LIVRO: Ensino de História e suas práticas de pesquisa = PDF DOWNLOAD
Ensino de História
e suas práticas de pesquisa
Juliana Alves de Andrade Nilton Mullet Pereira (Orgs.)
Ensino de História
e suas práticas de pesquisa
2a edição E-book
EDITOR A
São Leopoldo
2021
© Dos organizadores – 2021
Editoração: Oikos
Capa: Juliana Nascimento Revisão: Rui Bender
Diagramação e arte-final: Jair de Oliveira Carlos
Conselho Editorial (Editora Oikos)
Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL) Danilo Streck (Unisinos)
Elcio Cecchetti (UNOCHAPECÓ e GPEAD/FURB) Eunice S. Nodari (UFSC)
Haroldo Reimer (UEG)
Ivoni R. Reimer (PUC Goiás) João Biehl (Princeton University) Luiz Inácio Gaiger (Unisinos) Marluza M. Harres (Unisinos) Martin N. Dreher (IHSL) Oneide Bobsin (Faculdades EST)
Raúl Fornet-Betancourt (Aachen/Alemanha) Rosileny A. dos Santos Schwantes (Uninove) Vitor Izecksohn (UFRJ)
Editora Oikos Ltda.
Rua Paraná, 240 – B. Scharlau 93120-020 São Leopoldo/RS
Tel.: (51) 3568.2848
[email protected] www.oikoseditora.com.br
Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
Sumário
Apresentação………………………………………………………………………………. 9
Juliana Alves de Andrade Nilton Mullet Pereira
Parte 1: Questões Epistemológicas da pesquisa em ensino de História Historiografia escolar e historiografia acadêmica: relações possíveis
na produção do conhecimento sobre ensinar e aprender História……… 17
Diálogos possíveis entre produzir, ensinar e aprender
histórias decoloniais……………………………………………………………………… 31
Consciência e Educação Históricas………………………………………………… 47
Estevão Chaves de Rezende Martins
Do chão da sala de aula: possibilidades para a história das disciplinas
no Ensino Superior a partir de Fernand Braudel…………………………………. 63
O construtivismo e o ensino de História………………………………………….. 80
Eleta de Carvalho Freire Lúcia Falcão Barbosa
As contribuições da History Education para a pesquisa em ensino de História…. 96
Arnaldo Martin Szlachta Junior Márcia Elisa Teté Ramos
Educar para as relações étnico-raciais na escola e na universidade…………. 114
Notas de aulas com o patrimônio cultural: exercícios de
“teorização prática sobre a prática de ensinar História”……………………….. 131
Carmem Zeli de Vargas Gil Mônica Martins da Silva
Parte 2: Estratégias metodológicas das pesquisas em ensino de História
Análise de Conteúdo e Análise de Discurso na pesquisa em ensino
de História………………………………………………………………………………. 153
Flávia Eloisa Caimi Letícia Mistura
Uma pesquisa sobre ensino e aprendizagem de História
com métodos quantitativos……………………………………………………….. 168
Luiz Fernando Cerri Emerson Urizzi Cervi
Aproximações etnográficas da escola: entrada furtiva em um pomar
ou mergulho em significados partilhados?…………………………………… 183
Helenice Aparecida Bastos Rocha Rafael Cintra
Comendo pelas beiradas: História Oral nas aulas de História…………. 203
Parte 3: Fontes de pesquisa para a pesquisa em ensino História Livros didáticos de História: consolidação e renovação de
um objeto de pesquisa………………………………………………………………. 225
Itamar Freitas de Oliveira Margarida Dias de Oliveira
Desafios e possibilidades de análise de teias discursivas no currículo
de História………………………………………………………………………………. 245
Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro Maria de Fátima Barbosa Pires
Conhecimento escolar e currículo de História: apostas teóricas
em tempos de negacionismos……………………………………………………. 263
Yara Cristina Alvim Diego Bruno Velasco
O jogo como fonte e objeto de pesquisa: possibilidades da pesquisa
sobre o uso de jogos no ensino de História…………………………………… 279
Marcello Paniz Giacomoni Lucas Victor Silva
A música como fonte e objeto de pesquisa para o campo do ensino
de História……………………………………………………………………………….. 296
Cinema e audiovisual no ensino de História: questionamentos,
abordagens e possibilidades de investigação………………………………………. 308
Parte 4: Novos temas e antigos problemas de pesquisa
Cultura digital e ensino de História: diferentes abordagens e metodologias… 327
Marcella Albaine Farias da Costa
Toda a História em cinco minutos! História pública e ensino
– considerações sobre o passado ensinado no Youtube………………………… 346
Francisco Egberto de Melo Sônia Meneses
Avaliação da aprendizagem como objeto de pesquisa no ensino
de História……………………………………………………………………………….. 360
Marcus Leonardo Bomfim Martins Juliana Alves de Andrade
Ensino de História, adolescentes privados de liberdade e os direitos
(nem sempre) humanos……………………………………………………………….. 375
Desafios e dilemas da pesquisa sobre Educação para as relações
étnico-raciais: o caso da temática indígena e o ensino de História…………. 390
Wilma de Nazaré Baía Coelho
O tema do negro e a vida do negro: dilemas da Educação das
relações étnico-raciais no campo da pesquisa em ensino de História………. 406
Maurício da Silva Dorneles Carla Beatriz Meinerz
É raro, mas acontece muito: aproximações entre ensino de História
e questões em gênero e sexualidade………………………………………………… 422
|
O ensino de História e os usos do passado: a ditadura civil-militar
em sala de aula………………………………………………………………………… 438
Alessandra Gasparotto Caroline Silveira Bauer
Notas sobre uma filosofia do ensino de História: um samba
sobre o infinito………………………………………………………………………… 452
Caroline Pacievitch Nilton Mullet Pereira
Apresentação
À beira do abismo, o que se vê?
