBATIDO

 

Coluna publicada em 25.7.2017: <https://www.conjur.com.br/2017-jul-25/ contas-vista-uso-politico-direito-financeiro-combatido>

 

 

 

 

 

A crise política que parece não cessar trouxe à tona uma antiga questão de Direito Financeiro, que evidencia a forte inter-relação entre esse ramo do Direito e a política: o uso impróprio das emendas parlamentares como meio para conseguir apoio do Poder Legislativo às medidas de interesse do Poder Executivo e/ou de seus membros.

Proliferaram nas últimas semanas notícias1 de que a votação que poderia rece- ber a denúncia contra o Presidente Michel Temer motivou uma verdadeira “com- pra de votos” de parlamentares por meio da liberação de recursos que constam do orçamento inseridos por meio de emendas parlamentares.

O tema não é novo e, curiosamente, foi abordado na primeira coluna que es- crevi para a seção Contas à Vista, publicada cinco anos atrás, no já longínquo dia 3 de julho de 2012 (Emendas ao orçamento e o desequilíbrio de poderes2), quando o

1 Apenas para citar algumas: Liberação de emendas parlamentares dispara em junho após crise. Exame.com, 4 de julho de 2017 (<http://exame.abril.com.br/brasil/liberacao-de-emendas-par- lamentares-dispara-em-junho-apos-crise/>); Após delação da JBS, governo dispara liberação de emendas parlamentares. Folha/UOL, 5 de julho de 2017 (<http://www1.folha.uol.com.br/ poder/2017/07/1898642-apos-delacao-da-jbs-governo-dispara-liberacao-de-emendas-parla- mentares.shtml>). Diz a notícia, em certo trecho, que “A liberação de emendas é um dos me- canismos mais tradicionais que os governos lançam mão para garantir a fidelidade da base aliada”; e Governo federal libera R$ 3,4 bi em emendas para garantir votos. Correio Braziliense, 23 de julho de 2017 (<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2017/07/23/ internas_polbraeco,611773/governo-federal-libera-r-3-4-bi-em-emendas-para-garantir-votos. shtml>).

 

 

“fator motivador” das liberações de recursos foi a formação da chamada “CPI do Cachoeira”, que a essa altura poucos devem se lembrar, perdida que ficou no meio de tantos e mais graves escândalos que se sucederam desde então.

Trata-se de uma interferência no ciclo orçamentário, em que, na fase legislati- va de elaboração da lei orçamentária, os parlamentares, por meio de emendas ao projeto de lei, inserem no orçamento recursos para atender aos interesses de suas bases eleitorais. Aprovada a lei orçamentária, durante a fase de execução, os recur- sos contemplados por essas emendas ficam sujeitos a contingenciamentos, e a libe- ração acaba sendo condicionada a contrapartidas dos parlamentares, como, no caso noticiado, o apoio contra a autorização para que o Presidente da seja processado pela prática de crimes.3

Para coibir essa prática (ou ao menos tentar…), em 2015 foi aprovada a “PEC do Orçamento Impositivo” (Proposta de Emenda Constitucional 385/2013), que se materializou na Emenda Constitucional 86/2015, alterando a redação dos arti- gos 165 e 166 da Constituição para tornar obrigatória a execução das dotações orçamentárias que foram introduzidas pelas emendas parlamentares individuais (tratei do tema na coluna Aprovação do orçamento impositivo não dá credibilidade à lei orçamentária, nesta edição, p. 235-240). Ou seja, fez-se uma emenda constitu- cional que não só teve a curiosa finalidade de obrigar a cumprir uma lei – a lei orçamentária –, como se limitou a apenas exigir esse cumprimento para uma mí- nima parcela dela – os valores inseridos por emendas parlamentares, que corres- pondem a pouco mais de 1% do orçamento. E o pior, pelo que se vê, é que não surtiu o efeito esperado, uma vez que as notícias recentes dão conta de que a práti- ca continua.

Este é um dos mais claros exemplos de uso político de instrumentos de Direi- to Financeiro, evidenciando que nesse ramo do Direito a política exerce forte in-

3 Como escrevi à época na citada coluna, “Uma vez que se sabem quais as dotações orçamentá- rias inseridas no orçamento pelas emendas parlamentares, cuja liberação dos recursos é de evidente interesse do parlamentar que a patrocinou, o contingenciamento das referidas dota- ções, para liberação oportuna, transformou o processo orçamentário em verdadeiro instru- mento de ‘compra’ de apoio político do Legislativo por parte do Executivo. As dotações con- signadas às emendas parlamentares são liberadas, como se tem reiteradamente constatado, por razões de interesse político, e não financeiro. Desvia-se, dessa forma, o contingenciamento, instrumento de flexibilidade orçamentária destinado a melhor gerenciar o fluxo de recursos, de sua verdadeira finalidade, que é adaptar as inconstâncias da atividade financeira para bus- car atingir o fiel cumprimento da lei orçamentária tal como aprovada, para outra que não lhe é própria, a saber, a de moeda de troca entre os Poderes por apoios políticos circunstanciais”.

 

Uso político dos instrumentos de Direito Financeiro deve ser combatido   ••

 

fluência, por vezes até exagerada, a ponto de prejudicar a segurança jurídica que se espera das normas de Direito Financeiro.

Interessante notar que essa “pressão” que se faz por meio de instrumentos próprios do Direito Financeiro ocorre também em outro sentido, “contra” o Chefe do Poder Executivo.

Veja-se o recente caso da suspensão da emissão de passaportes pela Polícia Federal por falta de recursos, que motivou concessão de recursos adicionais por meio da abertura de créditos suplementares.

Nesse caso, tendo em vista que adotamos a técnica de “orçamento incremen- tativo”, por meio do qual o orçamento é elaborado tendo por base o orçamento do ano anterior, é comum que as dotações sejam fixadas de maneira insuficiente, considerando o provável crescimento das despesas a cada ano.4 Uma técnica de todo conveniente para o Chefe do Poder Executivo, que fica, ao longo do exercício, com o poder altamente discricionário de promover a abertura de créditos adicio- nais destinados a suplementar as dotações – e mais uma oportunidade para que possa usar politicamente esse instrumento de Direito Financeiro.

No entanto, por vezes o provérbio “o feitiço vira contra o feiticeiro” se faz presente. Esgotada a dotação para os recursos destinados às despesas com a emis- são de passaportes, a Polícia Federal simplesmente suspendeu a prestação do servi- ço público, justamente às vésperas das férias escolares e em um período de relações tensas entre o órgão e o Presidente.5 Um fato que chega a ser corriqueiro, repete-se praticamente todos os anos e é solucionado sem grandes alardes, passa ser man- chete principal da mídia, causa transtorno a milhares de pessoas, e com isso o órgão “vitimado” pela falta de recursos consegue chamar a atenção para sua im- portância e a necessidade que tem de mais recursos. E é prontamente atendido pelo Presidente.6

Esse uso político dos instrumentos de Direito Financeiro permite entender porque tantos problemas podem ser causados por tão pouco, e dão pistas que faci- litam compreender alguns fenômenos orçamentários. Em recente editorial, mani-

 

4      Crise econômica pode criar “orçamento recurso-zero”, nesta edição, p. 241-244, e Natal é tempo de correr com a execução orçamentária, nesta edição, p. 211-214.

5      Congresso aprova crédito extra para regularizar emissão de passaportes. Folha de S.Paulo, 13 de julho de 2017 (<http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/07/1901144-congresso-

-aprova-credito-extra-para-regularizar-emissao-de-passaportes.shtml>).

6      Temer sanciona projeto que libera R$ 102 milhões para emissão de passaportes. EBC – Agência Brasil, 19 de julho de 2017 (<http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-07/temer-

-sanciona-projeto-que-libera-r-102-milhoes-para-emissao-de-passaportes>).

 

 

festou-se a Folha de S.Paulo: “Parece difícil entender como um governo cujo Or- çamento supera o trilhão de reais tem dificuldades para reajustar o Bolsa Família ou, num exemplo mais prosaico, fornecer os passaportes requisitados – e pagos pelos cidadão do país. (…) Ambos os casos envolvem montantes pouco expressivos para os padrões da despesa federal e, ao mesmo tempo, medidas essenciais. (…) Mesmo em meio à severa escassez de receitas, não deveria haver maior dificuldade em remanejar recursos de programas menos prioritários para atender a tais objeti- vos – o que afetaria menos de 0,1% dos gastos autorizados neste ano” (“Orçamen- to Insensato”).7

O orçamento, lei aprovada pelo Poder Legislativo, que deveria ter a palavra final em matéria de gastos públicos, precisa ser aperfeiçoado, bem como o processo orçamentário, para que não fique nas mãos do Poder Executivo, a quem caberia apenas cumpri-lo, o poder de alterá-lo e desfigurá-lo, como muitas vezes ocorre.8

O uso político dos instrumentos de Direito Financeiro em nada colabora para a confiabilidade nas instituições, o aperfeiçoamento da democracia e respeito à vontade do povo em matéria de finanças públicas, e deve ser combatido. Como disse Eça de Queiroz, “a luta pelo dinheiro é santa”9 – mas até certo ponto e com moderação…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

7      Folha de S. Paulo, editorial publicado em 5 de julho de 2017 (<http://www1.folha.uol.com.br/ opiniao/2017/07/1898537-orcamento-insensato.shtml>).

8      Durante as eleições, pense bem para quem vai entregar a chave do cofre, nesta edição, p. 223-226.

9      “A luta pelo dinheiro é santa – porque é, no fundo, a luta pela liberdade: mas até uma certa soma. Passada ela – é a tristonha e baixa gula do ouro.”

 

 

NÃO FALTA DINHEIRO À ADMINISTRAçÃO PÚBLICA, FALTA gESTÃO

 

Coluna publicada em 31.7.2012: <http://www.conjur.com.br/2012-jul-31/ contas-vista-nao-falta-dinheiro-administracao-publica-falta-gestao>

 

 

 

 

 

“Governo tem 59 bilhões para investimento, mas não consegue gastar.” A manchete do O Estado de S.Paulo de 8 de julho de 2012 parece irreal. Ter dinheiro, e não conseguir gastar não soa verossímil. Mas é uma realidade bastante conhecida pela administração pública.

Gastar dinheiro público não é fácil e nem deve ser. Submetida a uma série de procedimentos e controles, com a louvável finalidade de evitar desvios e mau uso dos recursos públicos, a despesa pública é um ato complexo. Previsão legal no or- çamento, licitações, empenho, cronogramas, liquidações, enfim, há um longo per- curso até o desembolso.

Somente isso já mostra a necessidade de se ter uma administração pública prepa- rada para operacionalizar o gasto público de forma rápida e eficiente, pois a liberação tardia do recurso pode até mesmo inviabilizar a finalidade para a qual seria destinado.

Infelizmente não é o que se verifica por uma série de razões.

De início, há que se observar que a gestão de recursos públicos está se tornan- do uma atividade cada vez mais complexa, a exigir pessoal especializado para cum- prir esta que é uma atividade-meio, e não fim.

E a tendência natural é que cada Poder, órgão ou entidade que preste serviços públicos seja composto por servidores voltados à sua atividade-fim, para cumprir a função que deles se espera.

Assim é que em hospitais públicos espera-se encontrar médicos; em escolas públicas, professores; na segurança pública, policiais; no Judiciário, juízes; e em todos eles, os demais profissionais preparados para cumprir a finalidade para a qual os órgãos foram criados.

 

 

No entanto, nesses órgãos as despesas públicas ocorrem o tempo todo e em valores expressivos. É evidente que não se pode esperar de médicos, professores e outros profissionais de áreas específicas conhecimento, experiência e desenvoltura, por exemplo, em realizar licitações, sem contar todos os demais procedimentos próprios da complexa operacionalização da despesa pública.

Natural que ocorra o que se vem observando em toda a administração públi- ca: a falta de profissionais especializados em gestão pública leva a um enorme des- perdício de dinheiro. E não há que se falar desvios decorrentes de corrupção, apro- priações indevidas e outros atos ilícitos. Uma lastimável perda de dinheiro que decorre pura e simplesmente de um fator: má administração.

Ainda mais lamentável é constatar que os recursos desperdiçados por má ges- tão são de grande monta. Valores que, embora praticamente imensuráveis, não sendo possível calcular com precisão, dão todas as evidências de que sejam extre- mamente expressivos. Não seria de se espantar, caso se pudesse chegar a um cálcu- lo exato, de que venham a superar os decorrentes de corrupção e outros desvios. E mais: é extremante difícil responsabilizar agentes públicos por má gestão.

É de todo evidente que de nada adianta arrecadar mais se, na hora de gastar, os recursos são mal aplicados e não chegam ao seu destino. Já passou a hora de se voltarem os esforços, a energia e as preocupações para a despesa pública, e não para a receita.

A relação fisco-contribuinte já atingiu seu limite: os contribuintes não supor- tam mais a carga tributária, e o aumento da arrecadação só trará prejuízos ao cida- dão e também ao país. Ademais, a administração pública, no que tange aos órgãos encarregados da arrecadação, estes sim, especialmente após as transformações que se observaram a partir da década de 1990, têm se informatizado, modernizado e aumentado sua eficiência, servindo de exemplo até para outros países. Não há por que priorizar a receita.

Portanto, passou a hora de conferir a mesma – ou até maior – eficiência aos órgãos que gastam o dinheiro público.

É verdade que a administração pública vem passando, já há algumas décadas, por processo de modernização. Novas técnicas de administração pública vêm sen- do implantadas e, na década de 1990, houve uma intensificação desse processo. Embora ainda não consolidado, o processo de transformação de uma administra- ção pública burocrática, mais preocupada com os procedimentos e a continuidade, em uma administração pública gerencial, mais moderna e eficiente, com gestores comprometidos com resultados e metas, é um caminho sem volta.

 

Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão            ••

 

A modernização do processo orçamentário, iniciada na década de 1960, com o orçamento-programa e as normas de planejamento da ação governamental, se tornou mais evidente a partir, principalmente, da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, com as novas exigências de coordenação e planejamento da administração pública.

A Constituição de 1988 e a estabilização da moeda em meados da década de 1990 permitiram a retomada do planejamento governamental – que se perdera no período de alta inflação –, com a exigência de um planejamento amplo e ao mesmo tempo eficiente, abrangendo todos os entes federados de forma coordenada.

As normas de planejamento, com a exigência de planos plurianuais, leis de diretrizes orçamentárias e orçamentos anuais com previsões precisas e confiáveis, e programas governamentais bem construídos, com resultados, metas e indicadores claros e factíveis, tornam a administração pública mais democrática e transparente. Obrigam o administrador a respeitar a vontade da sociedade, perseguindo os obje- tivos por ela traçados, e os submete a um controle social mais efetivo. Fazem-no pensar a longo prazo, evitando a descontinuidade das ações governamentais. E ge- ram um comprometimento dos governantes com políticas de Estado e não políticas de governo, efêmeras e que não podem ficar restritas ao mandatário do momento.

Notam-se avanços. Os planos plurianuais têm se aperfeiçoado a cada nova edição, e as leis de diretrizes orçamentárias intensificaram seu papel como instru- mentos de planejamento da ação governamental. Já há exigências de planejamento intragovernamental, como é o caso do Poder Judiciário, com a Resolução 70, de 2009, do Conselho Nacional de Justiça, que instituiu o planejamento estratégico nos tribunais.

O mesmo se pode verificar com o aumento da informatização e a introdução de técnicas mais modernas de gestão.

Há, no entanto, que se dar maior velocidade a esse processo que se mostra aquém das expectativas.

A maior parte da administração pública ainda não aderiu a ele, especialmente no âmbito de estados e municípios; a implantação das modernas técnicas de gestão, bem como a construção de uma administração pública com gestores profissionais, ainda é incipiente. Os Tribunais de Contas ainda não consolidaram a prática de fiscalizar a eficiência do gasto público, e ainda predomina, na maior parte deles, a análise meramente formal das despesas públicas, o que não se coaduna mais com as novas tendências da nova administração pública.

A informatização que já tomou conta da iniciativa privada não guarda corres- pondência na máquina pública, que segue atrás, muito mais lentamente do que se pode esperar.

 

 

Há, portanto, muito o que fazer. E rápido, pois, enquanto isso, o dinheiro público – meu, seu e nosso – vai embora, sem que tenhamos o retorno devido em serviços públicos de qualidade.

Finalizo pedindo desculpas, em parte, pelo título desta coluna, em que estou ciente ter exagerado, sendo até incorreto, ao dizer que não falta dinheiro. É eviden- te que dinheiro também falta, e não é pouco. Por mais que se melhore a gestão, há muitos setores em que os recursos são escassos e, ainda que bem geridos, são insu- ficientes para atender a demanda para a qual foram criados. Mas creio que essa quase “licença poética” se justifica para chamar a atenção para aquele que é, hoje, o aspecto mais urgente e relevante na administração pública: aprimorar a qualida- de do gasto público em todos os seus aspectos, tornando-o mais eficiente, com melhor relação custo-benefício, permitindo, assim, que os sempre e cada vez mais escassos recursos públicos sejam bem aproveitados.

É hora de se concentrar na despesa e não na receita, fazendo mais com menos.

 

 

RESPONSABILIDADE ORçAMENTÁRIA PRECISA DE MELHORIAS

 

 

Coluna publicada em 12.3.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-mar-12/ contas-vista-qualidade-fiscal-responsabilidade-orcamentaria>

 

 

 

 

 

Na grande maioria das vezes, quando se tem de sopesar valores, a qualidade é mais importante do que a quantidade e raras são as situações em que se justifica escolha diferente. Assim também ocorre com os gastos públicos.

Trata-se de mais uma entre inúmeras situações em que a qualidade é mais relevante do que a quantidade. Curioso notar que, em geral, isso não é percebido, e muito dinheiro público é desperdiçado por essa razão.

Veja-se que há uma grande disputa por recursos públicos. Órgãos públicos, servidores públicos, empresas privadas, pessoas físicas, enfim, muitos lutando e li- tigando por mais dinheiro. Observem: por mais dinheiro.

Mas poucas são as vezes em que há movimentos, manifestações, litígios, pelo bom uso do dinheiro público, o que, em ocorrendo, talvez até dispense, ou, com toda a certeza, diminua a incessante busca por mais dinheiro.

É a evidente e equivocada busca pela quantidade, em desconsideração ao que é mais importante: a qualidade.

Como já cheguei a mencionar em coluna anterior (Não falta dinheiro à admi- nistração pública, falta gestão, em 31 de julho de 2013), é muito difícil calcular quanto dinheiro público é desperdiçado por falta de uma melhor gestão. Mas é muito fácil saber que é muito, e não tenho dúvidas de que, se cálculo houver, che- gará a números impressionantes.

A administração pública já se apercebeu disso, e vê-se que os movimentos em direção a uma gestão pública mais eficiente, com técnicas mais modernas de ges- tão, associadas a mecanismos de contabilização orçamentária das despesas que fa- voreçam o gasto público voltado a atender as finalidades para a qual foi destinado,

 

 

apontam na mesma direção. Nota-se, tão somente, uma maior ou menor velocida- de de implementação dessas técnicas, quer por países, regiões, órgãos ou institui- ções, fazendo com que um melhor uso do dinheiro público fique na dependência da consciência e da competência dos gestores e chefes de Poder, gerando atrasos que só prejudicam aqueles que andam mais devagar.

O sistema de fiscalização financeira e orçamentária, atento à Constituição Federal, que em seu artigo 70 preconiza a fiscalização da legitimidade e economi- cidade do dinheiro público, e no artigo 37, caput, erige a eficiência à condição de princípio que rege a administração pública, já está há muito tempo desenvolvendo técnicas voltadas a uma fiscalização da qualidade do gasto público. Infelizmente ainda não acolhidas pelos sistemas de fiscalização de todos os entes da federação, essas técnicas certamente serão implementadas num futuro próximo.

Outro passo fundamental nesse sentido é o aperfeiçoamento das normas de elaboração, execução e fiscalização dos orçamentos públicos, hoje estabelecidas ba- sicamente na Lei 4.320, do já longínquo ano de 1964, quando ainda estava em vigor a Constituição de 1946. Moderna para a época, hoje, próxima de completar 50 anos, chega a hora de fazer parte do passado.

A Constituição de 1988 é expressa em seu artigo 165, § 9º, ao dizer que “cabe à lei complementar dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a ela- boração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual”, além de estabelecer normas sobre gestão pública e fundos. Já se passaram 20 anos e a referida lei ainda não foi publicada. A utilização, por recepção, no que é compatível, da Lei 4.320, evidentemente não é a melhor solu- ção, deixando lacunas importantes, como a regulamentação do plano plurianual, inexistente à época.

Projetos em tramitação no Congresso Nacional, já alcunhados de “Lei de Qualidade Fiscal” e “Lei de Responsabilidade Orçamentária”, estão em curso com vistas a substituí-la por uma nova lei, mais moderna, contendo novas regras que modernizam o sistema orçamentário brasileiro, consolidando técnicas voltadas a favorecer a qualidade do gasto público, permitindo mais investimentos públicos e despesas na área social.

São muitos os desafios da nova lei que abrangem medidas no âmbito do pla- nejamento, na gestão, na contabilidade pública, na transparência e na fiscalização.

Modificações na contabilização orçamentária, com o aperfeiçoamento dos programas, construídos de forma que sejam voltados a resultados claros e mensu- ráveis por indicadores precisos e confiáveis, contextualizados em um sistema de planejamento da ação governamental que permita aos atores públicos e privados

 

Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias  ••

 

terem uma visão segura do que se espera do poder público, são algumas das medi- das que integram esse necessário avanço na legislação vigente. Tornar definitivas regras de elaboração e execução orçamentárias, por norma aplicável de maneira uniforme a todos os entes da federação, garantindo maior segurança jurídica a re- gras que são atualmente veiculadas por leis de diretrizes orçamentárias (individua- lizadas para cada unidade federada e de caráter temporário), é também medida importante da nova legislação. É o caso, por exemplo, das regras para as hipóteses de anomia orçamentária, quando o orçamento não é aprovado no prazo, tema abordado em E o ano começa sem a aprovação do orçamento federal, nesta edição, p. 169-172.

São necessárias, e os projetos as contemplam, normas para uniformizar e esta- belecer limites para a execução orçamentária, especialmente nos restos a pagar, evitando que os pagamentos se prorroguem para o exercício seguinte e prejudi- quem o planejamento, controle e transparência dos gastos. Ainda na execução or- çamentária, há que se definir com mais clareza e precisão o grau de impositividade dos nossos orçamentos, criando mecanismos para tornar o orçamento executado o mais próximo possível daquele que foi aprovado.

Definir e padronizar a contabilização das receitas e despesas, seguindo pa- drões internacionais e estabelecendo limites e regras claras, de modo a dificultar ao máximo manobras de “contabilidade criativa” que contornem a legislação por ca- minhos tortuosos, são outras medidas que se impõem.

Há que se destacar também a importância da criação, aperfeiçoamento e sis- tematização de mecanismos de cooperação intergovernamental, cada vez mais ne- cessários à execução de políticas públicas que dependem da ação conjunta de vários entes da federação, tanto no financiamento quanto na operacionalização, evitando que o interesse público fique sujeito às alternâncias de governos, muitas vezes de partidos e ideologias diferentes, que são transitórios, e cujos atritos possam impe- dir, dificultar e atrasar a implementação de políticas públicas voltadas a atender necessidades fundamentais da população.

Não há também como aguardar mais para melhorar e modernizar mecanis- mos de fiscalização e controle das políticas públicas, aferindo sua economicidade, eficiência, eficácia e efetividade, quer sejam executadas diretamente pelo poder público, quer sejam delegadas a entidades do terceiro setor, evitando o desvio de recursos do orçamento para instituições inidôneas e sem compromisso com o bom uso do dinheiro público.

Aperfeiçoar a qualidade do gasto público é fazer mais com menos, ou seja, produzir mais benefícios públicos com menos recursos, o que exige, entre outras

 

 

medidas além das já mencionadas, a modernização da gestão, aumento da partici- pação popular nas decisões sobre o gasto público, maior transparência e controle. São inúmeras as providências a serem tomadas nesse sentido, que exigem não so- mente uma nova legislação, adaptada aos novos tempos e técnicas, mas também, e principalmente, uma mudança de cultura na administração pública. No mais das vezes preocupada com aspectos formais da despesa pública, a burocracia acaba perdendo o foco naquilo que realmente importa, que é atender a necessidade públi- ca, transformando-se numa verdadeira “burrocracia”, de todos conhecida e odiada.

Como se vê, são muitos os desafios. Projetos de lei já existem, o sistema de fiscalização financeira está se aperfeiçoando nesse sentido. Resta apenas uma maior conscientização, apoio e ação firme da população para incentivar a implantação de uma nova perspectiva na administração pública e seus gestores, voltando-os a um gasto público de qualidade.

 

 

DIREITO FINANCEIRO PRECISA AvANçAR, E A HORA É AgORA

 

 

Coluna publicada em 31.5.2016: <https://www.conjur.com.br/2016-mai-31/ contas-vista-direito-financeiro-avancar-hora-agora>

 

 

 

 

 

Os desmandos no campo do Direito Financeiro que levaram ao afastamento da Presidente da República podem ter seu lado positivo. Trouxeram o Direito Fi- nanceiro para o centro dos debates, e suas normas agora têm uma respeitabilidade, e o reconhecimento de sua importância de forma nunca antes vista. Oportunidade ímpar para transformar limões em limonadas.

As normas de Direito Financeiro precisam ser aperfeiçoadas, e agora é a hora certa para que os avanços nesse campo se concretizem, até porque as oportunidades não faltam.

Destaque cabe a dois projetos de lei que estão em fase adiantada de tramita- ção e são de grande relevância para modernizar as normas que organizam nossas finanças públicas, trazendo modificações de caráter estrutural, com avanços per- manentes, voltados ao futuro, e não apenas destinados a resolver problemas mo- mentâneos, para dar soluções provisórias a crises como a que ora se apresenta.

O primeiro e mais relevante é a substituição da Lei 4.320/1964 por outra norma de caráter geral que venha a disciplinar os orçamentos públicos.

A Constituição, em seu artigo 165, § 9º, previu que lei complementar viesse a disciplinar o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organiza- ção das leis orçamentárias, bem como estabelecesse normas de gestão financeira e patrimonial. Como esta lei não foi editada, é a Lei 4.320/1964 que vem cumprin- do, mesmo após mais de vinte anos de vigência da Constituição, o papel de estatu- to das finanças públicas. Um atraso que não pode mais ser aceito em se tratando de lei tão relevante e cada vez mais necessária, pois de 1964 para cá foi significativa a evolução nas formas de organização e funcionamento das leis orçamentárias.

 

 

São muitas e bastante conhecidas as lacunas da atual ordenação geral dos or- çamentos. Há uma evidente dissonância entre as leis orçamentárias constitucional- mente previstas e a sua ausência na legislação complementar. Não há, na Lei 4.320/1964, normas específicas para o plano plurianual (PPA) e a lei de diretrizes orçamentárias (LDO), e, ainda que a Lei de Responsabilidade Fiscal tenha estabe- lecido regras sobre a LDO, é omissa quanto ao PPA. As lacunas a esse respeito são muitas, e o improviso impera em vários aspectos.

O PPA, nunca regulamentado desde sua criação, tem sido objeto de modifi- cações e experiências que buscam encontrar um formato adequado, a fim de que possa cumprir seu papel de instrumento de planejamento orçamentário da admi- nistração pública, que seja eficiente e confiável, e tenha um modelo que possa ser seguido por todos os entes da federação.

Órgãos do Poder Executivo federal decidem sobre temas de abrangência na- cional, que se aplicam a todos os entes da federação, em matéria que deveria ser decidida em lei complementar – um desrespeito ao princípio federativo. Como já afirmado em outra coluna, “(…) a STN [Secretaria do Tesouro Nacional] e a SOF [Secretaria de Orçamento Federal] substituem o legislador complementar, assim como as próprias leis de diretrizes orçamentárias têm assumido pretensões norma- tivas de balizamento universal precário e instável, porquanto ad hoc e contingente, do ciclo orçamentário federal”.1 Evidenciam a necessidade da efetiva implantação do Conselho de Gestão Fiscal, órgão paritário composto por representantes de to- dos os Poderes e esferas de Governo, a quem caberá harmonizar e coordenar os entes da federação, adotando normas de padronização e consolidação das contas públicas, e responsável por incentivar boas práticas de gestão fiscal e que aumen- tem a eficiência na administração pública. Previsto no art. 67 da LRF, até agora não foi instalado – outro atraso que não se justifica mais.

Sem contar o uso cada vez mais disseminado da Lei de Diretrizes Orçamen- tárias da União como preenchedora das lacunas da Lei 4.320, extrapolando os li- mites de suas funções e regulando temas inclusive de execução orçamentária, o que é inadequado até mesmo por seu caráter temporário e restrito à administração pública federal, e com dificuldades de cumprir suas funções constitucionais essen- ciais, de estabelecer as orientações para as grandes decisões alocativas.2

1      Coluna Lei dos Orçamentos Públicos completa 50 anos de vigência (J. M. Conti e Élida G. Pin- to), publicada em 17 de março de 2014 no ConJur.

2      Nesse sentido, OLIVEIRA, Weder de. Gênese, funcionalidade e constitucionalidade da Lei de Diretrizes Orçamentárias. São Paulo: Fadusp, 2016. p. 261-264.

 

 

Diante da necessidade de conferir mais eficiência e transparência à administra- ção pública, é oportuno que se acelerem as discussões dos projetos em tramitação no Congresso Nacional que tratam das normas gerais sobre os orçamentos públicos, focando naquela que deve ser a principal preocupação das modernas leis que tratam do tema: a qualidade dos gastos públicos. O projeto da “Lei de Qualidade Fiscal” estabelece as normas gerais sobre plano, orçamento, controle e contabilidade pública de que trata o artigo 165, § 9º, da Constituição. Tendo originado do Projeto de Lei Complementar do Senado n. 229, de autoria do Senador Tasso Jereissati, encontra-se aguardando o recebimento de emendas, após o parecer do relator, Senador Ricardo Ferraço, que propôs, no último dia 18 de maio, em seu relatório, um substitutivo ao projeto original. Alguns dos temas enfrentados são a reformulação do Plano Pluria- nual, por meio da qual se readequariam seus prazos de elaboração em relação à lei de diretrizes orçamentárias e à lei orçamentária anual, a racionalização do investimento público e da programação orçamentária de acordo com metodologias contemporâne- as, e o assim chamado realismo do orçamento, de forma que o quadro fiscal previsto na lei de diretrizes orçamentárias seja fiel ao conhecimento que se tem da conjuntura no momento de sua elaboração, e que o orçamento se atenha, efetivamente, ao cum- primento das metas. Além disso, preveem-se alterações de não menos importância, como um sistema mais claro de classificação de despesas, que sirva de apoio aos re- sultados desejados na execução orçamentária, e as diretrizes para que a contabilidade do setor público se ajuste gradativamente a padrões internacionais. Procura-se, com isso, melhorar as informações produzidas na administração do orçamento, aí incluí- dos os controles de custos e a avaliação dos programas.

A tônica é, portanto, melhorar a gestão dos recursos, e conferir maior efetivi- dade à ação administrativa. Como também já escrevi neste espaço, “aperfeiçoar a qualidade do gasto público é fazer mais com menos, ou seja, produzir mais benefí- cios públicos com menos recursos, o que exige, entre outras medidas além das já mencionadas, a modernização da gestão, aumento da participação popular nas de- cisões sobre o gasto público, maior transparência e controle. São inúmeras as pro- vidências a serem tomadas nesse sentido, que exigem não somente uma nova legis- lação, adaptada aos novos tempos e técnicas, mas também, e principalmente, uma mudança de cultura na administração pública”.3

Outro projeto relevante diz respeito à dívida pública federal. Retomando as discussões sobre o Projeto de Resolução do Senado n. 84, de 2007, o recente pare- cer do relator, Senador José Serra, pretende regulamentar o limite de endividamen-

3      Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias, nesta edição, p. 259-262.

 

 

to da União, cuja demora, ressalta o relator, “trouxe prejuízos ao país ao incentivar a lassidão fiscal”. Mostra que o crescimento da dívida bruta do governo geral indi- ca não apenas a deterioração do cenário fiscal, mas também se relaciona com os procedimentos de disfarce dos resultados orçamentários negativos. Já afirmei, em outra coluna, que o equilíbrio fiscal é um dos pilares da Lei de Responsabilidade Fiscal, e que as manobras contábeis verificadas no período recente “só promoveram a quebra de confiança no governo para postergar por pouco tempo as más notícias sobre as finanças públicas”.4 O momento mais que justifica a preocupação com uma gestão mais responsável da dívida pública, para o qual os limites ao endivida- mento poderiam contribuir ao fornecerem um parâmetro de avaliação da capaci- dade de pagamento do governo federal. Uma espécie de alerta, o qual, se ultrapas- sado, imporia também ao governo federal a necessidade de reconduzir-se aos limites e avaliar melhor as condições de sustentação de sua política econômica. Propõe-se, assim, que Resolução do Senado supra a ausência de limites à dívida pública fede- ral, que já existem para Estados e Municípios, veiculados pelas Resoluções 40 e 43.

É evidente que a adequação do endividamento federal exigirá regras de tran- sição, também previstas. Assim, pelo prazo de 15 anos se segue um cronograma de adequação do endividamento, de forma progressiva, para que o atual volume da dívida consolidada chegue, ao final desse período, ao limite previsto. Caso, ainda assim, não se cumpra o teto previsto na resolução senatorial, seriam aplicáveis as sanções da Lei de Responsabilidade Fiscal para o descumprimento dos limites de endividamento, dentre as quais é relevante, para a União, a proibição de contração de operações de crédito enquanto perdurar o excesso de endividamento.

As alterações propostas na forma de fixar os limites que dificultem a “conta- bilidade criativa” e o uso indevido das relações entre as instituições financeiras públicas e o Tesouro mostram-se fundamentais para a transparência e adequada gestão da dívida pública.

Transparência que exige aperfeiçoamentos urgentes, pois, em matéria de dívi- da pública, estamos há muito diante de uma verdadeira “caixa-preta”, com opera- ções complexas, pouco claras e mal regulamentadas, em um tema que carece de organização, sistematização e estudos mais profundos, além de uma análise mais profunda e detalhada, como inclusive determina a Constituição.5

 

4      Irresponsabilidade fiscal ainda persiste, 15 anos após a publicação da lei, nesta edição, p. 401-404.

5      CF, ADCT, art. 26. Veja-se a ADPF 59, promovida pelo Conselho Federal da OAB em dezem- bro de 2004; e também vasto material em <www.auditoriacidada.org.br>.

 

 

Sem prejuízo de outros, a esses dois projetos deve-se dar especial atenção, aproveitando a oportunidade de modificações legislativas para aprovar leis que realmente interessam e fazem a diferença, promovendo aperfeiçoamentos estrutu- rais importantes e modernizadores, produzindo efeitos que se projetam para o fu- turo e voltados a evitar que os mesmos erros se repitam, tornando recorrentes as medidas emergenciais que parecem não cessar.

Muitas das recentes propostas de alterações na legislação de finanças públicas evidenciam a marca da urgência, como já fiz referência recentemente em relação ao PL 257/2016, mostrando quão inadequadas são as soluções imediatas e de curto prazo.6 E outras que exigiriam análise mais aprofundada, mas que em regra apre- sentam as características de medidas voltadas a atender necessidades no mais das vezes provisórias de ajustes nas contas públicas.

É evidente que em momentos de crise aguda como a atual, em que se assume provisoriamente um governo em circunstâncias temporárias e com a obrigação de produzir resultados imediatos, as medidas de curto prazo, típicas da “administra- ção-bombeiro”, voltada a “apagar incêndios”, acabam inevitavelmente prevalecen- do. É importante nesses momentos não se deixar levar por elas e esquecer as que são fundamentais para a solução definitiva dos problemas e capazes de produzir avanços seguros e duradouros, mesmo porque as medidas desta natureza, produzi- das “de afogadilho”, sem estudos prévios bem elaborados, tendem a ser imperfeitas e insuficientes para resolver os problemas mais importantes. E, como bem ressalta- do por José Roberto Afonso, depois de controlado o incêndio, restarão escombros e será preciso reconstruir a casa.7

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

6    Refinanciar dívidas nada mais é do que postergar problemas, nesta edição, p. 433-438.

7    “Já acabaram de chegar os bombeiros na macroeconomia, que, por ora, ainda tentam controlar o incêndio, e ainda precisarão de meses para apagá-lo. Porém já se sabe que a casa restará em escombros e será preciso chamar também arquitetos e engenheiros para desenhar e construir outra” (Não basta apagar o fogo; será preciso reconstruir a casa. Folha de S.Paulo, 21 de maio de 2016).

