Fundamentos Filosóficos da Educação PDF
Antônio Vidal Nunes
Fundamentos Filosó cos da Educação
Universidade Aberta do Brasil Universidade Federal do Espírito Santo
Dimensões da Humanização
ação educativa é um acontecimento essencial na vida humana. A ela se vincula não apenas a transmissão da herança deixada pelos nossos antepas- sados, mas também a ação crítica de repensá-la como forma de buscar as respostas necessárias para o presente. Este trabalho pretende evidenciar o significado humano da educação, assim como os pressupostos filosóficos que embasam as várias concepções da
educação.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
Núcleo de Educação Aberta e a Distância
Fundamentos Filosóficos da Educação
Antônio Vidal Nunes
Vitória 2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
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N972f
Nunes, Antônio Vidal, 1957 –
Fundamentos filosóficos da educação / Antônio Vidal Nunes. – Vitória : Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e à Distância, 2010.
71 p. : il.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-99510-78-0
- Educação – Filosofia. I. Título.
CDU: 37.01
LDI coordenação Heliana Pacheco Hugo Cristo
José Otávio Lobo Name
Gerência
Isabella Avancini
Ilustração
Lidiane Cordeiro
Editoração
Priscilla Martins
Capa
Priscilla Martins
Impressão
GM Gráfica e Editora
Imagem da Capa
A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio. 1506 – 1510. (500 cm × 700 cm)
Palácio Apostólico, Vaticano. Disponível em: http://pt.wikipedia.org
Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a partir deste trabalho para fins não comerciais, desde que atribuam ao autor o devido crédito pela criação original.
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s U M Á R i O
Apresentação p. 5
Capítulo 1
O homem e a educação p. 7
Capítulo 2
O saber filosófico: os caminhos da razão suficiente p. 25
Capítulo 3
Fundamentos filosóficos da educação: concepções educacionais p. 43
Conclusão p. 71
a p R e se n taç ã O
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presente texto visa expor alguns conceitos importantes da prática educativa. Em nosso itinerário, passaremos por três momentos importantes. No primeiro, procura-
remos explicitar o conceito de educação, assim como evidenciar a sua importância para a existência humana. Sem o processo educativo, o homem não sobreviveria. A educação não apenas nos transmite o legado do passado, mas também nos permite explorar as potencialidades humanas no presente, possibilitando, assim, construir as condições para uma vida mais feliz tanto individualmente, quanto coletivamente. Uma boa educação pro- picia melhor qualidade de vida. É nesse sentido que se propõe uma pesquisa de campo visando conhecer melhor a situação educacional em nossa comunidade. A esse respeito, a Secreta- ria da Educação poderá nos fornecer informações importantes e reveladoras.
No segundo momento, abordaremos alguns conceitos impor- tantes da Filosofia. Esse conhecimento também integra a prática educativa, daí porque todos aqueles que cursam pedagogia estu- dam, em algum momento, uma disciplina denominada Filosofia da Educação. A Filosofia empresta aos educadores certos pres- supostos necessários à atividade docente. Quando o educador se pergunta sobre o tipo de homem que está formando, sobre o modelo de sociedade que está criando com sua atividade, sobre o significado da sua prática educativa, já está realizando uma reflexão de natureza filosófica. Ainda que não tenha grandes conhecimentos filosóficos, a dimensão filosófica está, inegavel-
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mente, presente em sua experiência de professor. Por isso mesmo dedicamos um espaço para conversarmos um pouco sobre este saber tão antigo.
No final de nossa caminhada, apresentamos algumas con- cepções filosóficas que os homens foram formulando ao longo da história. É importante ressaltar que uma volta ao passado para compreender as construções filosóficas realizadas não sig- nifica assimilarmos uma herança que se encontra morta e sem pertinência ao presente. Não, o passado não é algo morto; ele pulsa em nós. Muitas vezes não temos conhecimento suficiente para percebermos o quanto do passado faz parte de nossas vidas e é reproduzido por nós. A todo dia, sem que saibamos, estamos reproduzindo o que Platão disse há séculos atrás.
Após apresentarmos as matrizes essenciais através das quais os homens, em contextos específicos da história humana, de- ram sentido ao mundo para que pudessem nele viver, passamos a expor algumas concepções educacionais vinculadas a essas filosofias.
Certamente que este texto está cheio de deficiências e limi- tações. Ele pretende ser um convite para que o leitor estabeleça um plano de estudos e pesquisas. Assim, sugere um caminho de investigação que poderá posteriormente ser aprofundado. Com o tempo você mesmo poderá, através do seu esforço próprio, ir preenchendo as lacunas aqui encontradas. A pequena biblio- grafia complementar sugerida poderá guiar leituras posteriores. Desejamos a todos um bom trabalho. O importante é man- termos sempre acesa a chama que nos impulsiona a caminhar um pouco além de onde nos encontramos, pois este é o sentido da vida. E esta só se revela a quem não tem medo de buscar, de correr riscos. Os medrosos e acovardados jamais conhecerão o que é a vida em profundidade, pois ela só se revela a quem não tem medo de correr riscos e encarar novos desafios, tanto
individualmente como coletivamente.
6 | Fundamentos da Educação
Capítulo 1
O homem e a Educação
- Como a linguagem é entendida pelo autor do texto?
- O que é educação?
- Qual a relação existente entre o conceito de linguagem e educação?
- Em que sentido a educação pode ser entendida como processo criativo?
- Que conclusões podemos tirar da narração dos Índios das Seis Nações e os governos da Virgínia e Maryland?
- O que o texto de Nietzsche sobre a metamorfose do espírito pode nos ensinar sobre educação?
i n t R O d U ç ã O
nossa existência histórica, sempre incompleta e incon-
-clusa, está marcada por infinitas possibilidades. Primeiro a vida nos escolhe, depois a escolhemos nós.
Por razões que não conhecemos bem, aqui estamos juntos para esta caminhada reflexiva. Nela conversaremos sobre o que é educação. Na verdade, sobre uma forma possível de concebê-la. Caso eu seja repetitivo em alguns momentos de nossa reflexão, peço desde já sua compreensão e desculpas.
Com o aparecimento do homem, surgiu aquilo que posterior- mente será denominado educação. Através da prática educativa, o inusitado filho da natureza, dotado de características pecu- liares, pôde transmitir os conhecimentos, representações e tudo aquilo que foi aprendendo na sua vida concreta e comunitária. As gerações passadas entregavam para a seguinte todo o legado resultante de suas realizações no mundo. Para que isto pudesse ocorrer, inventou também a linguagem. Nela, enquanto memória social coletiva, o homem foi guardando tudo o que ia apren- dendo em suas experiências e, ao mesmo tempo, transmitindo aos descendentes. Primeiramente de forma oral, posteriormente através da escrita e outras formas possíveis de comunicação. Usando este instrumento potente e inovador, foi nomeando suas ações, realizações e tudo o que estava no horizonte de sua visão. Ela, a linguagem, funciona como a memória do homem, pois nela estão guardados todos os seu saberes.
Tudo o que aprendemos em nossas vidas se dá por meio da linguagem; desde criança vamos sendo embrulhados com os
símbolos de nossa tradição, de nossa cultura. A linguagem está na raiz das construções culturais. Por meio dela, recebemos de nossos pais, de nossa escola e de nossa sociedade tudo aquilo que é necessário para que a sociedade continue a existir. Mas, como já mencionado, as realizações da linguagem não estão apenas na possibilidade de transmitir o velho, traduzem-se tam- bém na criação do novo. E o novo surge quando somos capazes de criar novos símbolos com potencial de exprimi-lo. Dessa forma, com os caracteres simbólicos nós criamos mundo.
Mas a linguagem não tem autonomia absoluta em relação à dinâmica da sociedade. As novas possibilidades que se confi- guram em nível da estruturação lingüística são decorrência das contradições que vão ocorrendo no interior da sociedade. Só se pensa em uma nova sociedade, uma nova escola, uma nova família, quando as estruturas existentes apresentam problemas que forçam os homens a se aventurarem por caminhos novos e cheios de riscos. As mudanças nem sempre ocorrem sem re- sistências e conflitos. É o que podemos perceber ao longo da história humana.
e d U c aç ã O e h U M a n i z aç ã O
Em nosso minúsculo corpo celeste chamado Terra, possuidor de uma existência de aproximadamente 5 bilhões de anos, o qual viaja solitariamente pelo espaço sideral numa velocidade orbital de 29 km/seg. em torno do sol, surgiram as condições singulares e únicas para que a vida pudesse desabrochar. Se colocássemos todo esse tempo no espaço de um ano, podería- mos dizer que as primeiras manifestações de vida neste singelo e milagroso planeta surgiram por volta do mês de junho. Os primeiros mamíferos provavelmente teriam aparecido após o
dia 15 de dezembro e o homo sapiens, ao qual nos vinculamos, juntamente com as primeiras manifestações educativas, teria existência quando estivesse faltando pouco menos de 10 minu- tos para encerrar o ciclo anual, ou seja, perto da meia noite do dia 31 de dezembro. Embora a educação sempre estivesse pre- sente nas experiências dos homens desde os primeiros raios de consciência, os primeiros sistemas de ensino, tal como conhe- cemos, vão surgir faltando apenas dois segundos para encerrar o nosso ano, ou seja, com a sociedade burguesa, por volta do século XVIII.
Com o surgimento do homem, da consciência e da linguagem, começa o processo de humanização. A educação passa a ter aí um papel importante. Antes disso houve o que os antropólogos denominaram processo de hominização, que se constituiu em uma longa caminhada, tendo surgido no início do último dia do ano com o aparecimento dos antropóides: os nossos precursores. Nestes foram aparecendo vagarosamente as condições fisiológi- cas e neuróticas possibilitadoras do surgimento da consciência. Quando isso ocorre, aparecem os primeiros vestígios humanos. Então um novo processo se inicia, aquele que foi chamado de hu- manização. Surge uma nova espécie que, embora continue presa à natureza, começa a se distanciar desta, afastando-se da condi- ção de refém de suas determinações. Diferentemente dos demais
animais existentes no reino natural, passa a criar um mundo próprio, iniciando, dessa forma, a cultura. Com efeito, a cultura não é encontrada na natureza, trata-se de uma criação humana.
Cultura é o meio feito pelo homem, a natureza transformada pelas mãos do filho insubmisso. Enquanto a natureza, com sua programação biológica, continua a ditar o comportamento dos demais animais do seu reino, este ser rebelde e diferenciado passa a criar um mundo que em nada se parece com aquele que lhe possibilitou o surgimento. Não queremos com isso dizer que escapamos por completo à natureza: ainda pertencemos a este reino. Nascemos, vivemos e morremos, como qualquer ou- tra existência viva, mas estes acontecimentos estão marcados pelas significações humanas que vamos criando. Cada criança, ao nascer, está envolta em uma brisa de mistério. Quem será ela, por onde andará, com que conviverá? Muitas perguntas, mas nenhuma resposta antes que sua vida se realize no tempo e na história. Quantas explicações os homens, ao longo de sua his- tória, não estabeleceram para dar sentindo a um fenômeno da natureza que abarca a todos deste reino, a assustadora morte? Para o filósofo Schopenhauer, há duas coisas que o homem ainda tem dificuldade de ver de frente: o sol e a morte.
Como tivemos oportunidade de expor, para além daquilo de que a natureza dotou o homem, este também criou alguma coisa que escapa ao reino natural. Uma delas, fruto de sua invenção e criação, foi a linguagem. Dizia um pensador es- pecialista na área de comunicação chamado Herbert Marshall McLuhan (1911-1980) que a linguagem foi uma das tecnologias mais potentes e importantes que o homem criou. Com ela, ele passou a nomear seu meio e tudo o que o circundava; as coisas do mundo que não tinham nome passaram a ter um, graças à capacidade do homo sapiens de denominar. Quem poderia imaginar a vida de nossos ancestrais convivendo com tantas plantas, animais, rios, montanhas, ainda sem as designações
que lhes foram sendo dadas e que estamos a pronunciar? Se dizemos estas palavras, é porque um dia nossos antepassados as criaram, humanizando a natureza.