À beira do abismo, sentados lado a lado, a pesquisadora e o investiga- dor1 olham para o horizonte e veem um profundo e gigantesco espaço vazio. Neste momento, cada qual busca em sua memória orientações para enfrentar os desafios que se apresentam. Ambos lembram-se das orientações poéticas do filósofo Silva Miranda ao afirmar que, “quando os abismos aparecem, é hora de se levantar (…)” (MIRANDA, 2015, p. 39). Ao mesmo tempo, reto- mam os ensinamentos dos saberes e fazeres formulados pelos povos tradicio- nais e pelas ciências humanas.
Nesse exercício de reflexão, aprenderam que é preciso levantar-se e tor- nar-se exploradores do abismo (VILA-MATA, 2013, p. 9). As pesquisadoras de- cidiram encarar o abismo. Escolheram saltar. Explorar o espaço desconheci- do. A inquietude e a incerteza trazidas pela decisão fazem com que procurem lançar mão, na hora do salto, de um instrumento que as ajude a vencer o abis- mo. Ao pular, os investigadores escolheram abrir os seus famosos paraquedas coloridos (KRENAK, 2019, p. 46), produzidos por exploradores anteriores, para amortecer a queda e permitir que se veja o abismo sob um novo ângulo.
Logo, estar à beira do abismo lhes permitia ver muitos fenômenos, mas se lançar possibilitava ampliar a perspectiva. E assim fizeram. É preciso dei- xar-se levar na aventura de explorar o abismo. É, nesse sentido, que o livro lhes oferece histórias dos que se tornaram exploradores do abismo.
Escolhemos iniciar a nossa apresentação usando a metáfora do abismo e dos paraquedas coloridos, inspirados nas autoras que pensam os espaços e suas fissuras, ou seja, naquelas que chamam atenção para os deslocamentos reali- zados no campo, quando se perde a confiança nas certezas propagadas pelos métodos quantitativos e se abandonam os recortes, objetos, noções, categorias e modelos interpretativos clássicos. Diante do legado das ciências sociais e ciências humanas, que têm como marca grandes modelos explicativos (méto- dos quantitativos ou qualitativos), o nosso movimento é marcar posição e pon- tuar as questões que afetam a pesquisa em Ensino de História como campo de produção do conhecimento.
Para nós, dizer que estamos à beira do abismo é afirmar que falamos de um lugar, que tomamos uma posição no campo para refletir sobre as condi- ções de produção e circulação do conhecimento sobre o Ensino de História. Essa metáfora nos permite pensar que o Ensino de História é um campo de infinitas dimensões e que, justamente por isso, nos oferece inúmeras possibili- dades de encontros e de diálogos.
Nesse sentido, o livro consegue expressar o sentimento político e epistê- mico que permeou a organização da coletânea de textos. Já que a intenção é caminhar para além de uma perspectiva que preze pela “articulación canónica aprender/aplicar/cambiar” (ZAVALA, 2019, p. 109). Na verdade, os leitores encontrarão relatos de experientes pesquisadores e seu encontro com o abis- mo. Com isso ressaltamos que os instrumentos, os conceitos, as fontes e os métodos apresentados no livro não devem ser tomados como um modelo uni- versal, mas como percursos epistemológicos e metodológicos singulares, que os investigadores usaram perante seus desafios.
Apresentamos às novas pesquisadoras e demais interessadas nos pro- blemas do campo do Ensino de História o mundo cintilante de pessoas que pesquisam no Brasil o ensino e a aprendizagem em História, não todas, é bem verdade, pois há muito aí fora. Aproveitamos esse momento e pedimos licença aos encantados que protegem os caminhos da liderança indígena como Ailton Krenak para usar seus ensinamentos, já que o livro usa uma metáfora inspira- da em Krenak, que nos oferece estratégias para enfrentar o abismo.
Com isso, nesta coletânea, o homem branco e heterossexual deixa de ser o modelo a partir do qual as pessoas e os povos são julgados, as histórias são contadas e os seres do mundo são moralizados e entristecidos. Esse ho- mem do lucro e da mercadoria torna o mundo triste. Por isso Krenak nos oferece, em seu lugar, histórias ainda não contadas, mas muitas histórias, de muitos povos, de muitos lugares, de muitos gêneros, de muitos “quase huma- nos”. Histórias para adiar o fim do mundo.
Oferecemos um livro, portanto, para produzir encontros alegres e po- tencializadores da vida, para que se possa ampliar as possibilidades de viver e sobretudo de deixar viver, de escutar os rumores das diferentes histórias que a colonialidade calou. É para ser lido como um conjunto de forças que criam novos mundos ao pensar sobre nossas relações com o passado, mas sobretudo ao pensar e problematizar as relações que temos estabelecido com as pessoas e com a natureza.
O livro de Ensino de História e suas práticas de pesquisa apresenta um conjunto de textos com as principais perspectivas teórico-metodológicas da pesquisa em Ensino de História. Nossa intenção é apresentar aos professores/ pesquisadores da Educação Básica e demais estudantes interessados na pes- quisa em Ensino de História histórias que relatam os caminhos percorridos para produzir seus projetos de pesquisas, dissertações e teses. Para isso, a cole- tânea oferece uma série de reflexões produzidas por pesquisadoras do campo da Teoria da História, Historiografia e Ensino de História.
Com a consolidação do campo do Ensino de História no país nos últi- mos trinta anos e a expansão do Mestrado Profissional Ensino de História, oferecido em rede, questões de ordem epistemológica e metodológica come- çam a surgir nas salas de aula, sobretudo no que tange à construção dos proje- tos de pesquisa, como por exemplo: Como a professora pode investigar sua própria prática? Quais referências devem ser utilizadas para problematizar es- sas práticas? Que tipo de fonte utilizar para discutir o ensino e a aprendizagem de História? Como contar as histórias ainda não contadas? Assim, buscando responder essas e tantas outras questões, reunimos um grupo de pesquisado- res para apresentar ao público um livro sobre teoria e metodologia da pesquisa em Ensino de História.