 

 

 

 

É PRECISO TER CAuTELA E TRANSPARêNCIA PARA DEBATER A REFORMA

DA PREvIDêNCIA

 

Coluna publicada em 2.5.2017: <https://www.conjur.com.br/2017-mai-02/ contas-vista-preciso-transparencia-debater-reforma-previdencia>

 

 

 

 

 

Há algumas questões que parecem nunca sair da pauta de reformas constitu- cionais e legislativas, como a reforma “tributária”1 e a do sistema previdenciário.

Nos últimos meses a chamada “reforma previdenciária” tem ocupado a aten- ção do Congresso Nacional, que colocou importantes medidas a ela relacionadas em pauta de votação, como a PEC 287/2016. O debate sobre o tema está na mídia e nas ruas, como se viu nas manifestações ocorridas em 28 de abril de 2017.

É interessante notar como um tema de tamanha relevância para a vida das pessoas e do país é tão pouco estudado, sendo escassos os trabalhos que abordam o tema com profundidade – embora isso não venha a ser novidade no âmbito do Direito Financeiro, em que fatos como esse chegam a ser corriqueiros.

Uma falha que os estudiosos não podem continuar a cometer, e o momento é mais do que oportuno para se dedicarem ao tema e suprirem esta inexplicável lacuna, trazendo elementos que possam esclarecer a todos, qualificar o debate, e não deixar que se cometam erros em um assunto que afeta as gerações presente e futura.

Para isso é importante que se conheçam algumas informações básicas que formam a estrutura jurídico-financeira do sistema previdenciário brasileiro.

De início, há que se destacar ser de tal forma relevante esse sistema, que a lei orçamentária anual dos entes da federação brasileira, nos expressos termos do art.

1 Que prefiro colocar entre aspas porque defendo que as principais questões controvertidas estão muito mais no âmbito do direito financeiro do que tributário, sendo mais correto se a deno- minassem de “reforma financeira”.

 

 

165 da Constituição, comporta uma subdivisão em três partes, a saber: a) o orça- mento fiscal, referente aos Poderes do ente federado, seus fundos, órgãos e entida- des da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público; b) o orçamento de investimento das empresas controladas pelo o ente da federação; e c) o orçamento da seguridade social, que abrange “todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo poder público”.

Uma organização orçamentária que se mostra de todo conveniente, pois per- mite melhor administração, maior controle e transparência sobre os recursos da seguridade social, evitando que se dispersem por todo o orçamento, misturando receitas e despesas de diversas naturezas e impedindo que se conheça a estrutura financeira do que está entre os mais – senão o mais – importante sistema de prote- ção financeira dos direitos sociais.

Há que se destacar a relevância financeira do orçamento da Seguridade Social, que, neste exercício financeiro de 2017, segundo a lei orçamentária federal vigente (Lei 13.414/2017), estima a receita total da União em mais de três trilhões de reais (R$ 3.505.458.268.409,00), e o orçamento da Seguridade Social participa nesse montante com mais de seiscentos bilhões de reais (R$ 668.099.666.174,00).

Desde logo convém observar que previdência social, cuja reforma está em acalorada discussão, insere-se no contexto da seguridade social, que abrange saúde, assistência social e a previdência social. A Constituição trata do tema nos artigos 194 a 204 (Saúde, arts. 196 a 200; Previdência Social, arts. 201 e 202; e Assistência

Social, arts. 203 e 204).

O art. 195 prevê que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, sendo fontes de receita da seguridade social (e não somente da previdência social), recursos dos orçamentos de todos os entes federados e também (mas não somente)2 das seguintes contribuições sociais:

“I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

  1. a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou credita- dos, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;

 

 

2 O art. 11 da Lei 8.212/1991 também é claro nesse sentido, ao dispor que, no âmbito federal, o orçamento da Seguridade Social é composto por receitas da União, das contribuições sociais e de outras fontes.

 

 

  1. a receita ou o faturamento;
  2. o lucro;
  • – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidin- do contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de pre- vidência social de que trata o 201;
  • – sobre a receita de concursos de prognósticos.
  • – do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele ”

A Lei 8.212/1991 detalha o financiamento da seguridade social (arts. 10 e seguintes), enumerando as diversas formas de obtenção de recursos especificamen- te destinados a compor o orçamento da Seguridade Social, evidenciando, apenas no que tange a este aspecto, uma ampla gama de fontes que entram na composição das receitas do sistema.

Incomparavelmente mais complexa é a especificação do que deve ser incluído como despesa da seguridade social como um todo, incluindo a previdência social. Inúmeros exemplos poderiam ser citados evidenciando a dificuldade em delimitar quais sejam essas despesas, e também separar benefícios previdenciários de assis- tenciais. Em razão disso, o fato é que se constata não ser simples a verificação do desejável equilíbrio entre as receitas e despesas do sistema de previdência social, e apuração do eventual déficit existente, a fim de que seja possível, com segurança e transparência, promover alterações que efetivamente tragam uma solução para o problema, no curto e longo prazos, garantindo a sustentabilidade do sistema.

A esse já difícil detalhamento das receitas e despesas que compõem o sistema de previdência social, soma-se o “desenvolvimento e aprimoramento” da “contabi- lidade criativa”, que “evoluiu” muito nos últimos anos, e pouca segurança se conse- gue ter do que deve ou não estar no rol dos itens que a integram. Muitas das des- pesas alocadas no orçamento da Seguridade Social são de discutível relação com suas finalidades, onerando-o indevidamente.3

Recentemente, mudanças na organização da administração pública federal intensificaram ainda mais a dificuldade no gerenciamento dos recursos da previ- dência social. O Ministério da Previdência Social, que concentrava a administração do sistema, já no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, foi incorporado ao Ministério do Trabalho e, mais recentemente, no atual governo, ao Ministério da

 

3      Nesse sentido, veja-se CALCIOLARI, Ricardo. O orçamento da Seguridade Social e a efetivida- de dos direitos sociais. Curitiba: Juruá, 2009. p. 135-136, entre outros trechos.

 

 

Fazenda. De fato, tornaram-se ligados ao Ministério da Fazenda o Conselho Na- cional de Previdência e a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (antes denominados Conselho Nacional de Previdência Social e Dataprev, respec- tivamente). Da mesma forma a Superintendência Nacional de Previdência Com- plementar (Previc), o Conselho Nacional de Previdência Complementar e a Câma- ra de Recursos da Previdência Complementar. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e o Conselho de Recursos da Previdência Social passaram a compor, no entanto, o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário – mudança que parece ter surpreendido até o ministro da pasta.4 Com isto, este Ministério é o ór- gão atualmente responsável pelo Programa 2061 (Previdência Social), o qual, no orçamento de 2016, situava-se no âmbito de competências do Ministério do Traba- lho e Previdência Social.5

Com isso, os recursos relacionados à previdência social, sob o aspecto da clas- sificação orçamentária institucional, ficaram bastante dispersos, dificultando a vi- sualização, identificação e gerenciamento da atividade financeira relacionada à previdência social.

Não se pode esquecer também da DRU – Desvinculação de Receitas da União, que permite a desvinculação, até o final de 2023, de 30% da arrecadação da União em relação às contribuições sociais, contribuições de intervenção no do- mínio econômico e taxas. A desvinculação foi estendida ainda aos Estados (art. 76-A do ADCT) e aos Municípios (art. 76-B), com as exceções ali elencadas. A este respeito, nota-se que desde o surgimento do Fundo Social de Emergência, fru- to da Emenda Constitucional de Revisão n 1, de 1994, desafeta-se parte das recei- tas das contribuições sociais já referidas, destinadas a financiar a seguridade social. Esta previsão reiterou-se, ainda, no Fundo de Estabilização Fiscal (ECs 10/1996 e 17/1997) e nas regras anteriores da DRU, pelas Emendas 27/2000, 42/2003, 56/2007 e 68/2011, até chegar à forma atualmente vigente.

Excessos de renúncias fiscais, elevada sonegação de tributos e contribuições, e leniência na cobrança da dívida ativa, só agravam o quadro de incerteza sobre qual é a verdadeira situação das finanças públicas em matéria previdenciária, e dificul- tam aferir a existência e exata dimensão do alegado déficit, bem como suas reais causas.

4      <http://politica.estadao.com.br/blogs/coluna-do-estadao/inss-vai-para-desenvolvimento-so- cial-e-agrario-e-ate-ministro-fica-surpreso-com-mudanca/>.

5      Ver, a propósito, a Lei 13.414, de 10 de janeiro de 2017, que estabelece o orçamento para o exercício de 2017, em conjunto com a Lei 13.341, de 29 de setembro de 2016.

 

 

Em face de tudo o que se pode constatar, vê-se que o orçamento da Segurida- de Social, como instrumento para dar transparência, garantir o equilíbrio financei- ro e aperfeiçoar a gestão do sistema de seguridade social, e por consequência da previdência social, está com suas funções bastante prejudicadas, como destacou Élida Graziane Pinto neste espaço.6

Do exposto, não é de se espantar a diversidade de opiniões sobre o tema, com posições diametralmente opostas, e todas elas fundadas em dados financeiros e estatísticos, o que deixa atônitos não só o cidadão comum, como também os par- lamentares que estão com a responsabilidade de decidir esse tema crucial para o presente e o futuro do país.

Há uma quase unanimidade em reconhecer existir uma insustentabilidade do sistema previdenciário no longo prazo, o que exigiria uma reforma o quanto antes para evitar este problema futuro, e nesse sentido é de se louvar a firme atuação dos governantes. Um raro exemplo de preocupação com as próximas gerações, o que é bastante inusitado, verdadeira exceção à regra infelizmente vigente, de pensar so- mente no presente e agir como bombeiro, apagando incêndios e consertando erros cometidos no passado. Mas a questão é por demais relevante e há que se agir com cautela.

Esse espaço é por demais exíguo para discorrer sobre o tema com um mínimo de profundidade. Há ainda a tormentosa questão da previdência dos servidores públicos e a situação dos Estados e Municípios. Mas penso ser importante chamar a atenção para a enorme complexidade e dimensão do problema. E a evidente ne- cessidade de que sejam feitos estudos mais claros, transparentes e compreensíveis, que permitam tomar decisões acertadas. A sociedade tem pressa, as reformas ur- gem, e o tempo está passando. Mas o provérbio “a pressa é inimiga da perfeição” aplica-se com perfeição (com o perdão pela redundância) a essa situação. E a sabe- doria popular manda nesses casos andar “devagar com o andor, que o santo é de barro”.

Os trabalhadores, que ontem comemoraram o seu dia, e são os responsáveis pela construção de um país melhor, merecem ter seus direitos respeitados e a segu- rança de um sistema justo que os proteja na saúde, doença e velhice, e para isso é preciso que se construa e mantenha um bem estruturado sistema de previdência social, o que não se faz sem estudos profundos, sérios e tecnicamente precisos, que devem ser analisados com cuidado e sem açodamento.

 

 

6      Inconstitucionalização do réquiem para o orçamento da Seguridade Social, publicada em 28 de março de 2017 no ConJur.

 

 

 

 

quE vENHA 2017, E TRAgA BOAS NOTÍCIAS PARA O DIREITO FINANCEIRO

 

 

Coluna publicada em 10.1.2017: <https://www.conjur.com.br/2017-jan-10/ contas-vista-venha-2017-traga-boas-noticias-direito-financeiro>

 

 

 

 

 

Foi-se o ano de 2016, alardeado por todos como muito difícil, chegando me- lancolicamente ao fim.

Para o Direito Financeiro, também não foi dos melhores, apesar de não ter sido tão ruim quanto o de 2015, que começou mal1 e terminou ainda pior.2

Questões financeiras ocuparam o centro das atenções, e o impeachment da Presidente da República por crimes de responsabilidade em matéria orçamentária, se de um lado evidenciou a má conduta na gestão das finanças públicas, ao menos mostrou a força da legislação financeira e a necessidade de que seja respeitada, bem como a independência dos órgãos responsáveis pelo controle externo, como os Tri- bunais de Contas e o Congresso Nacional.3

Vislumbra-se um ano de dificuldades, e esperamos que traga avanços no âm- bito do Direito Financeiro que possam colaborar para a recuperação da economia. Ou, ao menos que não se dê continuidade à degradação que foi imposta às normas de responsabilidade fiscal nos últimos anos.

Inicia-se com notícia da má situação financeira de Estados e Municípios, e a chance que está sendo dada aos Estados para que possam se reerguer, com a recente

 

 

1      O Direito Financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 começou mal, nesta edição, p. 183-188.

2      2015: o ano de triste memória para o Direito Financeiro que não quer terminar, nesta edição, p. 483-488.

3      Julgamento do TCU que reprovou contas do governo entrou para a história do Direito Financeiro, nesta edição, p. 335-338.

 

 

publicação da Lei Complementar 156, em 28 de dezembro de 2016.4 Esta lei auto- riza que a União reestruture as obrigações financeiras estaduais tanto por meio da prorrogação dos prazos de pagamento quanto pela via da redução das prestações. Assim, os contratos de refinanciamento firmados com a União (como aqueles ocorridos no bojo da Lei 9.496/1997) admitem prorrogação dos prazos de venci- mento das parcelas, esperando-se que, com a reordenação do cronograma dos pa- gamentos se alivie a difícil situação financeira dos Estados. E, além da nova orga- nização dos pagamentos, autoriza-se ainda a União a diminuir o montante das prestações – reduções extraordinárias que, em relação ao conturbado segundo se- mestre de 2016, podem chegar a 100% da parcela mensal devida (ver art. 3º, § 3º, da Lei Complementar 156).5

Além das condições de revisão dos pagamentos, vale a pena destacar ao menos outros dois aspectos do processo de aprovação da Lei Complementar 156.

O primeiro é que o Congresso Nacional decidiu retirar as contrapartidas dos Estados previstas no projeto. Isto é, as principais condições e medidas de reforço à responsabilidade fiscal que estes entes deveriam cumprir para ter acesso aos bene- fícios de eventual reestruturação perante a União não estão previstas no texto final, mantendo-se apenas algumas exigências de divulgação de informações sobre a exe- cução orçamentária e financeira. Entre estas contrapartidas estariam a redução de despesas de pessoal, suspensão de reajustes salariais e aumento das contribuições previdenciárias dos servidores.

Ausentes as contrapartidas na lei complementar, houve como contrarreação do governo o veto a medidas de alívio mais imediato das finanças estaduais apro- vadas pelo Congresso, chamadas de “regime de recuperação fiscal”. Entre as facul- dades concedidas ao ente participante de tal regime se encontrava a suspensão temporária dos pagamentos previstos nos contratos com a União – uma moratória de até 36 meses.

Sem as necessárias medidas de ajuste estrutural para que recebam benefícios financeiros, como a suspensão de pagamentos da dívida pública, a federação intro- duziria em um cenário de recursos já escassos um novo elemento de instabilidade: o “risco moral” devido à percepção de que a responsabilidade fiscal é desnecessária, pois sempre haverá a perspectiva do socorro federal. Já tratamos deste assunto

 

 

4      Que “estabelece o Plano de Auxílio aos Estados e ao Distrito Federal e medidas de estímulo ao reequilíbrio fiscal”.

5      Desde que a redução não ultrapasse o valor mensal de 500 milhões de reais para cada parcela mensal, por Estado (como consta do art. 3º, § 5º).

 

 

quando analisamos as medidas de refinanciamento das dívidas subnacionais nos anos 1990 e os objetivos de estabilização pretendidos com a Lei de Responsabilida- de Fiscal.6 Recentemente, Selene Peres Nunes voltou a analisar a questão, e sinteti- za o problema: “a cada nova renegociação, gerava-se a expectativa de que o ajuste fiscal não era necessário porque sempre seria possível empurrar a dívida para o Governo Federal. Essa expectativa estimulava inadimplências sucessivas e frouxi- dão fiscal. Afinal, por que assumir o ônus político de ajustar as contas, se a União protegeria os inadimplentes?”7

Uma medida que não é isenta de críticas, típica da sempre presente “adminis- tração-bombeiro”, dada a “apagar incêndios”. No entanto, ante o fato consumado, só resta torcer para que dela seja feito bom uso, e quem sabe os Estados consigam sair do inusitado “estado de calamidade”, mais uma novidade que apareceu neste ano de 2016 no Direito Financeiro, já contaminando vários entes da federação.8

E é bom que os Estados possam recuperar suas finanças rapidamente, pois necessidades para ser atendidas não faltam. O ano já começa com uma delas, ex- tremamente grave e muito dispendiosa – a situação carcerária –, esta indiscutivel- mente em um verdadeiro “estado de calamidade”. Manchete dos principais meios de comunicação do país,9 o tema foi objeto de atenção em todo o mundo durante a semana passada, em razão do lamentável episódio ocorrido em Manaus no pri- meiro dia do ano, em que uma rebelião interna levou à morte de dezenas de deten- tos, e poucos dias depois o fato se repete em Boa Vista, Roraima. O tema não é novo, já foi objeto de referência neste espaço (Solução para a crise carcerária tem significativo reflexo orçamentário10) e está “sub-judice” pela inovadora ADPF 347, que tem por objeto a declaração do “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro. Destaque deve ser dado ao fato de já ter sido concedida a medida liminar que, entre outras providências, determinou a liberação e vedou o contingenciamento dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional – Funpen. Re- centemente, a Medida Provisória 755, de 19 de dezembro de 2016, facilitou o re-

 

6    Refinanciar as dívidas nada mais é do que postergar problemas, nesta edição, p. 433-438.

7 O risco moral do refinanciamento de dívidas. Blog da Selene, 17 de outubro de 2016. Dispo- nível em: <http://www.selene.blog.br/single-post/2016/10/17/O-risco- moral-do-refinancia- mento-de-d%C3%ADvidas>.

8   Crise leva as finanças públicas ao “estado de calamidade”, nesta edição, p. 241-244.

9 Incluindo a capa das revistas semanais, como Veja (A explosão da barbárie nas prisões brasilei- ras, edição 2152), Época (O país da carnificina, edição 968), IstoÉ (Os chefes do crime que apavoram o Brasil, edição 2456) e Carta Capital (Massacre amazônico, edição 934).

10   Nesta edição, p. 83-88.

 

 

passe de recursos do fundo a Estados e Municípios, por meio das transferências voluntárias,11 e agora de forma “direta”, com a diminuição de exigências para a transferência dos recursos.

Outras expectativas se formam, como a do julgamento definitivo das contas de governo pelo Congresso Nacional referente aos exercícios de 2014 e 2015, cujos respectivos pareceres prévios já foram elaborados pelo TCU, propondo, em ambos os casos, a rejeição das contas, em face das graves irregularidades encontradas (Acórdão TCU 2.461/2015, j. 7.10.2015, rel. Min. Augusto Nardes, referente às contas de 2014; e Acórdão TCU 2.523/2016, j. 5.10.2016, rel. Min. José Múcio Monteiro, referente às contas de 2015).

Estaremos também sob o “Novo Regime Fiscal”, tendo em vista a aprovação da Emenda Constitucional 95, publicada em 15 de dezembro de 2016, decorrente da já famosa “PEC do Teto”, com medidas polêmicas, voltadas a tentar estabelecer limitação constitucional para as despesas públicas primárias, cuja análise merece maior atenção, inviável de ser feita nesse curto espaço. Por ora o melhor é ser oti- mista, e tentar ver os aspectos positivos, destacados com muita propriedade recen- temente nesta seção por Júlio Marcelo de Oliveira, para quem “A fixação de um limite constitucional para o crescimento das despesas primárias por um período razoável de pelo menos dez anos, podendo ser revisto a partir de então, passa uma mensagem extremamente positiva para os agentes econômicos, de confiança no comportamento e na responsabilidade do Estado na gestão de seus recursos e na sua capacidade de honrar e gerenciar sua dívida”.12

Mas não há como deixar de registrar que o desapreço pelo planejamento pa- rece afigurar-se como uma questão suprapartidária. Não se fala no PPA vigente para o período 2016-2019, e com o novo governo o que se espera é que seja cum- prido, ou, caso não se tenha intenção de fazê-lo, em face da mudança de governo, que seja proposta modificação e aprovada o quanto antes. Afinal, é preciso docu- mentar e deixar explícitas as prioridades para os próximos três anos.

E a LDO, como está se tornando praxe, voltou a ser publicada intempestiva- mente (Lei 13.408, publicada somente em 26 de dezembro, seis meses após o prazo constitucionalmente fixado). Tendo o novo governo assumido provisoriamente em

11  Sobre o assunto, veja-se DALLAVERDE, Alexsandra K. As transferências voluntárias no mode- lo constitucional brasileiro. Série Direito Financeiro (Coord. José Mauricio Conti). São Paulo: Blucher, 2016. A versão eletrônica do livro pode ser baixada gratuitamente no site da Editora Blucher <www.blucher.com.br> pelo selo Open Access.

12  O que há de bom no novo regime fiscal?, publicada em 22 de novembro de 2016 no ConJur.

 

 

12 de maio do ano que passou, pode até ser compreensível alguma dificuldade em aprovar esse documento com decisões tão importantes13 até o final de junho, como deveria, mesmo porque assumiu definitivamente somente em agosto. Mas não é razoável publicar a lei de forma simultânea à Lei Orçamentária, tornando a LDO atualmente uma verdadeira peça de ficção, deixando de ter relevância como lei de planejamento para ficar com sua função anômala e secundária de regular questões mais voltadas à execução orçamentária, servindo como substituto das lacunas da Lei 4.320. Aliás, esta é outra oportunidade que não se pode perder nesse ano que se inicia, pois os projetos que a substituem tramitam a passos lentos, e nada melhor do que promover a aprovação da Lei de Qualidade Fiscal.

Não são só os Estados, mas também e principalmente os Municípios, cujos Prefeitos tomaram posse neste primeiro dia do ano, que se encontram em severas dificuldades financeiras, como noticiado na mídia, que foi praticamente unânime em ressaltá-las. Sabendo que o primeiro ano de mandato não é próprio para cum- prir promessas14, e não há milagres na gestão e nas contas públicas,15 espera-se que iniciem seus mandatos não esquecendo que devem desde já dar início à elaboração do plano plurianual,16 e agindo com responsabilidade, especialmente fiscal, pois li- ção dada pelo Direito Financeiro no ano de 2016 certamente não foi e não será esquecida.

Que todos enfrentem as dificuldades com criatividade, desde que não seja na contabilidade, pois o Direito Financeiro ainda não entrou na era da “pós-verdade”; nesse aspecto é conservador, e exige a verdade nas contas públicas!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

13     Decisões financeiras fundamentais são tomadas na Lei de Diretrizes Orçamentárias, nesta edição, p. 155-160.

14     No primeiro ano de mandato, não se cumprem promessas, nesta edição, p. 161-164.

15     Ano e prefeitos “novos” não trazem milagrosamente melhor gestão, por Élida Graziane Pinto, publicada no ConJur em 4 de janeiro de 2017.

16     Planejamento municipal precisa ser levado a sério, nesta edição, p. 135-138.

 

 

 

 

O “MECANISMO ORçAMENTÁRIO” NEM OS CAMINHONEIROS CONSEguEM PARAR

 

 

 

 

Coluna publicada em 29.5.2018: <https://www.conjur.com.br/2018-mai-29/contas- vista-mecanismo-orcamentario-nem-caminhoneiros-podem-parar>

 

 

 

 

 

O país parou. Uma greve de caminhoneiros conseguiu deixar o governo e o povo de joelhos.1 Mais um pouco e viveremos cenas dignas de The Walking Dead.2

Mas nem tudo parou. E não foram os serviços essenciais nem a entrega de cerveja que continuaram funcionando a todo vapor. O que ninguém conseguiu nem consegue parar é o “mecanismo orçamentário”. Um mecanismo que deu ori- gem a um dos primeiros e maiores escândalos de nossa República das últimas dé- cadas, o já esquecido “escândalo dos anões do Orçamento”,3 no início da década de 1990. Depois veio o “mensalão”, em seguida o “petrolão”, “lava jato”, e outros devem estar a caminho. Políticos perderam seus mandatos no primeiro, outros tantos foram para a cadeia nos demais. Em todos eles, o “mecanismo orçamentá- rio” sempre esteve presente: nada o assusta, ninguém é capaz de detê-lo.

Mas o que é e como funciona o “mecanismo orçamentário”?

Em um país de dimensões continentais como o Brasil, cuja federação tem mais de 5 mil municípios, 27 estados4 e a União, a quantidade de dinheiro admi- nistrada pelo setor público é impressionante. Só o orçamento da administração pública federal deste exercício de 2018 supera os R$ 3,5 trilhões.5 Não é a toa que,

1 Entenda como questões tributárias colaboraram para essa situação lendo o artigo de Andressa Torquato Fernandes publicado no ConJur neste domingo (27/5): Alta do preço dos combustíveis é uma tragédia (tributária) anunciada.

2      Série de TV norte-americana exibida no Brasil em temporadas pelo Canal Fox.

3      <https://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%B5es_do_Or%C3%A7amento>.

4      5.561 municípios, 26 estados e o Distrito Federal (Fonte: IBGE).

5      R$ 3.575.230.380.469 – Lei 13.587/2018.

 

 

ante a desigualdade, a pobreza e a precariedade dos serviços públicos que ainda estão fortemente presentes, esses recursos são muito cobiçados, e o ataque aos co- fres públicos transformou-se em uma verdadeira guerra.

O cineasta José Padilha, ao definir “o mecanismo”, que dá o título à série que dirigiu, expõe com clareza como funciona aquele que é o sistema estruturado para se apropriar dessa “mina de ouro” que são os recursos públicos. E escancara as estratégias capazes de envergonhar os personagens de House of Cards,6 fazendo deles verdadeiros aprendizes das técnicas de como funciona a política na sua pior versão.

Segundo ele, há uma estrutura na administração pública, em todas as esferas (federal, estadual e municipal), por meio da qual empresas financiam campanhas políticas. Uma vez eleitos, os políticos se apropriam de cargos no governo e, por consequência, de “nacos” do orçamento público. Com isso, conseguem contratar as empresas que os financiaram por valores superfaturados, e os recursos adicionais obtidos voltam em forma de financiamento de campanhas para as próximas elei- ções, além de “encher os bolsos” dos políticos e das empresas. E o ciclo continua, ano após ano. Sem ideologia, operando nos governos de todos os matizes ideológicos.7

A revista IstoÉ recentemente mostrou que o “mecanismo” está em pleno funcio- namento. Na reportagem “O PP foi às compras”, relata que o Partido Progressista, o mais envolvido na operação “lava jato”, montou uma operação para cooptar parla- mentares e aumentar sua base política. Usou para isso os recursos do Fundo Nacional de Saúde e do Fundo Partidário, por meio de facilidades criadas pelo Ministro da Saúde, ligado ao partido, e do presidente da Comissão de Orçamento, também inte- grante do PP. Controlando a liberação de recursos de emendas parlamentares desti- nadas à área da saúde, conseguiam distribuir recursos orçamentários de modo a atrair para o partido os políticos de outras agremiações, segundo a reportagem.8

Essencialmente, o “mecanismo” se operacionaliza por instrumentos orçamen- tários, e é no Direito Financeiro que encontramos as explicações de como funcio- na. É verdadeira e precisamente um “mecanismo orçamentário”. Veremos alguns desses instrumentos, que continuam operando normalmente, apesar das prisões e de todos os escândalos que se sucedem e que deixam a sociedade revoltada, capaz

 

6   Série de TV norte-americana exibida no Brasil pelo serviço de streamingNetflix.

7  José Padilha: o mecanismo agradece. Folha de S.Paulo, seção Opinião – Tendências/Debates, em 1º de abril de 2018 (https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/04/jose-padilha-o-me- canismo-agradece.shtml); Entrevista a Pedro Bial em Conversa com Bial, 9 de abril de 2018 (https://www.youtube.com/watch?v=Atlo7AeZEL0).

8   IstoÉ, edição 2.525, 16 de maio de 2018, versão impressa, p. 26-29.

 

 

de parar o país por um aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus, como ocorreu em 2013,9 ou por uma greve de caminhoneiros.

Primeiramente, é importante destacar que o sistema federativo brasileiro é uma modalidade de “federalismo cooperativo”, com grande interdependência entre os entes federados, de modo que a maior parte das mais importantes políticas pú- blicas, como saúde, educação e segurança, entre outras, funciona por meio do com- partilhamento de recursos e atribuições dos vários entes federados.

E há forte concentração de recursos no governo central, fazendo da União a principal responsável por estabelecer diretrizes e controlar a distribuição desse di- nheiro para a execução das políticas públicas.

É por essa razão que muitos serviços e obras públicas dependem de transferên- cias de recursos federais para que se concretizem. É o que ocorre em praticamente todas as áreas, inclusive na saúde. Em razão disso, estados e municípios ficam na dependência das chamadas “transferências voluntárias” para atender as necessida- des públicas regionais e locais.10

Os políticos precisam, portanto, conseguir esses recursos junto ao Ministério da Saúde, responsável por gerenciar as dotações orçamentárias que os contemplam. Uma tarefa que pode ficar mais simples e ter seu caminho facilitado se o ministro é do seu partido, ou se o político se dispõe a mudar de agremiação para conseguir a cobiçada verba.

Algo que se torna corriqueiro quando a administração pública está “loteada”, tendo sido os cargos, como os de ministros, distribuídos segundo interesses políti- cos. Uma consequência do “presidencialismo de coalizão” que vigora no Brasil, exigindo que o governo em exercício se componha com as diversas forças políticas para que possa ter governabilidade. Uma “composição” que, diversamente do que seria de se esperar, não parece ocorrer por razões ideológicas e/ou administrativas, mas, sobretudo, por motivações financeiras. Um “presidencialismo de coalizão” que precisa do “mecanismo” para que funcione. E, funcionando, extrema-se em um verdadeiro “presidencialismo de cooptação”.11

 

 

9   No fundo, protestos envolvem questões orçamentárias, nesta edição, p. 165-168.

10 Transferências voluntárias geram desequilíbrio federativo, nesta edição, p. 19-22, mencionado na nota de rodapé 9. Nesse tema, não deixem de consultar também o livro As transferências volun- tárias no modelo constitucional brasileiro, integrante da Série Direito Financeiro, cuja versão eletrônica está disponível gratuitamente no site da Editora Blucher.

11 PESSÔA, Samuel. Presidencialismo de coalizão ou de cooptação? Conjuntura Econômica, São Paulo, v. 69, n. 1, jan. 2015.

 

 

Em geral, esses recursos são pleiteados por meio de emendas ao orçamento, em que os parlamentares, durante o período de apreciação e deliberação sobre o projeto de lei orçamentária, apresentam seus projetos para inclusão de dotações destinadas a suas bases eleitorais. Falamos sobre o assunto na coluna Emendas ao orçamento geram desequilíbrio de poderes, a primeira que publiquei nesta seção “Contas à Vista”, em 3 de julho de 2012 no ConJur.

Conseguindo a inclusão na lei orçamentária, inicia-se outra “batalha” de uma “guerra” cheia de obstáculos, evidenciando que não é fácil fazer o recurso chegar aonde se deseja – seja ele o povo que vai ser beneficiado, ou os corruptos e corruptores que dele querem se apropriar. E assim o “mecanismo orçamentário” vai funcionando…

É curioso notar que esta última fase, da luta pelos recursos já contemplados na lei orçamentária, deveria ter cessado. A liberação das dotações orçamentárias fica sujeita aos “contingenciamentos”, instrumento que historicamente tem sido usado indevidamente para desviar, em vez de controlar, o fluxo de recursos durante a execução do orçamento.12 Mas isso não poderia mais ocorrer após a aprovação da “Emenda do Orçamento Impositivo” (Emenda Constitucional 86/2015), que, além de assegurar um percentual mínimo para as emendas parlamentares indivi- duais, tornou-as de execução orçamentária e financeira obrigatórias. Mas, pelo que se tem visto das notícias e reportagens, como a já citada, não impediu que continuas- sem as “barganhas” envolvendo referidos instrumentos orçamentários.13 E assim mais um instrumento do “mecanismo orçamentário” continua operando a todo vapor…

Em alguns meses, elegeremos novos parlamentares, governadores e o presi- dente. Comandam a execução do orçamento público e são os maiores responsáveis por manter o “mecanismo orçamentário” em funcionamento. Ou dar um fim a ele. Já escrevi quatro anos atrás: Durante as eleições, pense bem para quem vai entregar a chave do cofre.14 Está chegando mais uma oportunidade de tentar dar um jeito em tudo isso, e não pode ser desperdiçada.

12  Hora é de “apertar o cinto” e contingenciar gastos, nesta edição, p. 227-230.

13 Orçamento impositivo é avanço para a administração, nesta edição, p. 231-234, e Aprovação do orçamento impositivo é insuficiente para dar credibilidade à lei orçamentária, nesta edição, p. 235-240. O assunto é abordado com muita propriedade no livro A execução do orçamento pú- blico: flexibilidade e orçamento impositivo, integrante da Série Direito Financeiro, cuja versão eletrônica está disponível gratuitamente no site da Editora Blucher <www.blucher.com.br> pelo selo Open Access.

14 Nesta edição, p. 223-226. Não deixe de ler também Uso político dos instrumentos de Direito Financeiro deve ser combatido, nesta edição, p. 251-254.

 

 

Falta de planejamento, má gestão de recursos, desvios causados por corrupção e outros “malfeitos” tantas vezes mencionados nestas colunas fazem do orçamento público uma lei sob constante ataque, cada vez mais difícil de ser cumprida e leva- da a sério, e isso precisa acabar.

Enquanto isso, o povo brasileiro vive uma realidade digna de ficção. As mu- danças são cada vez mais urgentes e necessárias, para que tudo acabe bem. E num futuro próximo se transforme em mais uma série de TV para nos distrair.

 

 

 

 

PAuTAS-BOMBA AMEAçAM ExPLODIR O ORçAMENTO DE 2019

 

 

 

 

Coluna publicada em 24.6.2018: <https://www.conjur.com.br/2018-jul-24/contas- vista-pautas-bomba-ameacam-explodir-orcamento-2019>

 

 

 

 

 

Nas últimas semanas, o Congresso Nacional voltou com tudo ao noticiário. Não era para menos. Às vésperas de iniciar o recesso, precisava votar uma série de medidas, incluindo a Lei de Diretrizes Orçamentárias, sem o que o recesso não se inicia.1 A maioria delas com potencial explosivo para as contas públicas: as chama- das “pautas-bomba”.

E desta vez o recesso será longo, pois, com eleições gerais para presidente, governadores, senadores e deputados no segundo semestre, é difícil que esse recesso acabe tão cedo. Tudo indica que não se deve votar mais nada relevante até dezem- bro. Exceto, evidentemente, a lei orçamentária, cuja aprovação deve (espera-se…) ocorrer até o final do ano.

O que se viu foi uma verdadeira guerra, um “agora ou nunca” ou “tudo ou nada” nas votações que marcaram esses primeiros dias de julho.

Em pauta, projetos de lei que aumentam os gastos públicos, como reajustes salariais, e outros que reduzem receitas. E aumentar despesas e reduzir receitas não parecem ser medidas alinhadas à responsabilidade fiscal que se almeja em momen- tos de crise fiscal aguda como essa que se perpetua já há alguns anos.

Destaque coube para as renúncias de receitas, abrangendo benefícios fiscais e creditícios de toda sorte, que têm se transformado em um problema de irresponsa-

 

 

1      Ou não deveria iniciar, já que temos visto essa norma ser “driblada” nos últimos anos… Falou-

-se sobre isso em 2015: o ano de triste memória para o Direito Financeiro que não quer terminar, nesta edição, p. 483-488.

 

 

bilidade fiscal cada vez mais grave.2 Perdão de dívidas para produtores rurais e microempresas e compensação dos estados pela desoneração do ICMS sobre expor- tações, entre outros benefícios fiscais, têm potencial para provocar estragos no or- çamento federal da ordem de R$ 100 bilhões,3 o dobro do que se gasta com o custeio da máquina pública.4

Vê-se que o governo, na tentativa de manter – ou, melhor dizendo, tentar re- cuperar – o equilíbrio orçamentário, perdido já há alguns anos, em que se sucedem os déficits, dadas as reiteradas práticas de irresponsabilidade fiscal, manda projetos para conter o ímpeto de gastar mais e mais dinheiro público (isso quando consegue resistir às pressões de todos os lados, o que nem sempre acontece, e o próprio go- verno boicota as contas públicas). Os projetos que tentam defender o orçamento público, no entanto, sofrem impiedosos ataques ao chegar ao Congresso, que, ar- mado de emendas parlamentares que os congressistas usam como se fossem fuzis russos AK-47, desconfiguram o texto encaminhado, e do que é aprovado pouco sobra para manter o equilíbrio das contas públicas.