Mas não é só isto, o homem não vive em mundo que não lhe faça sentido; dessa forma aprendeu a estabelecer representações com as quais pudesse dar uma significação ao seu mundo e à sua existência. Assim, criou a teologia, a filosofia e outros co- nhecimentos, buscando explicações para que tudo passasse a seu controle. A linguagem ficou sendo uma constelação simbólica criada para que, nela, ele pudesse se deitar e descansar. A lin- guagem tornou o seu mundo humano e mais bonito. Através da palavra, o mundo caótico foi se tornando um cosmo, um mundo organizado. O verbo tirou o homem e o mundo de um profundo abismo. Com razão dirá o pensador mexicano Leopoldo Zea,
Verbo, logos, Palavra, diversas expressões de um mesmo e grandioso instrumento por meio do qual o homem não só se situa no Mundo e no Universo, mas faz dele o seu lar. Mediante o Verbo deixa de ser um ente entre entes para transformar-se em seu ha- bitante. Isto é , no que dá sentido a este Mundo e a este Universo, distinguindo, separando, igualando e unificando os outros entes quer carecem desta qua- lidade. Os entes deixam de sê-lo para transformar-se nisto ou naquilo em relação ao homem, que lhes dá especial existência ao expressá-lo, ao falar deles (ZEA, 2005, p.355).
No “princípio era o verbo”, quer dizer, uma existência antes de todas as coisas, que tornava possível o mundo do nada. Isto se deu com a criação da cultura, um patrimônio que podemos trans- mitir aos outros humanos. Cada criança que nasce é socializada com as descobertas daqueles que nos antecederam. Aos poucos
vamos aprendendo com as primeiras palavras a andarmos, a fa- larmos, a fazermos nossas necessidades em obediência aos que estão próximos, a descobrir o que é perigoso ou não… E assim vamos entrando vagarosamente em um mundo distinto daquele doado pela generosa natureza. O homem não apenas transformou a realidade externa, mas se transformou a partir de dentro. Com os valores criados e a descoberta do trabalho, foi se tecendo por dentro. Sua sexualidade, por exemplo, já não cumpre o ritual instintivo dentro das regulamentações puramente biológicas. Es- tabeleceu-se um conjunto de princípios definidores das condições de realização deste ato, delineando onde, com quem, quando. Aos poucos surgem os contornos afetivos e eróticos desta experiência. Sem a possibilidade de socialização das conquistas dos nossos antepassados e distantes de tudo que aprendemos deles, podería- mos nos tornar humanos? Em outras palavras, se nos garantissem nossa sobrevivência fora do convívio social, aprenderíamos a an- dar, falar, pensar, como fazem os humanos?
Durante o tempo que viveu no exílio, após o golpe militar de 1964, o teólogo e pensador Rubem Alves conheceu um amigo que havia comprado uma casa de madeira com mais de cem anos de existência. Aquela moradia havia pertencido a distintos proprietários. Sabendo da qualidade e da beleza da madeira, o novo proprietário resolveu envernizá-la, dessa forma poderia apreciar os seus desenhos e tessituras. Para isto, teria remover a tinta que recobria aquela madeira e, assim, começou a tra- balhar. Após as primeiras lixadas, descobriu que havia outras camadas de tintas sobrepostas. Cada morador que ali habitou foi pintando a casa com as cores dos seus desejos e interesses. Para Alves, vivemos processo semelhante; na verdade,
[…] somos aquela casa. Ao nascer somos pinho-de- riga puro. Mas logo começam as demãos de tinta. Cada um pinta sobre nós a cor de sua preferência.
Todos são pintores: pais, avós, professores, padres, pastores. Até que nosso corpo desaparece. Claro, não é com tinta e pincel que eles nos pintam. O pincel é a fala. A tinta são as palavras. Falam, as palavras grudam no corpo, entram na carne. Ao final o nosso corpo está coberto de tatuagens da cabeça os pés (ALVES, 1977, p.22).
Assim é a educação. Falarmos em educação é nos referirmos a esse processo mediante o qual vamos recebendo uma imensa variedade de finas camadas de tintas. Com elas vai sendo proje- tado sobre nós aquilo que a sociedade considera importante com vistas às possibilidades de sobrevivência humana e de realiza- ção de certo desejo de felicidade que se faz presente no interior de uma coletividade humana.
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Bem… Creio que podemos tentar formular uma primeira defini- ção provisória de educação. Não se trata de uma conceituação completa, nem sabemos se isto é possível. Ao caminharmos mais um pouco em nossa reflexão, adicionaremos novos elementos a esta tentativa de nomeação. Provisoriamente poderíamos dizer que ela, a educação, é uma atividade mediante a qual os saberes, conhecimentos e valores inventados pelos homens são transmiti- dos. Tentem imaginar o que ocorreria conosco se não pudéssemos transmitir para as novas gerações aquilo que as anteriores re- alizaram. Muito provavelmente não teríamos como sobreviver. Sucumbiríamos como milhares de espécies que já habitaram nosso planeta. O processo educativo é vital para a existência humana. As gerações mais velhas devem transmitir para as mais novas os conhecimentos que o homem tem de si e do mundo.
Mas há uma outra questão a que precisamos estar atentos. Ocorre que muitas vezes a herança deixada pelos nossos ante- passados tem o seu tempo de validade. Em outras palavras, nem tudo que foi importante para nossos pais poderá ser importante para nós no presente. Dessa forma, podemos dizer que os co- nhecimentos a serem transmitidos são aqueles que ainda têm alguma serventia, mas que, com o tempo, poderão ficar obsole- tos. O que foi significativo em um momento e muito ajudou o homem em seu viver poderá não representar ou ter serventia em outras etapas do existir.
Dessa forma, gostaríamos de sugerir que as verdades e os conhecimentos humanos se caracterizam pela sua historicidade, não são eternos. Nem sempre as receitas que no passado contri- buíram para a sobrevivência dos nossos antepassados poderão ser úteis ou importantes nos dias atuais. Mas de uma coisa esta- mos certos: só podermos criar algo novo com referência à herança recebida. Este é nosso ponto de partida, mas, contradi- toriamente, traz algumas implicações: uma delas é que o homem não só reproduz os acervos culturais das gerações passadas ne- cessários ao seu sobreviver, ele também é chamado a criar novos conhecimentos, comportamentos, práticas, compatíveis com as exigências do seu tempo, com as necessidades novas que sur- gem no desenrolar de sua vida.
É perigoso ao homem apenas reproduzir o que foi deixado, daí ser necessário que
ele desenvolva sua capacidade criadora, pois, quando provo- cado e desafiado, saberá trocar as estradas batidas pelas vere- das novas e desconhecidas. Faz parte da educação, também, preparar as pessoas para que
elas possam, mediante o exercício da atividade crítica, avaliar o patrimônio recebido e buscar novas respostas para os seus problemas. Dessa forma, movidos pela imaginação, os humanos poderão se aventurar na busca de novos modelos explicativos que deverão embasar sua ação no mundo em seus múltiplos aspectos. Talvez agora possamos acrescentar um componente novo à definição de educação sugerida anteriormente. Ela não é apenas transmissão do legado passado, mas preparação para a criação, para busca de caminhos novos a partir dos desafios do presente. Muitos dos problemas que para nós pedem respostas não exis- tiam no passado. Cada época e tempo têm as suas demandas para darem respostas. O homem vive uma tensão entre o passado e o futuro, entre o reproduzir e o criar. A educação tem a responsa- bilidade de nos preparar tanto para acolhermos como dádiva os frutos do trabalho e da vida das gerações passadas, quanto para nos tornarmos sensíveis e disponíveis às resoluções dos proble- mas do presente que envolve cada um e toda a comunidade.
Como vivemos em sociedade e por meio dela viabilizamos nossas existências, somos sempre responsáveis pelo destino de todos.
Pelas considerações feitas até aqui, você pode perceber a importância da educação em nossa vida. Ela é uma prática im- prescindível aos seres humanos. A consciência de que sem ela não sobreviveríamos se formou muito cedo na história humana. Não há dúvida de que, desde os mais tenros tempos, ela foi estabelecida como uma das prioridades para as comunidades humanas. Os mais velhos se comprometeram em ensinar o que sabiam para os mais novos e estes, por sua vez, trataram de buscar respostas novas quando as soluções antigas não mais satisfaziam. As formas e os meios como essas apropriações se realizaram, variaram muito na trajetória histórica humana. Com as mudanças pelas quais foi passando a sociedade, tam- bém formas diversas de perceber e tratar a educação foram surgindo. Por milhares de anos, a comunidade era a grande es-
cola; tudo se aprendia na e com a comunidade, era na vida da comunidade que a aprendizagem ocorria. Com o tempo, com o desenvolvimento da sociedade, surge um espaço específico para se transmitir o saber acumulado. Nascem, então, a escola, os sistemas de ensino, as pedagogias, etc.
Por outro lado, temos que levar em conta a pluralidade de sociedades e povos que constituem o nosso planeta. Com o pro- cesso de globalização realizado, sobretudo, pela mídia, passamos a ter conhecimento dos povos mais distantes e das culturas mais diversas, comparadas à nossa. Se o processo educativo encontra- se presente em todos os povos, os conteúdos dessas práticas vinculam-se ao que é vital para cada comunidade. A titulo de ilustração, poderíamos citar um caso ocorrido na história ame- ricana, que revela o verdadeiro sentido da ação educativa. No século XVIII, foi assinado nos Estados Unidos um tratado de paz entre os Índios das Seis Nações e os governos dos Estados de Virgínia e Maryland. Desejando oferecer uma prova de amizade e de boa convivência, as autoridades americanas enviaram uma correspondência aos chefes indígenas colocando à sua disposição algumas vagas em escolas de suas comunidades para serem ocu- padas por jovens índios. A resposta à gentileza dos brancos veio através de uma carta assinada pelos chefes dos povos indígenas. Em um de seus trechos, encontramos as seguintes considerações: Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores de- sejam o bem para nós e agradecemos de todo coração. Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que vossas idéias de educação não são a mesma nossa […] Muitos dos nossos bravos guerrei- ros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas quando eles voltaram para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado,
matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. Fica- mos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar nossa gratidão, ofereceremos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos, e faremos deles, homens” (Apud Brandão, 2005, p.8-9).
a E d U c aç ã O E O s d E M a i s a s P E c TO s da E x i s T ê N c i a h U M a N a
Cabe ainda ressaltar, complementando o que dissemos até agora, que a educação não se encontra desvinculada e isolada de outras atividades que o homem realiza visando garantir a sua existência, tais como a econômica, política, ética, jurídica, etc. A separação que realizamos é apenas didática, pois, na práxis social concreta, todos esses aspectos estão interligados e em in- teração permanente. Por exemplo, há uma dimensão política na prática educativa e vice-versa. Assim como há algo de político na prática educativa, também há um componente educativo na atividade política. Um político, no exercício de sua ativi- dade especifica, também está realizando uma ação educativa. Nesse sentido, ele poderá reforçar nos comportamentos e nas representações das pessoas estruturas organizativas de poder, democráticas ou autoritárias, impositivas ou participativas. Um educador, através da sua prática profissional, poderá estar for-
mando pessoas submissas, subservientes: presas fáceis à ação dos políticos corruptos e preocupados com os seus próprios interesses. Quando uma sociedade garante aos seus cidadãos qualidade no ensino e na educação, isso se reflete na esfera po- lítica, possibilitando a todos participação política e democrática. Analisando outro aspecto: sob vários prismas a educação se correlaciona com a economia enquanto esfera responsável pela produção, distribuição e consumo de bens e serviços necessários à manutenção da própria sobrevivência humana. Os interesses econômicos poderão forjar valores e representações que, uma vez interiorizados pela coletividade, poderão criar anseios e de- sejos de consumo que venham ao encontro dos interesses de quem os criou e difundiu. Como já dizia no século XVIII um conhecido pensador, Karl Marx, na sociedade consumista não basta apenas criar objetos para as pessoas, há que criar também sujeitos para os objetos. Precisamos de todos os objetos que são vendidos pela mídia como bons e importantes? O modelo eco- nômico vigente na forma como ele explora a natureza não nos levará em breve a um esgotamento das reservas naturais? Não teremos, mediante a ação educativa, que recriar os valores que balizam a nossa relação com a sociedade? É possível uma nova ordem econômica sem uma ação educativa que postule um novo paradigma cultural e a construção de um novo homem? Poderí- amos falar da relação entre educação e ética, economia e ética, mas o importante era ressaltar a existência de certa confluência
entre estas várias dimensões da nossa existência.
a M E Ta M O R F O s E d O E s P í R i TO
Talvez para concluir este momento de nossa reflexão, podería- mos recorrer a Nietzsche (1977, p. 21-22). Na introdução de seu
livro Assim Falava Zaratustra, dirá ele, de forma metafórica, que em seu desenvolvimento o espírito passa por três momen- tos importantes: primeiro se transforma em camelo; depois em leão e por último, em criança. O que é o camelo? É aquele que carrega a carga que depositaram em suas costa; não reclama, a recebe e transporta de maneira subserviente em seu lombo. Para Nietzsche, somos como o camelo. Para entrarmos no mundo hu- mano, temos que receber os resultados das realizações humanas, precisamos ser socializados com as conquistas anteriormente obtidas. Não temos que repetir a busca de nossos antepassados, seria uma perda de tempo: ela está à nossa disposição, basta que a assimilemos. Como o camelo, em um primeiro momento vamos tomando posse desse legado precioso sem reclamação ou questionamento, pois ainda não temos como fazer.