Conforme pontuamos inicialmente, a leitora precisará estar desarmada de conceitos, marcadores e preconceitos para poder saborear os diferentes gos- tos que procuram, em todos os casos, ultrapassar a linha da colonialidade, os muros das estruturas rígidas do patriarcado, do racismo e da desigualdade so- cial e criar em um mundo e em um tempo presente áspero e duro, permitindo- nos imaginar outros futuros.
Os textos que o leitor encontrará não são objetos de uso fácil ou de mera contemplação; são escritos de vidas que se alongam no tempo, sempre coleti- vamente, a pensar o ensino e a praticar as lutas sociais que enfrentamos histo- ricamente neste país, dos quais professoras e professores de História são sujei- tos nas ruas ou em suas salas de aula de História. Logo seus textos são depoi- mentos de experiências da luta democrática, antirracista e antipatriarcal. Tais experiências deram-se sempre diante e com o abismo, com uma desconfiança do lugar que essas autoras e esses autores ocupam, com a problematização do tempo em que vivem/viveram. São textos que, como desenhos nas folhas des- te livro que ora apresentamos, cintilam, são rastros dessas histórias/forças, dessas trajetórias/potências, singularidades que sobrevoam o tempo, multipli- cando o pensamento e a crítica.
É assim que, neste livro, o leitor não encontrará metodologias definiti- vas ou definidas como regra da primeira até a última página, mas encontrará a multiplicidade, a infinidade. Nunca o tom inequívoco e fácil de uma proposi- ção qualquer, mas o rigor de vidas que se propõem a pensar, pesquisar e ensi- nar História. E, ao fazer isso, fazem-no com percursos metodológicos diver- sos, rigorosos, mas nunca engessados, pois são forças produzindo mais vidas, ampliando nossa problematização do presente e nossa imaginação do futuro.
Ao ler este livro, esperamos que a leitora pense sobre como estamos acostumados a um tipo de humano e a um tipo de existência, como diz Kre- nak, que tem produzido nossos modos de relação no mundo. Será preciso – e modestamente sugerimos este livro como ponto de partida – perder-se dessa imaginação de mundo e de existência que conhecemos e a partir da qual vive- mos, deixando-nos perder numa vertigem que apresenta diante de nós o abis- mo: “Quem disse que a gente não pode cair? Quem disse que a gente já não caiu?”, lembra-nos Krenak (2020, p. 31).
Os textos que aqui foram organizados devem ser lidos de forma inde- pendente. Em linhas gerais, o livro foi escrito por pesquisadoras de diferentes regiões do país, haja vista o grande número de perspectivas teórico-metodoló- gicas que orientam os trabalhos de pesquisa no campo. Para efeito de organi- zação do debate, estruturamos as narrativas em quatro partes.
Na Parte 1, intitulada Questões Epistemológicas da Pesquisa em ensi- no de História, os pesquisadores apresentam reflexões sobre os pressupostos que fundamentam os estudos e as pesquisas desenvolvidas no campo do Ensi- no de História, trazendo um debate sobre educação histórica, construtivismo, filosofia da história, historiografia acadêmica e historiografia escolar. Já na Parte 2, intitulada Estratégias metodológicas das pesquisas em ensino de História, apresentam os percursos metodológicos percorridos por diferentes pesquisadores, usando a etnografia, a perspectiva dos métodos quantitativos, História Oral e Análise de Conteúdo.
Na Parte 3, intitulada Fontes de pesquisa para a pesquisa em ensino de História, os autores preocuparam-se em discutir narrativas nos espaços, jogos, provas, memórias, cinema, história digital como fonte de pesquisa para o campo do Ensino de História. Na Parte 4, que trata dos Novos temas e antigos problemas de pesquisa, as pesquisadoras problematizam os proble- mas de pesquisa e seus respectivos objetos, como: livro didático, Ensino de História e direitos humanos, Ensino de História e ditadura militar, Ensino de História e jogos. Sem dúvida, cada capítulo oferece ao leitor uma análise das
fontes propriamente ditas e, consequentemente, da metodologia utilizada pe- los pesquisadores em seu contato com os diferentes fenômenos.
Com isso agradecemos aos coordenadores e às coordenadoras dos nú- cleos do Profhistória das universidades federais e estaduais: UFPE, UFRGS, UFMT, UFSC, UEM e URCA, que acreditaram nesse audacioso projeto de narrativas sobre percursos realizados pelos exploradores. O apoio institucio- nal e financeiro para que essas histórias fossem contadas foi imprescindível.
Por fim, gostaríamos de dizer, usando as palavras de Mia Couto, que toda a produção intelectual é igual a um colar: “ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas” (COUTO, 2009, p. 03), ou seja, os artigos presentes nesta coletânea são os colares vistosos da área do Ensino de História; ao mesmo tempo, seus autores preocuparam-se em mostrar os fios que tecem a trama das pesquisas (colares) sobre como se ensina e se aprende História, logo apresentam como cada um explorou o abismo.
Referências
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013. COUTO, Mia. O fio das missangas: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
KRENAK, AILTON. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
MIRANDA, Silva. Por Dentro do Abismo (Poesia). In: Rodapés do abismo. Rio de Janei- ro: Editora Multifoco, 2015.
MOREIRA, Marco Antonio Moreira. Metodologias de Pesquisa em Ensino. São Paulo: Editora Livraria Física, 2011.
VILA-MATAS, Enrique. Exploradores do abismo. São Paulo: Cosacnaify, 2013.
ZAVALA, Ana. Enseñar Historia: Elementos para una teoría práctica de la práctica de la enseñanza de la historia. Montevideo: Editora Banda Oriental, 2019.