Um cenário que diminui as perspectivas de ajuste nas contas governamentais coloca em risco a “regra de ouro”, já na iminência de ser violada,5 aumentando o risco de endividamento excessivo, deixando dúvidas sobre o efetivo respeito à “Emen- da do Teto de Gastos”6 e tornando sombrio o futuro de nossas finanças públicas.

Releva notar que, das medidas em discussão, várias são autônomas. Mas mui- tas foram inseridas no bojo da Lei de Diretrizes Orçamentárias, cuja aprovação é “obrigatória” antes do recesso parlamentar.

 

2 Veja, a título de exemplo, a reportagem que estampa a manchete da Folha de S.Paulo de do- mingo (22/7): “Governo desperdiça 173 bi em programas sem retorno: avaliação de subsídios federais em 20 projetos identificou que 4 não tiveram efeito”.

3   Em estimativa da revista IstoÉ Dinheiro: Refis do Simples – R$ 7,8 bilhões; Refis do Funrural

– R$ 13 bilhões; compensações da Lei Kandir – R$ 39 bilhões; benefícios fiscais para trans- portadoras – R$ 27 bilhões; venda direta de etanol aos postos – R$ 2,4 bilhões; reinstituição de benefício ao setor de bebidas – R$ 1,8 bilhão; benefícios fiscais Sudene e Sudam – R$ 9,3 bilhões; transferência de servidores de ex-territórios da União – R$ 2 bilhões; e derrubada do adiamento a reajuste de servidores em 2019 – R$ 11 bilhões (Uma bomba nos gastos públicos. IstoÉ Dinheiro, n. 1079, 25 de julho de 2018, p. 18-23). E ainda: “A pauta-bomba de 100 bi do Congresso prova: no Brasil, o que é ruim pode piorar”, in portal InfoMoney (www.infomoney. com.br), em 12 de julho de 2018.

4      Conta de pautas-bomba é equivalente ao dobro do custeio da máquina pública. Folha de S.Paulo, 12 de julho de 2018.

5      Veja recente coluna de Élida Pinto, Diante da iminente ruptura da regra de ouro, LDO 2019 limita renúncias fiscais, publicada em 17 de julho de 2019 no ConJur.

6      EC 95/2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal.

 

 

Um fato que chama a atenção para a questão da exclusividade orçamentária, que está se transformando em um problema no âmbito do Direito Financeiro. Uma oportunidade para dar o devido destaque a esse tema.

Aproveitando-se do momento e da necessidade de rápida aprovação das medi- das, o que se viu foi uma série de inserções de dispositivos na Lei de Diretrizes Orça- mentárias que não necessariamente têm relação com suas funções constitucionais.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), sobre a qual já houve referência expressa e destacada em colunas anteriores,7 é por excelência um instrumento de planejamento orçamentário, cujas funções estão expressamente previstas na Cons- tituição (art. 165, § 2º) e na Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 4º). Deve cuidar essencialmente de orientar a elaboração da lei orçamentária anual e definir as prio- ridades orçamentárias, no que foi importante para dar maior relevância ao papel do Poder Legislativo no processo orçamentário.

O uso cada vez mais intenso – mas não necessariamente correto – da LDO para dispor sobre toda e qualquer questão que envolva direta ou indiretamente te- mas financeiros evidencia cada vez mais a importância que essa lei tem assumido no cenário legislativo e a coloca no caminho de disputar com a lei orçamentária o título de lei mais importante depois da Constituição.8 A essa altura já deve ser pos- sível considerá-la a segunda mais importante. Menos mal. Perdemos a Copa do Mundo, mas em matéria de importância o Direito Financeiro já está com a meda- lha de ouro e prata, e as outras leis ficam com a disputa do bronze.

Entre os vários pontos polêmicos, alguns merecem atenção. A LDO entrou em detalhes em temas como proibição do reajuste de verbas destinadas aos gabinetes de parlamentares, proibição de compra ou reforma de residências oficiais, aquisição de automóveis por autoridades, pagamentos de diárias, detalhamentos relacionados a nomeações de servidores públicos e reajustes para gastos em procedimentos na área da saúde, entre muitos outros.

O princípio da exclusividade orçamentária é antigo, já consta de nossa Cons- tituição desde o texto de 1926, sendo amplamente acolhido pelo sistema legislativo orçamentário do mundo todo. Preconiza a vedação da inclusão na lei orçamentária de “dispositivo estranho à previsão de receita e à fixação da despesa” (Constituição, art. 165, § 8º), para limitar o uso da lei orçamentária ao tema que lhe é próprio.

 

7 LDO é instrumento eficiente para a administração pública, nesta edição, p. 151-154, e Decisões fi- nanceiras fundamentais são tomadas na Lei de Diretrizes Orçamentárias, nesta edição, p. 155-160.

8   “A lei orçamentária é a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abai- xo da Constituição”, min. Carlos Britto, p. 92 dos autos, STF, Tribunal Pleno, ADI 4.048 (rel. Min. Gilmar Mendes, j. 14.5.2008).

 

 

O orçamento público já foi, em face principalmente de seu processo legislativo periódico e acelerado, utilizado como meio para a inserção de dispositivos não re- lacionados a seu conteúdo específico, criando as “caudas orçamentárias” – ou, ain- da, “orçamentos rabilongos”, para usar expressão criada por Rui Barbosa.

No entanto, a literalidade de nossa Constituição, ao proibir tais disposições na “lei orçamentária”, foi silente com relação à “lei de diretrizes orçamentárias”, per- mitindo que uma interpretação literal e restritiva admita usar a LDO para dispor sobre temas que tem duvidosa pertinência com as funções que lhe são próprias.

E o que se vê, pelos exemplos citados, é uma verdadeira “LDO rabilonga”, com dispositivos casuísticos, repleta de normas que pouca relação e utilidade tem com o sistema de planejamento orçamentário.

A amplificação do uso da LDO é notória. A primeira LDO federal tinha 59 artigos (Lei 7.800, de 10 de julho de 1989); a atual, 157 artigos (Lei 13.473, de 8 de agosto de 2017); e o projeto sobre o qual se falou nesta coluna, 149 artigos, sem contar os vários anexos. Um inchaço que mostra, de um lado, a importância que a LDO tem assumido na condução da administração pública; de outro, porém, o “efeito-carona” que está ocorrendo nessa lei ao ser utilizada para agregar temas que não estão em sua abrangência funcional.

Um grande equívoco que precisa ser desfeito. O princípio da exclusividade orçamentária precisa ser revisitado, e a LDO, retomar seu caminho, sem deixar que se desvie para se transformar em uma “colcha de retalhos”. Em recente obra sobre o tema, Weder de Oliveira destaca que as leis orçamentárias têm funções constitucionais próprias e específicas que permitem conferir ao PPA e à LDO a estatura de “leis reforçadas”, conforme construção do Direito português (com des- taque para Carlos Blanco de Morais e Jorge Miranda), dando-lhes supremacia so- bre as demais. Forma-se, assim, um todo lógico e coerente de planejamento orça- mentário da administração pública pela tríade PPA-LDO-LOA. Para isso, exige-se o rigoroso respeito por esses diplomas normativos de dispor sobre as funções que lhes são próprias. Assim sendo, o princípio da exclusividade estende-se às demais leis orçamentárias, que devem tão somente tratar das matérias que lhes são pró- prias, em razão da função específica que a Constituição lhes definiu dentro do sistema orçamentário. Não se pode admitir, assim, que a LDO, como tem ocorrido frequentemente, supra as lacunas da Lei 4.320 e disponha sobre temas que não lhe são próprios, como regramentos detalhados de execução orçamentária. E alerta: “Independentemente do mérito do conteúdo extraconstitucional, enquanto as leis de diretrizes orçamentárias avançam irrestritamente em espaços legislativos não ocupados pelo ato legislativo competente (lei complementar, lei orçamentária, leis

 

 

ordinárias), suas expressas funções constitucionais esmaecem na mesma proporção, con- correndo essa prática para distanciar a LDO de seu sentido no sistema e de sua gênese: ser o lócus dos grandes debates e decisões orçamentárias, macroeconômicas e de políticas públicas, dando-se, assim, plena razão aos seus críticos históricos”.9

Portanto, muito mais adequado do que ater-se à literalidade do texto constitu- cional, que faz referência ao princípio da exclusividade orçamentária apenas para a lei orçamentária anual, é ter a compreensão sistemática e teleológica da Constitui- ção para reconhecer as funções constitucionais de cada uma das leis e ver que a LDO não se presta a atender casuísmos que pouca ou nenhuma relação tem com o planejamento orçamentário. Devemos ater-se à sua conformidade funcional para não admitir as verdadeiras “caudas” que estão sendo indevidamente anexadas à LDO, voltando décadas atrás na evolução das leis orçamentárias.

Tudo isso mostra que não são apenas as nossas contas públicas que estão sob ataque, mas também o Direito Financeiro.

E, não obstante iniciado o recesso do Congresso Nacional, não se pode espe- rar que a trégua dure muito. No final de agosto, tão logo apresentada a proposta de lei orçamentária para 2019, abre-se o cofre da “cota parlamentar” e entra em cena o Partido de Caça aos Convênios, ao qual todos parecem pertencer nesse período, com os parlamentares em busca de transferências voluntárias10 para atender às suas bases eleitorais e garantir a reeleição – o que, convenhamos, agrava-se sobremanei- ra durante esse período de campanha eleitoral.

Assim fica difícil levar o Direito Financeiro a sério…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

9      Lei de Diretrizes Orçamentárias: gênese, funcionalidade e constitucionalidade – retomando as origens. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 404.

10     Transferências voluntárias geram desequilíbrio federativo, nesta edição, p. 19-22.

 

 

 

 

O NOvO PRESIDENTE E O DIREITO FINANCEIRO: O quE PODEMOS ESPERAR?

 

 

 

 

Coluna publicada em 16.10.2018: <https://www.conjur.com.br/2018-out-16/ contas-vista-onovo-presidente-direito-financeiro-podemos-esperar>

 

 

 

 

 

Estamos a poucos dias da eleição do próximo presidente da República e de todos os governadores (sem contar o Congresso Nacional e as Assembleias Legisla- tivas, já definidos).

É o momento de analisar o que pretendem fazer em relação aos aperfeiçoa- mentos que o Direito Financeiro precisa. Afinal, há muito o que fazer nesse campo, e não se pode deixar passar mais quatro anos (ou oito, se considerada a hipótese de reeleição…) sem avançar nesse campo. É sempre bom lembrar que a lei orçamentá- ria é a mais importante depois da Constituição,1 e o sistema de planejamento e orçamento precisa receber a merecida atenção dos governantes.

Havendo maior relevância da legislação financeira no âmbito federal, cabe-

-nos dar mais atenção às propostas dos dois candidatos que disputam a Presidência da República, expostas nos planos de governo que apresentaram, o que permite vislumbrar, ao menos em parte, o que se pode esperar.

Infelizmente as notícias não são as melhores, pois não se vê nos referidos documentos destaque significativo para as questões relacionadas especificamente às reformas esperadas para o Direito Financeiro e a modernização do sistema orçamentário vigente. Um tanto genéricos, os planos apresentados não se apro- fundam nas diversas propostas nem descem a detalhamentos que permitam fazer uma análise mais acurada sobre o que realmente pretendem os candidatos nesse campo.

 

1      Min. Carlos Ayres Britto, ADI-MC 4048-1/DF, j. 14.5.2008.

 

 

O candidato que desponta como favorito até o momento, Jair Bolsonaro, em seu plano de governo,2 é o único que faz uma referência mais direta à alteração no sistema de planejamento e orçamento, com a adoção do “orçamento base-zero”.

Propõe que se inverta a lógica dos gastos, obrigando cada gestor a justificar a demanda por recursos públicos, de modo que “o montante gasto no passado não justificará recursos demandados no presente ou no futuro”, e enfatiza a necessidade de se ter prioridades, metas e acompanhamento dos recursos gastos durante a ges- tão (p. 18).

O tema do orçamento base-zero (OBZ) já foi objeto de abordagem específica neste espaço, Crise econômica pode criar o “orçamento recurso-zero”, nesta edição, p. 241-244, quando foi sugerida, como medida a ser adotada, na proposta apresentada pelo PMDB no final do ano de 2015, denominada “Ponte para o Futuro”, recolo- cando na agenda um tema que havia sido esquecido no debate orçamentário. Como ressaltado à época, trata-se de medida bastante positiva, reduz uma série de distor- ções ocorridas, especialmente na fase de elaboração da lei orçamentária, com boas perspectivas de promover melhor aproveitamento dos recursos públicos e evitar des- perdícios de recursos. Nunca foi, no entanto, técnica fácil de ser implementada, o que tem sido um obstáculo à sua utilização como instrumento de aperfeiçoamento do sistema orçamentário. Uma boa oportunidade para que seja promovida uma tentativa de concretização, uma vez que presidentes recém-eleitos, e com maioria de votos, têm respaldo popular suficiente para impor as mudanças que são necessárias.

No mais, vemos no plano de governo do candidato propostas que apresentam reflexos importantes para o Direito Financeiro, por referirem-se a temas que têm relação próxima com os gastos públicos e a atividade financeira do Estado. Não é possível, no entanto, se aprofundar em cada uma delas, dadas as limitações a que se propõe esse texto, em que se dará destaque às propostas de aperfeiçoamento do ordenamento jurídico em matéria financeira.

Nesse aspecto, destacam-se a ênfase na redução de gastos públicos (redução do número de ministérios – p. 17), desburocratização na descentralização dos re- cursos, facilitando as transferências intergovernamentais (Mais Brasil, menos Bra- sília – p. 19), redução da dívida pública pela promoção de superávit primário (p. 55), reforma da Previdência, introduzindo-se o sistema de capitalização (p. 57), e

2   O caminho da prosperidade. Proposta de plano de Governo. Constitucional. Eficiente. Frater- no. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos. Bolsonaro 2018. Disponível em: <http://di- vulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/280000614517// proposta_1534284632231.pdf>.

 

 

reforma tributária, com a unificação de tributos federais, descentralização e mu- nicipalização dos recursos (p. 58). Evidentemente que praticamente todas as de- mais propostas envolvem gastos públicos, como educação, saúde, infraestrutura e tantos outros, mas cada um desses temas exige espaços próprios e muito mais amplos para que se possa debatê-los. Não faltará oportunidade nos anos que estão por vir.

O candidato Fernando Haddad não apresenta em seu programa3 proposta específica para o aperfeiçoamento da legislação que organiza o sistema financeiro e orçamentário, cabendo destaque a algumas questões que têm reflexos no âmbito do Direito Financeiro.

A mais relevante é a proposta de reforma dos tribunais de contas, reconhe- cendo que “o papel de combater o mau uso do dinheiro público é fundamental, [mas os órgãos de controle] passaram a extrapolar suas funções, impondo aos ór- gãos do Executivo suas preferências de políticas públicas e formas de implementá-

-las”, o que deve ser aperfeiçoado “com a alteração nos critérios de nomeação, instituição de tempo de mandatos, criação de Conselho Nacional e outros meca- nismos de participação e controle social”, para que a gestão pública “não seja regi- da exclusivamente por uma cultura de controles burocráticos que interdite a ação estatal” (p. 14).

A discussão sobre os critérios de nomeação e composição dos tribunais de contas é antiga. São muitos os casos em toda a federação de indicações que, em face da histórica predominância do caráter político, geram muitas vezes escolhas que levam às cortes de contas nomes que não honram o cargo com os requisitos exigi- dos pela Constituição. Colocam “joio no meio do trigo” e maculam a sua imagem, prejudicando o relevante trabalho que realizam, e ofuscam todos os demais que têm colaborado decisivamente para o aperfeiçoamento da gestão pública, no que os tribunais de contas têm sido instituições extremamente relevantes. Esse tema já foi abordado em Moralização da administração pública: chegou a vez dos tribunais de contas, nesta edição, p. 359-366 e vale a releitura.

Nossos tribunais de contas têm sido os verdadeiros “guardiões do dinheiro público”, como já mencionado neste espaço por mais de uma vez,4 e têm dado grande

3 Plano de Governo 2019-2022. Coligação o povo feliz de novo (PT – PCdoB – PROS). Disponí- vel em: <http://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/ 280000629808//proposta_1536702143353.pdf>.

4 Tribunais de Contas são os guardiões do dinheiro público, nesta edição, p. 317-322; “PEC do pa- drão mínimovai aperfeiçoar tribunais de contas, nesta edição, p. 339-344.

 

 

colaboração no aperfeiçoamento das políticas públicas. Vê-se que no mais das vezes as políticas públicas são corrigidas e aperfeiçoadas em face de ações propositivas dos tribunais de contas, razão pela qual há que se ter atenção no detalhamento da pro- posta, para que eventual mitigação “do controle burocrático que interdite a ação estatal” não esconda medidas voltadas a reduzir o poder fiscalizatório e punitivo dos tribunais de contas, que tanto têm colaborado no combate à corrupção.

O plano preconiza ainda a “revogação da Emenda Constitucional 95, que limita por vinte anos os investimentos e as políticas públicas capazes de gerar desenvolvimento”, emenda essa que foi aprovada no final de 2016, para instituir o “Novo Regime Fiscal”, mais conhecida como “Emenda do Teto de Gastos”, com medidas voltadas a estabelecer limites máximos de caráter geral para os gastos públicos.

Propõe também o aperfeiçoamento do federalismo cooperativo, com o forta- lecimento dos consórcios públicos e a assistência e capacitação dos gestores de esta- dos e municípios, além de simplificar o sistema de repasses (p. 24); e uma reforma tributária com tributação de lucros e dividendos e a criação e implementação gra- dual de Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) e reestruturação da tabela do Im- posto de Renda (p. 42).

Na falta de maior aprofundamento das questões mais diretamente relaciona- das ao aprimoramento do Direito Financeiro que se podem encontrar nas propos- tas de ambos os candidatos, é oportuno oferecer sugestões a eles, e com isso dar uma contribuição para o mandato que vão exercer.

O artigo 165, § 9º da Constituição, cujo 30º aniversário ocorreu há poucos dias, determinou que fosse elaborada lei complementar para dispor sobre as leis orça- mentárias e normas de gestão financeira, papel que vem sendo cumprido até hoje pela Lei 4.320, de 1964. Uma lei que, evidentemente, já está defasada, sendo urgente sua substituição. E não faltam projetos prontos para serem aprovados. Alcunhados de “Lei de Qualidade Fiscal” e “Lei de Responsabilidade Orçamentária”, já tramitaram pelas comissões e por ambas as Casas do Congresso Nacional, e não mais se justifica que continuem dormindo nos escaninhos do Poder Legislativo. Já tratamos do assun- to em 2013 em Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias,5 além de outras, o que mostra quão antiga é a demanda pela sua aprovação. Registre-se ter sido inse- rido entre as prioridades do governo Temer, ao apresentar a “pauta alternativa” para a área econômica, após a suspensão das tratativas para a aprovação da reforma da Previdência (item 4 – Nova Lei de Finanças Públicas – PL 295), mas pouco falta

 

5      Nesta edição, p. 259-262.

 

 

para o fim do governo, e não há notícias de que efetivamente tenha havido qual- quer avanço nesse sentido.6

A Lei de Responsabilidade Fiscal, bem mais recente, não é mais tão nova as- sim, já atingiu os 18 anos de idade, e sempre pode ser aperfeiçoada, não faltando projetos para sua modernização. O destaque cabe para Projeto de Resolução do Senado 84, de 2007, que estabelece os limites para a dívida pública no âmbito fede- ral, uma das grandes omissões da referida lei que precisa ser sanada, e rapidamente, pois a demora já tem causado prejuízos ao país.7 Não se pode conceber que estados e municípios tenham rígidos limites para o endividamento, mas a União, não.

E outros que se alinham ao que há de mais moderno em matéria orçamentá- ria, como o PLS 428, de 2017, que institui o “plano de revisão periódica de gastos”, que tem por objetivo “institucionalizar na administração pública federal um pro- cesso contínuo e transparente de revisão de gastos públicos”, como expõe o propo- sitor, senador José Serra. Uma medida que está alinhada às mais recentes experiên- cias internacionais, recomendada pela OCDE e pelo FMI e já adotada em diversos países. Esses planos, ou spending reviews, como referidos na literatura internacional especializada, têm sido reconhecidos como um importante instrumento de accoun- tability, favorecendo o controle de gastos, a transparência e a responsabilidade fis- cal. Permitem um melhor acompanhamento, pela sociedade e pelo Parlamento, da evolução e qualidade dos gastos públicos, facilitando os ajustes necessários e a ma- nutenção do equilíbrio fiscal.

O novo presidente assumirá com amplo apoio popular, após vencer as eleições em dois turnos, com a maioria dos votos. Não lhe faltará força política para promo- ver as reformas que o Direito Financeiro requer.

O Direito Financeiro não pode esperar e precisa avançar.8

A sociedade brasileira aguarda essas medidas que, se até o momento não integra- ram os respectivos planos de governo, espera-se que venham a integrar antes da posse.

Ideias não faltam. Projetos, alguns iniciados, outros avançados e prontos para serem aprovados, também não. Aos candidatos, #ficaadica!

 

6 Sem reforma, governo apresenta reforma alternativa. Veja, 19 de fevereiro de 2018. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/economia/sem-reforma-governo-apresenta-pauta-alternativa>.

7 “É preciso notar que a demora em regulamentar o limite de endividamento da União trouxe prejuízos ao país ao incentivar a lassidão fiscal. A deterioração das contas públicas e as mano- bras criativas para ocultá-la, nos últimos anos são, infelizmente, boas amostras a este respeito”, assevera o relator do projeto, senador José Serra.

8 O alerta já foi feito em 2016, em O Direito Financeiro precisa avançar, e a hora é agora, nesta edição, p. 263-268.

 

 

 

 

uMA FACADA NA “CAIxA-PRETA DO SISTEMA S” EM DEFESA

DA uNIvERSALIDADE ORçAMENTÁRIA

 

 

 

Coluna publicada em 5.2.2019: <https://www.conjur.com.br/2019-fev-05/ contas-vista-facada-caixa-preta-sistema-defesa-transparencia>

 

 

 

 

 

“Tem que meter a faca no Sistema S.”1

A afirmação dura e forte do ministro da Economia chamou a atenção para uma questão importante em matéria orçamentária, sobre a qual pouco se fala, o que não se justifica, pois envolve muito dinheiro público. E permite trazer ao de- bate o princípio da universalidade orçamentária, que é muito – mas superficial- mente – referido nos livros didáticos, e pouco conhecido. E que deve ter sua impor- tância ressaltada pelos operadores do Direito Financeiro. Um princípio que está intimamente ligado à transparência e à boa gestão dos recursos públicos.

Mas o que é o “Sistema S”?

O chamado Sistema S constitui-se de um conjunto de entidades que começa- ram a ser criadas a partir do início da década de 1940,2 voltadas a oferecer ensino e aperfeiçoamento profissional, bem como serviços de cultura e lazer ao trabalhador, mas não diretamente pelo poder público.

Para isso, foram criadas fontes de financiamento dessas entidades, por meio de contribuições parafiscais previstas em lei, que asseguram recursos a esses “servi- ços sociais autônomos”, entidades paraestatais com personalidade de direito priva- do e sem fins lucrativos, que agem em cooperação com o Estado.3 Em razão desse

1    G1 – Globo.com, em 17 de dezembro de 2018.

2 O Decreto-lei 4.048/42 criou o Senai, atribuindo-lhe a competência para organizar adminis- trar escolas de aprendizagem para industriários, com sua organização e direção sendo atribui- ção da Confederação Nacional da Indústria (CNI); posteriormente foram criados os demais serviços sociais autônomos.

3   Veja-se a matéria de Bernardo Lupion, O que é o Sistema S, quanto custa e a quem beneficia.

Nexo Jornal, de 18 de fevereiro de 2019.

 

 

financiamento por recursos de natureza pública, as entidades do Sistema S sujei- tam-se à fiscalização pelo TCU, o que é bastante claro, nos termos do artigo 183 do Decreto-lei 200/67,4 e não dá margem a questionamentos voltados a querer “escapar” dessa fiscalização, como por vezes se observa.5

Caracterizam-se por serem entidades que se dedicam “(a) a atividades priva- das de interesse coletivo cuja execução não é atribuída de maneira privativa ao Estado; (b) atuam em regime de mera colaboração com o poder público; (c) pos- suem patrimônio e receita próprios, constituídos, majoritariamente, pelo produto das contribuições compulsórias que a própria lei de criação institui em seu favor; e (d) possuem a prerrogativa de autogerir seus recursos, inclusive no que se refere à elaboração de seus orçamentos, ao estabelecimento de prioridades e à definição de seus quadros de cargos e salários, segundo orientação política própria” (STF, RE 789.874).

Embora oficializadas pelo Estado, como destacado por Hely Lopes Meirelles, “não integram a Administração direta nem a indireta, mas trabalham ao lado do Estado, sob seu amparo, cooperando nos setores, atividades e serviços que lhes são atribuídos, por considerados de interesse específico de determinados beneficiários. (…) Vicejam ao lado do Estado e sob seu amparo, mas sem subordinação hierárqui- ca a qualquer autoridade pública, ficando apenas vinculados ao órgão estatal mais relacionado com suas atividades, para fins de controle finalístico e prestação de contas dos dinheiros públicos recebidos para sua manutenção”.6

O Sistema S é composto de 229 unidades, destacando-se como principais entidades: Sesi (Serviço Social da Indústria), que oferece opções culturais, de lazer e esporte, e também serviços de saúde; Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), que disponibiliza cursos e assessoria técnica; Sesc (Serviço Social do Comércio), que presta serviços de cultura, esporte e lazer; Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), que patrocina cursos de aperfeiçoamento profissio- nal; Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), voltado a dar apoio por meio de cursos e acesso a crédito; Senar (Serviço Nacional de Apren- dizagem Rural), também oferecendo cursos no setor do agronegócio; Sescoop (Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo), que dá assessoria e pro-

 

4   Confirmado pelo STF (RE 789874, j. 17.9.2014, rel. Min. Teori Zavascki).

5 CNI diz que incluir o Sistema S no Orçamento é inconstitucional e não ampliará transparên- cia. Vê-se na notícia serem os argumentos da CNI muito semelhantes aos que a OAB usa para “driblar” a competência do TCU, como já debatido neste espaço em 13 de novembro de 2018 (“OAB finalmente vai prestar contas: decisão do TCU corrige erro histórico”).

6   Direito administrativo brasileiro. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 363.

 

 

move cursos voltado às cooperativas; Sest (Serviço Social do Transporte), ligado ao setor dos transportes, e oferece opções culturais, de esporte e lazer; e Senat (Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte), que promove cursos para esse setor.

E porque o ataque ao “Sistema S”?

O motivo não é difícil de adivinhar: dinheiro. Muito dinheiro. Estima-se que o Sistema S arrecade algo em torno de R$ 15 bilhões por ano com as contribuições, em dados de 2014, e R$ 20,5 bilhões no atual Orçamento.7 Muito dinheiro e pouca transparência em seu uso, segundo seus críticos. Uma “caixa-preta”, afirma-

-se.8 Motivos bastante para que se exija saber com maior detalhamento quanto dinheiro se tem aplicado no sistema, e o que exatamente é feito com ele. Verificar se o gasto está de acordo com a legislação, com seus propósitos finalísticos, e se traz benefícios para as entidades.9

Em época de escassez de recursos, não há como se admitir mau uso de recur- sos públicos, cada centavo faz falta e não pode ser desperdiçado.

A reforma do Sistema S é um debate que já não é novo, e não deve mais ser postergado.10 Samuel Pessoa chamou a atenção para o tema recentemente, lem- brando que os tempos mudaram: “Entre os anos 1940 e hoje, muita água passou por baixo da ponte do Estado de bem-estar social brasileiro: universalizamos o acesso à educação fundamental e criamos rede federal e redes estaduais de ensino técnico; criamos o SUS (Sistema Único de Saúde), que é universal e integral; os diversos seguros para a terceira idade, os contributivos e os assistenciais, pratica- mente erradicaram a pobreza entre os idosos; e diversos seguros públicos, tais como

 

7 Congresso deixa intacto orçamento de R$ 20 bi do Sistema S, in site Poder360, 14 de janeiro de 2019.

8 A caixa-preta do Sistema S. Carta Capital, 12 de novembro de 2014. Veja-se sobre o tema o minucioso e detalhado trabalho do Senador Senador Ataídes Oliveira, publicado em livro editado pelo Senado Federal, Caixa-preta do Sistema S: mais de 15 bilhões/ano em dinheiro público. Brasília: Senado Federal, 2014. O Secretário Nacional de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia, Carlos Alexandre da Costa, é enfático: “A transparência é mínima e as informações das entidades passadas ao TCU são inconsistentes. O patrimônio imobiliário e financeiro é gigantesco, os critérios de contratação e de gastos nem sempre são republicanos. Está na hora de abrir esta caixa-preta para a sociedade… – Veja mais em: <https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2019/01/13/esta-na-hora-de-

-abrir-a-caixa-preta-do-sistema-s-diz-secretario.htm?cmpid=copiaecola>.

9 Sobre esse tópico veja-se a obra Questões polêmicas do Sistema “S” sob a ótica do TCU, de Ubi- ratan Aguiar e André Aguiar, especialmente capítulo 4, p. 45-80 (Belo Horizonte: Forum, 2015).

10  Reforma no Sistema S gera debate acalorado. Folha de S.Paulo, 17 de maio de 2008.

 

 

aposentadoria por invalidez, auxílio-doença, seguro-desemprego etc.”. Isso exige maior atenção a toda e qualquer fonte de recursos públicos: “Não escaparemos nos próximos anos de fazer enorme pente-fino em todos os gastos públicos. Caso con- trário, não encontraremos os R$ 300 bilhões que precisamos encontrar para man- termos o dragão quieto”.11

Há projetos destinados a alocar parte dos recursos do Sistema S para a Segu- ridade Social, como o PLS 386/2016, do senador Ataídes Oliveira, que propõe que a destinação de 30% das contribuições dessas entidades sejam revertidas para o custeio da seguridade social.

O TCU, que tem trabalhos de fiscalização em andamento em várias das enti- dades do setor, já determinou a realização de fiscalização no Sistema S, a pedido do Congresso Nacional, para auditar as entidades e avaliar a atividade financeira nelas realizadas.12

A preocupação com a transparência dos recursos do Sistema S se vê presente, tanto que as leis de diretrizes orçamentárias da União têm exigido que o Poder Executivo disponibilize mensalmente na internet a arrecadação mensal das contri- buições para o sistema, e que as entidades divulguem suas demonstrações contá- beis, discriminação das despesas, estrutura remuneratória, orçamentos, cumpri- mento de metas e resultados de auditorias.13

No âmbito do Direito Financeiro, vigora o princípio da universalidade orçamentária.

Os tradicionais princípios da universalidade e da unidade são duas faces de uma mesma moeda. Previstos na própria Lei 4.320/64, em seu artigo 2º, que os consagram, também nos artigos 3º, 5º14 e 6º,15 têm fundamento constitucional no artigo 165, § 5º. Preconizam que todas as receitas e despesas devem constar de um único documento; o primeiro princípio enfatizando a abrangência do orçamento, e o segundo, a unicidade documental. Ambos denotam a preocupação com a ne- cessidade de clareza, precisão e transparência do orçamento, e mesmo da chamada

11  Sistema S. Folha de S.Paulo, 13 de janeiro de 2019.

12     TCU, Acórdão 1904/2017, Plenário, Sessão de 30 de agosto de 2017, rel. Min Augusto Sher- man Cavalcanti.

13     LDO União 2019, Lei 13.707/2018, art. 131, § 1º, I, q, e art. 134.

14 Art. 5º A Lei de Orçamento não consignará dotações globais destinadas a atender indiferente- mente a despesas de pessoal, material, serviços de terceiros, transferências ou quaisquer outras, ressalvado o disposto no artigo 20 e seu parágrafo único.

15 Art. 6º Todas as receitas e despesas constarão da Lei de Orçamento pelos seus totais, vedadas quaisquer deduções.

 

 

“sinceridade orçamentária”, uma vez que o orçamento não poderá cumprir suas funções essenciais se disperso em vários documentos sem uniformidade. Marcus Abraham, professor de Direito Financeiro da Uerj, enfatiza que “todos os valores, independentemente de sua espécie, natureza, procedência ou destinação, deverão estar contidos no orçamento”, que deve prever “as despesas pelo seu valor total bruto, sem deduções ou exclusões, a fim de oferecer ao Poder Legislativo uma exa- ta demonstração das despesas nele autorizadas”.16

Por isso, é importante viabilizar que os recursos do Sistema S sejam abrangi- dos pelo orçamento público, como se tentou fazer sem sucesso recentemente: “A Comissão Mista de Orçamento decidiu não incluir no ajuste fiscal orçamento do sistema S (Sesi, Senai, Senac, Sesc, Sest, Senar e Sebrae) para 2018, estimado em R$ 20,5 bilhões. Foram rejeitadas as emendas que pretendiam vincular o orçamen- to do sistema ao orçamento da União”.17

Não é razoável, e afronta a Constituição, que recursos públicos fiquem à mar- gem do processo orçamentário, criando obstáculos à transparência e ao controle parlamentar e social. É em momentos como esse que os princípios devem mostrar sua força e papel no ordenamento jurídico, e é o que se espera do relevante, porém esquecido, princípio da universalidade orçamentária. É fundamental, portanto, que se criem mecanismos que permitam inserir plenamente o Sistema S no proces- so orçamentário, tornando mais democráticos, transparentes e suscetíveis de con- trole o uso e destino de seus recursos, que são públicos.

Nesse sentido, a assertiva do ministro da Economia, embora voltada aparen- temente a conseguir uma realocação de parte dos recursos do sistema, pode cola- borar para fomentar o debate sobre essa reforma, e com isso ampliar a abrangência do orçamento, incluindo-se nele os vultosos recursos do Sistema S.

Enquanto aguardamos a recuperação do presidente da República da crimino- sa facada que levou, e que todos torcemos seja rápida e plena, ficamos na expecta- tiva dessa outra “facada”, dessa vez em legítima defesa do princípio da universali- dade orçamentária e da transparência e bom uso dos recursos públicos.

 

 

 

 

 

 

 

16     Curso de direito financeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 272.

17  Congresso deixa intacto orçamento de R$ 20 bi do Sistema S, Poder360, 14 de janeiro de 2019.

 

 

 

 

NOvOS gOvERNOS, NOvAS ESPERANçAS DE AvANçOS NO DIREITO FINANCEIRO

 

 

 

 

Coluna publicada em 8.1.2019: <https://www.conjur.com.br/2019-jan-08/contas- vista-novos-governos-novas-esperancas-avancos-direito-financeiro>

 

 

 

 

 

Todo ano começa com esperanças renovadas em um futuro melhor. Este ano de 2019 é particularmente especial, pois com ele vieram o início de novos governos nas esferas federal e estadual. E com grande renovação política, tanto no Poder Executivo quanto no Legislativo. Uma alteração significativa, como há muitos anos não se via. O momento propício para que se concretizem as mudanças e ajus- tes necessários que todos almejam.

No âmbito do Direito Financeiro não é diferente. Muito há que se fazer, como já destacado em colunas anteriores. Destaque cabe para a aprovação de uma nova lei complementar que regule os orçamentos públicos, como determina o artigo 165, § 9º da Constituição, até hoje não editada. Deixar com isso de improvisar com a aplicação da já cinquentenária Lei 4.320, de 1964, que nada prevê sobre o Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes Orçamentárias, inexistentes à época.1 E de usar a Lei de Diretrizes Orçamentárias para suprir provisoriamente suas lacunas, como tem sido feito há anos. Projetos não faltam, e é preciso aproveitar o momento político favorável para atualizar a legislação financeira, tornando-a compatível com a modernização da ad- ministração pública, as novas tecnologias, formas e técnicas de gestão financeira.2

Entre os aperfeiçoamentos, o momento é oportuno para que se pense em uma solução para a distorção do sistema orçamentário no primeiro ano de mandato,

 

1      Falamos sobre ela em Lei dos orçamentos públicos completa 50 anos de vigência, publicada em 17 de março de 2014.

2      Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias, publicada no já longínquo ano de 2013, nesta edição, p. 259-262.

 

 

uma vez que, segundo as regras vigentes, cabe ao novo governante cumprir o que foi estabelecido pelo seu antecessor, responsável pela aprovação do orçamento que deverá ser cumprido. Uma regra pouco coerente, já que justamente no primeiro ano de mandato os novos governantes eleitos são cobrados para implementar seu plano de governo e as promessas de campanha, e recebem a incumbência de cum- prir o que foi estabelecido pelo seu antecessor, o que não se mostra razoável. Mas de difícil solução, e que precisa ser resolvido.3

Uma boa notícia veio antes deste novo ano começar, com o avanço na trami- tação do PLP 210/2015, que trata do Conselho de Gestão Fiscal, órgão de suma importância para a adequada aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, cuja criação foi determinada em seu artigo 67, e até hoje não implementado, sendo suas funções cumpridas pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN), o que não é o ideal para nosso sistema federativo. Renovam-se as esperanças de que finalmente, após quase 20 anos da publicação da LRF, um dos principais órgãos nela previstos, o Conselho de Gestão Fiscal, seja aprovado brevemente.