Mas surge o segundo momento, em que o camelo se trans- forma em leão. Já não é tão submisso como o camelo, ele briga, não aceita tudo de maneira passiva: o nome do leão é “eu quero”. Passará então a brigar com um grande dragão chamado “Tu deves”. Não é preciso dizer que o dragão encarna a tradição. Se o leão briga, é porque sabe que nem tudo que está presente na nossa cultura deve ser aceito passivamente. O leão indica que alterações devem ser feitas, nem tudo que é do passado deve ser repetido no presente. Há coisas que já não têm mais razão de ser. O leão recusa o legado, pelo menos aquelas receitas ve- lhas que não mais interessam ou não são de ajuda no presente. A recusa abre a possibilidade para a busca do novo, de novas representações, novos valores, novas sociedades. Mas se o leão briga, resiste às imposições da cultura, ele não é capaz de criar o novo. Para isso, é preciso que ocorra mais uma metamorfose – o leão se transforma em criança.
A criança exprime, para Nietzsche, a possibilidade de criar o novo, a leveza necessária para perder o mundo existente e criar as novas possibilidades. Veja como a criança esquece fácil das
coisas passadas e recomeça, como se nada tivesse acontecido. Vejamos o que diz nosso filósofo sobre a criança: “A criança é inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afir- mação. Sim; para o jogo da criação, meus irmãos. É necessária uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo que conseguir o seu mundo”.
Pois bem, acreditamos que o filósofo alemão nos ajuda a ex- pressar o que é educação. Ela falará de transmissão e de criação. Talvez pudéssemos definir de forma provisória, para concluir- mos tudo o que dissemos até agora, que educação é, em um primeiro momento, transmissão do saber acumulado; mas não só isto. Ela é também o trabalho que nos prepara para sermos criadores de nós mesmos e do mundo. Cada homem que nasce não vive apenas do que herdou, ele é obrigado também a criar, a buscar novas possibilidades para si e para o seu mundo. O que ele recebe é o ponto de partida para a sua criação. Assim, pode- ríamos dizer que a existência humana é uma grande aventura, na qual um eterno insatisfeito está sempre a brincar com seu mundo, constantemente a recriar as coisas com base nos seus desejos mais profundos. A educação deve nos preparar para isto.
L E i T U R a R E c O M E N da da
NIETZSCHE, F. Os discursos de Zaratustra. Das três metamorfoses. In: Assim falava Zaratustra. São Paulo: Hemus, 1977, p. 19-21.
ALVES, Rubem. Linguagem e poder. In: Suspiro do oprimido. São Paulo: Edi- ções Paulinas, 1984. p. 70-30
a T i vi da d E s
- Proposta de pesquisa a ser realizada de forma coletiva junto à Secretaria Municipal de Educação e Núcleo da Se- cretaria Estadual da Educação do seu município.
Como resultado desta pesquisa, tente fazer uma avaliação da educação em seu Município. As conclusões devem ser apresentadas no último dia de aula. Assim, haverá um pouco mais de tempo para esta atividade.
- Escrever um pequeno texto sintetizando o resultado das discussões dos textos estudados, explicitando o que lhe foi
A avaliação do tutor será feita com base nestas duas atividades.
B i B L i O G R a F i a
CARVALHO, Marcos de. O que é a natureza. São Paulo: Brasilense, 2003. ZEA, Leopoldo. Filosofia latino-americana como filosofia pura e simples- mente. São Paulo: Gramond,2005.
BRANDÂO, Carlos. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2005.
Capítulo 2
O saber filosófico: os caminhos
da razão suficiente
- Como a filosofia surge na história humana?
- Em que sentido a filosofia ajuda a criar um mundo ordenado?
- Que diferenças poderemos estabelecer entre a filosofia e a ciência?
- Em que sentido podemos dizer que a filosofia é crítica?
- Que relação existe entre a filosofia e a própria vida?
i N T R O d U ç ã O
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nquanto forma específica de refletir e atribuir signifi- cações ao mundo, a filosofia surge em um determinado momento da história humana – aparece na Grécia antiga
e representa mais uma invenção humana na forma de conceber a si e o mundo. Este novo saber marcará profundamente nossa civilização ao estabelecer meios cognitivos inéditos que levam o homem a formas de conhecimento e apreensão do estar no mundo nunca antes vistas.
Ainda que não tenhamos conhecimentos dos gregos, de sua história e cultura, somos a eles devedores da forma inovadora de pensar, por eles estabelecida, quando, por volta do século VI a.C., com o apoio da razão, aliada a determinados procedimen- tos metodológicos, passaram a estabelecer explicações lógicas e fundamentadas a todos os entes possuidores de existência. Já não se contentavam com as explicações mitológicas que recor- riam aos deuses e às narrações fantasiosas para dar sentido às suas existências. Não mais se satisfaziam com as explicações que definiam as ações humanas com base nas revelações do mundo divino, nem as configurações do mundo com base nas disputas entre os deuses.
Aos poucos as explicações míticas vão sendo substituídas pe- las filosóficas. Contemplando o universo, se perguntavam pela origem de tudo o que existia: as primeiras preocupações dos fi- lósofos foram com a natureza. Queriam saber como tudo passou a existir e o que propiciava ao reino natural um ordenamento e uma harmonia em que tudo seguia um caminho previamente
traçado sem risco de se perder. Ou seja, uma semente de abóbora não gerava quiabo, um pé da banana não dava laranja, um pé de tomate não dava cenoura. Quem presidia, afinal, a consti- tuição dos entes e sua harmonia? Eis a questão fundadora das primeiras reflexões dos filósofos.
Posteriormente, a partir de Sócrates, a preocupação não será mais a natureza, mas o próprio homem, em seu agir, nas condi- ções de sua felicidade ou na busca de justiça. Certamente você já leu alguma coisa de Sócrates, ele se preocupava com os cami- nhos necessários para levar o homem a ser mais feliz. De lá para cá, uma longa trajetória se seguiu, e com ela foi se constituindo aquilo que denominamos história da filosofia, que outra coisa não é senão o resultado da forma como em cada época o homem tentou responder aos problemas que se vinculavam ao sentido da própria existência nos seus múltiplos aspectos.
d O c a O s a T E R R O R i Z a d O R a O c O s M O h U M a N i Z a d O :
O s M O d E L O s E x P L i c a T i v O s F i L O s Ó F i c O s
Não se sabe bem como e quando, mas o fato é que surge em um determinado animal da natureza a consciência, como assi- nalamos anteriormente. Tal acontecimento garantirá a este ser um lugar diferenciado no seio da natureza. Embora pertencendo ao reino natural, aos pouco ele começa a escapar e distanciar- se de suas determinações e, com isso, passa a criar um mundo distinto daquele do qual emergiu. Surge uma nova forma de cognição: distanciando-se do mundo, a nova criatura é capaz de representá-lo e de criar formas explicativas que nenhum ou- tro animal havia anteriormente conseguido. Tem início, então, uma longa história de busca de compreensão de si mesmo e do universo que o cerca. De certa forma, somos continuidade dessa
odisséia de milhares de anos. Os nossos conhecimentos, assim como os instrumentos com os quais os construímos, colocam-se no prolongamento das conquistas dos nossos antepassados: a filosofia faz parte desta história.
Quando nossos olhares passaram a enxergar muito mais longe e se potencializaram com as atividades próprias da consciência emergente, a necessidade de explicação do mundo se impôs. Da mesma forma, surgia a exigência da busca de um significado para a vida, havia um universo imenso e assustador que precisava ser decifrado. O homem não vive em um mundo que não lhe faça sentido, essa necessidade já surge em um estágio ainda primi- tivo da nossa caminhada. Dessa forma, passamos a criar a partir de nossas entranhas razões para o nosso viver; conhecimentos através dos quais pudéssemos estabelecer um ordenamento do mundo, fazendo com que este se tornasse mais humano. Hoje convivemos com vários saberes: teologia, ciência, filosofia, arte, resultados do esforço humano para tornar o seu mundo mais bo- nito e seguro, em meio aos riscos da vida e aos horrores do nada.
Uma das primeiras formas explicativas que o homem estabe- leceu foi o mito. Com a linguagem mitológica, criada ainda na infância da humanidade, ele pôde estabelecer as primeiras expli- cações sobre o seu destino e o do mundo. Certamente que são do conhecimento do leitor as formas explicativas míticas dos gregos, dos romanos, dos hebreus e de muitos outros povos da antigui- dade. Trata-se de narrativas mais próximas de nós historicamente, vinculadas ao nosso processo civilizatório, das quais temos docu- mentos registrados, mas certamente muitas outras existiram por um período prolongado da história, sem que jamais tivéssemos notícia delas, pois ainda não existia escrita que as documentasse. É muito provável que você já tenha ouvido falar das nar- rativas que circulam entre os nossos povos indígenas, que têm com função explicar e ordenar o seu mundo. Podemos até achar ingênuas e fantasiosas tais explicações, mas para os indíge- nas elas são necessárias e vitais, são portadoras de verdade e concretude. Foi através delas que eles se organizaram e esta- beleceram sua ação sobre o seu mundo. Segundo antropólogos, ainda ocorre um alto índice de suicídio em meio aos povos in- dígenas em decorrência do contato com as nossas cosmovisões culturais, pois, aos poucos, esses povos perderam as referências culturais ordenadoras da sua existência. O mundo acabou per- dendo o sentido, e quando passaram a olhar o mundo com os olhos alheios, ficaram perdidos e em crise, e em muitos casos, alternativa não encontraram senão o suicídio. Não vivemos só de pão, mas também do significado que atribuímos à realidade.
Pois bem, a filosofia surge como parte deste esforço humano de querer dominar, ou seja, estabelecer uma humanização da na- tureza tanto interna como externa ao próprio homem. Trata-se de uma forma explicativa muito recente na história humana, como já ressaltamos. Ela se inicia em um período em que o homem já tinha inventado a escrita e por isso temos registro disponível para conhecermos os primeiros esforços do homem na construção deste
saber. Aquele que se gradua em filosofia ou teve a oportunidade de seguir outro curso superior é socializado com parcela deste saber, que representa o esforço de vários filósofos, em momentos distintos da história humana, de pensar e encontrar sentido para o viver hu- mano em um período de aproximadamente 2.500 anos de história. Atualmente o ensino da filosofia também está presente nas escolas de ensino médio, possibilitando aos nossos jovens o contato com os resultados dessas elaborações. Cabe notar que o nosso pensar e o nosso agir estão eivados de representações construídas por esses pensadores sem que, ao menos, tenhamos conhecimento disso. Vamos interiorizando este legado de forma inconsciente, sem conhecermos suas origens. Por exemplo, um dos conceitos que mais usamos é o de ‘verdade’. Você sabe qual a sua origem? Surgido na Antiguidade Clássica, continuamos a usá-lo com os mesmos sentidos originais. Para os gregos, ‘ver- dade’ era aletheia, ou seja, aquilo que é, que está escondido e precisa ser desvelado. Quando dizemos a alguém: “veja o que está nas entrelinhas, veja o que está para além das aparências”,
já estamos usando a palavra no sentido atribuído pelos gregos.