1 O uso da linguagem inclusiva no texto se faz necessário. Estamos aprendendo um modo de fazer isso. Sabemos que a linguagem binária não é o suficiente, entretanto, neste momento de aprendi- zagem, optamos por usar, de modo intercalado, os gêneros masculino e feminino, dando um peso maior para este último.
Parte 1
Questões Epistemológicas da pesquisa em ensino
de História
|
Historiografia escolar
e historiografia acadêmica: relações possíveis na produção do
conhecimento sobre ensinar e aprender História
Renilson Rosa Ribeiro1 Amauri Junior da Silva Santos2
Um convite à reflexão
A operação do fazer histórico enfrenta permanentemente os grandes dilemas da decantação do tempo e do exercício da alteridade. Assim como somos artefatos da experiencia vivida e compartilhada, o passado conhecido é presidido pelas questões do presente e atravessado por expectativas de futuro. Não importa o quão imersos estejamos no passado por intermédio das fontes e da metodologia aplicada; a suspensão de si e de suas expectativas de forma absoluta é uma ilusão.
Vale lembrar que, em A Escrita da História (1982), o historiador francês Michel de Certeau destaca justamente que a operação historiográfica precisa ser compreendida dentro e fora dos textos, visto que o fazer histórico diz res- peito à combinação de um lugar social, de práticas e de uma escrita identifica- das como científicas. Em outras palavras, na prática de narrar a história exis- tem “não ditos” subscritos, e através de recursos teórico-metodológicos o his- toriador constrói e confere sentido a um acontecimento ou artefato escolhido que não nos representaria uma referência significativa caso fosse visto fora do seu contexto.
Desse modo, o historiador precisa enfrentar o desafio do distanciamen- to para ser capaz de edificar o saber científico – conduzido por esse propósito, adota uma abordagem metodicamente organizada e sustentada em bases em- píricas que o desloque parcialmente de seu objeto de forma a conduzi-lo ao encontro da experiência passada (ou da sua simulação virtual). Esse conjunto de procedimentos seria, portanto, capaz de produzir uma narrativa entrecorta- da por perspectivas que lhe concederia o status de ciência historiográfica. E é precisamente com esse processo e produto da reflexão histórica – a historio- grafia – que este trabalho se ocupa.
Segundo Estêvão C. de Rezende Martins (2019, p. 24), cotidianamente convivemos com dois tipos de narrativas históricas. A primeira seria aquela construída continuamente pelos sujeitos históricos não especializados, que, por questões orientacionais, acionam a substância do passado para preencher a carência do presente. Já o segundo tipo seria produzido pelas “pessoas inco- muns”, isto é, os especialistas e historiadores profissionais que munidos com um arsenal metodológico descrevem, interpretam e explicam o mundo social com o objetivo de alcançar a inteligibilidade de seus arranjos.
É na esteira desse primeiro apontamento que conduzimos nossa refle- xão com o objetivo de a) distinguir as especificidades da historiografia acadê- mica e daquela que se convencionou chamar de historiografia escolar; b) indi- car as possíveis contribuições e interseções que essas escritas fornecem ao en- sino e aprendizado histórico e, por fim, c) propomos considerar o uso da histó- ria pública como uma ponte capaz de transpor os muros e limites desses dois campos. Todavia cabe advertir que não reduzimos a história pública a um ca- ráter instrumental. Pelo contrário, sustentamos a hipótese de que as alterações no fazer narrativo-histórico culminam na formação da história pública como uma modalidade historiográfica com métodos, temáticas, dinâmicas e desafios do tempo “presentíssimo”.
Nesse sentido, destacamos que o processo de escrita da História é sem- pre orientado pelo presente e busca fornecer respostas às carências temporais, substanciando a consciência histórica dos sujeitos que não apenas consomem, mas que agora produzem e compartilham, num fluxo vertiginoso, narrativas de si em rede. Esse cenário virtual delineado pelas novas tecnologias eletrôni- cas e o aprimoramento dos meios de comunicação produzem mudanças signi- ficativas nas relações de produção e distribuição de informações. Tais trans- formações impactam diretamente as instituições historicamente consagradas como espaço de produção e difusão do conhecimento: a academia e a escola. Longe de se constituírem como espaços coesos e com um projeto unívo-
co e progressista, o ensino de História e a História acadêmica enfrentam o mesmo dilema na era informacional. Para que possamos efetivar nosso objeti- vo, traçamos uma revisão histórica e historiográfica da construção da I) histo- riografia acadêmica, considerando o século XIX como decisivo, e II) da histo- riografia escolar nas últimas décadas do século XX. A análise desses dois ce- nários permite-nos apontar que, assim como a historiografia acadêmica esteve diretamente ligada – ao longo da história – a certos projetos políticos de poder, a constituição do ensino de História como área também esteve.
Essa periodização deve-se ao fato desses momentos terem sido funda- mentais para a institucionalização do ensino de História. A segunda metade
do século XIX produziu um gênero narrativo próprio e uma metodologia de ensino pautada num projeto de História asséptica e gloriosa que visava à for- mação da identidade nacional. Por sua vez, o século XX ocupou-se em trazer à baila personagens e enredos, antes invisibilizados e silenciados, vide a Histó- ria vista de baixo, com o objetivo de formar a consciência cidadã-democráti- ca-inclusiva. Portanto cabe o questionamento: estamos hoje diante de qual tipo de narrativa histórica e quais os impactos para o ensino de História e para a autoridade da figura do historiador? Certamente a História como fruto e processo de litígio não é uma marca do tempo digital, mas ganha novas tonalidades em meio ao desenvolvimento gráfico e à horizontalização da produção do conhecimento.