Um dos temas para os quais se volta a chamar a atenção é o sempre presente descaso com o planejamento, que não tem coloração partidária, uma vez que é ra- ramente levado a sério por qualquer governante, de todos os espectros ideológicos. E as consequências danosas dessa falha não tardam a aparecer. Vê-se que a regra é assumir os mandatos sem um planejamento preestabelecido, para que se comece a pensar em algo somente após a posse.

É público e notório que o novo governo federal estabeleceu como prioridade imediata a reforma da previdência social,4 mas se vê não haver ainda um projeto concreto a ser apresentado, evidenciando o sempre presente improviso que carac- teriza a quase totalidade dos novos governos que assumem seus mandatos. Um fato que se observa até mesmo em casos de reeleição, o que é um despropósito, pois estão no comando da administração e mesmo assim não sabem ao certo o que fazer no segundo mandato, como se poderá constatar em muitos governos estaduais.

É importante lembrar que em todo início de governo deve ser elaborado o Plano Plurianual (PPA), lei que vai definir as prioridades da gestão e conduzir a administração pública para os próximos quatro anos. Uma lei que deveria ter im- portância destacada, a mais relevante da administração, para a qual se deve dar toda a atenção e importância, o que não costuma acontecer. No âmbito federal, o

3      O assunto foi abordado em No primeiro ano de mandato não se cumprem promessas, p. 161-164.

4      É preciso ter cautela e transparência para debater a reforma da previdência, nesta edição, p. 105-110.

 

 

prazo para apresentação do projeto de lei, que deverá ser aprovado até o final do ano, é o final do mês de agosto.5 Na esfera estadual, em geral o prazo estabelecido é o final do mês de setembro. Há que se começar a trabalhar com afinco para apre- sentar um projeto concreto e consistente, que defina com objetividade e clareza os rumos do governo, com credibilidade, orientando não só a administração pública como também todos que a ela estão ligados e a sociedade em geral. E não planos genéricos, padronizados e mal elaborados: planejando-se mal, gasta-se mal, como destacado há poucos dias nesse mesmo espaço.6

No âmbito federal, ficou evidente a priorização da área de segurança pública e da questão penitenciária, tema já comentado em colunas anteriores.7

O Ministério da Justiça, agora sob o comando do ex-juiz federal Sergio Moro, fica fortalecido, voltando a abranger a área da Segurança Pública, passando a ser o Ministério da Justiça e Segurança Pública.8 Nesse campo, a boa notícia antecede o início do ano, com a aprovação da Lei 13.675, que regulamenta o artigo 144 da Constituição, organizando o sistema de segurança pública, criando a Política Na- cional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), e instituindo o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP); a aprovação da Lei 13.756, que organiza o Fundo Nacional de Segurança Pública; e, já no apagar das luzes último governo, é

 

5 Os primeiros pontos foram mapeados pela equipe de transição, e constam do documento “Plano Plurianual (PPA 2020-2023) e estratégia nacional de desenvolvimento econômico e social (Tema estruturante 4/15. Transição de governo 2018-2019. Informações estratégicas. Brasília: Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, 2018). Releva destacar ain- da, no âmbito do planejamento, as questões relacionadas à infraestrutura, mapeadas no docu- mento “Programas de Investimento Prioritário em Infraestrutura – PAC” (Tema estruturante 4/15. Transição de governo 2018-2019. Informações estratégicas. Brasília: Ministério do Pla- nejamento, Desenvolvimento e Gestão, 2018. O documento integral pode ser obtido aqui.

6    Veja-se a coluna de Élida Graziane Pinto, Planejamento estatal genérico e padronizado é metás- tase das políticas públicas, publicada em 1º de janeiro de 2019; também falei sobre o tema em Planejamento municipal precisa ser levado a sério, nesta edição, p. 135-138, e Descaso com o planejamento deixa o país sem rumo, nesta edição, p. 139-144.

7    Financiamento da segurança pública precisa de atenção, publicada em 2 de julho de 2013; Solu- ção para a crise carcerária tem significativo reflexo orçamentário, publicada em 25 de agosto de 2015; Colapso financeiro leva ao caos social e à intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, nesta edição, p. 47-52; e Aumento da violência leva a retrocesso nas prioridades orçamentárias, nesta edição, p. 115-120.

8   Veja-se a primeira medida provisória assinado pelo novo presidente, a MP 870, de 1º de janei- ro de 2019, que reorganiza a Presidência da República e os ministérios, desfazendo-se a divisão feita no governo anterior, sendo ainda ampliadas suas atribuições com a incorporação do Coaf, antes sob o comando do extinto Ministério da Fazenda (“Coaf passa para as mãos de Sérgio Moro, no Ministério da Justiça”. Valor Econômico, 2 de janeiro de 2019).

 

 

aprovado o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (Decreto 9.630, de 26 de dezembro de 2018).

No dia 27 de dezembro é decretado o fim da intervenção federal no Rio de Janei- ro, mas aparentemente os resultados, ainda que anunciados como positivos, não foram plenamente satisfatórios, deixando a população interessada na sua continuidade.9

Mas o fim de uma intervenção é acompanhado do começo de outra. A falta de recursos para pagar os salários levou à paralisação dos policiais militares, civis e agentes penitenciários em Roraima, deixando o estado, que já está há tempos em situação caótica, especialmente devido à maciça entrada de venezuelanos, ainda pior. A solução foi decretar a intervenção federal no estado, afastando do cargo a governadora e indicando um interventor – que, no caso, optou-se por ser o novo governador recém-eleito, em verdadeira antecipação da posse.10

E, logo nos primeiros dias do ano, atos de extrema violência em várias locali- dades do estado do Ceará levaram o recém-empossado ministro da Justiça autori- zar o envio de tropas da Força Nacional ao estado.11

Indícios claros de que a área da segurança pública e da administração peniten- ciária deverá realmente estar no centro das atenções do governo federal que se inicia.

A área econômica também sofre modificações importantes para o Direito Financeiro, com a extinção do Ministério da Fazenda, principal responsável pelas questões tributárias, e sua incorporação ao Ministério da Economia, que passa a abranger o Ministério do Planejamento, o grande responsável pelas questões finan- ceiras, uma vez que é o órgão central responsável pelo orçamento público federal.

A reforma tributária, há décadas na agenda política e econômica, sempre entra na pauta dos governos que se iniciam. Mas pouca atenção se dá ao fato de que, na verdade, as questões mais complexas a serem resolvidas não são tributárias, e sim financeiras, uma vez que o grande empecilho de toda e qualquer reforma “tributá- ria” é conseguir consenso entre os entes federados, que nunca querem sair prejudi- cados em um centavo sequer na nova partilha de recursos que resulta em qualquer alteração do sistema. Uma dificuldade praticamente intransponível em qualquer regime democrático organizado na forma federativa, esperando-se que o novo go- verno possa ter sucesso nessa “missão (quase) impossível”.12

 

9      Cerimônia marca o fim da intervenção federal no RJ: “Cumprimos a missão”, diz General (Portal G1 – Globo.com, em 27 de dezembro de 2018).

10     Tragédia anunciada. Veja, ed. 2613, ano 51, n. 51, 19 de dezembro de 2018, p. 70-72.

11  Moro autoriza o envio de Força Nacional para conter violência no Ceará (Uol Notícias, em 4 de janeiro de 2019).

12     Planos de Governo são essenciais para a escolha do próximo presidente, nesta edição, p. 129-134.

 

 

Volta-se também novamente à questão das vinculações orçamentárias, com a anunciada pretensão de propor uma “PEC da liberdade orçamentária”.13 Um tema recorrente, e que deveria ser substituído pela alcunha de “caos orçamentário”, uma vez que o tempo todo criam-se vinculações e, simultaneamente, estabelecem-se emendas constitucionais para “desvincular” o orçamento, as DRUs e DREs, que se perpetuam, deixando cada vez mais difícil e complicado saber o que está ou não vinculado. Já tive oportunidade de escrever que as vinculações não são a panaceia para os problemas,14 como muitos pensam, e igualmente as desvinculações também não o serão. É uma questão que precisa urgentemente ser revista, a fim que possa ser levada a sério.

Ainda não se se veem propostas concretas voltadas a detalhar alguns compro- missos de campanha no âmbito federal no campo do Direito Financeiro, expressas no plano de governo apresentado, como a implantação do “orçamento base-zero” e as reformas dos tribunais de contas,15 evidenciando que há muito o que fazer nesse início de mandato.

Há ainda muitas outras questões a serem enfrentadas, mas haverá tempo para debatê-las oportunamente.

O fato é que nossos novos governantes têm muitos e difíceis desafios a vencer, não somente no campo do Direito Financeiro, e o trabalho será árduo.

Agora é hora de desejar boa sorte aos novos comandantes, até porque também estamos no mesmo barco e todos queremos que ele avance e siga um bom caminho!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

13 “Novo governo desenha a PEC da liberdade orçamentária” (Valor Econômico, 26 de novembro de 2018). Sobre o tema das vinculações, veja-se Vinculação de receitas públicas, de André Cas- tro Carvalho (São Paulo: Quartier Latin, 2010).

14  Vinculações orçamentárias não são a panaceia dos problemas, nesta edição, p. 207-210.

15  O novo presidente e o Direito Financeiro: o que podemos esperar?, nesta edição, p. 293-298.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FISCALIzAçÃO FINANCEIRA E ORçAMENTÁRIA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Controle interno mostra sua força no combate à corrupção ••
Tribunais de Contas são os guardiões do dinheiro público ••
Corrupção na Petrobras precisa ser apurada com rigor pelo TCU e CGU ••
Julgamento das contas do governo precisa ser feito com rigor ••
Julgamento do TCU que reprovou contas do governo entrou para  
a história do Direito Financeiro ••
“PEC do padrão mínimo” vai aperfeiçoar Tribunais de Contas ••
Supremo gera polêmica ao decidir sobre julgamento de contas de prefeitos ••
Combate à corrupção marca uma nova república em construção ••
Moralização da administração pública: chegou a vez dos Tribunais de Contas ••
Discutindo a relação entre o Poder Judiciário e os Tribunais de Contas ••
Devolvam nosso dinheiro: guerra contra a corrupção vence mais uma batalha ••
OAB finalmente vai prestar contas: decisão do TCU corrige erro histórico ••

 

 

 

 

CONTROLE INTERNO MOSTRA SuA FORçA NO COMBATE À CORRuPçÃO

 

 

Coluna publicada em 19.11.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-nov-19/ contas-vista-controle-interno-mostra-forca-combate-corrupcao>

 

 

 

 

 

Nas últimas semanas o noticiário ocupou-se com as denúncias de corrupção envolvendo servidores da administração pública do Município de São Paulo. O desvio de recursos públicos causado pela corrupção é um mal que parece difícil, se não impossível, de extirpar.1 Mas há que se trabalhar sempre tendo como meta a sua erradicação total. Trata-se de tema de grande interesse do Direito Financeiro, mas não pretendo abordá-lo nesta coluna, o que certamente será feito em outra oportunidade. Pretendo, neste texto, chamar a atenção e destacar o trabalho de um órgão ainda muito pouco conhecido, mas que foi o responsável por dar início e realizar as investigações que trouxeram a público a existência destes lamentáveis acontecimentos: o controle interno.

A intensa atividade financeira do Estado envolve imensas quantias de dinheiro, que cada um de nós entrega ao Poder Público para delas fazer bom uso, retornando à sociedade em forma de obras, serviços, enfim, ações governamentais que atendam as necessidades públicas. Apropriar-se desses recursos, como se vê nesses e em outros escândalos que envolvem atos de corrupção, como os ora mencionados, é fato que se sabe ocorrer com indesejada frequência, cabendo ao Estado saber prevenir e combater.

Para isso, são fundamentais os sistemas e órgãos que atuam nesse sentido, e são muitos. Enumerar todos certamente importará em omissões, mas vê-se desta- carem o Poder Judiciário, Ministério Público, Procuradorias e muitas organizações governamentais e não governamentais.

1      Verdadeira violência aos direitos humanos, como ressalta Regis de Oliveira (Curso de direito financeiro, São Paulo, RT, 2013, p. 311).

 

 

No âmbito do Direito Financeiro, nossa Constituição prevê um bem organi- zado sistema de fiscalização da atividade financeira do setor público, que é funda- mental para evitar e combater não somente a corrupção, mas toda e qualquer forma de desvio e malversação de recursos públicos.

O artigo 70 da Constituição estabelece que essa fiscalização é exercida de duas formas: pelos sistemas de controle externo e de controle interno. O controle exter- no é exercido pelo Poder Legislativo, com o auxílio dos Tribunais de Contas; o controle interno, pelos órgãos de controle interno presentes no âmbito de cada um dos poderes, em todas as unidades da federação.2 Os Tribunais de Contas e os ór- gãos de controle interno têm papel fundamental nas ações de fiscalização das con- tas públicas. E, curiosamente, são pouco conhecidos, o que é de se lamentar, pela relevância das suas atribuições.

No caso da Prefeitura de São Paulo, sobressaiu a atuação do controle interno, motivo pelo qual dedicarei esta coluna a tecer algumas considerações, ainda que de forma sucinta, sobre esse órgão tão importante. Mas não me esquecerei dos Tribu- nais de Contas, sobre os quais falarei em muitas outras oportunidades.

O controle interno tem, atualmente, suas atribuições delineadas no artigo 74 da Constituição, em que está previsto que cada um dos poderes deverá manter sistema de controle interno, com as finalidades descritas nos incisos I a IV, desta- cando-se a avaliação do cumprimento das metas previstas nas leis orçamentárias, comprovar a legalidade dos atos relacionados à gestão pública, avaliar a qualidade do gasto público e dar apoio ao sistema de controle externo.

Inicialmente, o controle interno era exercido pelo Poder Executivo, aperfeiçoan- do-se sua estrutura após a Constituição de 1988, quando passou a ser exigido no âmbito de cada um dos poderes, em respeito à autonomia e separação de poderes. Constata-se também que, em sua origem, exercia uma avaliação meramente formal da atividade financeira do Estado, baseada na legalidade e regularidade documen- tal dos atos de despesa pública.

Essa forma de atuação não se mostra mais compatível com a modernização da administração pública, hoje com suas preocupações voltadas ao planejamento e à qualidade do gasto público, que não prescinde de um sistema de controle adequado a esses novos tempos. A Constituição de 1988 andou bem em estabelecer esse novo sistema de controle interno, com uma atuação que tenha por foco não a forma, mas sim a finalidade do gasto público.

 

2      Exceção feita aos municípios em que há um único órgão de controle interno para os Poderes Executivo e Legislativo (CF, art. 31).

 

Controle interno mostra sua força no combate à corrupção  ••

 

Vê-se que a administração pública tem sido lenta ao cumprir o que foi estabe- lecido pela Constituição, sendo, muitas vezes, recente a estruturação dos órgãos de controle interno e adaptação de suas rotinas às novas funções. Não obstante essa demora, o importante é que se observa um avanço nos órgãos de controle interno, que têm se modernizado com vistas a cumprir bem a missão que lhes foi confiada.

Muitos Municípios e estados, e os Poderes Legislativo e Judiciário, demora- ram a instituir seus órgãos de controle interno. No âmbito do Poder Judiciário, a maior parte dos Tribunais somente os implantou a partir de 2009, em função da determinação constante da Resolução 70/2009 do Conselho Nacional de Justiça.

No Município de São Paulo, o órgão de controle interno encontra-se junto à Controladoria Geral do Município, que tem atribuições mais amplas, exercendo, além das funções próprias do controle interno, as de defesa do patrimônio público, auditoria pública, prevenção e combate à corrupção, ouvidoria, promoção da ética no serviço público, o incremento da moralidade e da transparência e o fomento do controle social da gestão, entre outras (Lei Municipal 15.764, de 2013, arts. 118 e seguintes). Segue modelo semelhante a outros entes da federação, como a União, em que o principal órgão é a Secretaria Federal de Controle Interno, que integra a Controladoria Geral da União (CGU), que também tem se destacado no combate ao desvio de recursos públicos.

As tarefas do controle interno exigem que o órgão seja dotado de autonomia, o que lhe deve ser assegurado, a fim de que possa ter liberdade de ação e apurar irregularidades, como as recentemente noticiadas. Daí porque precisa estar su- bordinado tão somente ao dirigente máximo do órgão,3 a quem deve se reportar diretamente.

Além dessas ações que foram noticiadas, que permitiram nesta e em outras vezes identificar atos de corrupção, é importante destacar que o controle interno é mais do que um órgão fiscalizador, que apura irregularidades, a fim de que sejam tomadas as medidas punitivas com relação aos responsáveis pelos atos, e indique as demais providências voltadas a corrigir as falhas que permitiram a ocorrência dos desvios. Trata-se de órgão que tem importantes funções de assessoramento para toda a administração pública.

Um prefeito, governador ou presidente de ente da federação, do Poder Legislati- vo, ou mesmo de um Tribunal do Poder Judiciário, e tantos outros órgãos da admi- nistração pública, são responsáveis por gerenciar, por vezes, bilhões de reais, e não são

 

 

3      Tribunal de Contas da União, Acórdão 1.074, rel. Min. Weder de Oliveira, publicado DOU

de 22 de maio de 2009.

 

 

necessariamente especialistas em gestão pública. Precisam de um órgão em que pos- sam confiar que lhes dê apoio e orientação técnica para serem bons gestores.

Por isso, o controle interno deve cada vez mais evoluir no sentido de atuar com base na prevenção, orientação e correção dos atos de gestão.4

A Constituição mostra o caminho, no já citado artigo 74, deixando claras as finalidades do sistema de controle interno no que tange à qualidade do gasto pú- blico, avaliando os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentá- ria, financeira e patrimonial da administração pública (CF, art. 74, II) e no que se refere à responsabilidade na gestão fiscal, acompanhando as metas de planejamen- to governamental e execução dos programas de governo (CF, art. 74, I), bem como fiscalizando as normas da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 2000, art. 59). Cabe aos órgãos de controle interno continuar avançando, tendo em vista o papel fundamental que estão desempenhando para melhorar a adminis- tração pública.

Melhorar a gestão dos recursos públicos, exigindo que os governantes apli- quem correta e adequadamente o dinheiro público, é interesse de todos e nossa obrigação. E a luta contra a corrupção deve ser permanente. Todos nós podemos colaborar com isso. É bom lembrar que qualquer cidadão, partido político, associa- ção ou sindicato é parte legítima para denunciar irregularidades ou ilegalidades (CF, art. 74, § 2º). O cidadão é, sem dúvida, o melhor fiscal da aplicação dos re- cursos públicos. Façamos a nossa parte, o controle interno e os demais órgãos de fiscalização agradecem!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4 Como já escrevemos em: CONTI, José Mauricio; CARVALHO, André Castro. O controle inter- no na Administração Pública brasileira: qualidade do gasto público e responsabilidade fiscal. Di- reito público, ano VIII, n. 37, jan./fev. 2011, Porto-Alegre-Brasília: Síntese-IDP, p. 203.

 

 

TRIBuNAIS DE CONTAS SÃO OS

guARDIÕES DO DINHEIRO PÚBLICO

 

 

Coluna publicada em 14.1.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-jan-14/ contas-vista-tribunais-contas-sao-guardioes-dinheiro-publico>

 

 

 

 

 

Em 17 de janeiro de 2014 comemora-se o Dia dos Tribunais de Contas. Mui- to poucos sabem disso. Não é para menos. Ainda hoje muitos não sabem o que são e o que fazem os Tribunais de Contas. Uma grande injustiça com estes órgãos tão importantes e que prestam um serviço da mais alta relevância para o país.

Seguramente o órgão público que mais intensa e diretamente trata com ques- tões de Direito Financeiro, nada mais justo do que começar este ano prestando-

-lhes uma merecida homenagem nesta coluna, que há mais de um ano trata deste tema e raras referências fez a eles.

Os Tribunais de Contas surgiram no Brasil pelo Decreto 966-A, de 7 de no- vembro de 1890, que, por iniciativa do então ministro da Fazenda, o renomado jurista Rui Barbosa, signatário da exposição de motivos, criou o Tribunal de Con- tas da União. Em 1891 foi contemplado na primeira Constituição da República, no artigo 89, já lhes assegurando independência funcional (“É instituído um Tribunal de Contas para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem submetidas ao Congresso. Os membros desse Tribunal serão nomea- dos pelo Presidente da República, com aprovação do Senado, e somente perderão os seus lugares por sentença”). Sua instalação, no entanto, só veio a ocorrer no dia 17 de janeiro de 1893 (daí a escolha da data comemorativa), por empenho de Ser- zedello Correa, ministro da Fazenda do governo Floriano Peixoto, e que hoje em- presta seu nome ao instituto de estudos e aperfeiçoamento funcional instalado no TCU e vem prestando valiosos serviços no aprimoramento do direito financeiro, administrativo e gestão pública.

Previsto no artigo 71 da Constituição Federal, o Tribunal de Contas da União tem a função de auxiliar o Congresso Nacional na missão de exercer o controle

 

 

externo da administração pública federal, realizando a fiscalização contábil, finan- ceira, orçamentária, operacional e patrimonial quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação de subvenções e renúncia de receitas.

Em nosso sistema federativo, o controle externo dos demais entes federados é sempre exercido pelo respectivo Poder Legislativo, auxiliado pelo Tribunal de Con- tas competente, conforme dispõe a legislação específica. Cada ente da federação dispõe de um Tribunal de Contas responsável por exercer as funções que lhe são constitucionalmente atribuídas, em forma que pode variar de um para outro. Em regra, há um Tribunal de Contas do estado que auxilia a Assembleia Legislativa e as Câmaras Municipais no exercício dessa função de controle externo. Outros dis- põem de dois tribunais de contas estaduais; o Tribunal de Contas do Estado, para a administração pública estadual, e o Tribunal (ou Conselho) de Contas dos Mu- nicípios, para as administrações públicas municipais. A atual Constituição Federal vedou a criação de tribunais de contas municipais (art. 31, § 4º), mas permanece- ram os já instalados, nos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro.

Auxiliam o Poder Legislativo, mas a ele não se subordinam, não havendo qualquer relação de hierarquia, sendo dotados de autonomia institucional para cumprirem essa e outras funções determinadas diretamente pela Constituição (STF, ADI 4.190).

O Brasil adota o sistema de controle externo “continental-europeu”, com um órgão colegiado responsável pelo controle externo das contas públicas, diferente- mente dos países de origem britânica, que preferem o modelo de controladorias, como se vê no Reino Unido (National Audit Office – NAO), Estados Unidos (Go- vernment Accountability Office – GAO) e Austrália (Australian National Audit Office – ANAO), para citar alguns exemplos.

Daí nossos Tribunais de Contas, que são compostos por nove ministros (Tri- bunal de Contas da União), sete ou cinco conselheiros no caso dos tribunais de contas estaduais ou municipais, respectivamente, devendo estes últimos seguir o modelo federal, por simetria. Escolhidos entre brasileiros que satisfazem os requi- sitos do artigo 73, § 1º, da Constituição Federal, destacando-se a idoneidade moral e reputação ilibada, bem como os notórios conhecimentos, os ministros e conse- lheiros gozam das garantias e prerrogativas que lhes permitem agir com indepen- dência, necessária para que possam fiscalizar com imparcialidade as contas dos governantes e gestores que administram os recursos públicos. Em muitos entes da federação, ainda se vê a prática de adotar critérios predominantemente políticos na escolha desses cargos de cúpula, o que, evidentemente, não é o melhor caminho. Não impediu que tivéssemos, e ainda tenhamos, grandes nomes, mas seguramente

 

 

não é o ideal, e a tendência é de que cada vez mais sejam consideradas as qualidades técnicas na escolha, que cabe aos poderes Legislativo e Executivo.

Com quadros formados por servidores concursados, entre os quais os das duas carreiras que o integram e têm assento no colegiado – a de auditores e a do Minis- tério Público de Contas, a competência profissional dos recursos humanos dos Tribunais de Contas tem se destacado, e eles são responsáveis por muito do que se melhorou em qualidade do gasto público nos últimos anos.

A função que lhes é confiada pelo artigo 71 e outros da Constituição é, como qualquer pessoa pode notar, tarefa ampla, complexa, que exige muito trabalho e competência. E no exercício de sua missão, os Tribunais de Contas têm sido res- ponsáveis por grandes avanços no aprimoramento do Direito Financeiro, desenvol- vendo estudos e técnicas que colaboram para o melhor uso do dinheiro público.

Muitas dessas funções merecem destaque, e a referência a apenas parte delas certamente importará em omissões, mas muitas oportunidades ainda haverá para serem mencionadas.

A fiscalização da renúncia de receitas, cuja referência na Constituição é ex- pressa, tem sido objeto de especial atenção, com análises e relatórios detalhados e específicos.1 Afinal, como já se reconhece há muito, recursos dos quais o governo abre mão por benefícios fiscais diversos equiparam-se às despesas, tanto que a dou- trina os denomina de “gasto tributário”.2 São recursos públicos, e, portanto devem merecer atenção redobrada, pois são menos transparentes e mais difíceis de serem fiscalizados. O mesmo se diga em relação a benefícios creditícios governamentais, que estão a exigir cada vez mais atenção.

Foi-se o tempo em que os Tribunais de Contas se ocupavam apenas da fisca- lização de conformidade, sob o aspecto da legalidade, concentrando-se nas forma- lidades da despesa pública. Muito se avançou, e continua se avançando, na fiscali- zação da qualidade do gasto público, levando-se em consideração a eficácia, efetividade, eficiência e economicidade no uso dos recursos públicos, pois o que realmente importa são os resultados e benefícios alcançados, e não o cego respeito a uma burocracia, não raro, obsoleta.

Relatórios sobre as contas do governo mais abrangentes, com avaliação das macrofinanças governamentais e das políticas públicas que vêm sendo desenvolvi- das, apontando-se falhas e sugerindo soluções e aperfeiçoamentos, mostram-se

 

1      TCU, Plenário, AC 74/2010, Processo TC 015.052/2009-7, sessão 14 de abril de 2010.

2      Ou tax expenditure, para usar a expressão consagrada por Stanley Surrey em seus pioneiros trabalhos sobre o tema.

 

 

cada vez mais frequentes, tornando os Tribunais de Contas órgãos que atuam pre- ventiva e propositivamente, e não apenas na fiscalização a posteriori, quando o di- nheiro já foi gasto e só resta a punição dos responsáveis se houver mau uso.

Muito dinheiro público é economizado a partir de recomendações e determi- nações dos Tribunais de Contas em razão de sua atividade de fiscalização das polí- ticas públicas, como ocorreu recentemente na área da educação, após avaliação dos programas do Fies e Prouni pelo TCU, em que se estima terem sido economizados mais de R$ 300 milhões em 2013.3 Ou, de outro lado, ajudando a melhorar a ar- recadação, como se vê nas sugestões para incrementar a cobrança da dívida ativa pela via extrajudicial, o que colabora ainda para desafogar o Poder Judiciário que sofre com o excesso de execuções fiscais, prejudicando a prestação jurisdicional em outros setores mais relevantes.4

Mostra-se também intensa a fiscalização de editais e contratos da administra- ção pública, bem como a execução de obras públicas, sendo frequentes as e suspen- sões de editais e constatações de irregularidades graves que levam ao cancelamento de repasses de recursos, impedindo a continuidade no desperdício do dinheiro que é de todos nós.

Os Tribunais de Contas dispõem de instrumentos eficientes para evitar o mau uso do dinheiro público, como os alertas a que se refere o artigo 59, § 1º, V, da Lei de Responsabilidade Fiscal, com os quais informam os gestores sobre ultrapassa- gem de limites de gastos e endividamento, indícios de irregularidades e outros que possam comprometer a boa gestão das contas públicas. Atualmente tem sido inten- sificado seu uso, mostrando essa importante ação de natureza preventiva, segura- mente a melhor forma de evitar a má gestão das contas públicas.

Punir nem sempre é o melhor caminho para melhorar as coisas, mas, muitas vezes, é necessário, e os Tribunais de Contas têm muitos instrumentos para isso. Entre as principais está a multa, que, embora pouco conhecida do grande público, é largamente aplicada. Também as condenações ao ressarcimento do dano ao erá- rio têm se mostrado frequentes e com importante efeito pedagógico, além de serem responsáveis pela recuperação de boa parte dos prejuízos causados ao Estado. Polí- ticos e gestores são punidos com frequência, evidentemente não gostam, e estejam certos de que disso resultam muitas das críticas que sofrem os Tribunais de Contas.

Muitas linhas, parágrafos e páginas são necessários para enumerar tudo que os Tribunais de Contas já fazem, podem e devem fazer para cuidar do nosso

3      TCU, AC 2.873/2013, Processo TC 000.997/2013-7, sessão 23 de outubro de 2013.

4      TCE São Paulo, Pleno, Consulta, Proc. TC 041852/026/10, sessão 8 de fevereiro de 2012.

 

 

dinheiro, e este espaço evidentemente não comporta. Ainda há muito a fazer, e todos podem ajudar, pois, da mesma forma que o controle interno ao qual já me referi anteriormente,5 os Tribunais de Contas dispõem de ouvidorias para receber denúncias de irregularidades ou ilegalidades (CF, art. 74, § 2º). E parabéns aos Tribunais de Contas pelo seu dia!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

5      Controle interno mostra sua força no combate à corrupção, nesta edição, p. 313-316.

 

 

 

 

CORRuPçÃO NA PETROBRAS PRECISA SER APuRADA COM RIgOR PELO TCu E Cgu

 

Coluna publicada em 13.1.2015: <http://www.conjur.com.br/2015-jan-13/ contas-vista-corrupcao-petrobras-apurada-rigor-tcu-cgu>

 

 

 

 

 

O mais recente escândalo que surgiu ano passado, e seguramente ocupará o noticiário neste ano de 2015, envolve atos de corrupção ligados à principal empresa estatal do país, a Petrobras.

A corrupção tem, lamentavelmente, tomado boa parte do noticiário nos últi- mos anos no Brasil, especialmente em razão do caso do mensalão, que agora tem tudo para ser sucedido pelos problemas envolvendo a Petrobras.

Oportuno tratar do tema sob a ótica do Direito Financeiro, que, ao ter como objeto de estudo a atividade financeira do setor público, não pode deixar de lado as empresas estatais, como a Petrobras e outras, ainda que dotadas de personalida- de jurídica de direito privado.

Um dos aspectos mais interessantes nessa abordagem refere-se justamente à questão da fiscalização contábil, financeira e orçamentária, cujo sistema no Brasil é previsto nos artigos 70 e seguintes da Constituição, realizando-se por meio do con- trole interno e do controle externo, em cada esfera de governo,1 e seus órgãos têm grande responsabilidade na apuração e punição de desvios de recursos públicos.

O controle interno, cuja importância cresce a cada dia e tem importante papel no combate à corrupção, conforme já destacado em coluna anterior, é exercido, na esfera federal, pela Secretaria Federal de Controle Interno, órgão integrante da Controladoria Geral da União (CGU).

 

1    Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congres- so Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

 

 

Dirigida pelo ministro Jorge Hage até o final do ano passado, a CGU experi- mentou nos últimos anos grande progresso em suas funções, mas, segundo noticiado,2 tem sido recentemente prejudicada em termos orçamentários, com diminuição de seus recursos, contingenciamento de dotações e outras medidas que prejudicaram o seu pleno funcionamento e continuidade do avanço, o que não é um bom sinal.

A CGU já tem tomado medidas em relação à própria Petrobras,3 mas, confor- me destacado pelo agora ex-ministro, os avanços do controle interno ainda neces- sitam ser aprimorados no que se refere justamente às empresas estatais, tendo havi- do nos primeiros anos de funcionamento da CGU um avanço na fiscalização da administração direta, sendo a fiscalização das estatais o próximo passo a ser segui- do, não havendo ainda nelas instrumentos e suficiente transparência para uma adequada fiscalização.4

No âmbito do controle externo, releva destacar, no caso da Petrobras, empre- sa estatal constituída no âmbito federal, a atuação do Tribunal de Contas da União (TCU), órgão responsável pelo controle externo, como auxiliar do Congresso Na- cional nessa missão de fiscalização financeira.

A Constituição, em seu artigo 70, § 1º, é clara ao estabelecer que “Prestará con- tas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guar- de, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária”.

Desde já, se pode constatar, da leitura do artigo 70 da Constituição, que a interpretação do dispositivo leva à conclusão de que a fiscalização deve ser a mais abrangente e ampla possível, evitando-se restrições que só tendem a prejudicar a transparência das contas do setor público.

Mesmo assim, até pouco tempo atrás, a atuação dos órgãos de fiscalização financeira do setor público era bastante restritiva no que tange às empresas estatais, consoante se pode constatar das decisões do Supremo Tribunal Federal nos Man- dados de Segurança 23.875-5/DF e 23.627-DF (julgados de 7 de março de 2002), em decisões envolvendo a atuação do TCU no Banco do Brasil. Prevalecia o argu-

2  Sem recursos, CGU reduz suas ações de combate às fraudes. Folha de S.Paulo, 6 de outubro de 2014.

3 Governo investiga seis por suspeita de propina na Petrobras. Folha de S.Paulo, 13 de novembro de 2014, p. A4; Suspeita de corrupção – CGU abre 9 processos administrativos contra servi- dores da Petrobras. Revista Consultor Jurídico, 2 de dezembro de 2014.

4     Crise fará com que estatais fiquem mais transparentes, diz Jorge Hage, Folha de S.Paulo, 13 de dezembro de 2014.

 

 

mento, em síntese, de que são entidades de direito privado, o que não permitiria considerar haver bens públicos a serem submetidos ao controle pelo TCU. Mais recentemente, após os escândalos envolvendo os Correios, outra empresa estatal, que deram início ao caso do “mensalão”, houve alteração na posição de nossa Su- prema Corte, expressamente manifestada no MS 25.181-6/DF (julgado de 10 de novembro de 2005), ao decidir que “Ao Tribunal de Contas da União incumbe atuar relativamente à gestão de sociedades de economia mista. Nova inteligência conferida ao inciso II do art. 71 da Constituição Federal, ficando superada a juris- prudência que veio a ser firmada com o julgamento dos Mandados de Segurança n. 23.627-2/DF e 23.875-5/DF”.5

Embora não pairem mais dúvidas sobre o poder fiscalizatório do Tribunal de Contas da União sobre as empresas estatais federais, o que já se pode constatar pelas muitas ações deste órgão, inclusive em relação à Petrobras,6 como se vê dos vários procedimentos abertos envolvendo a Petrobras, incluindo a compra da refi- naria Abreu e Lima, a compra da refinaria de Pasadena (Estados Unidos)7 e tantos outros, ainda não se estabeleceram com segurança os exatos limites e poderes no exercício dessa fiscalização, gerando insegurança tanto para os órgãos responsáveis por ela quanto para as empresas a ela sujeitas, evidenciando ser esse um aspecto que merece melhor atenção por parte dos legisladores e estudiosos, a fim de sanar lacu- nas e omissões, e trazendo maior segurança jurídica ao sistema.

Os Tribunais de Contas, que no próximo dia 17 de janeiro comemoram seu dia, quando também completará 122 anos da instalação do Tribunal de Contas da União, criado em 1890 e contemplado na Constituição de 1891 (art. 89), cujas importantes atribuições já foram destacadas em coluna publicada ano passado te- rão este ano muito trabalho pela frente.

Da atuação do TCU dependerá boa parte das investigações e informações que permitirão a apuração dos fatos que já causaram irreparáveis prejuízos não só fi- nanceiros, mas também e principalmente à boa imagem da maior empresa do País,

 

5    GOMES, Emerson C. S. Responsabilidade financeira. Porto Alegre: Núria Fabris, 2012, p. 208-209.

6 Conforme se pode verificar de notícias publicadas na mídia: TCU sugere reter verbas de refi- naria da Petrobras, em 5 de novembro de 2014, p. A7, TCU diz que alertou governo sobre Petrobras, em 12 de novembro de 2014, p. A9 e TCU identifica sobrepreço em gasoduto, em 5 de janeiro de 2015, p. A5 (Folha de S.Paulo); Técnicos alertaram para ‘consolidação de danos’ após veto de Lula, em 22 de novembro de 2014 (O Estado de S.Paulo), e Petrobras criou em- presa de fachada para construir gasoduto bilionário, em 4 de janeiro de 2015 (O Globo).