Da mesma forma, temos a contribuição dos romanos. Para eles, ‘verdade’ era veritas, ou seja, aquilo que se passou. Esse conceito se constituía de uma descrição minuciosa dos fatos passados, era o que foi. Está presente, por exemplo, quando perguntamos a alguém: “quero saber toda a verdade, como foi que as coisas ocorreram?” Ou então: “meu filho, conte-me como foi a confusão na escola, quero saber os detalhes para tomar providências”. Para os romanos, a verdade era, antes de tudo, um testemunho fiel dos fatos passados. Já para o povo hebreu, verdade tinha o sentido de emunah. A esse conceito se vincula algo que deverá ocorrer no futuro. Não é, como nos romanos, o que foi, mas o que será. É a realização de uma palavra. A verdade ocorre quando alguém honra com a palavra dada. Nesse sentido, Deus era verdadeiro, pois honrava com a palavra dada.
Acho que foi possível você perceber o quando estamos mar- cados pelo passado até nas palavras mais simples que usamos em nosso cotidiano. E foi o processo educativo que fez este pas- sado fazer parte do nosso presente.
F i L O s O F i a : a R a Z ã O Q U E i N v E s T i G a
Anteriormente à explicação filosófica, os homens, como já res- saltamos, haviam inventado a explicação mítica. Mediante uma linguagem altamente simbólica e de cunho narrativo, preponde- rava a sensibilidade e a emotividade, o homem criava estórias com a pretensão de expor o sentido da existência e justificar o seu mundo. Você certamente já leu algumas delas, sobretudo da tradição grega ou judaica. Sugiro que você dê uma lida no livro ”Teogonia”, de Hesíodo, ou “Odisséia”, de Homero. Também o livro do “Gênese” está profundamente marcado por este tipo de linguagem. Mas o que nos interessa de perto é o saber filosófico, é sobre ele que refletiremos.
É por volta do século VI a.C. que surge a pretensão do homem de querer compreender o mundo unicamente com o esforço da razão; com isso, ele cria uma atividade reflexiva diferente das existentes. Não contente com as explicações míticas, o homem grego busca uma nova forma de inteligibilidade do universo a partir do seu pensamento, com base em uma coerência lógica. Para que isto pudesse ocorrer, foi necessário o desenvolvimento de uma capacidade reflexiva e uma potencialização em suas atividades de abstração. Lembre-se de que nossos antepassados não tinham o amadurecimento e a capacidade lógica que temos hoje, de estabelecermos conhecimentos abstratos sobre o mundo. Na Grécia antiga, em um período de desenvolvimento eco- nômico e político, alguns acontecimentos foram importantes para desenvolver a capacidade de abstração do homem. Entre eles, podemos ressaltar o surgimento da escrita (que passou a ter uso público), da moeda, das leis, e da polis. Nas pequenas cidades gregas, se discutia nas praças (Ágora) os destinos da cidade. Ali os homens livres aprenderam a discutir e estabelecer o que deveria ser feito nas suas cidades. Isto vai desenvolver a capacidade de pensamento, abstração e coerência lógica. Aos poucos se libertaram das representações religiosas que tinham, sobretudo do jugo dos deuses. Começaram a acreditar que, sem a tutela destes, poderiam projetar os seus conhecimentos e sua ação sobre o mundo que o cercava. A auto-estima dos humanos se desenvolve junto com crença na sua capacidade de resolver seus próprios problemas. E assim passam a decifrar o seu mundo com base unicamente na sua capacidade reflexiva, buscando as razões e fundamentos de tudo o que existe. Dessa forma, surge pela primeira vez na história, como já vimos, uma nova forma de saber, a filosofia, que, inaugurada pelos gregos, marcará toda
nossa tradição ocidental de pensar até os dias de hoje.
Mas podemos perguntar: na antiguidade, para além das fronteiras gregas, as pessoas não pensavam? Não tinham as
suas representações sobre o mundo? Já não havia escritos que orientavam o homem no seu agir? Sim, certamente havia, mas a novidade se encontra no fato de que agora, com os filósofos gregos, se buscava um saber que postulava as possibilidades de estabelecer os fundamentos e as razões de ser do mundo e da ação humana. Assim, vamos encontrar no início os esforços reflexivos de Anaxímes, Anaximandros, Pitágoras, Heraclitos, Parmênides, Sócrates, Platão e Aristóteles. Depois teremos na Idade Média a contribuição, entre outros, de Agostinho e Tomás de Aquino. Na Idade Moderna, um grupo imenso de pensadores, dos quais poderíamos destacar a reflexão de Descartes, Kant, Ba- con, Hegel; em seguida, mais próximos de nós, Marx, Nietzsche, Sartre, Heidegger, Levinas e muitos outros. Cada qual procu- rando pensar, dentro das condições existentes em seu tempo e da busca de sentido que cada tempo exigia, os problemas que os desafiavam em seus contextos históricos. Isso porque o agir do homem implica necessariamente uma forma de conceber o mundo. Toda atividade desenvolvida nele está imbuída de signi- ficações que impulsionam o homem em tudo o que ele faz.
a F i L O s O F i a E a c i Ê N c i a :
d O i s c a M i N h O s d i s T i N TO s E s O L i d Á R i O s
A ciência, tal como a conhecemos atualmente, é resultado das grandes revoluções ocorridas no início da Idade Moderna com Kepler, Copérnico, Galileu, Newton. Certamente que ela se co- loca no prolongamento e no refinamento daquele saber que se inicia na Grécia antiga, vinculada, sobretudo, à contribuição de Aristóteles. A física qualitativa do estagirista foi por séculos referência de conhecimento sobre a natureza, mas aos poucos ela entra em colapso. Francis Bacon chega a escrever um livro,
o Novo Organum, sugerindo novo caminho para a ciência, pro- pondo o método indutivista como ideal para o saber cientifico. Outros vão incorporar à ciência a contribuição da matemática. Com ela, se estabelece um instrumento importante para medir, quantificar. Antes a matemática não tinha este propósito, obe- decia apenas a interesses especulativos. A matemática garantirá precisão ao saber científico, lhe possibilitará um conhecimento rigoroso sobre o meio natural. As ciências da natureza terão nela um componente essencial e se potencializarão na sua busca de compreensão do meio natural.
A rigorosidade e a objetividade passarão doravante a ser critérios para a nova ciência. Assim, ela se define como um co- nhecimento metódico, objetivo, rigoroso e quantificável de uma parcela da realidade. Aos poucos se estabelece uma pluralidade de setores da realidade sobre os quais o conhecimento se esten- dia, tendo, cada um, métodos específicos e linguagem própria. Assim, vemos surgir primeiramente a física, a astronomia, a química, a biologia, a fisiologia. Ao longo dos últimos séculos, vamos conhecendo inovações e ramos novos no campo do co- nhecimento científico, que vai fragmentando a realidade com a pretensão de produzir um conhecimento adequado desta.
A filosofia, por seu lado, não é como a ciência, conheci- mento objetivo da realidade, não visa a uma compreensão metódica das entranhas da realidade. O homem não conhecerá através de uma investigação cientifica os critérios de sua ação. Ainda que esta possa auxiliar, é ele quem deve criar com o seu esforço racional os caminhos que lhe poderão ser importantes. Por exemplo, o agir do homem na relação com o mundo e ou- tros mundos deverá ser criado a partir daquilo que ele considere ideal e importante. Quem trata dessa reflexão é a ética, parte da filosofia. A ética se pergunta como deve o homem agir de tal forma a que reine o respeito, a justiça, a liberdade, a res- ponsabilidade, a participação. Por isso estamos a todo instante a falar dela, pois, em nossos dias, há uma crise dos valores que respondem pelo relacionamento humano.
Como dissemos antes, a filosofia foi passando por inúmeras metamorfoses e se definindo em suas preocupações e objetos reflexivos. Não nos será possível neste espaço uma descrição do percurso realizado pela filosofia na sua relação com a ciência, que, afinal, se dá sob vários aspectos e a partir de preocupações distintas. Julgamos importante ressaltar que a filosofia, a exem- plo da ciência, busca uma reflexão radical e rigorosa em sua atividade. Ou seja, procura ir à raiz dos problemas em discussão, pautando-se em métodos próprios e específicos que lhe garan- tem incursões seguras e sem risco de se perder em devaneios e especulações infundadas.
Mas, diferentemente da ciência, na filosofia prevalece a pre- ocupação com a totalidade, com a visão de conjunto. Enquanto a ciência fica presa à particularidade, a filosofia se orienta no sentido de estruturar uma visão de globalidade, seja do homem, da sociedade, da natureza ou da ciência. Vimos anteriormente que a filosofia se pergunta sobre o sentido das coisas, sobre o significado da existência. Tais sentidos nunca são os mesmos, pois a cada época e momento histórico o homem estabelece sig-
nificações novas para si e seu mundo. A ciência não se pergunta pelo sentido da realidade, mas por aquilo que ela é.
Sem nos adentrarmos em detalhes, sugerimos que a filosofia e a ciência, embora sejam duas formas de conhecimento distin- tas, poderão ser solidárias e complementares. De certa forma a ciência, em sua atividade, pressupõe uma concepção de mundo eivada de conteúdos filosóficos. Isto é o que defendem alguns filósofos da ciência. Os cientistas estão marcados por certas con- cepções filosóficas, ainda que nem sempre percebam. Por outro lado, sua atividade também vai corroendo significações que foram pertinentes, mas que, com o tempo, perderam o sentido. Com isso, a filosofia é convidada a estabelecer novos horizontes de ação do cientista e do homem.
A ciência moderna estava marcada por certos pressupostos filosóficos que balizavam sua ação: concepção de ciência, con- cepção de natureza, concepção de homem, etc. Os resultados desta ciência inaugurada com Galileu trouxeram mudanças profundas na relação do homem com a natureza. Hoje existe consenso a respeito dos riscos que corremos a partir das nossas formas de conhecer e dominar a natureza. De fato, a existência humana está em risco: em todos os noticiários ouvimos falar do efeito estufa, do desgelo das grandes geleiras, da poluição dos mares. Tudo isso solicita a contribuição da filosofia como forma de buscarmos novos sentidos para a vida humana na atual situação. Além de formas de repensar o sentido da natureza, da relação entre os homens, das possibilidades e limites do conhecimento científico.
A filosofia e a ciência também se encontram presentes na prática educativa. Como sabemos, a ação educativa que ocorre através de sistemas organizados de ensino conta com a contri-
buição de várias ciências. Participam desse esforço a biologia, a psicologia, e outros saberes. Mas a filosofia também é convi- dada, pois o tipo de reflexão que ela desenvolve é igualmente vital para a educação. Que homem queremos formar com nossa prática educativa? Para qual tipo de sociedade estamos edu- cando? Que ideais éticos devem estar na base de nossa atividade educativa? Estes e outros questionamentos, de cunho filosófico, são importantes para orientar o trabalho educativo e não se co- locam no âmbito das preocupações da ciência.
a F i L O s O F i a E N T R E a c O N s T R U ç ã O E a d E sc O N s T R U ç ã O
Talvez seja importante neste momento de nossa trajetória res- saltarmos uma distinção entre o filosofar e os resultados dessa atividade através dos sistemas de explicações filosóficas. Filoso- far é aquela postura que o homem tem diante dos problemas que se apresentam com o intuito de estabelecer novas significações para a vida. É uma atividade crítica que visa apontar os limites dos modelos explicativos presentes e buscar de novo razões para a vida nos seus vários aspectos: sociais, científicos, antropoló- gicos… Dessa forma, o filósofo é um provocador, está sempre a indicar as possibilidades de novas maneiras de se ver e ser no mundo. A realidade que parecia natural é questionada, os valores, representações e comportamentos que pareciam eternos são colocados sob suspeita. Inicia-se, assim, um processo de desconstrução de nossas matrizes de representação com vistas a uma atualização de nossas idéias.
A filosofia, portanto, é uma atividade desestabilizadora. Mui- tas vezes continuamos a reproduzir os conceitos herdados sem que eles tenham pertinência em nossos presentes. Assim, o filosofar é
a ação de desfazer o que estava fixo e com pretensão de eterni- dade. Não se trata de uma tarefa fácil e sem resistência, visto que o que aprendemos não fica apenas guardado em nossa cabeça, mas penetra em nossos corpos, faz parte de nossas identidades. Os chineses acreditavam que pensar dói. É uma ação humana que mexe com o que somos e acreditamos. Por isso mesmo, é muito mais fácil ficarmos remoendo o passado aceito e aquilo que somos, do que mergulhamos em questionamentos que pos- sam provocar mudanças em nós. As possibilidades de recriação do homem são sempre geradoras de dor, pois algo deve morrer para que o novo possa nascer. Todo ato de crescimento humano envolve dor, talvez não física, mas na própria alma, interna.