As especificidades da historiografia escolar acadêmica
É importante iniciar este diálogo partindo de alguns apontamentos ba- silares. Ou que, ao menos, cremos ser essenciais para que seja possível uma comunicação da natureza como iremos propor. O primeiro diz respeito à nos- sa concepção sobre texto-narração. Um texto é um diálogo e, portanto, neces- sita de provocações convidativas para que possa atingir seu objetivo funda- mental, que é a reflexão dialética. Exatamente por isso que a introdução deste trabalho aparece como “convite à reflexão”. Esse subtítulo não foi inserido ilustrativamente, tampouco de forma contingencial. Em segundo lugar, busca- mos conduzi-lo(a) a um percurso que possa revelar a estrutura do nosso racio- cínio. Em razão desse objetivo, cada questão aqui elaborada não será um re- curso retórico, mas a uma chave para o diálogo. Por fim, esse diálogo não se encerra aqui. Todavia é importante frisar que aceitar o nosso convite lhe exigi- rá mais do que apenas a leitura crítico-passiva deste texto. Isso porque criamos um ambiente on-line no Google Classroom para alargar a nossa experiência de consumo e produção do diálogo científico. Além desse recurso, disponibiliza- mos todo o material bibliográfico utilizado no processo de construção dessa proposta. A ideia é não apenas falar, mas ouvir a outra parte. Compartilhar as posições e visões para que seja possível um debate racional, prospectivo, infor- mativo e respeitoso.
A História é uma disciplina que trabalha com limites. Essa proposição lançada categoricamente aqui diz respeito à dinâmica constitutiva do fazer histórico, que é balizado temporal e espacialmente em relação ao objeto inves- tigado. Toda nova abordagem origina-se de acontecimentos que estabelecem os contornos do tempo-espaço, ou seja, os limites que a narrativa possui. O limite, no entanto, não é reservado apenas como ordem estruturante-prática
do fazer histórico, mas também é o resultado de sua atividade. A História é, por excelência, autorizada a regular os limites das interpretações das experiên- cias vividas através da análise crítica das fontes.
Para Certeau (1982, p. 70-71), o discurso acadêmico é constituído pela imposição, implícita ou não, de um conjunto de regras a serem utilizadas. A validade desse tipo de discurso depende da aprovação dos pares. Ainda segun- do o historiador, a não aceitação das leis acadêmicas pode gerar a marginali- zação daquele que não segue o protocolo da comunidade científica. Assim, a História não apenas era limitada pelas balizas do tempo-espaço como também limitava as interpretações ao impor uma ordem metodológica. Ou pelo menos era a única a regular os limites até a tecnologia da informação alterar nossa maneira de produzir e compartilhar conhecimento.
No início deste diálogo, apontamos a distinção estabelecida entre dois tipos de narrativas históricas que comumente encontramos: aquela produzida por pessoas comuns e aquela fabricada por agentes especializados. Essa se- gunda é chamada de historiografia. Mas o que é historiografia? O termo é utilizado para se referir à totalidade das produções narrativas de caráter cientí- fico que abordam as interações históricas do ser humano. Essa definição, em- bora demasiadamente apressada, fundamenta-se na ideia de autoridade conferi- da pelo uso e trato com a metodologia e as fontes históricas. Sobretudo pela profissionalização que instrumentaliza o acadêmico com os procedimentos e as teorias que lhe permitirá compreender, explicar, corroborar e/ou reelaborar a reflexão histórica. Mas como essa narrativa de corte científico se relaciona com a cultura e a consciência histórica? E, por fim, quais as especificidades da historiografia acadêmica e da historiografia escolar? Para respondermos tais perguntas, traçaremos um panorama geral das discussões. Longe de encerrar os questionamentos, esse panorama tem o propósito de alimentar a curiosida- de e conduzir a observação participativa no processo de aprendizado.
Em primeiro lugar, torna-se fundamental explicar que a escrita da His-
tória pode ser entendida duplamente como processo e produto. Desse modo, a historiografia como processo diz respeito ao modo de produzir a narrativa histórica, que é presidida por um conjunto de procedimentos práticos e teóri- cos que visam garantir a confiabilidade e a correspondência do narrado. Já enquanto produto, ela é a própria materialização resultante dos procedimen- tos de ordem científica.
A historiografia-processo é a pesquisa (e todas as suas etapas) em que se produz conhecimento confiável e demonstrável. Depende obviamente da atuação metódica do profissional que a realiza. Esse profissional depende de sua formação intelectual e de seu treinamento prático. A efetivação da
pesquisa desemboca usualmente em uma narrativa (discurso, texto) em que um determinado assunto histórico é descrito, analisado, entendido, inter- pretado, explicado, argumentado e demonstrado (ANHEZINI, 2011. In: MARTINS, 2019, p. 25).
É importante frisar que há uma terceira possibilidade de operar a histo- riografia. É possível considerar a narrativa histórica de caráter científico como objeto de análise. Uma história da historiografia, isto é, um estudo crítico a respeito dos movimentos historiográficos ao longo do tempo e suas implica- ções socioculturais. Os exemplos desse tipo de empreendimento são fartos e vão desde autores no âmbito internacional como Peter Burke (1990), atento às contribuições da escola dos Annales, passando pelas grandes colaborações na- cionais organizadas, por exemplo, por Julio Bentivoglio e Bruno Nascimento (2017), que estudam a historiografia e os historiadores dos séculos XIX e XX. Para Maria da Gloria de Oliveira e Receba Gontijo (2016, p. 14) é possí-
vel identificar um conjunto de trabalhos que, considerando a diversidade de recortes temporais e objetos, buscaram propor novas agendas de investigação que transpunham tanto a abordagem crítica da produção historiográfica como a perspectiva da sociologia do conhecimento. O historiador Valdei Lopes de Araujo (2013, p. 37) destaca que a atenção direcionada pelos pesquisadores nacionais à história da historiografia impulsionou a criação de espaços regula- dos de convivência e conversação – como por exemplo eventos especializados, periódicos e, até mesmo, a formação, em 2009, da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTH).
É interessante notar que o debate a respeito da historiografia implica considerarmos outras duas consequências oriundas da reflexão histórica que são orientadas pela narrativa: a consciência histórica e a cultura histórica.