7 TCU, AC 1.927/2014 – Plenário, Proc. TC 005.406/2013-7, j. 23.7.2014, rel. Min. José Jorge, 324 páginas.

 

 

o que se reflete na imagem do Brasil no exterior. O TCU tem grande responsabilidade em mostrar a independência que a Constituição lhe assegura para prestar as infor- mações e auxílio técnico que colaborem para extirpar essa mancha que causou prejuízos financeiros e morais ao País. Fiscalizar a Petrobras não é tarefa simples, dado seu gigantismo e complexidade, mas isso é só mais um desafio que o TCU terá de superar.

Mais do que isso, cabe-lhe, no exercício de suas atribuições constitucionais, que são bastante amplas, como se pode constatar do artigo 71 da Constituição, continuar realizando inspeções a auditorias (inciso IV), como as que já apuraram várias irregularidades em atos da Petrobras, aplicar as sanções aos responsáveis (inciso VIII), e tantas outras. Ser mais rigoroso na aplicação das punições é medida que se impõe ante os desmandos que se têm verificado. Especial atenção deve ser dada ao seu regulamento próprio de licitações, veiculado pelo Decreto 2.745/1998 (conforme previsto no artigo 67 da Lei 9.478/1997), que amplia em muito a discri- cionariedade do gestor nas contratações da empresa, abrindo a possibilidade de direcionamento de licitações e malversações de recursos públicos, tais como os que estão sendo apontados na empresa.8

A Presidente Dilma Rousseff, em seu discurso de posse, foi enfática em desta- car que combaterá a corrupção: “Democratizar o poder significa combater energi- camente a corrupção. A corrupção rouba o poder legítimo do povo. A corrupção ofende e humilha os trabalhadores, os empresários e os brasileiros honestos e de bem. A corrupção deve ser extirpada”, destacando que sempre apoiou o combate à corrupção, “pela ação incisiva e livre de amarras dos órgãos de controle interno, pela absoluta autonomia da Polícia Federal como instituição do Estado, e pela in- dependência sempre respeitada diante do Ministério Público”, desejando que os corruptos e corruptores sejam exemplarmente punidos, comprometendo-se ainda, com relação à Petrobras, “apurar com rigor tudo de errado que foi feito e fortalecê-

-la cada vez mais”. Mas, como bem colocado no editorial de O Estado de São Paulo de 6 de janeiro de 2015, “não é com discursos e a tentativa maliciosa de colocar a tranca depois da porta arrombada que o problema da Petrobras será resolvido”.9

Todos esperamos medidas concretas, como a manutenção de um orçamento adequado para a CGU, e o fortalecimento e respeito à independência do Tribunal

8  A constitucionalidade deste regulamento tem sido questionada em face do artigo 173, § 1º, III, da Constituição, tanto no âmbito do TCU quanto do STF (TCU – Decisão 663/2002; STF, decisões monocráticas nos MS 25.888, 25.986 e outros).

9   Salvando a cara dos poderosos. O Estado de S.Paulo, 6 de janeiro de 2015, p. A3.

 

 

de Contas da União, para que possam, além de exercer as funções que lhes são próprias, colaborar com o Congresso Nacional, a Polícia Federal, o Ministério Pú- blico e o Poder Judiciário, a fim de que os fatos sejam esclarecidos, os responsáveis identificados e punidos, e os servidores possam voltar a se orgulhar da empresa em que trabalham, superando esse vexame ocorrido em 2014 e que deverá perdurar ainda por muito tempo.10

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

10     Até porque, em termos de vexame, o da seleção brasileira em 2014 já foi mais do que suficiente…

 

 

 

 

JuLgAMENTO DAS CONTAS DO gOvERNO PRECISA SER FEITO COM RIgOR

 

Coluna publicada em 30.6.2015: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-30/ contas-vista-julgamento-contas-governo-feito-rigor>

 

 

 

 

 

Nas últimas semanas o Tribunal de Contas da União, ao divulgar o relatório preliminar sobre as contas do governo federal de 2014, trouxe importantes ques- tões de Direito Financeiro de volta às manchetes dos principais meios de comuni- cação do país.

Os Tribunais de Contas, órgãos de fundamental importância na administra- ção pública brasileira, sobre os quais já discorri em coluna anterior,1 exercem fun- ções da maior relevância, entre as quais está a que os trouxe novamente ao centro das atenções.

Mais do que justificada uma necessária explicação que torne claros os fatos objeto deste debate, as atribuições dos diversos entes envolvidos, os procedimentos que estão sendo seguidos e as consequências das decisões.

O Tribunal de Contas da União tem suas funções delineadas no artigo 71 da Constituição, sendo responsável por auxiliar o Congresso Nacional na missão de exercer o controle externo da administração pública federal, realizando a fiscaliza- ção contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, quanto à legali- dade, legitimidade, economicidade, aplicação de subvenções e renúncia de receitas. Para isso é dotado de autonomia institucional que lhe permite exercer essas funções com independência, não se subordinando nem mesmo ao Congresso Nacional, a quem devem prestar auxílio, como no caso ora mencionado, ao emitir parecer téc- nico sobre as contas apresentadas.

 

 

1      Notícias da Justiça e do direito desta quinta-feira, publicada em 25 de junho de 2015, no ConJur.

 

 

A primeira dessas funções vem expressa no artigo 71, I, que lhe confere a com- petência para “apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da Repúbli- ca, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento”.

A prestação de contas da administração pública federal está entre as compe- tências privativas do Presidente da República, nos termos do artigo 84, XXIV, da Constituição (“Compete privativamente ao Presidente da República prestar, anual- mente, ao Congresso Nacional, dentro de sessenta dias após a abertura da sessão legislativa, as contas referentes ao exercício anterior”), sendo obrigação que, se não cumprida, tipifica crime de responsabilidade,2 já tendo sido efetivada com a entre- ga dos balanços gerais da União e do relatório do órgão central de controle interno à apreciação da Corte de Contas em 22 de abril de 2015.

É relevante ressaltar que se está diante de uma função consultiva exercida pelo TCU, uma vez que, em se tratando da prestação de contas da administração públi- ca federal, o parecer emitido é opinativo, e tem por finalidade subsidiar a decisão final, a ser tomada pelo Congresso Nacional, a quem compete julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República (CF, art. 49, IX).

Parecer que deve ser técnico, de modo a demonstrar, pela análise dos dados apurados, a atividade financeira da administração pública federal no exercício an- terior, avaliando-a sob os diversos aspectos previstos no artigo 70 da Constituição. E deve ser conclusivo, exprimindo a adequação das contas apresentadas aos princí- pios constitucionais e legais que regem a administração pública federal, informan- do sobre o cumprimento dos programas orçamentários, atingimento das metas e adequação ao sistema de planejamento orçamentário, além da observância dos li- mites e parâmetros estabelecidos na Lei de Responsabilidade Fiscal (Regimento Interno do TCU, art. 228).

Já o julgamento das contas, sob responsabilidade do Congresso Nacional, tem natureza política, não ficando vinculado ao parecer do TCU, sendo possível julgar em desacordo com a posição explicitada pelo Tribunal, uma vez que o Presidente da República é o condutor político dos planos de governo, tendo assim responsabilidade política, sujeita a julgamento de natureza política perante o Congresso Nacional.3 Aliás, não se pode deixar de registrar, função em que tem falhado gravemente, uma

 

 

2 Lei 1.079, de 1950, artigo 9º, 2: “Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração não prestar ao Congresso Nacional dentro de sessenta dias após a abertura da sessão legislativa, as contas relativas ao exercício anterior”.

3  Helio Mileski, O controle da gestão pública, São Paulo, RT, 2003, p. 270.

 

 

vez que não julga as contas desde 2002,4 uma omissão inaceitável, por estar entre as atribuições que, embora pouco conhecida do grande público, é das mais relevan- tes que exerce. Está-se, pois, diante de uma excelente oportunidade para chamar a atenção para esse fato e exigir que se cumpra aquela obrigação constitucional.

No caso em que a mídia concentrou suas atenções nas últimas semanas, foi divulgado o relatório e o projeto do parecer prévio sobre as contas do Presidente da República,5 apresentado pelo relator, Ministro Augusto Nardes, que deverá ser sub- metido à aprovação pelo Plenário e, então, restituído ao Congresso Nacional para instruir o julgamento das contas.

Em seu relatório,6 o Ministro Augusto Nardes apontou uma série de irregulari- dades, que foram destacadas pela imprensa, ante a relevância do caso, até por levantar a possibilidade de rejeição das contas do governo federal. Desta feita não se pode afirmar que “nunca antes na história desse país” isso tenha ocorrido, pois há registro de que tenham sido rejeitadas as contas em 1937, no Governo Getúlio Vargas.7

O relatório não chegou a ser apreciado pelo Plenário, que optou por decidir pela concessão de um prazo de 30 dias para que sejam apresentadas contrarrazões sobre os indícios de irregularidades apontados,8 enumerados em 13 itens, com vá- rias violações ao princípio da legalidade, ausência do rol de prioridades na LDO, extrapolação do montante de recursos aprovados no orçamento de investimento para várias empresas, distorções que afetaram a confiabilidade de informações de indicadores e metas do PPA, ausência de contingenciamento quando necessário, entre outros. Postergou-se, assim, para além do prazo legal o envio ao Congresso Nacional do parecer do TCU sobre as contas do governo federal.

Entre as irregularidades apontadas, chamam a atenção as “pedaladas fiscais”, assunto já tratado nesta coluna em 23 de setembro de 20149 e 5 de maio de 2015,10

4 Folha de S.Paulo, Congresso não analisa contas da Presidência desde 2002, em 17 de junho de 2015; Veja.com, Congresso não vota as contas do governo há 13 anos, em 14 de janeiro de 2015.

5     Regimento Interno do TCU (Resolução TCU 246, de 30 de novembro de 2011), art. 223.

6 Acesso em 21 de outubro de 2015: <http://portal3.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/impren- sa/noticias/noticias_arquivos/CG%202014%20_relat%C3%B3rio%20preliminar.pdf>.

7  As 13 explicações que Dilma precisa dar. Revista Veja, versão digital, n. 2.431, de 24 de junho de 2015.

8 O que não é previsto regimentalmente, nem praxe, uma vez que se trata de um projeto de parecer; no entanto, ante a gravidade da situação, e em atenção ao contraditório e ampla defe- sa, optou o Tribunal de Contas da União por fazê-lo, já havendo, inclusive, precedente (STF, SS 1.197-PE, rel. Min. Celso de Mello).

9  Atenção caro leitor, pedalar faz mal à saúde!, nesta edição, p. 391-394.

10 Cuidado, pedalar pode dar cadeia, nesta edição, p. 405-410.

 

 

evidenciadas pelos adiantamentos concedidos pela Caixa Econômica Federal à União para cobertura de despesas no âmbito dos programas Bolsa Família, Seguro Desemprego e Abono Salarial; pelo FGTS à União para cobertura de despesas no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida; e pelo BNDES à União para co- bertura de despesas no âmbito do Programa de Sustentação do Investimento.

Irregularidades que, vale o registro, foram em boa parte denunciadas pelo valoroso trabalho do Ministério Público que atua junto ao TCU, instituição pe- quena no tamanho, grande na importância, pouco conhecida e que, em momentos como esse, evidencia sua dimensão e força como instituição fundamental no siste- ma de fiscalização das contas públicas e que tende a ocupar cada vez mais espaço no cenário nacional.

Vê-se, do que foi apurado pelo TCU, um quadro que evidencia desorganiza- ção das contas públicas, com uma série de atos que se mostram voltados a alterar e ajustar fatos e informações com falseamento da verdade sobre as finanças públicas, de modo a dar-lhes uma melhor aparência, em desconexão com a realidade. A co- nhecida “contabilidade criativa”, que já há muito vem sendo observada, e foi objeto desta coluna em 12 de fevereiro de 2013.11

Deixa clara a desconsideração pelos princípios que regem a gestão fiscal res- ponsável, ao se constatar a liberação de recursos sem que houvesse receitas suficien- tes em período pré-eleitoral – justamente quando a legislação impõe maior rigor no controle das despesas públicas –, execução de despesas sem suficiente dotação or- çamentária e inscrição irregular em restos a pagar, entre outras irregularidades.

Motivos que se mostram fortes o bastante para fundamentar uma possível e quase inédita rejeição das contas apresentadas, tendo em vista, principalmente, a demonstração de desapreço pelo ordenamento jurídico vigente, que pugna por uma gestão fiscal responsável, e tem na transparência um de seus princípios que não se coadunam com “maquiagens contábeis”.

A rejeição das contas, além do prejuízo moral e político, pode levar à inelegibili- dade por oito anos,12 sem prejuízo de os fatos que a motivaram darem ensejo a conde- nações em diversas esferas, inclusive criminal, como já exposto em coluna recente.13

Já passou da hora de se levar o Direito Financeiro a sério, como já exposto neste mesmo espaço recentemente,14 e, embora a punição nem sempre seja o melhor cami-

11  Carnaval financeiro: contas “maquiadas” não vão tornar nosso país mais bonito, nesta edição, p. 387-390.

12     LC 64, de 1990, art. 1º, I, g (com redação dada pela LC 135, de 2010).

13     Cuidado, pedalar pode dar cadeia, p. 405-410.

14     O direito financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 começou mal, nesta edição, p. 183-188.

 

 

nho, por vezes torna-se necessária e o único que resta a ser seguido. Até mesmo para que dê a todos o exemplo de que tais fatos são graves e não devem se repetir.15

Daí porque órgãos como os Tribunais de Contas são dotados de garantias que lhes permitem agir com total independência e, assim, cumprir sua missão constitu- cional sem se sujeitar a pressões de qualquer natureza, e o mesmo se espera do Congresso Nacional. São em momentos como esse que as instituições demonstram sua força, valor e autonomia. Mostram sua solidez e a razão de ser no Estado De- mocrático de Direito.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

15 “Se o TCU contribuir para gestores públicos e políticos levarem a sério a legislação e para evitar que tal situação se repita, já terá prestado um enorme serviço ao país”, As contas de Dilma e o papel do TCU. Revista Época, versão digital, ed. 889, de 22 de junho de 2015.

 

 

 

 

JuLgAMENTO DO TCu quE REPROvOu CONTAS DO gOvERNO ENTROu PARA A HISTóRIA DO DIREITO FINANCEIRO

 

Coluna publicada em 20.10.2015: <http://www.conjur.com.br/2015-out-20/ contas-vista-julgamento-tcu-entrou-historia-direito-financeiro>

 

 

 

 

 

O dia 7 de outubro de 2015 entrou para a história do Direito Financeiro e não podia deixar de ser mencionado nesta coluna que se dedica ao tema há mais de três anos.

O julgamento do Tribunal de Contas da União que reprovou por unanimida- de as contas de governo da administração pública federal de 2014 foi relevante sob muitos aspectos.

Em primeiro lugar, foi importante notar que esse órgão, criado em 1890 e instalado em 1893, sobre o qual já falei em Tribunais de contas são os guardiões do dinheiro público, nesta edição, p. 317-322, exerce funções da maior relevância para o Estado Democrático de Direito, especialmente no que toca às questões de Direi- to Financeiro, sendo dotado de autonomia para exercer sua missão. Esse julgamen- to foi uma demonstração clara de que o Tribunal não é subserviente aos donos do poder e mostrou total independência ao tomar a decisão que reprovou as contas do mais alto mandatário da nação.

Também mostrou que as normas de finanças públicas, com destaque para a Lei de Responsabilidade Fiscal, além das demais que regulam a atividade financei- ra do Estado, existem para ser cumpridas por todos, e com rigor. Afirmou a rele- vância do Direito Financeiro para a administração pública, dando um exemplo aos gestores públicos de que todos estão sujeitos ao império da lei, por mais alta que seja a autoridade.

As “maquiagens contábeis”, já objeto de referência nesta coluna há mais de dois anos (Carnaval financeiro: contas “maquiadas” não vão tornar nosso país mais bonito, nesta edição, p. 387-390), as “pedaladas fiscais”, de todos conhecidas, sobre

 

 

as quais já nos referimos mais de uma vez (Atenção caro leitor, pedalar faz mal à saúde!, e Cuidado, pedalar pode dar cadeia!), e a irresponsabilidade fiscal, também evidente nos últimos anos (O direito financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 co- meçou mal, nesta edição, p. 183-188, e Irresponsabilidade fiscal ainda persiste, 15 anos após a publicação da lei, nesta edição, p. 401-404), perfazem um conjunto de “malfeitos” financeiros que não poderiam ter outro destino.

Julgar as contas com rigor ( Julgamento das contas do governo precisa ser feito com rigor, nesta edição, p. 329-334) foi a decisão que se esperava para não se deixar consolidar um comportamento reiterado de desobediência às normas vigentes em matéria de finanças públicas, o que causa prejuízo não somente à segurança jurídi- ca, mas também à credibilidade de todo o ordenamento jurídico e dos governantes, e resulta em danos imediatos e diretos à economia do país como um todo.

Justiça deve ser feita também à destacada atuação do Ministério Público de Contas, instituição que, como já destaquei, pode ser pequena em sua dimensão, mas é grande na sua importância, e foi responsável por formalizar, fundamentar e instruir com competência a representação que resultou na investigação e decisão final opinando pela rejeição das contas, mantendo-se firme e vigilante durante todo o processo na defesa do interesse público para assegurar a aplicação da legis- lação vigente e higidez nas contas públicas, ameaçadas pelos desmandos que vie- ram a ser reconhecidos pelo Tribunal. Uma demonstração de quão relevante é ter autonomia e independência no exercício de suas funções.

Ante o caráter técnico do corpo funcional do Tribunal de Contas da União, constituído por servidores concursados de inegável competência, e a unanimidade da decisão, acolhida por todos os Conselheiros, em sua maior parte nomeada nos últimos dez anos, não há como ter dúvidas sobre existência das irregularidades apontadas, tornando insubsistentes as alegações de que tenha natureza e interesse político.

É certo que, no que tange ao julgamento das contas do governo federal, apre- sentadas pela Presidente, como é o caso, a decisão do TCU tem natureza opinativa, inserindo-se no rol das atividades que integram a função consultiva do Tribunal.

A decisão definitiva compete ao Congresso Nacional, a quem caberá, julgá-

-las, nos termos do artigo 49, IX, da Constituição, sendo possível não acolher o parecer em que se consubstancia a decisão do Tribunal de Contas. Daí porque a relevância de um trabalho que se mostrou consistente e bem elaborado, não sendo aceitável um julgamento em sentido diverso – o que caracterizaria, aí sim, uma decisão de natureza eminentemente política e desconectada da realidade dos fatos apurados e analisados tecnicamente.

 

Julgamento do TCU que reprovou contas do governo entrou para a história do Direito Financeiro ••

 

Por oportuno, é relevante destacar que, entre as várias atividades dos Tribu- nais de Contas, a apreciação das contas anualmente apresentadas produz docu- mentos de elevada qualidade no que tange à avaliação das atividades governamen- tais, com destaque para os aspectos administrativos e financeiros.

Boa parte dos avanços experimentados pela administração pública nos últi- mos anos tem origem nas constatações, recomendações e sugestões contidas nos pareceres anuais sobre as contas de governo.

Apenas para citar o exemplo deste último relatório,1 vê-se, à semelhança do que tem ocorrido nos anos anteriores, haver sido feito um valioso trabalho que abrangeu não só os aspectos financeiros das contas, mas da gestão como um todo, em uma visão macro, como se espera em se tratando da apreciação das contas de governo. Há uma detalhada análise do desempenho da economia brasileira em seus diversos aspectos (inflação, emprego, PIB, carga tributária, política macroeco- nômica, dívida pública etc.) e uma avaliação do sistema de planejamento governa- mental, do comportamento da arrecadação federal e da distribuição dos recursos no orçamento, incluindo os benefícios fiscais e creditícios, bem como da execução orçamentária. Na apreciação da ação setorial do governo, os vários programas que integram o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento e o PPA 2012-2015 são avaliados quanto a seu desempenho, o que permite constatar com muito mais cla- reza a adequação da aplicação dos recursos públicos, identificando as falhas e per- mitindo o aperfeiçoamento da gestão.

Com isso, os alertas, recomendações e sugestões ganham consistência, e as considerações acerca da governança pública2 dão verdadeira aula de como aperfei- çoar a gestão, mostrando que, mais do que um documento voltado a punir os maus gestores pelas irregularidades encontradas, tem caráter predominantemente educa- tivo e propositivo, destinado a promover melhorias na administração pública.

É fundamental que essa decisão histórica resulte na punição pelas inúmeras irregularidades constatadas pelo TCU, como os pagamentos postergados por meio do financiamento pelos bancos públicos (as já famosas “pedaladas fiscais”), omis- sões de passivos no cálculo de resultados fiscais e autorização de despesas em desacordo com a legislação. Irregularidades graves que foram clara e minuciosa- mente analisadas no relatório de 800 páginas apresentado pelo relator, ministro Augusto Nardes, e não atingem apenas aspectos pontuais das finanças públicas.

1      Relatório e parecer prévio sobre as contas do governo da República – Exercício de 2014. Relator Ministro Augusto Nardes. Brasília: TCU, 2015.

2      Apresentadas no capítulo 6 do Relatório.

 

 

Caracterizam deslizes que “terminam por comprometer não apenas o equilíbrio das contas públicas como também refletem no bem-estar dos cidadãos”, levando a um descontrole fiscal que “compromete a execução de políticas públicas funda- mentais para a sociedade (…) [e] o funcionamento dos serviços públicos” e amplia o endividamento público “que, por sua vez, representarão prejuízos à qualidade de vida da população”. Ou seja, um conjunto de atos que afrontaram a Lei de Respon- sabilidade Fiscal e violaram os princípios do planejamento, da transparência, da prudência, do equilíbrio orçamentário e da legalidade, comprometendo as contas públicas.

Mais do que isso, o que se deve destacar é a função educativa da decisão, que permitirá fazer os ajustes necessários para que as irregularidades não voltem a se repetir e as medidas de aperfeiçoamento da gestão sejam tomadas, valorizando os recursos que estão cada vez mais escassos e não podem ser mal aplicados.

Como bem ressaltado recentemente, “o alcance histórico da decisão ocorrerá se ela significar, daqui por diante, uma mudança de comportamento dos governan- tes na forma como eles lidam com os orçamentos públicos – e com o dinheiro dos nossos impostos” e “a decisão do TCU, com as sanções que ela pode acarretar, dever servir como alerta definitivo de que não se pode mais continuar a tratar o dinheiro de nossos impostos com tamanha ligeireza. A Lei de Responsabilidade Fiscal deve ser efetivamente aplicada e até mesmo reforçada”.3

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

3      Para acabar com o jogo do faz de conta. Revista Época, ed. 905, 12 de outubro de 2015, p. 90.

 

 

“PEC DO PADRÃO MÍNIMO”

vAI APERFEIçOAR TRIBuNAIS DE CONTAS

 

 

Coluna publicada em 26.7.2016: <https://www.conjur.com.br/2016-jul-26/ contas-vista-pec-padrao-minimo-aperfeicoar-tribunais-contas>

 

 

 

 

 

Os tribunais de contas são órgãos indispensáveis para nosso Estado Democrá- tico de Direito, e estão assumindo cada vez mais um papel de destaque, como se observou nos últimos anos, especialmente na recente atuação do Tribunal de Con- tas da União – TCU no julgamento das contas de governo. A emissão de parecer pela reprovação, após análise técnica minuciosa e detalhada, contrariou os interes- ses do governo, em atitude que demonstrou sua independência institucional.1

Órgãos que, de forma autônoma e independente, auxiliam o Poder Legislativo no exercício do controle externo,2 os tribunais de contas, instalados no Brasil há mais de cem anos, têm se aperfeiçoado tecnicamente e hoje estão entre os poucos que se aprofundam na análise de temas complexos na área do Direito Financeiro e em muito têm colaborado para o aperfeiçoamento da gestão pública. Por meio de sua atuação no âmbito da fiscalização financeira da administração pública, função que exercem em razão da determinação expressa no art. 70 da Constituição, mais do que encontrar irregularidades, aplicar sanções e subsidiar o julgamento das con- tas de governo pelo Poder Legislativo, têm mostrado relevante papel de orientação e auxílio para os gestores públicos. Apontam, nos documentos que produzem, re- comendações e sugestões, além de realizarem cursos, elaborarem manuais e atua- rem no fomento ao estudo e divulgação de boas práticas de administração.

Como toda instituição, evolui com o tempo, pode e precisa melhorar.

 

 

1      Julgamento do TCU que reprovou contas do governo entrou para a história do Direito Financeiro, nesta edição, p. 335-338.

2      Tribunais de Contas são os guardiões do dinheiro público, nesta edição, p. 317-322.

 

 

E nesse sentido vem em boa hora a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 40/2016, que insere na Constituição Federal dispositivo determinando a edição de lei complementar que crie padrões para os processos dos tribunais de contas, o que já lhe vale o apelido de “PEC do padrão mínimo para tribunais de contas”.3 Com a inclusão do artigo 73-A na Constituição, prevê-se que esta lei se destinaria a dis- ciplinar diversos aspectos referentes à organização e ao desempenho das funções dos tribunais de contas, de modo a uniformizar os procedimentos em âmbito na- cional, visto que a norma, de iniciativa do Tribunal de Contas da União, seria vá- lida para a atividade de controle externo em todas as esferas federativas. Como consta da justificativa da proposta de emenda, “a proposta também avança no sentido de criar as condições para o Congresso Nacional dispor sobre a simetria prevista no artigo 75 da Constituição da República, visando estabelecer diretrizes fundamentais para os Tribunais de Contas do Brasil e assegurar as garantias pro- cessuais às partes sujeitas ao julgamento de contas. A previsão de lei complementar visa preencher lacuna que faz com que o Supremo Tribunal Federal seja recorren- temente chamado para dispor sobre a simetria constitucional a ser observada pelo Tribunal de Contas”.4

Relevante destacar que o sistema de controle externo das contas públicas, de titularidade do Poder Legislativo, exercido com o auxílio dos tribunais de contas, é organizado de acordo com nosso sistema federativo. E nesse aspecto apresenta con- figuração distinta do Poder Judiciário, que tem órgãos de âmbito nacional, como os tribunais superiores, que atuam como instância recursal de todos os tribunais da federação. E há ainda o Conselho Nacional de Justiça, que tem poderes em matéria administrativa e financeira em todo o Poder Judiciário. Isto não ocorre com os tribunais de contas, que atuam e se organizam de forma independente, uma vez que o Tribunal de Contas da União não é instância recursal das decisões dos de- mais tribunais de contas, nem é dotado de poderes para neles interferir na esfera administrativa ou financeira. Com isto, os tribunais de contas têm elevada autono- mia para decidir sobre suas questões internas, o que é positivo em termos de respei- to à respectiva independência, mas por outro lado gera uma falta de uniformidade de organização e procedimentos, muitas vezes causando transtornos às partes en- volvidas e insegurança jurídica.

3 PEC cria prazo de 60 dias para Congresso julgar as contas do Presidente, conforme noticiado neste ConJur, em 15 de julho de 2016; Pedaladas fiscais inspiram proposta de aperfeiçoamen- to dos tribunais de contas. Senado Notícias, 15 de julho de 2016.

4     Justificativa da PEC 40/2016, p. 5.

 

 

Daí por que surgir esta preocupação e necessidade de simetria e uma maior uniformização, que será capaz de tornar mais eficiente o controle da administração pública com maior harmonização federativa.

Essas questões já têm sido objeto de debate, e vale destacar algumas posições que deixam clara a necessidade de aperfeiçoamento do sistema, como bem ressalta- do por Odilon de Oliveira: “[p]or esta razão, nada mais natural do que a edição, pela União, de uma norma geral sobre processo dos tribunais de contas, como forma de instrumentalizar, no plano infraconstitucional, a uniformidade do con- trole externo da Administração Pública, determinada pelo art. 75 da Constituição Federal e demandada pelo federalismo cooperativo, ao menos no tocante às ques- tões mais sensíveis e relevantes, como meio de se permitir uma maior efetividade das normas constitucionais”.5

A destacada atuação do TCU na recente decisão que resultou no parecer pela rejeição das contas do governo federal de 2014 e motivou o pedido de impeachment da Presidente deu novo impulso à questão, pois a responsabilização política da Presidente da República em razão das “pedaladas fiscais” e a imputação de respon- sabilidade a muitos gestores evidenciaram a necessidade de uma lei complementar nacional que tem como meta destacada a preservação das garantias processuais dos agentes públicos obrigados a prestar contas de sua atuação.

O senador Ricardo Ferraço, relator da matéria no Senado, justifica a aprova- ção da PEC asseverando que as “instituições de fiscalização na esfera de controle externo devem se organizar de forma simétrica em todo o país, com a devida neu- tralidade político-partidária e independência em relação àqueles que serão fiscalizados”.6

As matérias a serem disciplinadas pela lei complementar são diversas e tocam em pontos relevantes para maior consistência das atuações das cortes de contas, tanto no que tange à autonomia para o exercício de suas funções quanto para a segurança jurídica conferida pela maior coerência dos procedimentos e garantias adotados em todo o país nos processos de contas.

Com relação às primeiras, todas elas reforçam, de alguma forma, a necessária independência funcional para o exercício das atividades-fim do controle externo, assegurando a padronização das prerrogativas de que gozam os agentes investidos

5 OLIVEIRA, Odilon Cavallari de. Diante do princípio federativo, seria constitucional uma lei nacional de processo dos tribunais de contas? Revista do TCU, ano 40, n. 113, set./dez. 2008, p. 25.

6     Justificativa da PEC 40/2016, p. 5.

 

 

das atribuições de fiscalização, e, simultaneamente, as garantias dos fiscalizados perante os fiscalizadores. Destaque cabe à previsão de que a auditoria de controle externo deve ser constituída exclusivamente por auditores de carreira e servidores ocupantes de cargo efetivo. Além disso, os critérios de escolha dos dirigentes da auditoria externa devem ser fixados na lei complementar, estabelecendo-se que a nomeação deve recair também sobre membros que ingressaram na carreira por con- curso público. Não menos importante é a referência a critérios objetivos para a com- provação dos requisitos constitucionais necessários à nomeação para a cúpula do órgão, ou seja, ministros e conselheiros. Os requisitos constitucionais mais abstratos, tais como “idoneidade moral e reputação ilibada” ou “notórios conhecimentos jurí- dicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública”, ganham em densidade caso sejam oferecidos parâmetros mais claros para sua verificação.

O aumento da transparência de gestão também é contemplado, como se pode observar na uniformidade dos procedimentos próprios para realização da audito- ria, que avança ao conferir maior previsibilidade sobre sua atuação, tornando mais claras as suas prerrogativas e seus limites funcionais. A maior clareza a respeito das competências ajuda a inibir os desvios de função, o que assegura maiores garantias às pessoas objeto de fiscalização e também maior legitimidade à ação dos tribunais.

Não se pode deixar de mencionar ainda o estabelecimento de prazo para o julgamento das contas por parte do Poder Legislativo, aspecto destacado pela mí- dia que repercutiu a notícia, e que vem em boa hora suprir uma lacuna na legisla- ção. A proposta de nova redação ao art. 49, IX, da Constituição prevê o prazo máximo de 60 dias, contados do recebimento do parecer apresentado pelo respec- tivo tribunal de contas, para que o Poder Legislativo julgue as contas prestadas pelo Chefe do Poder Executivo. Com isto evitam-se casos de contas que esperam há décadas pelo julgamento, o que é inadmissível sob todos os aspectos, sendo uma demonstração de falta de seriedade no cumprimento das normas de Direito Finan- ceiro que não se pode aceitar.

A lei complementar dará ainda outros passos louváveis ao ampliar os mecanis- mos de interação entre os tribunais de contas e o Poder Legislativo cujo auxílio lhes compete, principalmente ao compartilharem informações periódicas que sirvam de alerta para o cumprimento das metas de resultado fiscal. Desta forma, fortalece-

-se a função preventiva, essencial para que se vá além da repressão a desvios e pu- nição de irregularidades e se consiga contribuir para aperfeiçoar os resultados da gestão.

A previsão de instrumentos de participação social, como a instituição de um Portal Nacional de Transparência e Visibilidade dos Tribunais de Contas e Minis-

 

 

térios Públicos de Contas, permitirá ainda maior aproximação entre os órgãos de controle e a sociedade, por meio da divulgação de resultados relevantes das audito- rias, das decisões das cortes e as manifestações do Ministério Público de Contas.

Por oportuno, embora não tenha sido objeto específico da referida PEC, é sempre bom ressaltar, como já expus em outra oportunidade,7 a importância do Ministério Público de Contas, que, em face de sua peculiar posição no âmbito da administração pública, uma vez que não integra o Ministério Público, deve ter garantias jurídicas mais claras acerca de sua independência funcional e autonomia administrativa e financeira, que são imprescindíveis para uma atuação firme e com ampla liberdade, assunto que merece uma coluna específica, e será tratado oportunamente.

A PEC 40/2016 só vem trazer benefícios ao País, encontra amplo apoio da sociedade8 e é um avanço importante para o Direito Financeiro, razões suficientes que justificam merecer atenção e cobrança para que seja aprovada o quanto antes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

7   Julgamento das contas do governo precisa ser feito com rigor, nesta edição, p. 329-334.

8 ANTC – Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas, Associação Contas Abertas e CNSP – Confederação Nacional dos Servidores Públicos, que deram valiosa contribuição para a elaboração da proposta, e já conta com o apoio declarado de vários senadores, do Conselheiro Sebastião Carlos Ranna, do TCE-ES, e do Professor Heleno Torres, da USP (Senado apresenta PEC do padrão mínimo para tribunais de contas, em 14 de julho de 2016, e PEC do padrão mínimo ganha dois padrinhos, em 21 de julho de 2016, am- bas noticiadas pelo site da ANTC – <www.antcbrasil.org.br>).

 

 

 

 

SuPREMO gERA POLêMICA AO DECIDIR SOBRE JuLgAMENTO DE CONTAS

DE PREFEITOS

 

Coluna publicada em 23.8.2016: <https://www.conjur.com.br/2016-ago-23/ contas-vista-stf-gera-polemica-decidir-julgamento-contas-prefeitos>

 

 

 

 

 

A aproximação das eleições municipais traz muitas questões interessantes e relevantes no campo do Direito Financeiro, e é sempre bom estar atento a elas, pois, afinal, elegeremos aqueles que vão cuidar do dinheiro que é de todos nós.

Recentemente1 veio a debate, em nossa Suprema Corte, questão envolvendo decisão de tribunal de contas que julgou irregulares as contas de prefeito, levan- do-o à inelegibilidade, em face do que estabelece a legislação eleitoral.2 Insurgiu-se o prefeito contra o ato, pondo em discussão os limites da competência e alcance das decisões dos tribunais de contas quando se tratar das contas apresentadas por prefeitos.

A decisão do STF sobre o caso despertou polêmicas e chegou a ser duramente atacada,3 sendo relevante conhecer e esclarecer as questões discutidas. Embora o

1 Sessão de 10 de agosto, processos RE 848826 e RE 729744, em repercussão geral. “Compe- tência para julgar contas de prefeito é da Câmara de Vereadores, decide STF” (Portal de notí- cias STF – <www.stf.jus.br>), em 10 de agosto de 2016.

2 LC 64/1990, art. 1º, inciso I, alínea g (com redação dada pela LC 135/2010 – “Lei da Ficha Limpa”): “São inelegíveis para qualquer cargo os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”.

3 Em nota pública, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) refe- riu-se ao caso como “uma das maiores derrotas da República Brasileira após a redemocratização”

 

 

acórdão não tenha sido publicado, o que impede uma análise da decisão de forma precisa e detalhada, o tema objeto da controvérsia merece ser mais bem conhecido, e o que se pretende é trazer noções acerca do caso, ainda que simples, e assim me- lhor compreendê-lo.

Os tribunais de contas, órgãos cuja importância é cada vez maior e mais no- tada em nosso Estado Democrático de Direito, o que já foi ressaltado por mais de uma vez neste espaço,4 têm suas atribuições previstas na Constituição, sendo os grandes responsáveis pela fiscalização contábil, financeira e orçamentária da admi- nistração pública.

O art. 71 da Constituição Federal,5 ao descrever as funções que exercem como órgão que presta auxílio ao Poder Legislativo6 no controle externo da administra- ção pública, estabelece que lhes compete, entre outras funções: a) apreciar as contas prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, mediante parecer prévio; e

  1. julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, incluindo ainda todos aqueles que derem causa a perda, extravio ou irregularidades que resultem em prejuízo ao erário público.

No que se refere à primeira delas, os tribunais de contas exercem atribuições que se inserem no âmbito de sua função consultiva, uma vez que se está diante do julga- mento das chamadas “contas de governo”, ou seja, das contas anuais, que explicitam a atividade financeira do ente federado no exercício financeiro findo, e que tem no Chefe do Poder Executivo o responsável por sua apresentação para julgamento peran- te o Poder Legislativo, titular do controle externo da administração pública.