Por outro lado, a filosofia não é apenas desconstrução, é também construção. Ao mesmo tempo em que o filósofo exerce uma atividade crítica de negação do que está estabelecido, ele também busca novas formas explicativas. Ao fazer isto, ele está criando uma nova linguagem, novos conceitos, novos sistemas simbólicos, enfim, uma nova forma de pensar e viver para um determinado contexto. Não apenas nega o passado, mas afirma novas possibilidades para o presente. Poderíamos entender a história da filosofia como resultado das inúmeras reflexões, re- alizadas em épocas distintas, mediante as quais os pensadores foram tentando ser contemporâneos aos seus tempos. A história da filosofia se constitui no conjunto das elaborações que os filó- sofos realizaram ao longo do tempo, na busca de responder aos problemas colocados em sua época. Por isso mesmo podemos falar de filosofia antiga, medieval, moderna e contemporânea. Em cada um desses momentos, encontramos vários filósofos empenhados em responder e abrir caminhos novos adequados aos momentos históricos em que viveram. Cabe notar que o fi- lósofo não é um ser estranho, distante do mundo, perdido em divagações extravagantes. Os filósofos sempre fizeram parte de uma história, de um tempo, e estiveram envolvidos em respon-
der a uma série de problemas que estavam presentes no seu mundo concreto. O filósofo tem como ponto de partida a sua circunstância, o real do qual faz parte.
A filosofia, dessa forma, tem como ponto de partida a vida que flui, os problemas que angustiam o homem. A filosofia não deve ter como referência essencial da sua atividade os subpro- dutos das reflexões passadas, mas os problemas que se coloca no presente. Certamente que isto não significa um abandono do legado dos nossos antepassados, que constitui uma referência importante, mas não única. A universalidade da filosofia não deve nos fazer perder a vida que pulsa e as questões vitais que devem ser respondidas no presente.
Muitas vezes a desmotivação em relação à filosofia existe em decorrência da ênfase dada à história da filosofia. Ficamos limi- tados aos sistemas herdados e não desenvolvemos as habilidades necessárias para refletir sobre o mundo que nos circunda. É o que ocorre, por exemplo, em nossos cursos de filosofia. Passamos o tempo todo remoendo aquilo que os diversos filósofos refle- tiram em contextos distintos dos nossos. Ficamos, então, a nos olhar a partir dos olhos deles, daquilo que disseram. Sofremos certo complexo de inferioridade em relação à filosofia realizada na Europa. É muito mais fácil e cômodo nos escondermos por trás dos grandes sistemas consagrados do que assumirmos o de- safio de pensar por nós mesmo. O filosofar não é unicamente um exercício de reflexão dos conteúdos abstratos encontrados na história da filosofia. Eles estão disponíveis, mas não se pode perder a vida e a realidade mais próximas de nós, que, ao con- trário, devem ser nosso ponto de partida. A filosofia não pode ser entendida como um exercício de diletantismo, mas uma ati- vidade vital para o homem. Sobretudo àquele que faz parte desta civilização que tem em sua base elementos da tradição grega.
Com as considerações precedentes, não queremos territoriali- zar a filosofia em seus resultados. Postulo uma universalidade dela
em seus resultados, mas o seu ponto de partida deve ser a singula- ridade, as experiências, angústias e problemas que os homens, em suas particularidades históricas e sociais, vivem. Por outro lado, creio de deva ter ficado clara a relação entre filosofia, enquanto reflexão crítica, desestabilizadora e problematizadora, e filosofia enquanto conteúdos, sistemas explicativos, paradigmas elabora- dos, resultados da reflexão. Talvez algumas questões pudessem ser importantes para a nossa reflexão filosófica no presente: Os ho- mens estão vivendo de uma forma adequada, que lhes possibilite o desenvolvimento de suas potencialidades? Estamos contentes com a forma como nos percebemos nos relacionamentos com a natu- reza? Entre os povos há um relacionamento respeitoso e justo? Como se encontra a educação, qual o papel dela no atual contexto de nossa sociedade? Para que sociedade estamos educando? Que tipo de vida esperamos construir com a nossa ação educativa?
L E i T U R a R E c O M E N da da
GOMES, Roberto. Uma razão que se expressa; Filosofia e negação; Razão de- pendente e negação. In: Crítica da razão tupiniquim. São Paulo: FTD. PALÁCIOS, Gonçalos Armijos: A traição aos gregos; O começo do filosofar; A escrita filosófica como código cifrado. In: De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Goiânia: Editora UFG, 2000.
F Ó R U M d E d i sc U ssã O
1) A Filosofia e a Vida
Qual a importância da Filosofia na vida humana?
B i B L i O G R a F i a
BORHEIM. Gerd. A. Introdução ao filosofar. Porto Alegre: Editora Globo, 1973.
Capítulo 3
Fundamentos filosóficos da educação:
concepções educacionais
- Em que sentido a filosofia se relaciona com a educação?
- O que o autor quer dizer com filosofia da essência?
- O que você compreendeu da filosofia do sujeito?
- O que caracteriza a filosofia da exitência?
- Como as pessoas são percebidas na filosofia da razão histórica?
- Como as filosofias apresentadas se vinculam com a prática educativa?
i N T R O d U ç ã O
pós as considerações sobre os conceitos de educação e filosofia, procuraremos estabelecer uma aproximação entre esses dois termos. O processo educativo, aqui
entendido na forma institucionalizada, ou seja, vinculado ao processo de ensino, é perpassado por diferentes saberes, entre os quais podemos destacar os que se situam nas dimensões biológica, sociológica, psicológica, econômica e filosófica. Os educadores são convidados a se inteirar desses vários co- nhecimentos como forma de embasar e aprimorar a sua ação educativa. Nesta reflexão provisória, nos ateremos apenas à relação entre filosofia e educação. Em que sentido a filosofia se faz necessária na vida do educador? As concepções filosófi- cas são possuidoras de pertinência às concepções pedagógicas? Que relação há entre concepções filosóficas e paradigmas peda- gógicos? Haverá nas indagações dos educadores e educandos problemas de natureza filosófica? É isto que procuraremos dis- cutir, ainda que de forma rápida, neste momento.
O s P R E ss U P O s TO s F i L O s Ó F i c O s da P R ÁT i ca E d U caT i va
Retomemos duas idéias básicas explicitadas anteriormente. A primeira delas refere-se à educação como prática coletiva es- sencial à sobrevivência humana. Os demais animais da natureza têm seu saber inscrito no próprio corpo, agem através daquilo
que chamamos de instinto. Muitas vezes fazem o que seus pais fizeram, sem passar por qualquer processo de aprendizagem. No caso humano, as coisas se passam de forma diferente. Cada criança que nasce é obrigada a passar por um longo processo de formação. Está a sua disposição um longo acervo de informa- ções, conceitos, valores que deverão ser assimilados para que ela se torne humana. Estas práticas podem ocorrer em vários espa- ços distintos: na rua, na igreja, na família, na escola, mas são permanentes. Quando ocorrem no interior da escola, se realizam de forma organizada e fundamentada, com apoio nos resultados de várias ciências, inclusive da filosofia.
A segunda idéia diz respeito à filosofia como uma forma de co- nhecimento que o homem inventou no seu processo civilizatório. Diferentemente da ciência, a filosofia não visa à compreensão de um pedaço da realidade que foi delimitada para ser investigada. O saber inaugurado pelos gregos visa a explicações significativas do mundo. Ninguém vive em um mundo que não lhe faça sentido. A filosofia, naquilo que lhe é próprio, dispõe dos meios necessários para preencher essa lacuna. A ciência não tem essa preocupação quando se volta para a realidade a ser investigada, mas, de certa forma, pressupõe concepções filosóficas que, em última instância, também orientam sua atividade. Subjacente à atividade científica existem valores, interesses, escolhas, convicções não confessadas. O cientista também poderá perguntar pelo sentido daquilo que está fazendo em termos da sua relação com o homem, com a so- ciedade, com a natureza. Nessa hora, a filosofia poderá ajudá-lo também. O diálogo entre a filosofia e a ciência poderá ser impor- tante; é o que advogam muitos pensadores contemporâneos.
A filosofia também poderá ser importante à pratica educativa? Não nos resta dúvida deste fato. Como vimos anteriormente, a filosofia poderá ser entendida a partir de dois aspectos básicos que a caracterizam: a crítica que visa evidenciar os limites das representações e significações que estão a orientar as nossas
ações no mundo, e a atividade que visa à construção de novas significações que atualizarão nossas representações do mundo e do homem. Dessa forma, a filosofia na sua relação com a educa- ção pode ser vista do ponto de vista do processo e dos conteúdos. No primeiro, ela é crítica, é atividade questionadora dos paradig- mas pedagógicos cristalizados com o tempo. No segundo, ela é conteúdo, embasa concepções filosóficas da educação a serem questionadas e recriadas de acordo com os interesses e expec- tativas presentes no universo educativo. As duas dimensões são complementares, mas vivem numa tensão permanente, pois o homem nunca pára de questionar, nem de recriar seu mundo e as significações que a ele dá, neste caso, a significação educativa.
Portanto a filosofia, em relação à educação, como é de sua natureza, vive uma tensão permanente. Ao mesmo tempo em que empresta as representações de significação do homem e do mundo para a ação educativa, também questiona quando julga estar esta ação desatualizada em relação a seu tempo ou àquilo que possa ser importante para a sociedade no contexto histórico. Talvez facilitasse nossa compreensão se passássemos a expor esta relação de concepções filosóficas com a prática edu- cativa, nos vários contextos históricos. As atividades educativas escondem significações filosóficas. Mas como é que isto ocorreu concretamente ao longo da história? Passaremos a expor as ma- trizes de representações filosóficas do homem e do mundo que fomos construindo e depois passaremos às concepções pedagó- gicas decorrentes dessas construções mais gerais.
a F i L O s O F i a da E ss Ê N c i a O U d O s E R
Desde que surge a filosofia, na Grécia, até o início da Idade Moderna, uma preocupação foi comum entre os pensadores das
várias épocas e lugares: a questão do sentido do mundo. Para dar resposta a essa inquietação, eles postularam a existência de uma realidade essencial que pudesse tornar o nosso mundo ex- plicável. Cada filósofo fez isto ao seu jeito, mas todos estavam convictos de que havia uma realidade para além do mundo que pudesse ser causa de explicação deste. Todos os pensadores, até o inicio da Idade Moderna, se fixaram nesta realidade transcen- dental ao mundo, para que pudessem não apenas encontrar a significação do espaço habitado pelos homens, mas também buscar referências mediante as quais pudessem agir. Acredita- ram ainda que os homens, fazendo uso de forma adequada da razão, poderiam alcançar para além do mundo das aparências alguma coisa de essencial que pudesse dar consistência à reali- dade. A razão teria um papel importante, pois ela poderia, uma vez bem dirigida e guiada, alcançar algo que estivesse para além dos nossos olhos, mas que pudesse, qualitativamente, ser supe- rior à realidade conhecida. Lembremos que a filosofia surge com a pretensão de explicações unicamente com a capacidade e com os meios de que os homens eram possuidores. Era preciso criar condições para que a consciência, ordenada por instrumentos lógicos, pudesse conhecer verdades essenciais.
Platão acreditava que o mundo em que vivemos só é pos- sível porque existe um outro, eterno e imutável, possibilitador deste em que vivemos. O nosso seria apenas uma pálida cópia do mundo verdadeiro, que ele denominou de mundo da idéias, concebendo, dessa forma, uma realidade transcendente e verda- deira, separada e distinta daquela em que vivemos, passageira, limitada e contingente. Para Platão, deveríamos abandonar o mundo das contingências, das coisas passageiras, para nos di- rigirmos através de um processo reflexivo a um outro, eterno e imutável. Todo o discurso religioso de desprezo e abandono da realidade tem alguma coisa daquilo que pregava Platão no passado, ainda que não saibamos como isto ocorreu. Sugiro que você leia o Mito da Caverna de Platão. Não será difícil encontrá-
-lo na internet.