A primeira expressão, segundo Martins (2019, p. 20), é utilizada atual- mente para referenciar a consciência de que todo ser humano racional obtém e constrói ao refletir sobre sua vida e sua posição no processo temporal da exis- tência. Isso se deve a que toda ação humana exige a reflexão histórica do agen- te. De acordo com o historiador alemão Jörn Rüsen, toda ação antropológica é pautada por sua relação com o tempo. Ao narrarmos nossa história – como ato de existência –, não o fazemos de forma instantânea ou totalmente extra- ordinário, mas sim sob circunstâncias e possibilidades que estão conectadas ao passado. Por meio da formação de sentido, em que a experiência temporal é mobilizada, interpretamos o mundo e a nós mesmos em relação à alteridade. Rüsen define essa habilidade como consciência histórica. É, portanto, enten- dida como
[…] soma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência de evolução no tempo do seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo (RÜ- SEN, 2011, p. 57).
Em direção semelhante à de Martins, a historiadora Selva Guimarães Fonseca (2003, p. 89) destaca duas premissas a respeito da História. A primei- ra é que ela é fundamentalmente uma disciplina educativa, formativa, emanci- padora e libertadora. Nesse sentido, a História tem como papel central o aden- samento da consciência histórica dos indivíduos humanos, possibilitando a construção e ressignificação de identidades, a compreensão do vivido, a inter- venção social e a práxis individual e coletiva. Em segundo lugar, Fonseca aponta que todo debate sobre o significado de ensinar História se desenvolve no inte- rior de lutas culturais e políticas. Portanto, ao discutirmos essas questões, pro- curamos compreender a lógica das relações dinâmicas que presidem tanto a produção como a difusão do conhecimento histórico.
Portanto a historicidade torna-se um pressuposto essencial na condição existencial de todo ser humano. Isso porque pensar historicamente é um fenô- meno inerente à condição humana e revela-se na própria percepção da finitu- de, que, por sua vez, nos conduz a abordagens distintas frente aos problemas cotidianos. Nesse ponto, ainda conforme Martins, a cultura histórica funcio- na como uma espécie de “acervo” dos sentidos constituídos pela consciência histórica humana no tempo. Dessa forma, a memória individual e coletiva funciona para o indivíduo como referência dos conteúdos que possui e com os quais opera sua vida prática.
É somente a partir da constituição da sociedade capitalista que a His- tória passará por um intenso processo de crítica, que culminara, no século XIX, em sua elevação à condição de ciência. Nesse ponto, a escrita da histó- ria moderna surge como legitimadora das bases do poder do Estado Nação e a historiografia como a guardiã da memória coletiva que buscava as origens de uma nacionalidade idealizada. Conforme afirma a historiadora Adriana Pereira Campos (1998, p. 119), foi graças a historiadores de peso, como, por exemplo, Michelet, Rank, Tocqueville e Burckahardt, e de filósofos da His- tória, como Hegel, Marx, Nietzsche e Croce, que esse processo ocorreu. Du- rante o século XIX, a Europa experimentava um movimento expressivo de unificação e reafirmação de identidades nacionais. É exatamente nesse con- texto que o ensino de História passa a ser ministrado nas universidades. Pri- meiramente na Alemanha, que organiza o estudo científico da História com forte caráter metodológico crítico, e posteriormente na França, que, embora
tenha produzido dissidentes, acabou empregando as prerrogativas da Escola Metódica, indevidamente apontada como positivista.
Segundo Simone Aparecida Borges Dantas (2007, p. 2), a maior expres- são da chamada “Escola Científica Alemã” foi Leopoldo von Ranke, que pos- tulava um afastamento do fazer histórico das especulações filosóficas, subjeti- vas e moralizantes. Valendo-se da heurística, erudição e da crítica, Ranke trans- formou as regras técnicas desenvolvidas pelos eruditos em princípios metodo- lógicos, afirma a historiadora. De acordo com Adriana Pereira Campos (1998,
- 122), esse método consistia essencialmente em duas operações: primeiro, a análise das fontes em suas partes constituintes para distinguir nelas os elemen- tos mais distantes e mais próximos no tempo, o que, por sua vez, permitiria ao historiador estabelecer um sistema de credibilidade a esses fatos; depois, a crí- tica interna das partes selecionadas, demonstrando como o ponto de vista do agente poderia comprometer o seu modo de apresentar a narrativa.
A História Política foi consagrada como o modelo matricial. Uma his- tória événementielle que compreendia as dinâmicas sociais através de um qua- dro interpretativo pautado pelo acontecimento histórico. A História era assim encarada como um jogo de poder entre grandes figuras – homens ou nações – que desprezavam as estruturas coletivas e individuais que conferem a densida- de e profundidade própria da narrativa histórica. Essa complexidade foi subs- tituída pela frivolidade dos eventos históricos.
De forma semelhante, tais pressupostos estiveram presentes no ensino de História no âmbito escolar naquele contexto. Uma evidência para tal cons- tatação é a seleção dos temas que impunha uma estrutura tradicional que tra- tava sobre grandes figuras e empregava métodos mnemônicos, como, por exem- plo, os exercícios de pergunta-resposta.
Com pouco espaço para a formulação de hipóteses e a contestação da narrativa canonizada, o ensino de História foi reduzido a uma dimensão pura- mente instrumental-memorialística. Seu propósito era fixar os grandes acon- tecimentos que diziam respeito à nação e enalteciam as figuras históricas pre- viamente selecionadas. Além do procedimento e conteúdo, há uma outra par- ticularidade sobre essa historiografia e sua relação com o ensino de História. Ensinar História era visto como atividade a ser desenvolvida no espaço esco- lar, ao passo que o professor era encarado como o agente transmissor do co- nhecimento – o único naquele ambiente que estava autorizado a compartilhar a verdade histórica. Caberia, portanto, ao estudante “destituído” do saber ou- vir e memorizar as informações.