Sendo assim, a função dos tribunais de contas limita-se a emitir um parecer, sugerindo o resultado do julgamento – as contas poder ser aprovadas, aprovadas

 

e afirmou que a “decisão representa um imenso retrocesso no controle das contas governamen- tais” e que “vai na contramão dos esforços populares e suprapartidários de combate à corrupção e de moralidade na gestão dos recursos públicos”, pois “retira dos Tribunais de Contas a com- petência para julgar as contas de prefeito que age como ordenador de despesas”, selando “a vi- tória da injustiça e da impunidade” (<http://www.atricon.org.br/imprensa/destaque/nota-pu- blica-sobre-o-re-848826/>). No mesmo sentido posicionou-se a Associação Nacional do Ministério Público de Contas (AMPCON) e outras entidades que congregam diversos atores no âmbito do controle das contas públicas (<http://www.ampcon.org.br/noticia/nota-publica-

-em-defesa-da-lei-da-ficha-limpa-e-das-competencias-dos-tribunais-de-contas>).

4      Para citar algumas colunas sobre o tema, destaco Tribunais de Contas são guardiões do dinheiro público, p. 317-322, e Julgamento das contas do governo precisa ser feito com rigor, p. 329-334.

5      Que se aplica, por simetria, aos demais entes da federação.

6      O que não faz dele um órgão com vínculos de subordinação a este Poder, pois lhe é assegurada autonomia e independência para exercer esta missão.

 

 

com ressalvas ou reprovadas –, que deverá ser proferido pelo Poder Legislativo competente.

No que tange à segunda função anteriormente mencionada – julgamento de contas dos administradores e responsáveis por recursos públicos –, os tribunais de contas “julgam” as contas, proferindo decisões definitivas, de natureza administra- tiva, podendo considerá-las regulares, regulares com ressalvas ou irregulares. São as chamadas “contas de gestão”.

As contas de governo são prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executi- vo, e têm por finalidade demonstrar as atividades financeiras da administração pública do ente federado pelo qual é responsável no exercício financeiro a que se referem, evidenciando os resultados da ação governamental, com o cumprimento dos programas orçamentários no período, o nível de endividamento, destinação dos recursos às áreas prioritárias e cumprimento dos deveres de gastos mínimos obrigatórios, observância dos limites de gastos com pessoal e demais informações que permitam avaliar globalmente as contas e a aderência ao planejamento gover- namental. Tem como foco a avaliação da gestão de forma ampla, em seu aspecto macro, mitigando a relevância de minúcias e aspectos formais. O julgamento des- sas contas é, portanto, suscetível de avaliação de cunho político, que leve em con- sideração critérios de conveniência e oportunidade.7 Nesses casos, há o parecer prévio do tribunal de contas para subsidiar e dar elementos para que o Poder Le- gislativo tome a decisão. Parecer que não tem caráter vinculativo, mas, no caso dos Municípios, exige dois terços dos votos da Câmara de Vereadores para que seja possível adotar decisão diversa da que consta do parecer (CF, art. 31, § 2º).

As contas de gestão (ou contas dos ordenadores de despesas) não são necessa- riamente anuais, têm por finalidade demonstrar a aplicação de recursos públicos praticados por aqueles que foram responsáveis por geri-los, e nelas serão observadas a legalidade, a legitimidade e a economicidade dos atos praticados, regularidade e conformidade de procedimentos, identificando e apurando eventuais lesões ao erá- rio e atos de improbidade administrativa. Tais contas são submetidas a julgamento técnico pelos tribunais de contas, que poderão, em caso de irregularidade consta- tada, aplicar sanções, como as multas, por exemplo.

Ocorre que, em muitos casos, especialmente nos Municípios de menor porte, os prefeitos atuam na condição de administradores e responsáveis por recursos pú- blicos, agindo como ordenadores de despesas e praticando atos de gestão financeira, o que levou os tribunais de contas a, no exercício de suas funções, julgar suas contas.

7      Como bem explicita J. R. Caldas Furtado, com destaque para o texto “Os regimes de contas públicas: contas de governo e contas de gestão”, publicado na Revista do TCU, n. 109, p. 61-89.

 

 

É o que se verifica quando firmam convênios para receber recursos de outros entes da federação, especialmente da União, por meio das transferências voluntá- rias, devendo administrá-los e prestar contas junto ao ente que lhes transferiu, e que se submetem ao sistema de fiscalização próprio.

Nesses casos, os prefeitos acabam exercendo uma dupla função, pois, além de gerenciarem diretamente recursos públicos, e, portanto, ficando responsáveis pelos atos a eles relacionados, também continuam com o dever de apresentar as contas anuais da administração pública para julgamento perante o Poder Legislativo, me- diante parecer prévio, de natureza opinativa, do tribunal de contas competente.

Isto faz com que a gestão municipal se submeta a um controle de dupla natu- reza. Hélio Mileski bem explica que “o Prefeito Municipal é mais que o condutor político do Município, ele também é o administrador, o gestor dos bens e dinheiros públicos, assumindo uma dupla função – política e administrativa”. E enfatiza, com base em decisões do Superior Tribunal de Justiça, que “justamente por isso, o Poder Judiciário, quando examina o tema, tem decidido reiteradamente, sob o ar- gumento de que, sendo responsável por uma dupla função, o Prefeito Municipal também se submete a um duplo julgamento: um político, perante o Parlamento, precedido de parecer prévio, e outro técnico, a cargo do Tribunal de Contas”.8

Há, pois, que se reconhecer existirem decisões de natureza e regime jurídico diversos, a que podem se sujeitar os prefeitos: a) o julgamento técnico-administra- tivo das “contas de gestão”, a cargo do tribunal de contas; e b) o julgamento polí- tico-administrativo das “contas de governo”, sob responsabilidade da Câmara de Vereadores, à luz do parecer emitido pelo tribunal de contas.

Nessa linha, Caldas Furtado aduz que o regime de julgamento de contas deve ser “determinado pela natureza dos atos a que elas se referem, e não por causa do cargo ocupado pela pessoa que os pratica. Para os atos de governo, haverá o julga- mento político; para os atos de gestão, o julgamento técnico”.9

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal provocou divergência entre os Ministros, tendo o relator, Min. Luís Roberto Barroso, votado no sentido de reco- nhecer a competência dos Tribunais de Contas para julgar em definitivo as contas de gestão dos prefeitos, o que levaria à inelegibilidade. A maioria dos Ministros (6×5), no entanto, divergiu, ficando vencido o relator, e prevalecendo a tese de que

8      MILESKI, Helio Saul. O controle de gestão pública. São Paulo: RT, 2003. p. 274.

9      “Os regimes de contas públicas: contas de governo e contas de gestão”, publicado na Revista do TCU, n. 109, p. 75.

 

 

as contas de prefeito submetem-se ao julgamento exclusivo pela Câmara de Verea- dores, não sendo possível reconhecer a inelegibilidade em face da decisão do tribu- nal de contas, e nesse sentido foi redigido um dos verbetes das teses de repercussão geral: “Para os fins do artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64/1990, alterado pela Lei Complementar 135/2010, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas câmaras legislativas, com auxílio dos tribunais de contas, cujo parecer prévio somente deixará de preva- lecer por decisão de dois terços dos vereadores”.10

No que se refere à inelegibilidade, vê-se haver divergência de entendimento, já tendo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidido que “a desaprovação das contas pelo Tribunal de Contas não é suficiente para que se conclua pela inelegibilidade do candidato”,11 e entendia o Ministro Relator Marcelo Ribeiro que o critério de determinação da competência é da pessoa que tem os atos de gestão julgados, pelo que as do Chefe do Executivo Municipal seriam apreciadas em caráter final pela Câmara Municipal; unicamente após sua decisão é que se aplicaria a sanção da inelegibilidade, nos termos da legislação eleitoral (LC 64/1990). Considera que o artigo 71 da Constituição, que distingue as contas anuais das contas pelos atos de gestão (diretamente praticados para ordenar despesas), não se aplica simetricamen- te aos Municípios da mesma forma que incide sobre a gestão de outros entes, em face do que dispõe o art. 31 da Constituição, que entende conferir competência exclusiva do Poder Legislativo municipal”.12

É necessário conhecer o exato teor da recente decisão do STF e seu alcance, pois são muitos os questionamentos e consequências que dela podem advir.

Um dos principais é a índole política das Câmaras Municipais, que incluiriam a decisão sobre matérias técnicas da execução orçamentária em seu raio de ação de forma exclusiva para efeitos da aplicação de determinadas sanções legais ao admi- nistrador municipal. Se o sentido da atividade política do controle externo é claro para a análise das contas anuais, em que se avaliam aspectos políticos da gestão municipal com o fim de concluir pela sua adesão ao interesse público, isso não se

 

10 Sessão de 17 de outubro de 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-ago-17/ supremo-volta-discutir-define-tese-rejeicao-contas>. A segunda tese de repercussão geral esta- beleceu que “Parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anu- ais do chefe do Poder Executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por de- curso de prazo”.

11  Recurso Especial Eleitoral 29535.

12  TSE, REsp Eleitoral 29535, rel. Min. Marcelo Ribeiro, p. 5.

 

 

observa de forma tão nítida em atos de ordenação de despesa nos quais a observân- cia dos requisitos legais de validade do ato deveria ser o critério mais adequado de decisão, de acordo com sua legalidade, legitimidade e economicidade.

E também, muitas vezes, os tribunais de contas, no exercício de atos de fisca- lização, em inspeções ou auditorias, constatam condutas que geram dano ao erário, caso em que promovem a tomada de contas especial e julgam as contas do agente público responsável, aplicando as penalidades e tomando as providências cabíveis para ressarcir os cofres públicos. Não é incomum ser o prefeito o agente público infrator, e a submissão a julgamento exclusivamente pela Câmara de Vereadores, nesse caso, pode reduzir ou mesmo inviabilizar essa ação dos tribunais de contas, o que é extremamente prejudicial ao efetivo controle da gestão das finanças públicas. Não só porque as Câmaras de Vereadores podem, como efetivamente se tem obser- vado, levar décadas para concluir o julgamento das contas,13 como serem suscetí- veis de influências políticas que levem a uma decisão pouco técnica e não absolu- tamente isenta. Em recente artigo, Doris Coutinho ressalta a gravidade da situação, e bem lembra que “questões técnicas sobre atos concretos de ordenação do gestor, como o não pagamento de fornecedores para locupletar-se dos valores ou a não apresentação de notas fiscais, por exemplo, estarão sujeitas à absolvição política”.14 Sem contar que, no mais das vezes, as Câmaras de Vereadores não são dotadas de capacidade técnica que permita uma avaliação adequada das contas.

É importante lembrar que os tribunais de contas têm poderes sancionatórios e instrumentos capazes de promover o ressarcimento de prejuízos causados ao erário, o que não está previsto para as Câmaras de Vereadores, gerando o receio, a depen- der dos efeitos da decisão tomada pelo STF, que a punição dos infratores e a recu- peração dos danos possam ser seriamente prejudicadas.

Há outros temas controversos neste caso, sendo muitas as questões, mas não há como trazê-las todas neste curto espaço. Mas é importante ressaltar que, na atual conjuntura em que estamos, em que o combate à corrupção tem se fortaleci- do cada vez mais, e nosso país está demonstrando que o lugar dos corruptos é a cadeia, é preciso cautela para que não se enfraqueça o controle externo com a redu- ção dos poderes dos tribunais de contas, o que pode fragilizar o sistema de respon- sabilização dos agentes públicos e aumentar a impunidade.

13 O Município de Campinas, terceiro maior do Estado de São Paulo, analisou as contas pela última vez em 2002, registra a Revista Veja (Fichas-sujas ostentação, edição 2492, ano 49, n. 34, 24 de agosto de 2016, p. 55).

14   COUTINHO, Doris de Miranda. Uma ideia falsa, porém clara e precisa, publicada no jornal

O Estado de S.Paulo, blog de Fausto Macedo, em 11 de agosto de 2016.

 

 

COMBATE À CORRuPçÃO MARCA uMA NOvA REPÚBLICA EM CONSTRuçÃO

 

 

Coluna publicada em 15.11.2016: <https://www.conjur.com.br/2016-nov-15/ contas-vista-combate-corrupcao-marca-republica-construcao>

 

 

 

 

 

No dia 15 de novembro de 1889, há 127 anos, proclamava-se no Brasil a Re- pública Federativa,1 cuja data hoje é celebrada como feriado nacional.2

A República é uma forma de governo que se opõe, imediatamente, à monar- quia e a suas características mais frequentes, como a vitaliciedade, a hereditarieda- de e a centralidade do monarca, o que pode conduzir à irresponsabilidade. Ainda que com adaptações, um regime republicano se caracteriza pela temporariedade do chefe do governo, por sua eletividade e por sua responsabilização.3 Não é à toa que se diz popularmente a expressão “práticas não republicanas”, vindas por parte de algum agente público, para relacioná-las com algum indício de corrupção. A ideia de República traz consigo justamente essa transparência que é própria das institui- ções democráticas.

Mas não é só pela perspectiva formal da existência de controles ao governo que se caracteriza a República. É a participação popular que a qualifica substanti- vamente como res publica, “coisa pública”, o que exige que os chefes de governo e os parlamentos sejam eleitos pelo povo e, portanto, legitimados pelo voto.4 A sobe- rania popular aproxima as ideias de república e democracia. É por este processo democrático que se elaboram as normas que devem ser observadas e cumpridas por todos, sem distinção.

1      Decreto 1, de 15 de novembro de 1889.

2      Lei 662, de 6 de abril de 1949.

3      DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 228-231.

4      SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 103.

 

 

E é nesse contexto de respeito à coisa pública que nos últimos anos a Repúbli- ca brasileira está tendo motivos para comemoração e celebração, especialmente em razão do intenso e severo combate à corrupção que se tem observado.

Ainda que se possa lamentar que isto tenha levado à descoberta de que muitos, durante longo tempo, promoveram graves lesões ao patrimônio público, ao erário, à credibilidade das instituições, órgãos e empresas estatais por atos de corrupção, o fato é que o combate tem sido persistente e eficaz, com investigações, processos, condenações e punições, como jamais ocorreu em nossa história.

Já não se pode dizer que, no Brasil, ricos e poderosos não vão para a cadeia, como sempre se falou – e com razão. Estabelecimentos penitenciários como os Complexos da Papuda, em Brasília, e de Pinhais, na região de Curitiba, hoje “hos- pedam” dezenas de políticos e empresários ricos e poderosos, vários deles já há muito tempo encarcerados.

Os Poderes e as instituições têm se mostrado sólidos, agindo com autonomia e independência, tendo muitos colaborado para esse avanço, incluindo juízes, pro- motores, policiais, advogados, integrantes da ampla gama de servidores da Justiça como um todo, a imprensa e a população.

O fato é que República e corrupção são incompatíveis em sua essência, e não poderiam estar juntas.

Corrupção é uma palavra cuja definição não é simples nem consensual; trata-

-se de tema complexo, amplo, multidisciplinar, que pode ser abordado sob diversas perspectivas. Um verdadeiro “jogo de luz e penumbra, que acompanha, com sua carga de ambiguidade, a tênue escala de expressões existentes no vocabulário bra- sileiro: cervejinha, gorjeta, jeitinho, caixinha, ajudinha, lubrificar, taxa de urgên- cia, por fora, esquema, rolo, molhar a mão, mamata, negociata, propina, falcatrua, caixa dois etc”.5 É um termo que “inclui uma enorme diversidade de atos: trapaça, velhacaria, logro, ganho ilícito, desfalque, concussão, falsificação, espólio, fraude, suborno, peculato, extorsão, nepotismo e outros. Isso cria razoável dificuldade para se chegar a uma definição consensual. O fenômeno pode ser observado numa gra- dação quase infinita. Vai de pequenos desvios de comportamento à total impuni- dade do crime organizado, por parte das várias áreas e níveis governamentais”. A essência do conceito de corrupção não está na transgressão da lei ou da norma, mas sim “na ameaça à solidariedade social, na inversão da subordinação dos interesses

 

5      FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Corrupção, um mito político. Folha de S.Paulo, 9 de novembro de 2015.

 

 

particulares aos interesses gerais, o que fere sentimentos fortes da consciência co- mum, colocando em risco a coesão social”.6

Verdadeiro “câncer” social, uma violência aos Direitos Humanos,7 a corrup- ção transformou-se em um dos mais relevantes problemas do mundo contem- porâneo,8 e tem sido intensamente estudado, destacando-se, dentre outras, a obra de Susan Rose-Ackerman e Bonnie Palifka,9 com foco nos aspectos econômicos da corrupção, como os efeitos prejudiciais aos investimentos e ao desenvolvimento da economia. Há diversas análises empíricas que destacam os impactos negativos da corrupção no desenvolvimento humano, na qualidade das instituições governa- mentais, na realização de negócios no país (que acabam ficando informais), no recebimento de investimento estrangeiro direto, na qualidade da infraestrutura,10 no crescimento econômico e da renda per capita, no acesso a serviços públicos, na legitimidade de um governo, no seu rating das agências de classificação de risco e na confiança das pessoas – para citar alguns exemplos.

São bastante conhecidos os efeitos danosos da corrupção sobre a sociedade, a economia e a administração pública.

A corrupção prejudica a livre-concorrência, a partir das vantagens conferidas pelos corruptores, e com isso a competitividade do país, a criação de empregos e o desenvolvimento econômico. O enfraquecimento da capacidade dos governos de garantir sua própria ordem jurídica, por sua vez, abre espaço para o crime organi- zado e o tráfico comercial ilícito (aí incluído o tráfico de pessoas, de armas, de drogas, o contrabando, a pirataria etc.).11

6 BREI, Zani Andrade. Corrupção: dificuldades para definição e para um consenso. Revista de Administração Pública 30 (1), Rio de Janeiro, jan./fev. 1996, p. 65 e 70.

7 “Daí não termos dúvida em afirmar que a corrupção violenta os Direitos Humanos” (OLI- VEIRA, Regis de. Curso de Direito Financeiro. São Paulo: RT, 2013. p. 311).

8 “In some recent global opinion surveys, corruption has been identified as one of the most im- portant problems facing the world today” (IMF – International Monetary Fund, Corruption: costs and mitigation strategies. Washington, IMF – Fiscal Affairs and Legal Departments, May 2016, p. 2).

9 Corruption and Government: causes, consequences, and reform. 2. ed. Cambridge, Cambridge University Press, 2016.

10 Conforme explica André Castro Carvalho (Direito da infraestrutura. Quartier Latin, 2014. p. 128), o problema do dimensionamento da infraestrutura no tempo acaba trazendo um risco na execução de políticas públicas nessa seara. Isso acaba sendo um campo fértil para corrup- ção.

11 WORLD ECONOMIC FORUM. The Global Risks Report 2016. 11. ed. Genebra, World Economic Forum, 2016. p. 9, 75.

 

 

A corrupção afeta economias em diversos níveis de desenvolvimento, e, em alguns países desenvolvidos, a percepção da corrupção é maior do que em alguns países em desenvolvimento, o que se agrava em períodos de baixo crescimento eco- nômico, como atesta o Fundo Monetário Internacional. É também este organismo que calcula os substanciais custos da corrupção a partir das estimativas dos subor- nos praticados em âmbito global – algo em torno de $1,5 a 2 trilhões de dólares, cerca de 2% do PIB mundial.12

E apesar da evolução que se tem experimentado no combate à corrupção em nosso país, vê-se haver ainda um longo caminho a percorrer.

A organização Transparência Internacional, dedicada a combater esse proble- ma, criou o “Índice de Percepção da Corrupção”, que tem sido aceito como indica- dor de corrupção nos diversos países do mundo. No índice divulgado referente ao ano de 2015, o Brasil ocupa a nada abonadora posição de número 76, de um total de 168 países [<http://www.transparency.org/cpi2015#results-table>], e com o re- gistro de que a situação se deteriorou no último ano, em face principalmente do escândalo envolvendo a Petrobras e da crise econômica, aumentando o desemprego e fazendo com que o povo sofra as consequências.13

A sociedade brasileira tem se mobilizado intensamente, não só individual- mente como também institucionalmente. O Ministério Público Federal recente- mente promoveu a campanha “Dez Medidas Contra a Corrupção”,14 e até mesmo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB externou grande preocupa- ção com o tema, destacando o combate à corrupção na Campanha da Fraternidade de 2015.15

E nesse caminho o Direito Financeiro ocupa papel de destaque, por ter como objeto de estudo as normas que regulam a atividade financeira do Estado, campo em que a corrupção se mostra mais intensa e prejudicial à sociedade.

12 FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL – Fiscal Affairs and Legal Department. Cor- ruption: Costs and Mitigating Strategies. Washington, FMI. 2016. p. 4-5.

13 “Others, including Australia, Brazil, Libya, Spain and Turkey, have deteriorated. Dealing with many entrenched corruption issues, Brazil has been rocked by the Petrobras scandal, in which politicians are reported to have taken kickbacks in exchange for awarding public con- tracts. As the economy crunches, tens of thousands of ordinary Brazilians have lost their jobs already. They didn’t make the decisions that led to the scandal. But they’re the ones living with the consequences.” <https://www.transparency.org/cpi2015/>.

14 <http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/>

15 CNBB lança campanha da fraternidade com defesa do combate à corrupção. O Estado de S.Paulo, 18 de fevereiro de 2015.

 

 

Embora sejam múltiplos os atores e fatores envolvidos na questão da corrup- ção, seguramente boa parte – não seria exagero dizer, a maior parte – do combate a este mal ocorre no âmbito do Direito Financeiro, cabendo ao ordenamento jurí- dico estabelecer sistemas, órgãos e instrumentos de prevenção e combate à corrup- ção, protegendo o patrimônio público.

O sistema de fiscalização financeira e orçamentária, por meio do controle externo, a cargo do Poder Legislativo, com auxílio dos tribunais de contas, tem demonstrado há muito sua firme atuação por meio das ferramentas de fiscalização dos atos sob sua jurisdição, seja em caráter prévio, concomitante ou subsequente aos atos fiscalizados. Destaque-se a atuação dos tribunais de contas na apreciação das contas prestadas anualmente pelo Chefe do Executivo e no julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis pela administração dos dinhei- ros, bens e valores públicos, do qual pode resultar a inelegibilidade daqueles que tiverem suas contas rejeitadas. E as atribuições são muitas, definidas na Constitui- ção ou em outros documentos, como a apreciação da legalidade dos atos de admis- são de pessoal e de concessão de aposentadorias, a fiscalização de empresas de cujo capital o poder público participe e a possibilidade de representar ao Poder compe- tente a respeito de irregularidades e abusos apurados.

Os sistemas de controle interno têm se aperfeiçoado, especialmente após a criação da Controladoria Geral da União – CGU (hoje Ministério da Transparên- cia, Fiscalização e Controladoria-Geral da União), cuja atuação tem sido destacada e seu modelo está se expandindo para os demais entes da federação. No Município de São Paulo, por exemplo, instituiu-se em 2013 a Controladoria Geral do Muni- cípio – CGM, e logo após sua implantação foi a principal responsável pela desco- berta do que acabou virando o “escândalo da máfia do ISS”.16

Mesmo assim ainda há muito a avançar no campo do Direito Financeiro. Fatos recentes com uma das empresas mais conhecidas do País, a Petrobras,

mostraram que nossas empresas estatais precisam ser mais bem fiscalizadas.17 De

fato, o nível de transparência e de auditoria externa das empresas estatais petrolífe- ras do mundo todo enfrenta dificuldades de monitoramento, um desafio dos siste- mas de controle e fiscalização de diversos países. Particularmente nas empresas de capital fechado há preocupações relevantes quanto ao sigilo das informações. Na Petrobras, a intervenção política do período mais recente trouxe aos acionistas mi- noritários preocupações quanto à opacidade das operações, além de provocar con-

 

16     Controle interno mostra sua força no combate à corrupção, nesta edição, p. 313-316.

17  Corrupção na Petrobras precisa ser apurada com rigor pelo TCU e CGU, nesta edição, p. 323-328.

 

 

troles implícitos no preço da gasolina.18 Muitas outras operações e desvios trouxe- ram prejuízos imensos à empresa, que até hoje são sentidos em seu balanço e no valor de suas ações.

A transparência é um instrumento fundamental, cada vez mais reconhecido como um dos mais importantes para o efetivo combate à corrupção. O avanço nessa área tem sido significativo, mesmo assim, ainda há muito a fazer, havendo setores cujas informações guardam elevado grau de obscuridade, como foi noticia- do recentemente em relação às operações do BNDES, já objeto de referência em coluna anterior.19

A conhecida frase de Lord Acton, “o poder tende a corromper; o poder abso- luto corrompe de maneira absoluta”, dita de forma semelhante por Rui Barbosa (“Todo o poder absoluto corrompe o homem que o possui”), mostra a importância da desconcentração de poderes, já alertada por Montesquieu (“Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder contenha o poder”).

No âmbito das finanças públicas, isto fica evidente, e aparece com clareza na lei orçamentária, cujo processo legislativo é partilhado entre os poderes Executivo e Legislativo, mas a atribuição ao Poder Executivo do comando da execução orça- mentária da maior parte da administração pública e a função de principal gestor das finanças tem se mostrado suficiente para fazer pender a balança do poder para seu lado.20 Em alguns momentos desse processo a corrupção acaba se tornando um problema, como se observa nas barganhas que ocorrem para a aprovação de emen- das parlamentares à lei orçamentária,21 exigindo aperfeiçoamentos voltados a redu- zir o incentivo a essa prática. E o controle sobre as transferências voluntárias torna necessário repensar a concentração de poder no ente transferidor, sem critérios cla- ros de concessão. A falta de autonomia financeira dos municípios e de parâmetros mais seguros para a realização da transferência a torna um instrumento usual de barganha política em detrimento do interesse público que poderia ser atendido com o emprego criterioso desta importante ferramenta do federalismo cooperativo.22

18     MUSACCHIO, Aldo; LAZZARINI, Sergio. Reinventando o capitalismo de Estado: o Leviatã nos Negócios – Brasil e Outros Países. Portfolio/Penguin, 2015. p. 219-225.

19     BNDES tem o dever de colaborar com a transparência dos gastos públicos, nesta edição, p. 411-416.

20     Durante as eleições, pense bem para quem vai entregar a chave do cofre, nesta edição, p. 223-226.

21     Emendas ao orçamento e o desequilíbrio de poderes, nesta edição, p. 219-222, e Orçamento impo- sitivo é avanço para a administração, nesta edição, p. 231-234.

22     Transferências voluntárias geram desequilíbrio federativo, nesta edição, p. 19-22.

 

 

Há instrumentos financeiros que podem em muito auxiliar no combate à corrupção, como fundos financeiros, cuja criação já foi proposta.23

Os avanços experimentados no campo do Direito Financeiro, que em muito têm colaborado para o combate à corrupção, nos permite ter hoje motivos para comemorar a Proclamação da República, com a esperança de que se continue no caminho que nos leve a um país em que a corrupção deixe de nos envergonhar perante o resto do mundo e não continue sendo motivo de preocupação.

Mas para isso há que se perseverar, pois a corrupção é “um fenômeno comple- xo e oportunista. Seu enfrentamento requer atitude permanente, envolvendo a ado- ção de medidas efetivas e simbólicas. Caso permaneçam as causas que dão ensejo à corrupção, nenhuma legislação será eficaz.24 No entanto, é pertinente ressaltar o relevante papel legislativo que o Brasil e outros países do mundo vêm desempe- nhando no combate legislativo à corrupção: no Brasil, o maior exemplo é a Lei Anticorrupção, de 2013. Em outros países, convém mencionar o Foreign Corrupt Practice Act (FCPA) dos Estados Unidos, o United Kingdom Bribery Act (UKBA), e o Prevention of Bribery Ordinance (POBO) de Hong Kong.

Não poderíamos, portanto, deixar passar esta data comemorativa sem ressal- tar a importância deste tema para o Direito Financeiro – e que tanto desgosto nos tem dado desde o surgimento das primeiras instituições brasileiras. Por essa razão é que medidas têm de ser buscadas, por especialistas no tema e pela população em geral, para que possamos num futuro próximo comemorar o Dia da República – e livre de corrupção.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

23 LIVIANU, Roberto; CENEVIVA, Walter. Fundo contra a corrupção. Folha de S.Paulo, 2 de novembro de 2016, p. A-3: “O Instituto Não Aceito Corrupção, ao lado de diversas entidades e juristas, propôs a criação do Fundo Nacional de Combate à Corrupção (FNCC)”, que pode- ria financiar iniciativas de prevenção e combate a essa modalidade de crime.

24 MACIEL, Everardo. O improvável enfrentamento da corrupção. O Estado de S.Paulo, 13 de junho de 2015.

 

 

 

 

MORALIzAçÃO DA ADMINISTRAçÃO PÚBLICA: CHEgOu A vEz DOS TRIBuNAIS DE CONTAS

 

Coluna publicada em 4.4.2017: <https://www.conjur.com.br/2017-abr-04/ contas-vista-moralizacao-administracao-publica-vez-tribunais-contas>

 

 

 

 

 

Em 29 de março de 2017 o país foi surpreendido por mais uma operação da Polícia Federal, “O Quinto do Ouro”, que, de forma inédita, prendeu nada menos do que cinco Conselheiros e um ex-Conselheiro Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, produzindo um novo capítulo que mancha a história da nossa ad- ministração pública e diretamente ligada ao Direito Financeiro. Um fato que po- derá até mesmo inviabilizar a continuidade das atividades do órgão. O fato foi amplamente noticiado por todos os órgãos de imprensa, levando mais uma vez a sociedade brasileira a indignar-se com os ocupantes de altos cargos na administra- ção pública.

Uma oportunidade que não pode ser perdida para trazer à discussão um tema que há tempos vem sendo objeto de debate, e agora se torna um momento propício para intensificar as discussões a respeito: a forma de composição dos Tribunais de Contas.

Deixarei de ressaltar a importância que os Tribunais de Contas sempre tiveram e que aumenta a cada dia, pois já o fiz em outras oportunidades,1 como se pode constatar da história recente de nosso país, em que tiveram rele- vante participação na constatação e investigação de má administração das fi- nanças públicas, que no âmbito federal levaram ao impeachment da Presidente da República.

Para a continuidade e aperfeiçoamento desta importante função e bem cum- prirem suas finalidades constitucionais, é imprescindível que seus quadros sejam

1      Tribunais de Contas são os guardiões do dinheiro público, nesta edição, p. 317-322 e “PEC do padrão mínimo” vai aperfeiçoar Tribunais de Contas, p. 339-344.

 

 

compostos por servidores da mais alta qualificação e que possam agir com impar- cialidade, especialmente em face de seu objeto de atuação, que no mais das vezes envolvem altas somas de recursos públicos.

Mas, afinal, quem são os Ministros ou Conselheiros dos Tribunais de Contas?

A Constituição trata do tema no art. 73, que estabelece os requisitos para o preenchimento do cargo de Ministro do Tribunal de Contas da União, o que é aplicado por simetria a Estados, Distrito Federal e Municípios,2 e são os seguintes:

  1. ser brasileiro;
  2. ter mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade;
  3. idoneidade moral e reputação ilibada;
  4. notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública;
  5. mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública.

Houve uma considerável evolução da Constituição de 1988 em comparação com a Carta de 1967, na qual, como lembra Mileski, os membros dos Tribunais de Contas eram indicados apenas pelo Chefe do Poder Executivo, por ele nomeados após aprovação do Congresso. Atualmente, há nomeações repartidas entre governo e parlamento.3

Preenchidos esses requisitos, a escolha é feita pelo Chefe do Poder Executivo e pelo Poder Legislativo do ente da federação respectivo. No âmbito da União, o Presidente da República indica 3 dos 9 membros, sendo dois alternadamente den- tre Auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal, carreiras provi- das por concursos públicos, indicados em lista tríplice pelo Tribunal, segundo os critérios de antiguidade e merecimento. A indicação deve ser aprovada pelo Sena- do. As outras vagas ficam a cargo do Congresso Nacional.

2 O preceito veiculado pelo art. 73 da Constituição do Brasil aplica-se, no que couber, à organi- zação, à composição e à fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Fede- ral, bem como dos tribunais e conselhos de contas dos Municípios. Imposição do modelo fe- deral nos termos do art. 75. A inércia da Assembleia Legislativa cearense relativamente à criação de cargos e carreiras do Ministério Público especial e de auditores que devam atuar junto ao tribunal de contas estadual consubstancia omissão inconstitucional (ADI 3.276, rel. Min. Eros Grau, j. 2.6.2005. E ainda: ADI 374, rel. Min. Dias Toffoli, j. 22.3.2012).

3  O controle da gestão pública. São Paulo: RT, 2003, p. 216.

 

 

Nos Estados, a distribuição em terços das indicações do Executivo e do Legis- lativo encontra alguma dificuldade, em razão de haver nestas unidades 7 membros dos Tribunais de Contas, e não 9. No âmbito regional, esta questão foi resolvida por decisão do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual, para manter a simetria com o plano federal, a divisão de vagas seria de 3 para o Chefe do Executivo e 4 para o Legislativo, permitindo-se, assim, que os Governadores escolham, alterna- damente, entre Auditores, membros do Ministério Público e uma indicação de li- vre nomeação.4 Ressalte-se que os Municípios de São Paulo (com 5 Conselheiros) e Rio de Janeiro são os únicos que têm Tribunais de Contas Municipais.

Se os requisitos exigidos preveem pessoas de alta qualificação pessoal e profis- sional, fica a pergunta: por que ocorrem fatos como o da semana passada, em que vários dos integrantes de um dos mais importantes Tribunais de Contas do país chegam ao ponto de serem presos, com fortes indícios de terem participado de atos criminosos?

Ver-se-á que muitos fatores podem, ao menos em parte, explicar esse fenômeno. No que se refere aos requisitos, aqueles que têm caráter mais objetivo são difí-

ceis de não serem observados. Por outro lado, são menos relevantes sob o ponto de

vista da conduta que se espera dos indicados.5

O primeiro dos requisitos exige que seja escolhido um cidadão brasileiro. Nes- se caso, pode-se entender como sendo a exigência de nacionalidade brasileira, ou seja, admitem-se os brasileiros natos e os naturalizados no pleno exercício de seus direitos políticos, e não apenas os brasileiros natos, haja vista que o cargo em ques- tão não está entre aqueles privativos dos brasileiros natos, nos termos em que dis- põe o art. 12, § 3º, da Constituição.

O segundo requisito são as idades mínima e máxima. Exige que o Ministro tenha ao menos 35 anos, ou seja, deverá ter completado 35 anos até a data da posse, e não poderá ainda ter completado 65 anos. Neste último item, é oportuno ressal-

4 “É realmente pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que, nos Tribunais de Contas, compostos por sete membros, três devem ser nomeados pelo Governa- dor (um dentre membros do Ministério Público, um dentre Auditores, e um de livre escolha) e quatro pela Assembleia Legislativa. Só assim se pode conciliar o disposto nos artigos 73,

  • 2º, incisos I e II, e 75 da Constituição Federal” (STF, ADI-MC 2409/ES, rel. Min. Sydney Sanches).

5 Já tive oportunidade de analisar os requisitos para o preenchimento do cargo de Ministro do TCU em Direito Financeiro na Constituição de 1988 (São Paulo: Oliveira, Mendes, 1998), razão pela qual por vezes farei uso de alguns trechos da referida obra.

 

 

tar que o Ministro poderá exercer o cargo com idade superior a 65 anos, haja vista que a aposentadoria compulsória dá-se atualmente aos 75 anos de idade; o que não se permite é assumir o cargo já tendo completado esta idade.