Aristóteles, que havia sido discípulo de Platão, tenta dar uma ajeitada na teoria do mestre, realizando algumas mudanças im- portantes, mas a idéia básica de que há uma essência à qual podemos chegar, permaneceu. Parte-se da suposição de que, do próprio mundo, não podemos chegar à explicação do mesmo. Isto caracterizou o que se denominou em filosofia a forma metafísica de explicar o mundo e o homem. Em Aristóteles, diferentemente de Platão, não vamos ter uma recusa absoluta do mundo. Para ele, o mundo é bom, o prazer é bom, tudo depende da forma como possamos explorá-los. Em tudo tem que haver equilíbrio.
Com o surgimento do Cristianismo, a visão essencialista per- maneceu nas sínteses realizadas por Santo Agostinho, Tomás de Aquino e outros pensadores católicos. Vai se encontrar em Deus a razão de tudo que existe. Ele é o sentido de tudo, mas também o modelo de ação do homem no mundo. Em todas essas concep- ções, estava presente a convicção de que o homem era possuidor de uma essência e deveria passar a vida realizando essa essência ideal de homem. Em outras palavras, acreditava-se que havia uma perfeição possível para o homem atingir e realizar.
Aqui o homem é entendido não como sujeito concreto de carne e osso, mas como ideal. Havia uma essência comum a todos, não importando o lugar em que vivessem na terra. O ideal de homem era o mesmo para o chinês, o negro, o europeu, o brasileiro, pois, quando se fala em essência, não se leva em conta os detalhes: isto é acidental. Para um homem, ser baixo ou gordo, alto ou baixo, pequeno ou grande, não tinha qualquer importância, pois naquilo que eles tinham de mais profundo, eram a mesma coisa. Esta forma de pensar, conhecida em filoso- fia como metafísica foi muito sintetizada pelo filósofo brasileiro Joaquim Antônio Severino. Para ele,
Na Antiguidade Clássica ocidental surgiu, e pre- dominou até o final da idade Média, uma visão essencialista da relação sujeito/objeto. Essa aborda- gem decorre do modo metafísico de pensar. Nele, o real se baseia em entidades que existiram de forma dependente da entrada humana em cena. Para exis- tir, tais entes realizam um modo de ser denominado ‘essência’ pelos metafísicos. Essência é o conjunto de características permanentes que fazem a iden- tidade de cada ente, integrando-o em determinada espécie e distinguindo-a de outra. Criados por um ser divino, ou existente desde toda eternidade, eles se apresentam aos homens que apreendem sua es- sência e as traduzem em conceitos. “Tal capacidade é possível porque os homens possuem uma essência principalmente racional, forma de apreensão das es- sências mediante a elaboração do conceito da coisa” (SEVERINO, 2001, p.24).
Estamos culturalmente marcados por essa idéia de essência: ela não nos é muito estranha. Quantas vezes você já não se di-
rigiu a alguém recusando uma proposta, comportamento, ação, com a justificativa de que ela iria contra sua essência? Com a aceitação você poderia afetar algo que lhe é sagrado, iria ferir alguma coisa de muito importante, enfim, iria comprometer o seu próprio ser.
Mas qual seria a pertinência dessa reflexão, para que bus- car o ideal de homem, uma essência escondida para além do mundo das aparências? Compreendendo a forma perfeita de homem, poderíamos orientar a nossa existência no mundo. Você já pode perceber que os demais animais da natureza não pre- cisam se preocupar com o seu agir, tudo é determinado pela natureza. O homem, entre os demais seres existentes, é aquele que precisa organizar sua ação no mundo através dos valores que vai criando e dizem o que é importante ou não. Se não fizer isto, ele se acaba, se perde, pois já não vive mais sob as determinações inflexíveis da natureza. Uma vez que se descobre a perfeição possível para o homem, é necessário que ele oriente a sua existência para aquela finalidade, que, segundo os filóso- fos essencialistas, não é uma mera criação humana, mas algo possuidor de realidade, de existência própria.
Se esta concepção essencialista se inicia com os gregos, con- tinua a se desenvolver durante a Idade Média e chega até nós. Ainda continuamos a pensar dentro dessas referências herdadas. Nesse sentido, continuamos gregos.
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A Idade Moderna se inicia com inúmeras revoluções sociais, políticas, econômicas e culturais, que vão forjar uma nova or- dem social: a burguesa. Uma das preocupações presentes na sociedade é a da necessidade de se construir uma nova base
para a produção de conhecimentos sobre o mundo. Vários são os filósofos, cada um ao seu jeito, que vão participar desta ta- refa. Entre eles, poderíamos citar Descartes (1596-1650), Bacon (1561-1626), Locke (1632-1704), Immanuel Kant (1724-1804).
A forma de conhecer essencialista, que estava muito mais pre- ocupada em buscar conhecer as verdades eternas e absolutas, estabelecida a partir da síntese aristotélica tomista, será recu- sada. Do ponto de vista do conhecimento, não se acreditará mais na existência de uma essência para além das aparências, mas, sim, que o que antes foi julgado essência seria apenas uma criação do homem. Ele é um criador de idéias. O mundo é uma criação dos humanos.
O que vemos, antes de tudo, são conceitos criados. É o período antropocêntrico, pois o homem é o centro. Esta fase se contrapõe à anterior, teocêntrica, em que tudo se explicava a partir de Deus, uma essência eterna. Um dos pensadores modernos importantes foi Immanuel Kant (1724-1804). Segundo ele, se houvesse um mundo das essências, uma perfeição a ser seguida, o homem não a conseguiria conhecer. Kant mostrará em seu pensamento que o homem é um inventor de mundo, pois criou o conceito de tudo que existe. Ele é dinâmico, criador, ativo. Para o pensador ale- mão, que influenciará bastante Jean-Piaget em sua pedagogia, a razão não tem poder para alcançar uma essência existente para além das aparências. Kant parte do fenômeno, daquilo que se apresenta a nós e a partir daí, com alguns meios de que a razão dispõe, vai criando os conceitos e, com isso, vai ordenando o mundo através das representações simbólicas que cria. Quando nós chegamos aqui, já encontramos um mundo pronto e orga- nizado, pois nossos antepassados foram criando os conceitos e etiquetando com palavras tudo que havia. Dessa forma, a razão não apenas expressa uma realidade transcendente, mas também cria o que existe. O sujeito, enquanto razão criadora de conheci- mentos, é o centro. Joaquim Severino dirá que,
[…] reconhecendo a impossibilidade de atingir as essências, a filosofia moderna concentrou-se no sujeito. Para ela, o principal problema passa a ser o conhecer. A filosofia moderna torna-se epistemo- logia e filosofia do sujeito. Mesmo quando recupera a perspectiva ontológica, ela o faz sob o signo da subjetividade. A ontologia moderna se torna pro- fundamente idealista. O modo de ser subjetivo se postula como originário e fundante (SEVERINO, 2001, p. 37).
Não se deve entender sujeito, aqui, como o sujeito existen- cial, como indivíduos concretos que são João, Maria, Antônio, mas como um sujeito que engloba todos nós e é criador dos conceitos que faz o mundo do jeito que ele é. Trata-se de um sujeito enquanto conhecedor do mundo. Para Kant, a razão não expressa apenas uma realidade pronta e acabada que se en- contra para além das aparências, mas ela é criadora de mundo. Ela é possuidora de uma centralidade nunca antes pensada. Ela é “uma faculdade soberana e suprema, capaz de suturar suas fissuras e de ordenar o mundo” (CARRILHO, 1994. P.9). Cada pessoa, individualmente, é possuidora desta faculdade soberana.
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Por volta século XVIII, vai surgiu um novo filósofo propondo uma inovadora forma de pensar. Ele, Friedrich Hegel (1770- 1831), mostrará a importância da história e da sociedade no processo de criação do conhecimento. Advogará o fato de que o homem não existe isolado, realizado no seu labor reflexivo, mas faz parte de algo muito maior que o transcende: a história e a
cultura. Por mais que possamos refinar os nossos instrumentos de conhecimento, perceberemos a realidade sempre de forma parcializada. Hegel trará uma visão orgânica das representações que podemos criar sobre o mundo.
Uma determinada concepção filosófica só poderá ser compre- endida à luz do passado que a gerou. Não há saltos na história das idéias, mas articulação entre os vários momentos, de tal forma que, suprimido um, fica comprometido o entendimento do seguinte, pois tudo se dá em um processo. Para Hegel, a ra- zão não reina soberana, acima da história e dos acontecimentos que ocorrem. Somos condicionados pela história, construídos por ela. Nossa razão, nossas faculdades de conhecer, se cons- tituem na sociedade, no tempo, na história. Para além dos indivíduos concretos, João, Maria, Pedro, você, há um processo em desenvolvimento ao qual estamos vinculados. Segundo He- gel, o homem deve estar atualizado com os acontecimentos do seu tempo, com as idéias, representações inovadoras surgidas no interior da cultura. Aquele que não é capaz de se inserir e participar da sua cultura é um alienado.
A alienação, porém, ocorre não apenas entre os indiví- duos, mas também entre os povos. No tempo deste filósofo alemão, estavam ocorrendo mudanças profundas na sociedade européia, que estabelecia novas formas de organização so- cial e política e estruturava o novo conhecimento científico. Segundo Hegel, tais acontecimentos colocavam a Europa no centro das criações mais inovadoras que até então se tinha conseguido alcançar, que, para ele eram as manifestações mais recentes do espírito. Naquela mesma época, encontravam-se outros povos em situações bem diferentes daquelas, vivendo em organizações sociais primitivas, atrasadas. Para o filósofo alemão, esses povos estavam distantes dos avanços que a Europa conquistou, alienados em relação às avançadíssimas formas de representações do mundo. Nada impedia que um dia
esses povos atingissem tal estágio, mas, de qualquer forma, a Europa havia saído na frente.
De acordo com Hegel, a Europa era o centro de uma irradia- ção mais atualizada do espírito na história, enquanto os outros povos eram suas manifestações mais atrasadas. É importante ressaltar que, para o filósofo alemão, o sujeito perde a sua im- portância enquanto indivíduo separado da cultura. Este só é na medida em que é capaz de participar e estar sintonizado com os acontecimentos do seu mundo, bebendo dos saberes mais recentes que se elaboraram na história. É na história que esses acontecimentos ocorrem e, com o tempo, caducam. Não existe verdade eterna, mas aquela que está se fazendo. A este processo dinâmico de recriação da cultura, Hegel denominou de dialético. As idéias, conceitos, concepções nunca ficam fixas, mas estão se recriando no interior da história, como manifestação daquilo que ele chamou espírito: uma força dinamizadora da história.
As idéias de Hegel foram assumidas por um outro filósofo alemão, chamado Karl Marx (1818-1883). Este vai fazer uma
mudança no legado recebido. Chamará a atenção para o fato de que o homem é um ser sempre condicionado em suas repre- sentações do mundo. Descobrirá que, quando os humanos se organizaram para garantir a sua sobrevivência através de um trabalho coletivo, alguns mais espertos acabaram se apropriando daquilo que todos produziram. Trata-se de um acontecimento recorrente na história humana. É bem verdade que as formas foram diferentes, mas sempre existiram; houve sempre aqueles que detinham o poder econômico, os meios de produção (in- dústria, terra), e os outros que trabalhavam para garantir o seu sustento. Na sociedade burguesa os indivíduos dividem-se entre aqueles que têm o capital e os que vendem sua força de trabalho. Marx dirá ainda que quem detém o poder econômico, detém também os meios de produzir e difundir idéias que garantam e legitimem sua dominação. A essas representações presentes na sociedade capitalista, que ajudam a encobrir o que as coisas são e a dominação humana existente, ele designou ideologia. Segundo o pensador alemão, a história humana está marcada pela exploração entre os homens. Daí o seu empenho em querer mostrar as condições de superação dessa dominação, postulando uma sociedade onde as pessoas pudessem não ser expropriadas em seu trabalho e terem uma vida digna e justa. Trata-se de um pensamento utópico, mas com respaldo, segundo ele, na contri-
buição da ciência.