Já no século XX, a História foi abalada pelas transformações sociais que reorientaram o fazer histórico e o ensino da História. A insatisfação em
relação à história política e sua abordagem atomista despertou a necessidade por uma História mais abrangente e totalizante que não reduzisse a complexi- dade humana aos jogos de poder. A renovação dos estudos historiográficos atinge seu auge com a chamada Nova História, que substituiu a tradicional narrativa de acontecimentos políticos por uma história-problema. Nesse con- texto, amplia-se o horizonte de interesse que buscava inserir diferentes perso- nagens ao enredo histórico. Bem como estabeleceu um profícuo diálogo cola- borativo com outras disciplinas, como a sociologia, a econômica, a linguísti- ca, a antropologia social, a geografia e tantas outras que colaboraram para a interdisciplinaridade do fazer historiográfico.
Essas transformações reverberaram não apenas na dilatação da concep- ção de fonte, sujeito e abordagens metodológicas como também de ensino. A abertura a uma História mais plural foi reclamada pelos países que vivencia- vam, no século XX, transformações estruturantes. No Brasil, por exemplo, o final do século XX impôs transformações profundas à sociedade. A área do ensino de História surgiu no final dos anos 1970 e início dos 1980 no período de abertura política e do processo de redemocratização do país. Foi diante desse contexto de vivência democrática que cresceu o sentimento de insatisfa- ção com o modelo escolar-acadêmico, que pregava a ideia de um ensino sub- misso e subserviente ao poder do Estado. A democracia exigia indivíduos ati- vos e críticos para que seu projeto inclusivo pudesse existir.
Nesse contexto, os historiadores, segundo Elza Nadai (1986, p. 11), vi- venciavam não apenas o desafio quanto a repensar a escrita da História como também do papel da escola democrática e, por consequência, do ensino de História. O desafio de repensar as práticas tradicionais e a construção de uma educação crítica que pudesse auxiliar nesse contexto surgiram em meio a um cenário de ampla participação dos setores da sociedade civil que antes estive- ram excluídos. O momento era extremamente favorável para o desenvolvi- mento de um projeto de contrapoder que reclamasse a construção de uma relação distinta com a memória nacional e com o espaço escolar.
Em parte, tal esforço decorre de uma forte resistência à tradição de pen- samento que toma a escola como um espaço incapaz de criar algum tipo de produção intelectual. Nessa perspectiva tradicional, como lembra André Cher- vel (1990, p. 182), a escola é encarada como instituição de transmissão de saberes que são produzidos fora dela, ou seja, ela passa a ser encarada como um “lugar do conservadorismo, da inércia, da rotina”. Do ponto de vista pe- dagógico, o próprio estudante era encarado como um ser passivo que estava sujeito à figura do professor – hierarquicamente identificado numa estrutura piramidal de relações de poder. Na contramão dessa visão, a experiência pro-
movida por Paulo Freire desenvolvia uma relação de assenhoreamento do es- tudante. Portanto o aluno não apenas passa a ser visto como um agente ativo no processo de ensino-aprendizagem, mas também suas vivências passam a figurar como elementos primordiais no processo educacional.
O humanismo de Paulo Freire devolvia a autonomia a alunos e professores, redimensionava o processo de ensino-aprendizagem para além da rigidez do esquema doutrinário e salientava uma educação crítica que devolvia o con- ceito de política como par semântico de liberdade (política-liberdade), des- construindo o par ideologia e doutrinação (MENDES; RIBEIRO JUNIOR; VALÉRIO; RIBEIRO, 2017).
A partir do método proposto por Freire, o campo da educação experen- ciou uma virada significativa quanto à abordagem teórica do ensino-aprendi- zagem. A promoção da consciência crítica a respeito dos problemas cotidia- nos, a compreensão do mundo e do (re)conhecimento da realidade social ocor- rem a partir de uma relação dialógica e libertadora. Nesse sentido, os estudan- tes (re)criam criticamente o mundo que antes os absorvia, e o professor torna- se um coordenador que tem por finalidade fornecer as informações solicitadas pelos participantes, a fim de promover as condições necessárias à dinâmica do diálogo, reduzindo sua intervenção direta, o mínimo possível, no curso do processo educativo.
É justamente aqui também que o ensino de História e a escrita da Histó- ria convergem. Quando pensamos os canais de acesso à cultura histórica prio- ritariamente, elegemos a sala de aula e a academia como locus dessa produção e distribuição. O que propomos é justamente considerar que não existem dis- tinções hierárquicas quanto à produção dos saberes nesses espaços. Longe de uma perspectiva linear, precisamos compreender a promoção da consciência histórica nos diferentes canais de compartilhamento da experiência no tempo. E nesse sentido torna-se pertinente considerar a potencialidade da experiência virtualizada da história pública. Segundo Cláudia Regina Bovo e Marcos Sorri- lha Pinheiro (2019, p. 116), a incorporação de uma concepção de história pú- blica aos procedimentos metodológicos de ensino e aprendizagem de Histó- ria, associada à elaboração de conteúdos para as redes sociais, pode configu- rar-se como uma chave eficaz para mitigar o distanciamento entre o universo escolar e o universo do estudante.
O uso de tal recurso, associado ao emprego da aprendizagem híbrida, reserva a possibilidade efetiva de promover a conexão que atribui protagonis- mo ao estudante e promove o diálogo capaz de conduzi-lo à retomada de sua autonomia.
Para além de uma teoria, a história pública é uma prática: é uma maneira de se fazer História para e com o público. Essa prática é informada pela histó- ria disciplinar produzida nas escolas e universidades, mas tem como objeti- vo alcançar e se engajar com a comunidade mais ampla, debatendo cultura, fornecendo serviços e facilitando o acesso à informação. Isso pode ser feito de formas variadas, como exposições, planos patrimoniais, podcasts e pro- dução de mídias para redes sociais, mas também pela incorporação do de- bate sobre o resultado da informação ou conhecimento histórico mobiliza- do nesses tipos de mídias e espaços (BOVO; PINHEIRO, 2019, p. 125).