Um pouco mais complexas são as vedações que têm maior grau de subjetivida- de, abrindo margem a uma discricionariedade na interpretação. É o caso, por exem- plo, da exigência que o candidato ao cargo tenha “idoneidade moral e reputação ili- bada”. Apesar de ser difícil estabelecer critérios que permitam aferir com precisão sua observância (até mesmo porque seu conteúdo pode se alterar com o correr do tempo), alguns parâmetros podem ser observados. Assim, como já escrevemos em outra opor- tunidade, “uma condenação criminal definitiva é indício forte e seguro que pesa contra o preenchimento deste requisito. Mesmo assim, não se pode considerar esta circunstância de forma absolutamente isolada de um contexto. Uma condenação definitiva por crime de lesão corporal culposa, por exemplo, não pode, por si só, inabilitar alguém para integrar os quadros do Tribunal de Contas, devendo ser feita uma análise mais acurada das circunstâncias que envolvem o caso concreto. Portan- to, devem ser levadas em consideração todas as informações acerca da conduta da pessoa durante sua vida para, após uma análise ampla, verificar se há fatos que per- mitam concluir ser moralmente inidônea e de má reputação. Entre os fatos a serem levados em consideração podemos citar os seguintes: existência de processos judiciais de natureza cível ou criminal; existência de processos administrativos em sua vida funcional, caso tenha exercido cargo ou função pública; títulos protestados; informa- ções negativas em estabelecimentos bancários e órgãos comerciais etc.”.6

6 CONTI, José Mauricio. Direito Financeiro na Constituição de 1988, p. 44. Levantamento da jurisprudência permite encontrar alguns parâmetros, como “envolvimento em fato capitulado como crime de sequestro e extorsão em imputação formal e séria, tendo sido recebida a denúncia contra ele oferecida” (RT 576/55). A conduta do candidato “estar sendo objeto de investigação em processo administrativo, que lhe infringiu uma penalidade” já obstou a nomeação para car- gos estatutários em instituições financeiras (TRF-5, Ap. 19236-68.2012.4.05.8300, rel. Des. Fed. José Maria Lucena, j. 27.3.2014). A Delegacia Geral de Polícia de São Paulo, ao regulamen- tar a concessão de porte de arma aos cidadãos, editou Portaria trazendo critérios bastante objeti- vos para o fim de apurar a idoneidade do requerente: “comprovação de idoneidade, com apresen- tação de Certidões de Antecedentes Criminais da Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal por infrações penais prati- cadas com violência, grave ameaça ou contra a incolumidade pública” (Portaria 24, de 16 de se- tembro de 97, da Delegacia Geral de Polícia de São Paulo, art. 9º, II). E o Estatuto da OAB também traz dispositivo neste sentido: “Não atende ao requisito de idoneidade moral aquele que tiver sido condenado por crime infamante, salvo reabilitação judicial” (Lei 8.906/1994, art. 8º,

  • 4º). Outros exemplos podem ser encontrados, como já exposto na mencionada obra.

 

 

Não obstante algumas dificuldades em precisar esses conceitos, é injustifi- cável o abrandamento dos requisitos para a nomeação, tendo em vista que os membros dos Tribunais de Contas contam com prerrogativas equivalentes a dos membros do Poder Judiciário (do STJ, no caso de ministros do TCU, e dos De- sembargadores, no caso de conselheiros dos tribunais estaduais). Até para que se analisem as circunstâncias de eventual condenação criminal ou por improbidade é que se torna necessário conferir transparência às informações sobre a conduta do indicado.

A respeito do requisito de notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econô- micos e financeiros ou de administração pública (previstos no art. 73, § 1º, III, da Constituição), é fundamental e imprescindível que o indicado apresente um sólido conjunto de conhecimentos relacionados à atividade de controle externo. Este é o propósito constitucional. Não é, igualmente, necessário que a qualificação se apre- sente em todas as áreas mencionadas em conjunto, mas que em ao menos alguma delas o indicado se destaque. Como, no entanto, tornar menos discricionária a nomeação com base nestes critérios tão amplos, a ser feita ou pelo Poder Legislativo ou pelo Poder Executivo? Ainda que não se possa dar resposta definitiva, oferece informações relevantes a este respeito a diplomação em curso superior referente a alguma das áreas constitucionalmente destacadas,7 um conjunto considerável de publicações especializadas e outras atividades que possam recomendar o candidato mesmo que apresente, eventualmente, área de formação distinta da jurídica, econô- mica, contábil ou administrativa. Não é possível, no entanto, como já mencionado, considerar como pré-requisitos a serem obrigatoriamente preenchidos. Pode ocor- rer – e não faltarão exemplos – de engenheiros, médicos e outros profissionais te- rem longa carreira política, e ocuparem cargos de prefeito, deputado, governador, senador, presidente, o que faz com que, ao longo do tempo, adquiram notórios conhecimentos de administração pública, superiores àqueles obtidos pelos que ob- têm graduação em um curso superior nesta área.

Por fim, exige a Constituição, além dos notórios conhecimentos em pelo me- nos uma das áreas a que se refere o artigo 73, § 1º, III, contar o postulante ao

7    Este requisito, no entanto, foi bastante abrandado pelo Supremo Tribunal Federal, que admite o preenchimento do cargo por candidato que sequer tenha diploma de nível superior, confe- rindo ampla liberdade para a nomeação: “A qualificação profissional formal não é requisito à nomeação de conselheiro de tribunal de contas estadual. O requisito notório saber é pressupos- to subjetivo a ser analisado pelo governador do Estado, a seu juízo discricionário (AO 476, rel. p/o ac. Min. Nelson Jobim, j. 16.10.1997, DJ de 5 de novembro de 1999).

 

 

cargo com mais de 10 anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissio- nal que exija os conhecimentos mencionados.

Evidentemente, deve ter este tempo de experiência em pelo menos uma das áreas, não em todas. Também é coerente admitir que seja possível somar tempos de exercício de função em áreas diversas, dentre aquelas cujo conhecimento é exigido. Assim, se o postulante ao cargo exerceu por 5 anos função que exija conhecimentos jurídicos, e por outros 5 anos atividade profissional na área de administração pú- blica, o requisito foi preenchido.

É importante ressaltar ainda que o texto constitucional fala em “efetivo exer- cício”, ou seja, considera imprescindível que a pessoa tenha, de fato e comprovada- mente, realizado aquelas atividades durante o período referido. Assim, um bacharel em Direito que esteja inscrito na Ordem dos Advogados por 10 ou mais anos, mas que durante este período não praticou qualquer atividade profissional na área jurí- dica, não está apto a assumir o cargo de Ministro do Tribunal de Contas.

A realidade nos mostra, contudo, que este rigor na escolha dos Ministros e Conselheiros dos Tribunais de Contas é apenas aparente. Uma injustificável leniência dos responsáveis pela escolha tem sido a regra em boa parte dos Tribu- nais de Contas do país, deixando transparecer que os critérios políticos são os que prevalecem.

E não há como fazer severas críticas aos critérios e requisitos estabelecidos, uma vez que em outros órgãos, como o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, os critérios são ainda mais abertos e flexíveis, e mesmo assim a influência política, no mais das vezes, não tem impedido que os escolhidos atendam as exigências constitucionais.

Lamentavelmente está-se diante de um verdadeiro “costume” que se solidi- ficou entre nossos políticos, que veem os cargos de cúpula dos Tribunais de Con- tas como integrantes das “cotas” de que dispõem para suas nomeações “apadri- nhadas”, e agora não se consegue mais desconstruir essa má conduta que se impregnou em nossa administração pública e tem sido a principal responsável pela ocupação indevida desses cargos por candidatos que não preenchem os re- quisitos constitucionais. É seguramente o que explica a existência de escândalos como o que ocorreu alguns dias atrás, maculando a imagem desses órgãos fun- damentais para zelar pela lisura no trato dos recursos públicos. Uma pena, pois os Tribunais de Contas têm e sempre tiveram grandes nomes que muito enobre- cem o serviço público, e como sempre alguns acabam praticando atos que preju- dicam a imagem de toda a instituição.

 

 

No excelente trabalho produzido recentemente por Juliana Sakai e Natália Paiva,8 ficou clara essa preponderância dos critérios políticos na nomeação dos Conselheiros dos Tribunais de Contas dos Estados.

Em minucioso levantamento, chegam à conclusão de que os Tribunais de Contas têm seus órgãos de cúpula ocupados majoritariamente por ex-políticos de carreira. O levantamento realizado demonstra ainda que “80% ocuparam, antes de sua nomeação, cargos eletivos ou de destaque na alta administração pública (como dirigente de autarquia ou secretário estadual, por exemplo); 23% sofrem processos ou receberam punição na Justiça ou nos próprios Tribunais de Contas; e 31% são parentes de outros políticos – em alguns casos, foram nomeados pelos próprios tios, primos ou irmãos governadores”. E trazem informações que colocam por terra os requisitos de notórios conhecimentos nas áreas finalísticas específicas da atua- ção dos Tribunais de Contas: “O conselheiro Antônio Cristóvão Correia de Mes- sias, do TCE-AC, por exemplo, atuou como médico até sua nomeação pelo então governador do estado Orleir Messias Cameli (PPR), seu primo. A conselheira do TCE-GO Carla Cíntia Santillo, filha do ex-governador do estado e ex-conselheiro do TCE-GO Henrique Antônio Santillo, é formada em odontologia e foi deputada por quatro anos antes da nomeação. No TCM-BA, os conselheiros Fernando Vita e Paolo Marconi são jornalistas, tendo trabalhado em veículos de comunicação e assessorias de imprensa. Vita também é escritor de romances”.9

Encontram-se em tramitação no Congresso Nacional propostas para tornar o processo de indicação de ministros do TCU mais objetivo e menos propenso a fa- vorecer indicações sem respaldo técnico para o exercício do cargo. De acordo com o Projeto de Decreto Legislativo 1.580/2014, os requisitos constitucionais gerais de nomeação (a serem observados tanto nas indicações do Legislativo como do Exe- cutivo) receberiam parâmetros adicionais de aferição, tais como a comprovação de cursos de graduação ou pós-graduação em áreas que permitam verificar os notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos, financeiros ou de administração pública. Adicionalmente, as vagas previstas para o Congresso Nacional (dois terços dos nove ministros). Assim, a proposta estabelece que ao menos dois dos seis mi- nistros indicados pelo Poder Legislativo federal sejam auditores, concursados espe- cificamente para o exercício de atividades típicas de controle externo, conforme

8      Quem são os conselheiros dos Tribunais de Contas? Transparência Brasil. Disponível em:

<www.transparencia.org.br>.

9      Quem são os conselheiros dos Tribunais de Contas? Transparência Brasil. Disponível em:

<www.transparencia.org.br>, p. 8.

 

 

recomendação da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tri- bunais de Contas do Brasil (ANTC). Para evitar potenciais conflitos de interesses entre a conduta como ministro e a vida profissional e política pregressa, veda-se, ainda, que o candidato ao cargo vitalício de Ministro do TCU tenha sido Ministro de Estado ou ocupado cargo equivalente, assim como presidente de entidade da Administração Indireta federal, ou que tenha ainda exercido cargo de representan- te sindical ou associativo nos três anos anteriores à indicação.10

O Estado brasileiro passa por um período de reconstrução, e, para isso, mora- lizar a ocupação dos altos cargos na administração pública é requisito fundamen- tal. Os Tribunais de Contas, como não se pode deixar de reconhecer, desempe- nham o papel mais importante na fiscalização da atividade financeira do setor público, tendo um papel central nessa missão de colaborar para esse novo país que está por vir. É preciso também fiscalizar os fiscais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

10 Ver, a propósito, as alterações dos artigos 1º, 2º e 3º do Decreto Legislativo 6/1993 contidas no Projeto de Decreto Legislativo 1.580/2014. As propostas de emendas constitucionais (PEC) 329/2013 e 40/2016 também trazem importantes contribuições para aperfeiçoar a forma de composição dos Tribunais de Contas.

 

 

DISCuTINDO A RELAçÃO ENTRE O PODER JuDICIÁRIO E OS TRIBuNAIS DE CONTAS

 

 

Coluna publicada em 12.12.2017: <https://www.conjur.com.br/2017-dez-12/ contas-vista-discutindo-relacao-entre-poder-judiciario-tribunais-contas>

 

 

 

 

 

O sistema de tripartição de Poderes adotado pelo Estado brasileiro não nos dá a exata dimensão de como funciona efetivamente a distribuição dos Poderes em nossa República. A organização estabelecida pela nossa Constituição, que prevê como Poderes independentes o Legislativo, o Executivo e o Judiciário (art. 2º) de- corre de uma evolução em que muitas são as possibilidades oferecidas pelos vários e relevantes estudos de Teoria do Estado, que não é o caso de se aprofundar agora, mas evidencia o quão difícil e complexo é construir um modelo ideal de Estado e respectiva administração pública.

Essa organização e separação de Poderes não é absolutamente precisa nem uniforme pelo mundo, e a relação entre eles é diversificada, cada caso com suas peculiaridades e características próprias, estabelecendo várias formações e diferen- ças de relacionamento entre si. Há desde as separações mais rígidas, como é o caso do Brasil, com garantias claras e formais de autonomia, até outras menos, como se vê nos regimes parlamentaristas.

E há órgãos e instituições independentes que sequer figuram nessa relação.

No Brasil, por exemplo, os tribunais de contas são dotados de garantias que lhes conferem autonomia, embora não integrem quaisquer dos Poderes referidos.

Em Portugal, há referência na Constituição não ao Poder Judiciário, mas aos tribunais, entre os quais se incluem os tribunais de contas como um tribunal espe- cializado em matéria financeira.

Nos países de tradição anglo-saxã, nem existem tribunais de contas, e as fun- ções de análise das contas públicas são cumpridas por órgãos não colegiados, os chamados “escritórios de auditoria”. É o caso, para citar alguns exemplos, do U.S.

 

 

Government Accountability Office (GAO), nos Estados Unidos, do National Audit Office (NAO), no Reino Unido, e, na Austrália, do Australian National Audit Offi- ce (ANAO).

Uma evidência das múltiplas diferenças nas formas de organização da admi- nistração pública e distribuição dos Poderes do Estado.

Outros órgãos também são dotados de elevado grau de autonomia, como se pode constatar, no Brasil, quanto ao Ministério Público e à Defensoria Pública.

Interessa particularmente para o Direito Financeiro a atuação dos tribunais de contas, tendo em vista sua direta relação com o controle da atividade financeira do Estado.1

E, no que se refere às finanças públicas, as relações de poder entre os órgãos que os exercem são sempre mais delicadas e exigem maior atenção.

Não é por outra razão que o orçamento público é a “lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abaixo da Constituição (…)”, por ser “a que mais influencia o destino da coletividade”.2

Nesses casos, é importante a exata delimitação de competências, com a espe- cificação das funções que cada um exerce, a fim de evitar conflitos entre os órgãos do Estado que exercem poderes no âmbito das finanças públicas.

No Brasil, os tribunais do Poder Judiciário e os tribunais de contas exercem funções essenciais e fundamentais para o funcionamento de nosso Estado Demo- crático de Direito, e a harmonia entre eles, preconizada logo no artigo 2º da Cons- tituição, sempre deve prevalecer e há de ser um princípio a ser seguido à risca, sem o que todos saem prejudicados.

Trata-se de uma relação importantíssima no âmbito do Direito Financeiro, cujos detalhes exigem por vezes ajustes finos que pouco têm sido analisados e abor- dados e demandam um maior aprofundamento. Atritos e desgastes nessas relações não são bem-vindos.

1  Os tribunais de contas já foram por diversas vezes abordados nesta seção, e remeto os leitores em Tribunais de contas são guardiões do dinheiro público, nesta edição, p. 317-322 e “PEC do padrão mínimo” vai aperfeiçoar tribunais de contas, nesta edição, p. 339-344.

2 Conforme as bem lançadas palavras do ministro Carlos Ayres Britto durante o paradigmático julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.048, em 2008: “Abaixo da Constitui- ção, não há lei mais importante para o país, porque a que mais influencia o destino da coleti- vidade”; é a “lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abaixo da Constituição” (Min. Carlos Britto, STF, Tribunal Pleno, ADI 4.048-MC/DF, rel. Min. Gil- mar Mendes, j. 14.5.2008).

 

Discutindo a relação entre o Poder Judiciário e os Tribunais de Contas ••

 

Mas a crescente importância das normas de Direito Financeiro, e o cada vez mais necessário respeito que se deve a elas, têm intensificado os aspectos controver- tidos dessas relações e os potenciais e efetivos pontos de atrito e conflito, que devem ser objeto de atenção, reflexão e rápida solução.

Chamei a atenção para algumas dessas questões há algum tempo, por ocasião das discussões acerca do impeachment da presidente recentemente afastada do car- go, em que descumprimentos das normas de Direito Financeiro deram origem a vários tipos de demandas, de várias naturezas, em órgãos diferentes, sujeitos a pro- cedimentos distintos. Foi quando se pôde notar que uma operação de crédito ilegal pode caracterizar um crime comum, um ato de improbidade administrativa, uma infração administrativo-financeira e crime de responsabilidade. O que coloca em xeque a atuação simultânea do Poder Judiciário, do Tribunal de Contas da União e do Congresso Nacional. Com potencial, ainda sem solução satisfatória e definiti- va, de resultarem em decisões contraditórias e conflitantes.3

Recentemente, intensificou-se o conflito entre o Poder Legislativo e os tribu- nais de contas no que tange ao julgamento das contas dos prefeitos. A decisão do Poder Judiciário (STF), nos RE 848.826 e 729.744, provocou polêmica ao atribuir às câmaras de vereadores a competência para o julgamento das referidas contas, mesmo quando se trata de contas de gestão, nas quais atuavam como ordenadores de despesas, caso em que tinham suas contas apreciadas e julgadas pelos tribunais de contas. Vê-se o Poder Judiciário interferindo para delimitar atribuições no âm- bito do controle externo.4

O Conselho Nacional de Justiça, desde sua criação, nunca teve bem delimita- das suas exatas atribuições no que tange à sua função de exercer o “controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário” (Constituição, art. 103,

  • 4º), sendo muitos os conflitos com a atuação dos tribunais de contas, a quem também compete a fiscalização financeira da administração pública e, por conse- quência, dos tribunais. Uma fonte de insegurança jurídica e relações conflituosas que está há tempos exigindo mais atenção.

É interessante notar que as relações entre os Poderes não são sempre conflituo- sas. Podem ser bastante harmônicas, como se deseja. Há, no entanto, situações em que se excede nessa “harmonia”, tão intensa que deixa de ser republicana. É o que se vê por vezes nas indicações para a composição dos tribunais de contas, atribuição

3      Cuidado, pedalar pode dar cadeia!, nesta edição, p. 405-410.

4      Sobre o tema, veja-se coluna Supremo gera polêmica ao decidir sobre julgamento de contas de prefeitos, esta edição, p. 345-350.

 

 

dos Poderes Legislativo e Executivo, que têm o péssimo hábito de não levar em consideração critérios constitucionais e meritocráticos, deixando prevalecer o com- padrio, e o resultado são escolhas de membros que ficam devendo em termos de “competência”.

Nos últimos tempos o Poder Judiciário passou a intervir duramente nessa re- lação, afastando do cargo e até mesmo levando à prisão conselheiros de tribunais de contas de vários estados por irregularidades cometidas.5 Curioso notar que as relações entre os Poderes ao mesmo tempo exageram na intimidade para em segui- da terminarem em graves conflitos. Uma verdadeira relação de amor e ódio, nada simples de se explicar nem de entender.

Não são poucos os casos em que essa relação harmoniosa entre os Poderes envolve verdadeiras trocas de favores, “nepotismos cruzados”, leniências recíprocas na fiscalização de irregularidades e tantas outras. Uma demonstração de que a harmonia precisa existir e estar presente, mas em termos republicanos! Nem toda harmonia é a adequada para o bem do Estado Democrático de Direito.

Igualmente indesejáveis são as relações desarmônicas e conflituosas, com in- terferências que ultrapassem os limites constitucionais.

Razões suficientes para que o Poder Judiciário e os tribunais de contas – bem como os demais poderes e órgãos independentes – “discutam a relação” e encon- trem as soluções para uma convivência realmente harmônica, imprescindível para que o Estado brasileiro possa atingir seus objetivos fundamentais o quanto antes.

Uma discussão que não pode ser postergada, até porque se está diante de um verdadeiro “casamento” absolutamente indissolúvel, insuscetível de separação ou divórcio. Ou caso se prefira reconhecer uma “união estável”, sendo inviável o rom- pimento do compromisso, é imprescindível que os termos do “contrato de convi- vência” sejam claros, precisos e transparentes, sem o que os conflitos se intensifica- rão, e os tapas vão se sobrepor aos beijos.

O final de ano está chegando, época oportuna para esquecer as diferenças, promover e celebrar a paz e a harmonia – entre as pessoas e os Poderes.

 

 

 

 

 

 

 

5      Moralização da administração pública: chegou a vez dos Tribunais de Contas, nesta edição, p. 359-366.

 

 

DEvOLvAM NOSSO DINHEIRO: guERRA CONTRA A CORRuPçÃO vENCE

MAIS uMA BATALHA

 

 

 

Coluna publicada em 21.8.2018: <https://www.conjur.com.br/2018-ago-21/

contas-vista-guerra-corrucao-vence-batalha>

 

 

 

 

 

A luta contra a corrupção é uma guerra permanente e, como todas, composta de muitas batalhas que precisam ser vencidas. É previsível que não são nem serão fáceis. Nas últimas semanas, tivemos um exemplo delas, em razão de importante ação julgada pelo Supremo Tribunal Federal1 que teve ampla cobertura da mídia.2

No julgamento do RE 852.475, discutia-se a possibilidade de prescrição das ações de ressarcimento por danos ao erário. Iniciado o julgamento, tendo o relator e cinco ministros votado a favor da tese do reconhecimento da prescrição após decor- ridos cinco anos, o ministro Luiz Edson Fachin abriu divergência, convenceu os demais ministros e houve até mudança de posição dos ministros Luiz Fux e Rober- to Barroso, que já haviam votado, e ao final o julgamento acolheu sua tese, pela apertada margem de 6 votos a 5, no sentido de não admitir a prescrição nesses casos.

1    RE 852.475/SP, julgamento ocorrido nos dias 2 e 8 de agosto.

2 Maioria no STF é a favor de prescrição de dever de ressarcir erário em cinco anos (ConJur, 2 de agosto de 2018); “Dodge diz que decisão do STF sobre improbidade pode dificultar combate à corrupção” (UOL, 6 de agosto de 2018); “Dodge critica prazo de 5 anos para prescrição de ações” (Valor Econômico, 7 de agosto de 2018); Dever de ressarcir o erário por improbidade não prescreve, decide Supremo (ConJur, 8 de agosto de 2018); “Em reviravolta, STF diz que não há prazo para cobrar ressarcimento em improbidade” (Jota, 8 de agosto de 2018); “Supremo decide que ações para ressarcir cofres públicos não prescrevem” (Folha de S.Paulo, 8 de agos- to de 2018); “STF decide que não há prazo para cobrança na Justiça de dinheiro público desviado de forma dolosa” (G1, 8 de agosto de 2018); “Julgamento no Supremo ameaça retor- no de dinheiro da Lava Jato” (O Estado de S.Paulo, 8 de agosto de 2018); “STF decide que não há prazo para devolução de dinheiro público desviado” (Exame, 8 de agosto de 2018); “‘Errônea ideia de imprescritibilidade causará insegurança jurídica’, diz Moraes” (ConJur, 9 de agosto de 2018).

 

 

Como bem observou o ministro Fachin, “não há incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito, ou com o Estado de Direito Democrático, susten- tar a imprescritibilidade das ações de ressarcimento em matéria de probidade, eis que não rara a prescrição é o biombo por meio do qual se encobre a corrupção e o dano ao interesse público”.

Ou seja, por muito pouco não se abriu margem à impunidade para aqueles que causam prejuízos aos cofres públicos, como ocorre com a maior parte dos casos que envolvem atos de corrupção.

Para que se tenha uma visão rápida e superficial do caso em discussão, trata-se de ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público de São Paulo em que houve condenação de gestor público por ato de improbidade admi- nistrativa que resultou em dano ao patrimônio público, pelo qual foi condenado ao ressarcimento, além das demais penalidades cabíveis.

Discutiu-se a interpretação do disposto no artigo 37, §§ 4º e 5º da Constitui- ção, no que tange à previsão do dever de ressarcimento ao erário nos atos de impro- bidade administrativa e eventual prescrição aplicável.3

O relator, ministro Alexandre de Moraes, defendeu a tese da aplicação do ar- tigo 23 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), que prevê a pres- crição da pretensão punitiva em cinco anos, devendo ser aplicada essa regra, pois a imprescritibilidade fere os princípios da segurança jurídica e ampla defesa, e não se enquadram na hipótese de exceções à imprescritibilidade contidas no artigo 37, XLII e XLIV da Constituição.

Prevaleceu, no entanto, por apertada maioria, o argumento do ministro Fa- chin, segundo o qual a ressalva contida no § 5º do artigo 37 tem a função justa- mente de reconhecer a imprescritibilidade das ações cíveis de ressarcimento ao erá- rio fundadas na prática de ato de improbidade administrativa. A tese do Tema 897 da sistemática da repercussão geral ficou assim redigida: “São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”.

Se não acolhida a tese do ministro Fachin, ficaria enfraquecida a luta contra a corrupção e em muito prejudicaria o esforço que vem sendo feito na recuperação de dinheiro desviado por corrupção, como se tem visto ultimamente, ainda que

3 O artigo 37, § 5º, prevê: “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”.

 

 

por outros instrumentos jurídicos, como os recentes casos decorrentes da opera- ção “lava jato”.4

Diante do resultado, mantém-se agora firmes os poderes de pessoas e órgãos que estão na linha de frente desse combate, como é o caso do Ministério Público.

Limitar a possibilidade de promover ações de ressarcimento em atos de impro- bidade administrativa ao prazo prescricional de cinco anos é um benefício que acabaria por beneficiar os “malfeitores” do erário, o que é inaceitável nos tempos atuais. No mais das vezes, esses atos envolvem irregularidades complexas, difíceis de serem apuradas e comprovadas, sendo o prazo de cinco anos invariavelmente insuficiente para permitir que se aplique ampla e devida punição e que, mais im- portante do que isso, se facilite a recuperação dos recursos públicos.

O caso em questão trata especificamente da aplicação da prescrição da preten- são de ressarcimento ao erário em caso de improbidade administrativa, em razão de ação movida pelo Ministério Público no exercício de sua competência, evidencian- do a importância desse órgão não só no combate à corrupção, como também e principalmente na recuperação dos recursos desviados do erário, como se tem visto com frequência.

Mas esse fato traz uma boa oportunidade para destacar as importantes fun- ções dos tribunais de contas na defesa do erário e na recuperação de recursos des- viados dos cofres públicos. Principais órgãos responsáveis pela fiscalização das con- tas públicas, os tribunais de contas, verdadeiros “guardiões do dinheiro público”,5 dispõem de importante função sancionatória e poder punitivo em face dos agentes públicos que causam prejuízos aos cofres públicos, além de capacidade de recuperar recursos desviados.

E mostrar também que o ordenamento jurídico em matéria de Direito Finan- ceiro tem instrumentos que precisam ser conhecidos e utilizados em defesa do erário na luta contra esses “malfeitores” das finanças públicas.

Causar prejuízo aos cofres públicos, como se pode constatar, promove danos extremamente graves, pois os recursos desviados afetam diretamente a ação do Estado, prejudicando a execução das políticas governamentais e o atendimento das necessidades públicas, e não há mais como ser aceito. A sociedade brasileira está verdadeiramente com “tolerância zero” para esses atos. Clama por um endurecimen- to no tratamento desse tema e rigor cada vez maior na punição dos responsáveis.

4      “Lava-jato faz quatro anos e recupera R$ 11,5 bi por meio de acordos” (UOL, 11 de março de 2018).

5      Veja a coluna Tribunais de contas são os guardiões do dinheiro público, nesta edição, p. 317-322.

 

 

A legislação e doutrina brasileiras não definem claramente essas questões, e a responsabilização pelos danos ao erário vinha sendo tratada de forma difusa em vários diplomas normativos e em vários ramos do Direito.

Emerson Gomes, em sua obra Responsabilidade financeira, sistematiza a ques- tão, identificando a responsabilidade financeira como sendo uma categoria jurídica autônoma, que se diferencia das espécies tradicionais de responsabilidade (civil, penal, administrativa e por improbidade administrativa), não obstante haver pon- tos de intersecção.6 A responsabilidade financeira pode ser definida, segundo o autor, como sendo “a obrigação de repor recursos públicos (imputação de débito) ou de suportar as sanções previstas em lei, no âmbito do controle financeiro exer- cidos pelos Tribunais de Contas, em razão da violação de normas pertinentes à gestão de bens, dinheiros e valores públicos ou dos recursos privados sujeitos à guarda e administração estatal”.7

No Direito português, que reconhece expressamente a categoria da responsa- bilidade financeira, vê-se que podem ser identificadas duas modalidades, a sancio- natória e a reintegratória.8 A responsabilidade sancionatória “compreende a aplica- ção de sanção pecuniária, multa, no caso de infrações essencialmente financeiras e infrações não essencialmente financeiras”.9 Os tribunal de contas no Brasil podem aplicar multas, conforme expressamente prevê o artigo 71, VIII, que têm eficácia de título executivo (art. 71, § 3º). A responsabilidade reintegratória “importa na obrigação de repor as quantias correspondentes ao dano patrimonial causado ao Erário em razão da violação de normas e princípios pertinentes à gestão de bens, dinheiros e valores públicos”.10

O caso discutido no STF relata precisamente uma hipótese de ato de improbi- dade administrativa que importou em dano ao erário, caso típico de responsabilidade reintegratória, devendo o infrator ressarcir os prejuízos causados aos cofres públicos.

No âmbito dos tribunais de contas, a conduta dolosa ou culposa do gestor de recursos públicos que implique dano ao erário acarretava a responsabilidade finan-

 

6      GOMES, Emerson C. S. Responsabilidade financeira – uma teoria sobre a responsabilidade no âmbito dos tribunais de contas. Porto Alegre: Núria Fabris, 2012. p. 337.

7      GOMES, Emerson C. S. Responsabilidade financeira – uma teoria sobre a responsabilidade no âmbito dos tribunais de contas. Op. cit., p. 35-36.

8      TAVARES, José F. F. O Tribunal de Contas. Coimbra: Almedina, 1998. p. 241.

9      GOMES, Emerson C. S. Responsabilidade financeira – uma teoria sobre a responsabilidade no âmbito dos tribunais de contas. Op. cit., p. 134.

10     GOMES, Emerson C. S. Responsabilidade financeira – uma teoria sobre a responsabilidade no âmbito dos tribunais de contas. Op. cit., p. 160.

 

 

ceira reintegratória. A Lei 13.655/2018 alterou um pouco essa sistemática, e o ges- tor público passou a responder somente em caso de dolo ou erro grosseiro.11

Por sua vez, a questão da “prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas” ainda será apreciada pelo STF no RE 636.886, sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes (Tema 899 da re- percussão geral). É possível que o Supremo considere prescritíveis tais pretensões tendo em vista, principalmente, que as condenações dos tribunais de contas são oriundas de condutas culposas, o que tem a ver com os meios de prova disponíveis às cortes de contas.

De qualquer forma, é certo que os tempos mudaram, como se pode ver. O Brasil tornou-se intolerante com a corrupção em suas diversas modalidades, que se transformou em preocupação “número 1” de toda a sociedade. O “Brasil que eu quero” não admite mais a corrupção, como se pode facilmente constatar. O tempo em que os ricos e poderosos não iam para a cadeia já ficou para trás, uma fase su- perada e exemplo para o mundo. Os complexos penitenciários de Pinhais, na re- gião de Curitiba, e da Papuda, em Brasília, estão aí para demonstrar, com seus “hóspedes” que um dia já foram ilustres personalidades.

O dinheiro público é de todos. Não se pode afrouxar essas regras. Não pode- mos todos pagar a conta daqueles que dele se apropriaram, usaram e agora querem ficar livres da obrigação de devolver o dinheiro que é e sempre foi nosso.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

11  Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

 

 

 

 

OAB FINALMENTE vAI PRESTAR CONTAS: DECISÃO DO TCu CORRIgE ERRO HISTóRICO

 

 

 

 

Coluna publicada em 13.11.2018: <https://www.conjur.com.br/2018-nov-13/ contas-vista-decisao-tcu-manda-oab-prestar-contas-corrige-erro-historico>

 

 

 

 

 

No último dia 7,1 o Tribunal de Contas da União tomou uma decisão impor- tante para a transparência e o sistema de controle e fiscalização das contas públicas: assentou que a OAB deve submeter suas contas ao Tribunal de Contas da União.2 Essa decisão corrige um erro histórico, sendo marcante para o Direito Financeiro, uma vez que incorpora ao sistema de fiscalização financeira a única entidade que, apesar de estar entre as que devem prestar contas, nunca o fez e sempre conseguiu se desvencilhar dessa obrigação constitucional.

Diz o artigo 70, parágrafo único, da Constituição, que “prestará contas qual- quer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária”.

Uma redação que não deixa qualquer margem a dúvida sobre a abrangência do sistema de fiscalização financeira da administração pública, que é o mais am- plo possível: onde há recursos públicos, atua o sistema de fiscalização das contas públicas.

E não permite que prevaleçam os argumentos que a OAB vem adotando como verdadeiro “escudo” para se “defender” da ação do TCU. Uma atitude que, além

1 TCU diz que OAB não é imune a controle e manda prestar contas a partir de 2021. ConJur, 7 de novembro de 2018.

2    Voto proferido no processo administrativo instaurado por determinação do subitem 9 de mar- ço de 2018 do Acórdão 1.114/2018-TCU-Plenário, nos autos do TC 008.199/2018-3 – Estudo técnico sobre a inclusão ou não da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como unidade prestadora de contas.

 

 

de contrariar a Constituição, é absolutamente injustificável em um Estado Demo- crático de Direito, em que a transparência e o dever de prestar contas é a regra, e não exceção. Muito mais condizente com os princípios republicanos seria a OAB voluntariamente, independentemente de qualquer obrigação constitucional, ofere- cer suas contas para serem analisadas não somente pelo TCU, mas por toda a so- ciedade brasileira. E não se esforçar para escapar de seu dever constitucional de prestar contas, como tem reiteradamente feito há décadas.

O tema é há muito discutido – desnecessariamente, uma vez que bastaria um gesto da OAB de não mais oferecer essa resistência e esse tema nem sequer estaria em pauta –, e muito já foi escrito e debatido a respeito. Sendo assim, mais útil é pontuar os argumentos que têm sido levantados, e rebatê-los um a um, esperando que com isso não restem mais dúvidas a respeito dessa questão. E fica a esperança de que esta seja finalmente sepultada com a histórica decisão do TCU, que mais uma vez demonstra sua altivez na defesa da transparência das contas públicas e faz jus à condição de maior guardião do dinheiro público.3

  1. A OAB é um “órgão sui generis

Argumenta-se que a OAB seria uma instituição sui generis, sem natureza pú- blica, que não integraria a administração indireta da União, o que seria suficiente para colocá-la à margem do sistema de fiscalização financeira.4

Uma tese que não se sustenta.

O ministro Bruno Dantas, em seu voto no citado acórdão (nota de rodapé 2), expôs com clareza a questão, com apoio no parecer do Ministério Público de Con- tas, da lavra do procurador Lucas da Rocha Furtado, e não deixa dúvidas sobre a natureza de autarquia federal da OAB.

Trata-se de um serviço autônomo, criado por lei e com personalidade jurídica (Estatuto da OAB, art. 44), patrimônio e receita próprios (idem, art. 46, caput, 54, XVI e 55, § 1º), e desempenha atividade típica da administração pública, uma vez que exerce a fiscalização da atividade profissional dos advogados, exercendo poder de polícia administrativa, como fazem todos os demais conselhos profissionais, em uma atividade típica de manifestação do poder soberano do Estado (Constituição, arts. 21, XXIV e 22, XVI).5

3      Tribunais de Contas são os guardiões do dinheiro público, nesta edição, p. 317-322.

4      Nesse sentido há inclusive a decisão do STF na qual se apoia a OAB para sustentar essa tese, proferida na ADI 3.026-4/DF.

5      Vide voto do Min. Bruno Dantas, nota de rodapé 2, p. 9-11.

 

 

É fato que a OAB tem prerrogativas próprias, que extrapolam a simples atua- ção no âmbito corporativo da carreira dos advogados e não permitem equipará-la integralmente aos demais conselhos profissionais. Tem funções institucionais de defesa dos interesses da sociedade brasileira, e isso exige que se tenha especial aten- ção no respeito à sua autonomia e independência. É o caso da iniciativa para pro- positura de ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucio- nalidade (Constituição, art. 103, VII). E é verdade, como se tem sustentado, que tem sido uma voz crítica da sociedade em defesa dos ideais democráticos. No en- tanto, tais prerrogativas e atuação crítica em nada justificam sua exclusão da cate- goria de entidade com natureza de autarquia federal, que integra a administração indireta da União, uma vez que uma coisa nada tem a ver com a outra. Não há órgãos com maiores garantias constitucionais de independência que o Poder Judi- ciário, Ministério Público, os próprios tribunais de contas e tantos outros, e que integram a administração direta, o que afasta por completo qualquer relação de subordinação entre o fato de integrar a administração pública e ter autonomia e independência de qualquer natureza.

Além de inconsistente o argumento que coloca a OAB em um “limbo” jurídi- co no que se refere à sua natureza jurídica, tentando retirá-la da condição de órgão da administração indireta da União, esse fato não afasta em absoluto o dever de submeter suas contas ao TCU.