O que é importante fixarmos destes pensadores é o fato que o homem é um ser histórico. O homem se define na e pela história, enquanto esta se desenvolve de forma orgânica. Para entender- mos um pouco essa idéia, façamos uma comparação entre um monte de pedras e um organismo. No caso de um punhado de pedras que estão agregadas, retirar uma delas não fará diferença
– o amontoado de pedras continuará o mesmo, não se alterará o restante no seu conjunto. De fato, não há entre elas uma relação orgânica, de tal forma que a ausência de uma comprometa a exis-
tência daquele conjunto. Mas com o organismo é diferente: se uma das partes é retirada, haverá um comprometimento da estru- tura, e aquela que foi suprimida já não será mais a mesma coisa. A perda de uma parte repercute na vida da estrutura organizativa. Olhando em termos de pensamento, um Kant ou um Hegel que fosse subtraído da história da filosofia alteraria todo o restante posterior a eles, pois eles trouxeram uma contribuição que definiu o que viria depois. Em termos da história, não haveria como nos compreendermos sem os acontecimentos históricos vinculados à revolução burguesa. A compreensão sempre se dá a partir de uma compreensão do todo, de uma totalidade em que cada parte passa a ter o seu sentido e importância. Por isso nos dirá o filósofo português Emmanuel Severino, reportando-se a Hegel, que a afir- mação hegeliana de que a história da filosofia é um organismo significa que toda a filosofia historicamente realizada não é algo acidental e não essencial em relação à totalidade do pensamento filosófico, sendo antes um momento indispensável, sem o qual essa totalidade seria inconcebível” (SEVERINO, 1984, p.11).
Como visto anteriormente, as idéias de Hegel serão assi- miladas por Marx, que tratará de fazer alguns reparos em sua contribuição. Marx vai se deter na dinâmica da história e na forma como os homens concretamente se organizam a fim de garantir a sua sobrevivência, e nos conflitos que se estabelecem nesse processo. Inúmeros são os pensadores que, aceitando a intuição de Marx, procurarão fazer pequenas alterações com o objetivo de atualizá-lo. Podemos destacar entres eles: Rosa de Luxemburgo (1871-1919), Gramsci (1891-1937), Lukács (1885- 1971), Althusser (1818-1990). Aqui não nos será possível entrar em detalhes sobre a contribuição destes discípulos de Marx, mas você poderá, caso deseje, fazer uma pesquisa nos livros ou na internet. Logo veremos quais são as pedagogias que contam com a contribuição deste importante filósofo, às quais denominamos crítico-históricas.
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Jean Paul Sartre (1905-1980), filósofo contemporâneo francês, dizia que a existência precedia a essência. Uma posição exata- mente oposta àquela que discutimos na perspectiva essencialista clássica. Não concebe o filósofo francês que possa existir uma essência antes que as pessoas nasçam e vivam. Para ele, o homem surge no mundo e nele passa a realizar sua existência. Quando nasce, não é possuidor de nenhuma essência; esta se constrói aos poucos, se faz durante o seu viver. A essência não vem antes que as pessoas possam experienciar suas vidas, mas depois. Por isso mesmo Sartre afirmará que a existência vem primeiro. Nas- cemos, crescemos, vivemos, convivemos, passamos por tristezas, alegrias, desilusões; é no interior dessas experiências que vamos definindo nossa essência. Ela passa a existir como conseqüência do nosso viver no mundo e com o mundo.
Cada ser humano se defronta com o desafio de construir sua própria existência. Cada um vai ser aquilo que fizer dele mesmo: resultado de uma pluralidade de acontecimentos. Daí a impor- tância da responsabilidade que cada um tem com sua própria vida. As pessoas serão aquilo que elas fizerem delas mesmas. Dirá Sartre que o que é significativo não é aquilo que fizeram de nós, mas o que poderemos fazer com aquilo que fizeram de nós. Cada ser humano é um projeto a ser realizado, aqui e agora. O homem se apresenta como pura possibilidade. Dirá ele em seu livro Existencialismo é um humanismo:
O homem, tal como o existencialismo concebe, só não é passível de uma definição porque, de início não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo[…] O ho- mem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo (Sartre, 1987, p. 6).
Certamente que aqui estamos destacando a contribuição de Sartre, mas muitos outros pensadores estarão identificados com o pensador francês, ou estabelecendo algumas variações novas em relação ao seu posicionamento filosófico. São inúmeros os filósofos que têm convicção de que somos resultado das nossas vivências e escolhas ao longo da vida. Nesse caso, aquilo que somos nunca é de forma definitiva, pois a vida continua e po- deremos ir mudando nossas opções, comportamentos, escolhas. Talvez fosse mais adequado dizer que estamos nos fazendo, nunca estamos prontos e acabados, tudo depende da nossa ca- pacidade de busca, de ousadia, de correr riscos, de trocarmos o mundo conhecido por novas possibilidades de busca. Este foi o ideal que orientou a vida e o pensamento de Nietzsche. Dizia ele: “serei sempre um foragido em cada cidade e um adeus em cada porta”. A cidade e casa são os lugares em que nossa vida poderá transcorrer de forma tranqüila. Elas expressam a segurança, a pro- teção, a mesmice, o lugar-comum que não é tão ameaçador. Mas, para Nietzsche, é preciso coragem para se lançar; talvez a casa e a cidade não devam ser moradias permanentes, mas apenas lugar para descansar, para em seguida se realizar novos mergulhos na vida. Que sentido terá a vida de um acomodado, acovardado, me- droso? Esta é a provocação que nos faz este grupo de pensadores.
O que você acha do posicionamento deles diante da existência?
a P E da G O G i a da E ss Ê N c i a
Na visão de mundo construída durante o período essencialista, a essência precede, ou seja, vem antes da existência. Cada criança que nasce é convidada a realizar uma determinada perfeição de homem. Toda a sua existência deve estar voltada a concretizar ao longo de sua vida uma perfeição que é anterior a ela. Ou seja, ela deve passar toda sua vida, em tudo o que fizer, empenhada em atingir uma perfeição estabelecida antes mesmo de ela nas- cer. No caso da concepção cristã, que poderia ser tida com uma das formas de concepção essencialista, cada pessoa é chamada a ser perfeito como o pai é. Nesse caso, Deus é o modelo que se deve seguir e imitar. Como filhos de Deus, todos deveriam seguir trabalhando no sentido de buscar a perfeição divina. Antes de cada um de nós nascer, o ideal de perfeição já existia, indicando o caminho para cada ser humano.
Como conceber a educação a partir dessa perspectiva fi- losófica? A prática educativa nessa forma de ver o mundo e o homem deveria contribuir para que cada criança ou pessoa pudesse ser lapidada de acordo com o ideal de perfeição hu- mana estabelecida. A educação teria um papel necessário e importante, já que seria sua a responsabilidade de conduzir cada pessoa, durante sua existência concreta, à perfeição humana. Na busca de contribuir com essa missão, a escola deveria, através de seus ensinamentos, indicar o reto caminho a todos aqueles que desejarem ser perfeitos, de acordo com a perfeição previa- mente estabelecida pela razão.
Esta perspectiva se assenta em uma concepção dicotômica do homem, inaugurada por Platão: este seria constituído de duas substâncias, uma eterna e imutável, que é o espírito; e a outra, o corpo, os sentimentos, os desejos. O corpo é o cár- cere do espírito. O processo educativo deve nos distanciar de tudo que é vinculado ao corpo, para ascender à perfeição e à
busca do que é eterno. Aristóteles dará uma maior positividade ao corpo e ao mundo, antes desprezado de forma absoluta por Platão, mas o homem permanece preso entre dois mundos: o terreno e passageiro e o eterno e perfeito. Tal concepção passará para o cristianismo e influenciará na sua forma de conceber a processo educativo. Esta dicotomia, como nos lembra Bogdan Suchodolski, constituiu
[…] o motivo clássico que conduziu a pedagogia da essência a descurar tudo o que é empírico no ho- mem e em torno do homem e a conceber a educação como medida para desenvolver no homem tudo o que implica a sua participação na realidade ideal, tudo o que define a sua essência verdadeira, embora asfixiada pela sua existência empírica” (SUCHO- DOLKI, 1984, p. 19).
Tomás de Aquino terá um papel importante na formulação das pedagogias cristãs por muitos séculos. Ele, que dialogou com Aristóteles, não olhará o mundo e nem o homem em seus aspectos contingenciais de forma pejorativa, como fez Platão. Os sentimentos, a vontade, a sensibilidade também tem um papel importante no sentido de levar o homem ao desenvolvimento de suas potencialidades e atingir a perfeição que, para ele, já estava indicada na Bíblia. São Tomás de Aquino
[…] pôs em relevo o papel da vontade para se as- senhorear da natureza falível do homem. Mas esta atividade não tem a sua origem no próprio homem, nem é este que a dirige; as suas regras foram esta- belecidas definitivamente nas Santas Escrituras, no apelo de Cristo para o ensino de todos os povos; o seu êxito está sempre ligado à graça da Provi-
dencia. Não há criação independente na atividade do homem; esta não mais que um meio pelo qual o ideal da verdade e o ideal do bem, autoritários e dogmáticos, devem formar a natureza corrompida do homem (SUCHODOLKI, 1984, p. 22).
Grande parte das escolas religiosas (católicas ou protestantes) tem os seus projetos educacionais embasadas nesta concepção essencialista. Caso lhe seja possível, procure ler algum projeto pe- dagógico de alguma instituição religiosa de ensino, o que talvez possa ajudá-lo a compreender o que estamos tentando explicitar.
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Em consonância com a forma de conceber a vida na filosofia da existência, vamos encontrar uma variedade de propostas peda- gógicas. Embora possam apresentar variações entre si, postulam a idéia central de que o processo educativo deve ter seu ponto de partida na vida e na experiência dos educandos. Recusam qualquer processo educativo autoritário e livresco. Conteúdos escolares que ignorem tudo que possa ser significativo para o aluno devem ser abandonados, pois não serão motivadores e de- safiadores o bastante para ele. Defendem uma atmosfera escolar em que os alunos sejam os protagonistas do processo e devem ter em suas mãos as definições do percurso a ser seguido. E qual seria a postura do professor nessa concepção pedagógica?
Se sou um professor existencialista, conclamo o estudante a assumir a responsabilidade pelos resul- tados de suas ações e enfrentar as conseqüências. Agir é produzir conseqüências. Ele deve aceitar que
essas conseqüências são o resultado de sua escolha, mas, ao mesmo tempo, não se lhes deve submeter como inalteráveis, pois isso seria supor que a liber- dade se esgotou num único ato. A liberdade nunca se esgota, e cada conseqüência gera a necessidade de uma nova escolha. Eu lhe ensinaria que a sua vida deve ser por ele conduzida e que ninguém mais pode conduzi-la por ele. É gratuito atribuir fracassos ao meio, à família, ao temperamento ou à influencia de outros. Essas condições, compete à escolha feita desafiar. Seja o que for que tenha acontecido ao estudante no passado, o futuro será obra sua (KNEL- LER, 1984, p.89).
Vinculada a essa perspectiva existencialista, surge um mo- vimento educacional denominado Escola Nova por volta de 1920, no Brasil. A Escola Nova defenderá a centralidade do aluno no processo educativo, uma valorização da psicologia no acompanhamento das crianças, o professor como um facilita- dor, respeito à singularidade de cada aluno, não-diretividade pedagógica. Esta prática educativa está articulada a uma certa elitização da educação, visto que, em decorrência de sua meto- dologia, implicava um custo elevado. Acaba se tornando uma escola para poucos, os mais privilegiados que podem arcar com o ônus de uma atividade educativa que prima pela riqueza de meios e pelo acompanhamento individualizado dos alunos.
P E da G O G i a T R a d i c i O N a L
Esta pedagogia é aquela que tem orientado as práticas educativas que ocorrem de forma hegemônica nos sistemas oficiais de en-
sino. Ela postula a necessidade de se socializar com os indivíduos os conteúdos universais da cultura, como forma de prepará-los para a participação na vida da sociedade, assumindo os seus pa- péis e desempenhando as funções para as quais são chamados. As escolas que desenvolvem tal prática educativa se caracterizam por um certo autoritarismo, por atividades centradas na figura do professor e pela transmissão de conteúdos desencarnados da vida do aluno, e por aquilo que poderia ser significativo na vida dos discentes. Há o professor que sabe e ensina para aqueles que não sabem. Trata-se daquilo que Paulo Freire chamou de educa- ção bancária. Esta proposta, como destacou Libâneo,
[…} se caracteriza por acentuar o ensino humanís- tico, de cultura geral, no qual o aluno é educado para atingir, pelo próprio esforço, sua plena realiza- ção como pessoa. Os conteúdos, os procedimentos didáticos, a relação professor-aluno não tem ne- nhuma relação com o cotidiano do aluno e muito menos com a realidade social. É a predominância da palavra do professor, das regras impostas, do cultivo exclusivamente intelectual (LIBÂNEO, 1989, P. 22).