Como se vê da redação do texto constitucional, deverá prestar contas “qual- quer pessoa física ou jurídica, pública ou privada” (grifo nosso), pouco impor- tando para esse fim, portanto, a sua natureza jurídica, uma vez que o aspecto subjetivo da sujeição à fiscalização é apenas um dos motivos que leva à obrigação de prestar contas.

Importa também o aspecto objetivo, qual seja, a natureza dos recursos envol- vidos. Como diz a Constituição – que a OAB tem o dever institucional de defen- der, e é o que lhe dá argumento para ser um “órgão sui generis” –, deverá prestar contas quem “utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda”.

E quanto a isso não há dúvidas, não obstante os esforços argumentativos em sentido contrário, como se verá a seguir.

  1. A OAB “não gerencia recursos públicos”

Outro argumento que vem sendo reiteradamente utilizado refere-se à natureza jurídica da contribuição à OAB, que não seria recurso público.

 

 

A contribuição à OAB é cobrada com fundamento no artigo 149, inserto no capítulo do sistema tributário nacional da Constituição, que autoriza a União a instituir contribuições de interesse de categorias profissionais, devendo observar o disposto nos artigos 146, III (normas gerais em matéria tributária) e 150, I (princí- pio da legalidade) e III (princípios da irretroatividade e anterioridade), cobrança essa que não é feita diretamente pela União, mas tem sua capacidade tributária ativa delegada à OAB.

O mesmo ocorre com as demais categorias profissionais, cujos órgãos de clas- se também cobram as referidas contribuições, como os diversos conselhos de fisca- lização das atividades profissionais, estando assentada a natureza de autarquias corporativas cujas contribuições tem natureza tributária.6

A clareza do texto constitucional não deixa qualquer margem a outra interpre- tação.7 O mundo jurídico, no entanto, sempre pode surpreender e permite encon- trar argumentos e decisões que sustentam todas as posições. Fica com o intérprete o encargo de aceitá-los – ou não.

A OAB já teve decisões favoráveis à tese de que suas contribuições não têm natureza tributária. O fundamento foi o seguinte: como os tributos devem ser submetidos ao regime jurídico tributário, devendo obedecer aos princípios da ti- picidade, tendo seus elementos material (hipótese de incidência) e subjetivo, quantitativo, espacial e temporal previstos na norma que o institui, e isso não ocorre no caso da OAB, que tem suas contribuições fixadas à margem dessas re- gras, isso levaria à conclusão de que tenha natureza de contribuição de caráter associativo.8 O que se permite compreender desse raciocínio é que, se a Consti- tuição determina que devam ser cumpridas determinadas regras, mas elas não são cumpridas, então a Constituição não se aplica ao caso. Um verdadeiro “salto tri- plo carpado hermenêutico”, para usar as palavras do ministro Carlos Ayres Brito (STF, RE 630.147).

  1. Ter as contas fiscalizadas pelo TCU prejudica a independência da OAB

Submeter-se à prestação de contas perante os órgãos oficiais de fiscalização, em obediência às determinações constitucionais previstas no artigo 70 da Consti-

6 STF, MS 21.797-9, j. 9.3.2000. Vide, nesse sentido, publicação do TCU em que a questão é bem exposta: BRASIL. TCU. Orientações para os Conselhos de Fiscalização das Atividades Pro- fissionais. Brasília: TCU, 2014, p. 30-33.

7 E a jurisprudência também, por mais de uma vez, reconheceu a natureza tributária das contri- buições à OAB (STF, RE 138.284-CE e STJ, RE 652554, dentre outros).

8    STJ, Embargos de divergência em REsp 503.252-SC (2003/0151664-0), j. 25.8.2004.

 

 

tuição, é um dever de todos aqueles que administrem recursos de natureza pública, como é o caso da OAB, na forma do que já foi exposto. Uma decorrência dos prin- cípios que regem qualquer Estado Democrático de Direito e os ideais republicanos.

Como já mencionado, não há qualquer possibilidade de essa obrigação gerar vínculos de subordinação e hierarquia, tanto que todos os órgãos e poderes dotados de plena autonomia e independência constitucional a ele se submetem, e não as tiveram mitigada por essa razão. Apenas para ilustrar, o Poder Judiciário, cuja in- dependência é assegurada em cláusula pétrea pelos artigos 2º e 60, § 4º, III da Constituição, presta contas aos sistemas de controle externo, controle interno e ao Conselho Nacional de Justiça, além de submeter-se ao amplo leque de possibilida- des de controle social. Nem por isso está com sua independência amesquinhada sob qualquer aspecto. Seria por demais exagerado querer atribuir à OAB, que re- presenta a advocacia, função essencial à Justiça, prerrogativas que nem mesmo o Poder Judiciário tem.9

Ao fazer referência ao artigo 44 do Estatuto da OAB, que assegura não haver vínculo da OAB com órgãos da administração pública, o ministro Bruno Dantas foi preciso: “O dispositivo serve apenas para afirmar que a OAB é entidade autôno- ma e independente, não estando subordinada a qualquer órgão da administração pública. Essa ausência de subordinação ou vínculo não significa dizer que ela não está sujeita ao controle do Tribunal de Contas da União. Ausência de vínculo fun- cional ou hierárquico não é sinônimo de ausência de controle” (voto citado, p. 12).

A OAB alega ainda questão processual, referente à suposta “coisa julgada”, argumento que foi adequada e corretamente afastado pelo ministro Bruno Dantas em seu voto, e não se trata de tema afeto à área do Direito Financeiro, razão pela qual não pretendo me manifestar. E o que importa efetivamente é o mérito, pois, se a OAB conseguiu em outros tempos decisões que lhe foram favoráveis, quando não se dava à transparência das contas públicas o merecido destaque, que não seja

9 Nesse sentido, o procurador do Ministério Público de Contas junto ao TCU, Júlio Marcelo de Oliveira, em texto recente, foi claro e preciso em suas palavras: “Ser essencial à Justiça e defender direitos da cidadania, como a liberdade e a própria democracia, não é exclusividade da OAB. O Ministério Público e a Defensoria Pública compartilham essa mesma nobre missão, e prestar contas ao TCU não lhes retira nada de sua independência e autonomia para exercer seu múnus público com a mais ampla liberdade. Que dizer, então, da própria Justiça e do STF? Guardião máximo da Constituição e fiador da democracia, cumpre ao STF dirimir os mais delicados e decisivos conflitos da República, velar pela ordem democrática e pelo Estado de Direito, ser o depositário fiel da confiança da sociedade na força normativa da Constituição e no império da lei” (OLIVEIRA, Júlio Marcelo. A OAB deve prestar contas ao TCU? Sim. República para todos! Folha de S.Paulo, Seção Tendências/Debates, 2 de junho de 2018, p. A-3.

 

 

este um motivo para nelas se apoiar e com isso manter uma opacidade que não se justifica.

Como se pode constatar, todos os argumentos que tentam sustentar estar a OAB dispensada do dever constitucional de prestar contas ao sistema de fiscaliza- ção financeira são frágeis e incapazes de fazer prevalecer essa exceção, que nunca se coadunou com o ordenamento jurídico e os ideais republicanos e democráticos que ela tem o dever de defender.

Recentemente, o presidente do Conselho Federal da OAB, em texto no qual defende a não prestação de contas da OAB perante o TCU, enumerou vários argu- mentos, todos na linha do que se analisou há pouco. E formulou pergunta que merece resposta.10

Indaga o presidente: “Quem ganharia com a submissão da OAB – que é transparente,11 tem natureza privada e possui mecanismos eficientes de fiscalização e controle – a um órgão da administração pública federal? (…) Quem, então, ganha com isso?”.

Resposta: todos ganhariam. Os advogados, a sociedade brasileira, a Constitui- ção, o ordenamento jurídico. O país. O difícil é saber quem perde.

Outra deve ser a questão, que fica agora formulada e aguardando resposta: quem ganharia com a não submissão da OAB ao TCU?

Por oportuno, as eleições para OAB estão aí. É o momento de os candidatos mostrarem sua posição com relação a esse tema e fazer chegar à sociedade qual OAB pretendem: uma OAB defensora dos ideais democráticos, como historica- mente sempre foi, e isso inclui o princípio republicano, que tem entre seus pilares a transparência, ou uma OAB que parece ter medo do TCU?

Seria bom ouvi-los a respeito dessas questões, cujas respostas são importantes para a sociedade brasileira e para aqueles que querem continuar vendo a OAB de- fender os interesses da sociedade brasileira, dos princípios constitucionais e dos ideais republicanos, fazendo jus à sua história.

 

10  LAMACHIA, Cláudio. A OAB deve prestar contas ao TCU? Não. Medida política quer calar a voz crítica da Ordem. Folha de S.Paulo, Seção Tendências/Debates, 2 de junho de 2018, p. A-3.

11  Transparência essa um tanto questionável, pois, como escreveu o ministro Bruno Dantas em recente artigo na Folha de S.Paulo, “a OAB, na contramão dessa tendência, apresenta baixa transparência. Em seu site, por exemplo, não estão disponíveis informações detalhadas sobre suas atividades, receitas, despesas, contratos e empregados. Embora a entidade alegue ser con- trolada internamente, são ainda opacas as informações prestadas ao público e a seus contri- buintes” (Mais transparência para a OAB, publicada em 8 de novembro de 2018, Seção Ten- dências/Debates, p. A-3).

 

 

A decisão tomada recentemente pelo TCU põe um fim nesse erro histórico que perdura há décadas, causando uma mácula no sistema de fiscalização financei- ra, que a tem como único órgão não submetido a qualquer fiscalização financeira do poder público, apesar de se valer de recursos públicos para se financiar.

Aguardemos a posição da OAB, e ver se buscará novos “saltos triplos carpados hermenêuticos” para continuar fugindo do TCU. E se assim o fizer, ficará devendo aos advogados e à sociedade brasileira uma explicação convincente para essa atitude.

Haveria ainda muito a argumentar. Razões jurídicas para fundamentar o de- ver de prestar contas, não somente ao TCU, mas também e principalmente à socie- dade brasileira são abundantes. Mas o mais importante é o dever institucional pe- rante nosso Estado Democrático de Direito, e esse caberá à OAB decidir se deve ou não observar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DÍvIDA PÚBLICA E RESPONSABILIDADE FISCAL

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carnaval financeiro: contas “maquiadas” não vão tornar nosso país mais bonito ••
Atenção caro leitor, pedalar faz mal à saúde! ••
Acabar com a meta de superávit é irresponsabilidade fiscal ••
Irresponsabilidade fiscal ainda persiste, 15 anos após a publicação da lei ••
Cuidado, pedalar pode dar cadeia! ••
BNDES tem o dever de colaborar com a transparência dos gastos públicos ••
No samba dos precatórios, quem dança são os credores! ••
Agressões ao Direito Financeiro dão razões para o impeachment ••
Desrespeito ao Direito Financeiro afastou Dilma do cargo de presidente ••
Refinanciar dívidas nada mais é do que postergar problemas ••
Crise leva as finanças públicas ao “estado de calamidade” ••
Teori Zavascki, o Supremo Tribunal Federal e a responsabilidade fiscal ••
Um salve pela recuperação financeira do estado do Rio de Janeiro! ••
Devo, não nego: o Direito Financeiro e o dilema da dívida pública ••
O governo também te deve? Escolha a fila e entre nela! ••
Recuperar as finanças públicas em frangalhos é o desafio para 2018 ••
Em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão ••
Alívio para prefeitos compromete responsabilidade fiscal ••
2015: o ano de triste memória para o Direito Financeiro que não quer terminar ••

 

 

 

 

CARNAvAL FINANCEIRO: CONTAS “MAQuIADAS” NÃO vÃO

TORNAR NOSSO PAÍS MAIS BONITO

 

Coluna publicada em 12.2.2013: <http://www.conjur.com.br/2013-fev-12/ contas-vista-contas-maquiadas-nao-tornar-nosso-pais-bonito>

 

 

 

 

 

Hoje é carnaval, dia da festa que fez do Brasil um dos países mais conhecidos do mundo. Certamente não é o dia ideal para falar de Direito Financeiro, mas hoje é dia da coluna, e vamos a ela.

O Brasil é país afamado no mundo todo por várias coisas boas, entre elas nosso carnaval, o mais bonito do planeta. Mas como nem tudo são festas e flores, outras coisas não tão boas nos tornaram conhecidos, como a reputação de sermos “o país do jeitinho”…

Característica esta que voltou à tona recentemente, em razão de críticas à ação de nossos governantes, recentemente publicada no importante periódico Financial Times, referindo-se a medidas tomadas pelo governo federal na contabilização de nossas finanças públicas.

A contabilidade pública,1 e também a contabilidade nacional,2 em um país de dimensões continentais como o nosso, com uma economia que cresce e já está en- tre as maiores do mundo, não é simples. Sejamos claros: é complexa. Extremamen- te complexa.

Apenas para se ter uma ideia, o orçamento federal, que contém a previsão de receitas e despesas da administração pública federal para o exercício em curso (2013), tem previsão de arrecadação e gasto no montante de incríveis R$ 2.250.868.084.933,00

1      Basicamente voltada à quantificação das receitas e despesas orçamentárias dos entes governa- mentais sob uma perspectiva microeconômica.

2      Que se ocupa fundamentalmente da quantificação dos grandes agregados da Economia, como o PIB, sob uma perspectiva macroeconômica.

 

 

(dois trilhões, duzentos e cinquenta bilhões, oitocentos e sessenta e oito milhões, oi- tenta e quatro mil, novecentos e trinta e três reais), conforme projeto de lei orçamen- tária apresentado (art. 1º), e ainda não aprovado (mas que, de certa forma, já está em vigor, leia E o ano começa sem a aprovação do orçamento federal, nesta edição, p. 169- 172; afinal de contas, para tudo tem um jeitinho…).

E isso representa apenas uma parcela do dinheiro em circulação no país, pois se refere ao setor público, e tão somente a uma parte dele, haja vista que temos ainda todos os estados-membros de nossa federação e os mais de cinco mil muni- cípios, que não estão incluídos nessa conta.

Esse orçamento deve detalhar minuciosamente onde será aplicado cada centa- vo desses trilhões de reais, especificando cada despesa em seus diversos demonstra- tivos, mostrando da forma mais exata e precisa possível o que, como, quem e para que será utilizado. É evidente que a contabilidade pública exige técnicas sofistica- das e complexas para organizar esses números. Não é diferente a situação da con- tabilidade nacional ao calcular o PIB e outros indicadores das contas nacionais.

E esses dados são importantes, pois deles dependem as ações dos governantes, que devem tomar as decisões sobre os rumos do país, bem como as ações de todos os agentes econômicos, que precisam de dados precisos e confiáveis para também definir investimentos e os rumos de seus negócios.

Daí a importância de uma contabilização que seja a mais técnica, confiável e transparente possível.

Desde a estabilização da moeda e o aumento no rigor das normas sobre finan- ças públicas, especialmente a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal, a contabili- zação das informações econômicas aumentou substancialmente sua importância, pois passou a produzir dados de extrema relevância para a condução das políticas governamentais e consequente indicação dos rumos do país para o setor público e privado, nacional e estrangeiro.

As restrições fiscais impostas pelas novas normas, associadas ao rigor da legis- lação, que contém sanções por vezes bastante severas para o seu descumprimento, bem como a crescente busca por maior transparência, acabaram por intensificar o uso da chamada “contabilidade criativa” no setor público. Na ânsia de cumprir as normas de finanças públicas, ainda que os números não sejam favoráveis, por vezes indicando em sentido oposto ao que se pretende, os operadores da contabilidade pública passaram a se aproveitar das brechas da lei, divergências na interpretação dos textos normativos, lacunas, flexibilidades e toda sorte de possibilidades, para “ajustar” os números aos interesses dos governantes, de modo a “fazer de conta” que os resultados foram alcançados tal como planejados. O que, constata-se, não é

 

Carnaval financeiro: contas “maquiadas” não vão tornar nosso país mais bonito               ••

 

de grande dificuldade quando se trata de números gigantescos, como se exemplifi- cou há pouco.

E foi por meio da utilização dessas “técnicas de contabilidade criativa” que trans- correram os fatos ora mencionados, que agora podem ser mais bem compreendidos.

No sistema de planejamento da ação governamental brasileiro compete à Lei de Diretrizes Orçamentárias estabelecer as metas e prioridades da administração pública federal para o exercício financeiro subsequente (CF, art. 165, § 2º), o que foi feito na LDO da União para 2013 (Lei Federal 12.708, de 17 de agosto de 2012), em seu artigo 2º, em que está prevista a meta de superávit primário3 para o setor público no montante de praticamente R$ 156 bilhões.

Vislumbrada a impossibilidade de cumprir a meta, realizaram-se, segundo as informações divulgadas pela imprensa, uma série de manobras contábeis, com a realocação de recursos entre as diversas rubricas orçamentárias, bem como opera- ções contábeis e financeiras,4 de modo a fazer constar nos demonstrativos orça- mentários o cumprimento da meta. Utilização de empresas públicas, bancos públi- cos de fomento, recursos do recém-criado Fundo Soberano, e até pedido para postergar aumento de preços de passagens de ônibus. Um verdadeiro arsenal de medidas paliativas que não resolvem o problema de fundo, mas apenas tentam contornar, adiar e alterar dados que não interessam ao governo divulgar.

Fato que chegou ao conhecimento público, especialmente a partir da divulga- ção, pelo Financial Times, do “Brazil’s monetary jeitinho”, denunciando as diversas medidas tomadas pelo governo com a finalidade de ajustar dados de crescimento do PIB, controle de inflação, cumprimento de metas de superávit e outras voltadas a “maquiar” os números da economia brasileira, de modo a torná-los mais palatá- veis perante o mercado financeiro internacional.

Medidas como essa comprometem um dos mais – se não o mais – importan- te “ativo” de um país, que é sua credibilidade. Mais do que isso, a divulgação de informações imprecisas afronta o princípio da publicidade da administração públi- ca, claramente expresso no artigo 37 de nossa Constituição. E o da transparência fiscal, que os artigos 48 e 49 da Lei de Responsabilidade Fiscal5 se esmeraram em

 

3 Cujo conceito já não é nada simples para quem não é especialista no assunto. Basicamente consiste no resultado nominal positivo menos os juros nominais incidentes sobre a dívida lí- quida interna e externa.

4   Não sendo o caso de entrar em detalhes, até pela complexidade técnica envolvida.

5 E cuja redação foi recentemente aperfeiçoada pela Lei Complementar 131, de 27 de maio de 2009.

 

 

especificar de modo preciso, detalhando a forma e os meios de divulgação de todos os demonstrativos e relatórios orçamentários e financeiros, tudo para tornar essas informações públicas, transparentes e confiáveis.

Todo esse esforço pode se tornar inútil com a concretização dessas manobras contábeis, pondo a perder, num único ato, a credibilidade que levou anos, talvez décadas, para ser construída, e poderá levar outro tanto para ser recuperada.

O Brasil já tem um lindo carnaval, e nele podem ser vistas as mais belas mu- lheres, o mundo todo sabe disso. Não precisamos embelezar nossos números, não serão algumas contas “maquiadas” que vão tornar nosso país mais bonito.

Deixemos a maquiagem para as nossas passistas, e não vamos permitir que essa “dança dos números” se transforme no “samba do crioulo doido”…

E um excelente carnaval a todos!

 

 

ATENçÃO CARO LEITOR, PEDALAR FAz MAL À SAÚDE!

 

 

Coluna publicada em 23.9.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-set-23/ contas-vista-atencao-caro-leitor-pedalar-faz-mal-saude>

 

 

 

 

 

Acalme-se, não é o que está pensando…

Não escreverei sobre ciclismo, como pode parecer.

Portanto, se você é paulistano, não se preocupe com as dezenas de quilôme- tros de ciclovias que estão aparecendo na porta de casa – elas podem até complicar ainda mais o trânsito, mas com certeza vão ajudar a melhorar a sua saúde!

Também não pretendo falar de futebol, afinal Robinho voltou à seleção, quem sabe voltemos a ver algumas pedaladas que possam nos ajudar a chegar ao hexa.

O assunto continua sendo o Direito Financeiro.

A saúde a que me refiro é a das nossas finanças públicas, que está ficando se- riamente comprometida com as “pedaladas fiscais” do governo, objeto de grande preocupação para todos os que acompanham as atividades financeiras do setor público.

Pedalada fiscal é “a prática recorrente de atrasar o pagamento de serviços pres- tados por fornecedores do setor público, atrasos no repasse dos ministérios setoriais para que bancos públicos e privados paguem os benefícios sociais e postergação no pagamento de subsídios devido a bancos públicos”.1 Correspondem, em verdade, a um conjunto de medidas que, no mais das vezes, representam operações financei- ras realizadas pelo governo, de diversas formas, com vistas a obter de modo artifi- cial resultados aparentemente melhores nas contas públicas.

1      ALMEIDA, Mansueto. Pedaladas fiscais. Blog do Mansueto Almeida, <http://mansueto.wor- dpress.com/2014/08/29/pedaladas-fiscais/>

 

 

O assunto está sendo levantado e debatido na mídia nas últimas semanas, como se pode constatar das várias reportagens, colunas e artigos, alguns dos quais citados ao longo deste texto.

São fortes os indícios de que as contas públicas vão de mal a pior, e, em vez de se tomarem medidas voltadas a combater as causas do problema, o que se tem visto são tentativas de esconder esses fatos, verdadeiramente “jogando a sujeira para de- baixo do tapete”, para ocultar as mazelas e tentar ludibriar a todos. Seguramente motivadas pela proximidade das eleições, em que notícias ruins podem levar a perda de votos, atitudes que prejudicam o setor público acabam sendo tomadas, provocando irremediáveis prejuízos à credibilidade das contas públicas e à seguran- ça do ordenamento jurídico.

O caso traz questões interessantes sob o ponto de vista do Direito Financeiro, especialmente no que se refere à aplicabilidade de dispositivos da Lei de Responsa- bilidade Fiscal e ao relacionamento entre os próprios entes governamentais.

Tem sido constatado que diversos pagamentos sob responsabilidade do gover- no federal, como os benefícios sociais e previdenciários, bolsa-família e outros, operacionalizados por bancos públicos, especialmente a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil, são regularmente efetuados pelas instituições financeiras, sem que o Tesouro lhes tenha repassado o recurso correspondente. Isso representaria uma antecipação dos pagamentos, feitos pelos bancos, de despesas governamentais. Um verdadeiro uso, pelo governo federal, de um “cheque especial”.2 O fato já foi inclusive objeto de representação por parte do Ministério Público junto ao TCU perante este tribunal, com vistas a apurar os fatos e tomar as medidas cabíveis,3 já tendo sido iniciada a investigação.4

Tal como o pai de família que se vê sem condições de pagar as contas no final do mês, e sem perspectivas de ajustar suas finanças no curto prazo, passando a fa- zer uso do cheque especial para financiar suas despesas, o governo tem se valido dessas medidas para “maquiar” as contas públicas, postergando o registro dos gas- tos, de modo a produzir números que não refletem a realidade das finanças gover- namentais.

Atrasos nos desembolsos para pagar obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), como tem sido registrado pelas empreiteiras, somados a pressões do governo federal sobre o BNDES para pagar dividendos devidos ao

 

2      GIANETTI, Eduardo. Imbróglio fiscal. Folha de S.Paulo, 29 de agosto de 2014.

3      Representação do Procurador Júlio Marcelo de Oliveira, em 21 de agosto de 2014.

4      TCU investiga “pedaladas fiscais” do governo. O Estado de S.Paulo, 18 de setembro de 2014.

 

Atenção caro leitor, pedalar faz mal à saúde!         ••

 

Tesouro5 mostram a promiscuidade nas relações entre o governo, seus órgãos, entidades da administração indireta, bancos públicos, compondo um quadro que evidencia “malabarismos” para apresentar contas públicas “palatáveis”.

Voltam a aparecer as técnicas de “contabilidade criativa” sobre a qual já nos referimos há mais de um ano na coluna Carnaval financeiro: contas maquiadas não vão tornar nosso país mais bonito, nesta edição, p. 387-390, em que mostramos que o país já teve sua credibilidade abalada pelas operações realizadas no início do ano passado, problema que agora retorna com “pedaladas” que só ajudam a acelerar na direção errada.

Essas antecipações configuram operações de crédito entre o governo e referi- das instituições, ao adiantar recursos para serem pagos posteriormente. E não é pouco dinheiro. Há estimativas de que o Tesouro está retendo R$ 60 milhões que deveriam ter sido repassados aos bancos públicos.6

Remetem à discussão sobre a legalidade dessas operações, uma vez que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em seu artigo 35, veda “a realização de operação de crédito entre um ente da Federação, diretamente ou por intermédio de fundo, autar- quia, fundação ou empresa estatal dependente, e outro, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou pos- tergação de dívida contraída anteriormente”. Este artigo, seguindo o espírito da LRF, e que tem sido importante para a gestão responsável, traz vedação a ato potencialmen- te gerador de descontrole das finanças públicas e prejudicial à transparência e credibi- lidade das finanças públicas, no que se encaixam com perfeição as “pedaladas fiscais”.

Embora esse dispositivo tenha sido objeto de questionamento sob alguns pon- tos de vista, especialmente no que se refere à violação do princípio federativo, por veicular proibição que pode mitigar a autonomia financeira dos entes federados, que se veem impedidos de realizar muitas atividades financeiras úteis para geren- ciar seus recursos,7 não é a hipótese em questão, por serem as “pedaladas fiscais” operações feitas pelo próprio governo federal com suas entidades, deixando clara a ilegalidade dos atos praticados.

O caso chama a atenção também para outra questão: os poucos conhecidos e divulgados “litígios intragovernamentais”, muitas vezes até judicializados, que

5      Pendura do Tesouro no PAC. O Estado de S.Paulo, 26 de agosto de 2014.

6      Pedaladas de marcha a ré. Revista Veja, Edição digital, n. 2.391, de 17 de setembro de 2014, seção Economia.

7      Veja-se a ADI 2.250, movida pelo Governo de Minas Gerais, cujo mérito está pendente de julgamento.

 

 

usualmente envolvem matéria financeira, com a disputa entre entes do próprio governo, como o que houve entre a Caixa Econômica Federal e o Tesouro. Deu origem inclusive à criação da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administra- ção Federal (CCAF), no âmbito da Advocacia Geral da União, “para dirimir, por meio de conciliação, as controvérsias entre órgãos e entidades da Administração Pública Federal, bem como entre eles e a Administração Pública dos estados, do Distrito Federal, e dos municípios”, além de “buscar a solução de conflitos judicia- lizados, nos casos remetidos pelos Ministros dos Tribunais Superiores e demais membros do Judiciário, ou por proposta dos órgãos de direção superior que atuam no contencioso judicial”.8 As “pedaladas fiscais” foram levadas pela Caixa Econô- mica Federal ao CCAF, ante o receio dos dirigentes de serem responsabilizados pelas ilegalidades, com vistas a obter respaldo jurídico para as operações.9

O fato é que os especialistas no assunto não se deixam enganar facilmente, e essas manobras novamente fizeram as agências de risco rebaixar as nossas “notas” junto aos investidores internacionais;10 mas o pior é ver o desrespeito ao ordena- mento jurídico financeiro e quebra da segurança jurídica.

As “pedaladas fiscais” foram lançadas ironicamente por Mailson da Nóbrega, ex-presidente do Banco Central, para concorrer ao “Prêmio Ig Nobel” de contabi- lidade criativa,11 e só faltava ganharmos essa para passarmos mais vergonha depois dos 7 a 1.

Enquanto isso, é melhor cuidarmos da nossa saúde, tirando as bicicletas da garagem para dar umas pedaladas e aproveitar as ciclovias, pois elas estão aí e tudo indica que vieram para ficar, já que, em relação à saúde das contas públicas, a situa- ção está bem mais complicada…

 

 

 

 

 

 

 

 

8 Decreto 7.392/2010, art. 18. Sobre o tema, veja também o trabalho de Arnaldo Godoy, Do- mesticando o Leviatã: litigância intragovernamental e presidencialismo de articulação institu- cional. Tese de Livre-docência, Faculdade de Direito da USP, 2012.

9   Caixa é pressionada a recuar em pedalada. O Estado de S.Paulo, em 3 de setembro de 2014.

10  Efeito dominó. Folha de S.Paulo, em 22 de agosto de 2014.

11   NÓBREGA, Maílson. Prêmio Ig Nobel de contabilidade criativa. Revista Veja, ed. 2.389, 3 de setembro de 2014, p. 22.

 

 

ACABAR COM A META DE SuPERÁvIT É IRRESPONSABILIDADE FISCAL

 

 

Coluna publicada em 18.11.2014: <http://www.conjur.com.br/2014-nov-18/ contas-vista-acabar-meta-superavit-irresponsabilidade-fiscal>

 

 

 

 

 

Já destaquei neste espaço a importância da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) como instrumento de planejamento e gestão fiscal.1 Mas foi necessário um ato de falta de planejamento e irresponsabilidade na gestão fiscal para trazer o as- sunto à mídia, chamando a atenção de todos para essa lei tão relevante que poucos conhecem.

Menos mal. Pelo menos, está tendo sua importância reconhecida.

Na semana passada a mídia foi tomada pelas notícias e debates sobre o projeto de alteração da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 20142 enviado pela Presiden- te da República ao Congresso Nacional, com a finalidade de permitir a redução da meta de superávit.

A LDO, instrumento jurídico próprio da legislação brasileira, cuja finalidade precípua é estabelecer os parâmetros para a lei orçamentária a ser aprovada no final de cada exercício financeiro, tem cumprido atualmente várias funções importantes para o planejamento e gestão do setor público. Já me referi a elas na coluna citada e, entre todas, destaco aquelas que lhe foram atribuídas pela Lei de Responsabili- dade Fiscal (LRF)3 e são relevantes para compreender o que se discute. Cabe à LDO dispor sobre o equilíbrio de receitas e despesas (LRF, art. 4º, I, a) e vir acom- panhada do Anexo de Metas Fiscais, “em que serão estabelecidas metas anuais, em valores correntes e constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e

 

1      LDO é instrumento eficiente para a administração pública, nesta edição, p. 151-154.

2      Lei 12.919, de 24 de dezembro de 2013.

3      Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000.

 

 

primário e montante da dívida pública, para o exercício a que se referirem e para os dois seguintes” (LRF, art. 4º, § 1º).

Trata-se de uma regra de grande relevância para o planejamento do setor pú- blico, por indicar e estabelecer metas que vão balizar o comportamento da admi- nistração pública nos exercícios financeiros que se seguem, que servirá para orien- tar não só a administração pública federal, mas também fornecer parâmetros aos demais entes da federação e o próprio setor privado, além de todos os atores com os quais o país se relaciona, internamente e também do exterior.

Cumpre destacar que as metas fiscais são importantes, na medida em que o descumprimento delas permite verificar, ainda que de forma indireta, a desobediên- cia a uma série de outros deveres de equilíbrio fiscal previstos na LRF, não se res- tringindo ao desrespeito ao dever de cumprir as metas previstas no artigo 4º, § 1º. Nessa conduta estão pressupostas lesões a vários de seus comandos. É o caso, por exemplo, das renúncias de receitas, cuja concessão tem como condição de validade para sua instituição a comprovação de não afetação das metas fiscais, o que, se ocorrer, deve ser compensado mediante a instituição de novo tributo ou majoração de alíquota ou base de cálculo de tributo já existente (LRF, art. 14). Lembre-se ainda que a criação, expansão ou aprimoramento de qualquer ação governamental que implique aumento de despesa está vinculada à compatibilidade com as metas fiscais, as quais – se forem afetadas por mais de dois exercícios por meio da geração de despesa definida em ato normativo – devem ser compensadas proporcionalmen- te por meio da redução permanente de despesa ou majoração permanente de recei- ta (LRF, art. 17, § 2º).

Tudo isso demonstra o caráter estruturante das metas fiscais para o equilíbrio das contas públicas. Se elas não são cumpridas, todas as demais áreas de gestão de receita e de despesa são presumidamente irregulares, lesivas ao erário e não autori- zadas, na forma do artigo 15 da própria LRF.

A LDO para 2014, publicada (com grande atraso) no final de 2013, em seu artigo 2º, estabeleceu que o orçamento a ser aprovado para o exercício de 2014 (atualmente no final de sua vigência), deveria ser compatível com a obtenção da meta de superávit primário de R$ 116 bilhões, fazendo constar, em seu artigo 3º, a possibilidade de reduzir esse montante em até R$ 67 bilhões em função de despesas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e desonerações de tributos.

É fato que as leis de natureza orçamentária, por compreenderem previsões de receitas e despesas futuras, ficam sujeitas a uma série de fatores nem sempre con- troláveis e previsíveis, sendo leis cujo cumprimento não é possível exigir com o ri- gor que se espera das demais normas que compõem o ordenamento jurídico. Isso,

 

 

no entanto, não lhes tira o caráter impositivo, a ponto de transformá-las em leis de natureza meramente autorizativa, sem qualquer caráter mandatório.4 Há que se reconhecer nelas, tão somente, a necessidade de serem dotadas de mecanismos de flexibilidade, cuja finalidade é apenas permitir sua adaptação às circunstâncias que levam à necessidade de ajustes, mas sem descaraterizá-las, mantendo hígidos seus dispositivos, sob pena de torná-las peças de ficção e instrumentos inúteis para o planejamento, gestão e controle da atividade financeira da administração pública, funções que a Constituição lhes atribuiu.

Pois o projeto de lei ora apresentado5 está na contramão de tudo o que estabe- lecem a Constituição e os princípios de planejamento, gestão e controle da admi- nistração pública, promovendo inaceitável insegurança jurídica e minando a credi- bilidade do governo perante todos.

Propõe a alteração do artigo 3º da LDO de 2014, anteriormente citado, reti- rando os valores das metas, passando a estabelecer que a “meta de superávit poderá ser reduzida no montante das desonerações de tributos e dos gastos relativos ao PAC”. Ou seja: acabando com as metas. Onde havia metas, agora não há mais nada.

É razoável admitir que as leis orçamentárias, entre as quais a LDO, sejam dotadas de alguma flexibilidade, dada as necessárias adaptações, como já dito, desde que não comprometam o conteúdo dos dispositivos legais. No caso, o dispo- sitivo legal, mais do que comprometido, foi inutilizado, pois o que se pretende é extinguir as metas nele previstas – que, ressalte-se, já continham no seu bojo uma grande possibilidade de flexibilidade, facultando-se significativa redução do valor das metas.

Justificativa? Diz a mensagem encaminhadora do projeto que, ao longo de 2014, foi reduzido o ritmo de crescimento da economia, tornando necessário au- mentar os incentivos fiscais e manter investimentos para permitir a retomada do crescimento.

Difícil acreditar que os equívocos na previsão sobre a atividade financeira da administração pública federal tenham sido tão significativos e imprevisíveis, tor- nando inviável cumprir a meta de superávit anteriormente fixada, ainda que dimi- nuída ao máximo pela redução nela mesma prevista. E, para serem reais esses fatos, em muito ficaria comprometida a capacidade dos órgãos governamentais encarre- gados de analisar os cenários da economia e fazer as previsões. Some-se a isso a sabida tendência de aumentar gastos em ano eleitoral, associada ao encaminha-

4      Orçamento impositivo é avanço para a administração, nesta edição, p. 231-234.

5      Projeto de Lei 36, de 2014 – CN, mensagem 365, de 104 – na origem.

 

 

mento dessa proposta de alteração da lei logo após as eleições, para compor um quadro que não permite crer serem esses os verdadeiros motivos que ensejam a tentativa de modificar a LDO.

Tudo indica que, neste ano eleitoral, houve exagero nos gastos, comprometen- do o cumprimento das metas e, agora, constatada a inviabilidade de serem atingi- das, o que se pretende é extingui-las, evitando a violação clara e inequívoca do texto da lei, para tentar escapar das possíveis sanções daí decorrentes.

O ordenamento jurídico está sendo posto à prova. Leis existem para serem cumpridas. A eficiência da administração pública depende de um planejamento dotado de segurança jurídica, bem elaborado e dotado de credibilidade, sem o que a gestão e o controle ficam seriamente comprometidos. A LDO tem se mostrado um instrumento relevante nesse processo. As metas previstas na LDO para 2014 deveriam ser cumpridas até o final deste exercício financeiro de 2014, que está a poucas semanas do fim. Acabar com elas é fazer dessa função da LDO, cuja im- portância é crescente, verdadeira letra morta.

Mas não é só, infelizmente.

Ao modificar critérios para o cálculo das metas de superávit primário, com a inclusão de itens como desonerações de tributos, cujos cálculos são pouco precisos e complexos, despesas do PAC, também sujeitas a elevado grau de discricionarieda- de, o governo compromete a seriedade desses valores, abrindo margem à “contabi- lidade criativa”, que parece estar se tornado uma praxe nos últimos anos, à qual já me referi po