Pensava-se, no interior dessa concepção educacional, que a escola teria um papel essencial no desenvolvimento da so- ciedade. Através da atividade educativa, seria possível, com o tempo, superar os problemas existentes no interior da sociedade. A escola a salvaria à medida que todos pudessem ter acesso ao saber constituído por ela socializado. Havia um déficit de criti- cidade nessa cosmovisão educacional; seus defensores não eram capazes de compreender que a escola não pode estar acima da sociedade e de suas contradições. Ela está bastante marcada por componentes da visão essencialista, mas suas práticas ocorrem em uma atmosfera leiga e subvencionada pelo Estado.
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Faz parte desta tendência pedagógica uma pluralidade de concep- ções educacionais. Mas todas elas concebem a prática educativa não desvinculada das outras atividades sociais que o homem re- aliza no interior da sociedade. Ou seja, a educação é concebida a partir de uma visão de totalidades, de vez que não está separada das dimensões política, econômica, social. Nessa perspectiva, o homem não é compreendido como um ser abstrato, mas prático; realiza várias atividades em um processo de interação perma- nente com a natureza, com os outros homens e com a cultura, buscando garantir as suas próprias condições de existência.
Através do trabalho produtivo, os homens se distinguem dos demais animais. Mediante o seu labor, ele transforma a natu- reza, atende às suas necessidades básicas e se afirma enquanto homo creator. Os demais animais sobrevivem do que encon- tram na natureza, não realizam nenhuma ação de mudança e transformação dela. Não se conhece neles o ato criador. Mas o homem não transforma o seu meio senão de forma coletiva. Ele é um ser coletivo e social, é nesse tipo de experiência que ele tem a garantia de sua sobrevivência, ao mesmo tempo em que se revela com ser histórico.
A sociabilidade humana se realiza tanto em um plano hori- zontal, quanto em vertical. O primeiro proporciona o encontro com o outro no universo da sociedade civil; o segundo se vincula à sociedade política e se situa na esfera do poder, que, por sua vez, está marcada por uma constelação de contradições. Certa- mente que estas dimensões estão todas interligadas e marcadas por uma constelação de contradições e em situação de perma- nente tensão. É neste solo de variadas articulações que se situa a educação. A prática educativa não se encontra acima destas esferas em que a vida do homem transcorre. Nesse sentido, a educação poderá reforçar as estruturações sociais, econômicas
e políticas construídas pelos homens ou apontar para novas possibilidades.
As pedagogias crítico-históricas se constituem a partir de uma crítica à forma de organização social capitalista e postu- lam a possibilidade da escola contribuir para a formação de um novo homem e uma nova sociedade. Dessa forma, a instituição acaba por ser um componente importante do processo de trans- formação social. Ela não apenas contribui para a reprodução de uma ordem social, mas ainda pode exercer a sua atividade com vista a novas possibilidades sociais.
Esta tendência pedagógica que aqui chamamos de crítico- histórica recebeu denominações diferentes entre os educadores brasileiros: pedagogia progressista, dialética, crítica. Para José Carlos Libâneo, no leque dessa tendência pedagógica, podería- mos encontrar propostas distintas de educação. Ele ressalta três: pedagogia libertadora, pedagogia libertária, pedagogia crítico- social dos conteúdos. Na primeira, encontramos a contribuição de Paulo Freire; na segunda, os que advogam a auto-gestão pedagógica, e na terceira, vamos ter aqueles que advogam uma revalorização dos conteúdos, não mais aqueles defendidos pela escola tradicional, mas os que ajudam na compreensão da própria realidade. Libâneo ressalta o seguinte, a respeito da pri- meira e da segunda propostas:
As versões libertadora e libertária têm em comum o anti-autoritarismo, a valorização da experiência vivida com base na relação educativa e a idéia de autogestão pedagógica. Em função disso, dão mais valor ao processo de aprendizagem grupal (parti- cipação em discussões, assembléias, votações) do que aos conteúdos de ensino. Como decorrência, a prática educativa somente faz sentido numa prática social junto ao povo, razão pela qual preferem as
modalidades de educação popular “não-formal” (LI- BÂNEO, 1989, p.32).
Em relação à terceira proposta, que é a que ele defende, dirá que
a pedagogia crítico-social dos conteúdos propõe uma síntese superadora da pedagogia tradicional e renovada, valorizando a ação pedagógica enquanto inserida na prática social concreta. Entende a es- cola como mediação entre o individuo e o social, exercendo aí a articulação entre a transmissão dos conteúdos e a assimilação ativa por parte de um aluno concreto (inserido num contexto de relações sociais); dessa articulação resulta o saber critica- mente reelaborado (LIBÂNEO, 1989, p.32).
Estas tendências, no seu conjunto, ressaltarão a importância da escola nos processos de transformação social e podem aprovei- tar as brechas existentes no sistema para promover a realização de uma cultura que aponte para uma nova ordem social na me- dida em que ajudem no desvelamento das contradições presentes no interior da sociedade. Sob esta ótica, a escola ganha uma certa positividade e se torna também fator de mudança. Isto é impor- tante destacar, pois, na década de 1970, um grupo de pensadores franceses desenvolveram aquilo que foi denominado de teorias crítico-reprodutivistas. Segundo suas distintas elaborações, não haveria saída para a escola; seu papel seria tão somente aquele de reproduzir a dominação e as diferenças sociais. Destacam-se entre estes críticos da instituição escolar Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron, Louis Althusser, Roger Establet e Christian Baudelot.
Embora reconhecendo a contribuição crítica desses pensa- dores na percepção que eles têm da relação da escola com a sociedade, as pedagogias histórico-críticas pretendem ir além do
pessimismo e do imobilismo dessas concepções. A escola não tem unicamente o papel de reprodução da dominação existente na sociedade, não educa apenas para a submissão, ao contrário, pode contribuir para que a sociedade possa ser transformada e novas possibilidades sociais possam surgir a partir das contradi- ções presentes no tecido social como um todo.
P E da G O G i a T E c N i c i s Ta
Antes de concluir nossa reflexão, seria necessário referenciar- mos, ao menos rapidamente, uma concepção pedagógica que vai encontrar adeptos e defensores em nosso meio: a pedagogia tecnicista. Essa concepção é resultado de uma racionalidade científica, cuja preocupação é a preparação técnica de indi- víduos para o mercado de trabalho em função de uma maior produtividade. Para Libâneo,
A sociedade industrial e tecnológica estabelece (cientificamente) as metas econômicas, sociais e po- líticas, a educação treina (também cientificamente) nos alunos os comportamentos de ajustamento a es- sas metas. No tecnicismo, acredita-se que a realidade contém em si suas própria leis, bastando aos homens descobri-las e aplicá-las. Dessa forma, o essencial não é o conteúdo da realidade, mas as técnicas (forma) de descoberta e aplicação. A tecnologia (aproveitamento ordenado de recursos, com base no conhecimento cientifico) é o meio eficaz de obter a maximização da produção e garantir um ótimo fun- cionamento da sociedade; a educação é um recurso tecnológico por excelência” (LIBANÊO, 1989, p. 23).
Nessa proposta, professores e alunos se subordinam às de- finições pedagógicas e aos processos de ensino estabelecidos por especialistas. O ensino deve ser de forma objetiva e sistê- mica; a comunicação entre os envolvidos obedece a princípios técnicos do desempenho e eficácia. Não cabem nesta prática considerações em torno de componentes afetivos e históricos vinculados à experiência dos alunos. É a partir dos anos 50 e 60 do século passado que ela ganha lugar em nosso país. Naquele contexto, os militares queriam otimizar a capacidade produtiva através de uma educação diretiva que pudesse se atrelar diretamente às diretrizes político-econômicas do regime ditatorial instaurado a partir de 1964. A psicologia comportamentalista, com sua compreensão de aprendizagem, contribuiu, sob certos aspectos, para a fundamentação dessa pedagogia.
L E i T U R a R E c O M E N da da
Contribuições das Ciências Humanas para Educação: A Filosofia.
Acesse na plataforma ou no endereço:
www.dominiopublico.org.br/download/texto/me000707.pdf
F Ó R U M d E d i sc U ssã O
1) Filosofia e Educação
Qual a relação da Filosofia com a Educação?
B i B L i O G R a F i a
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da educação. São Paulo: Moderna1990.
CARRILHO, Manuel Maria. Jogos de Racionalidade. Porto: Edições Asa, 1994. LIBÂNEIO, José Carlos. Democratização da escola pública. A pedagogia crítico-social dos conteúdos. São Paulo: Loyola, 1989.
MENDES, Dumerval Trigueiro. Filosofia da educação brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
KNELLER, George F. Introdução à filosofia da educação. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
SARTRE, O existencialismo é um humanismo: São Paulo: Nova Cultura, 1987. SEVERINO, Antônio Joaquim. Educação, sujeito e história. São Paulo: Editora Olho D´Água, 2001.
SUCHODOLSKI, Bogdan. A pedagogia e as grandes correntes filosóficas. 3. ed. Lisboa: Horizontes, 1984.
c O N c L U sã O
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stamos chegando ao final de nossa caminhada. Mas todo ponto de chegada se converte em uma possibilidade de partida, pois as possibilidades de ampliarmos os nossos conhecimentos e recriarmos nossos comportamentos e práticas são infinitas. Certamente que o diálogo estabelecido pode ter suscitado novas questões, novas dúvidas, e assim, novamente temos que pôr os pés nas estradas, buscarmos soluções para os novos problemas. E novos trabalhos investigativos terão conti- nuidade, para responderem a nossas necessidades de explicações. Em nosso itinerário, passeamos por vários conceitos: educa- ção, cultura, filosofia, pedagogias. Vimos o quanto o processo educativo é essencial à vida humana. Se não tivéssemos des- coberto a linguagem e, com ela, a atividade educativa, talvez não existíssemos mais, como milhares de espécies que foram extintas, pois o homem é um dos seres mais frágeis da natureza. Foi graças à capacidade humana de fazer cultura, de preservar e transmitir suas descobertas, que conseguimos um lugar pri- vilegiado no reino animal. Por outro lado, vimos que, além de responder às necessidade básicas de sobrevivência, o homem é o único ser que precisa estabelecer sentido para o seu viver. Não só de pão vive o homem, mas também de sonhos, de senti- dos que possam orientar sua vida e suas ações no mundo. Para isso, o homem descobriu também a filosofia. Com ela, através da atividade reflexiva, os humanos estabeleceram aquilo que lhes poderia ser significativo para balizar a sua relação com a
natureza, com o outro, e consigo mesmo.
A prática educativa, enquanto ação social humana planejada e fundamentada, que passou a ser implementada em períodos mais próximos de nós e de forma institucionalizada, busca na filosofia certas referências para a sua atividade. Desde que a fi- losofia surgiu com os gregos, já não sabemos agir em nenhuma esfera do existir sem que possamos estabelecer algum tipo de justificativa. A filosofia representa apenas uma destas respostas. O educador, além da filosofia, se apóia na psicologia, biologia, sociologia, entre outros saberes. Nossa preocupação foi mostrar a contribuição própria da filosofia, a relação que ela tem com a prática educativa. Esperamos que este texto tenha sido apenas um aperitivo para novas incursões, um convite a novas buscas.
Antônio Vidal Nunes
Cursou a Graduação em Filosofia na PUCAMP, obteve o grau de Mestre em Filosofia da Educação pela UNICAMP, o grau de Doutor em Filosofia da Educa- ção pela USP e, ainda, o de Pós-Doutor em Filosofia pela UFRJ. Publicou os livros O que eles pensam de Rubem Al- ves e de seu humanismo na religião, na educação e na poesia, (Org.) Ed. Paulus
– SP; Corpo, linguagem e educação dos sentidos no pensamento de Rubem Alves, Ed. Paulus – SP e A ciência e homem no pensamento de Farias Brito e Rubem Alves, EDUFES- Vitória.
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