Conforme afirma o historiador Ricardo Santhiago (2018, p. 290), a his- tória pública constitui-se não apenas como uma prática, mas, sobretudo, como um ramo de reflexão completamente diversificado, que vivencia uma franca expansão na modernidade digital – sobretudo em países anglo-saxões –, onde conta com estímulos financeiros para sua consolidação como campo acadêmi- co, no qual estão em jogo diversos marcadores de reputação e prestígio social, como, por exemplo, oportunidades de trabalho e publicação, posições em as- sociações culturais e acadêmicas, financiamentos à pesquisa. Vale lembrar que a organização da história pública – em especial da experiência norte-america- na – se constitui em meados dos anos 1970 em um cenário de crise do merca- do de trabalho universitário, que precarizava e limitava as condições de atua- ção do historiador. Nesse sentido, seu funcionamento é orientado pelo impul- so de publicizar o conhecimento histórico para além dos espaços consagrados como detentores de um tipo de monopólio sobre o passado: a escola e a acade- mia.
Ainda segundo Santhiago (2018, p. 291), o percurso que possibilitou a institucionalização daquilo que hoje se conhece como “história pública” sur- ge a partir da necessidade de estimular a participação do historiador em uma variedade de lugares e fazeres profissionais, constituindo, assim, uma espécie de “carreira alternativa” para o profissional da História. Santhiago identifica a criação da revista The Public Historian, em 1978, e o National Council for Public History, em 1979, como marcos para a criação do movimento
[…] noção de história pública convida diferentes pesquisadores a revisitar suas investigações passadas ou suas práticas de trabalho correntes, ativando uma reflexão sobre o processo de construção do conhecimento que descor- tina a sua dimensão pública. Nessa leitura, não se pressupõe a história pú- blica como um conjunto estável de técnicas a serem apreendidas e apenas consecutivamente emuladas, mas como uma prática reflexiva – um processo contínuo de aprendizado, baseado na reconstrução das práticas de trabalho a partir de experiências concretas – ou, se assim preferirmos, como um con- ceito capaz de dinamizar uma reflexão com consequências práticas (SAN- THIAGO, 2018, p. 294).
A emergência da história pública no Brasil coincide com um conjunto de questões da história do tempo presente e das relações entre o uso público do passado. Para Santhiago (2018, p. 95), essa configuração peculiar torna o conceito de história pública analiticamente produtivo, visto que dialoga com noções como as de usos do passado, consciência histórica, passados práticos e cultura histórica. Em um cenário como o que estamos vivendo em que a cultu- ra histórica é reclamada constantemente como elemento constitutivo de dis- cursos negacionistas ou revisionistas, a publicização e a ocupação do espaço público pelos historiadores torna-se um imperativo urgentemente necessário a ser realizado.
E as aulas de História nesse diálogo…
A História como área de pesquisa e ensino é marcada por uma multipli- cidade de referenciais teóricos, metodológicos e ideológicos. As diversas con- cepções de História constituem diferentes maneiras de selecionar os conteú- dos, definir os conceitos e procedimentos, privilegiar e analisar determinados tipos de fontes e, consequentemente, construir sua narrativa. E a aulas de His- tória não fogem a essa regra. Em outras palavras, o lugar social e escolha do docente evidenciarão a forma de trabalhar historicamente os temas definidos para aquele ano ou turma.
Dessa forma, o ensino de História na educação básica assume o com- promisso com o refinamento do pensamento. A pesquisa na sala de aula, ativi- dade investigativa e criativa que envolve alunos e professor, apresenta as se- guintes marcas:
[…] primeiro, que a indagação do aluno vai exigir do professor informações que muitas vezes ele não terá de imediato, exigindo dele estudo complemen- tar. De resto, para cada unidade o professor deverá estabelecer um problema que estará articulado com fontes de seu conhecimento. Isso requer pesquisa docente de ordem bibliográfica, mas igualmente de identificação de corpus apropriados. Não só a atividade discente e a sala de aula se tornam lugar de exercí- cio da pesquisa, mas igualmente o professor se vê envolvido na tarefa de investigador, voltado para o exercício didático, rompendo a lógica normatizadora autoritária (gri- fo do autor) (KNAUSS, 1999, p. 40-41).
Fazer pesquisa nas aulas de História é a resposta propositiva, desafiado- ra e difícil para o abandono dos processos tradicionais de ensino e a constru- ção de outras histórias com diferentes objetos, problemas e abordagens. Ela é propositiva porque busca a diversidade de abordagens do conhecimento histó- rico na sala de aula. Desafiadora, pois significa abandonar as anotações ama- relecidas de aulas – repetidas à exaustão – e estar aberto ao novo e imprevisível
de cada dia. E difícil por reivindicar novas práticas na cultura escolar e acadê- mica, lembrando que escola e universidade têm um compromisso comum com a educação histórica dos cidadãos.
Cabe destacar que a descolonização da vida em sociedade (“fechada”) pelas transformações do mundo contemporâneo – principalmente a partir da inserção e dos usos na vida prática dos indivíduos das tecnologias da comuni- cação e informação, forjando o universo da cibercultura, rompendo as frontei- ras e os paradigmas de organização social, política e cultural e de concepção de humanidade – torna ainda mais urgente a necessidade de que as institui- ções de ensino (escolas e universidades) e, consequentemente, o ensino da História enquanto área disciplinar operem com base em novo referencial edu- cacional, não mais como lugar de transmissão de informação, mas como espa- ços efetivamente interligados na problematização dos dilúvios de informações e aprendizados que envolvem os estudantes habituados à internet e à tecnolo- gia da informação.
Realizar atividades científicas em sala de aula a partir de situações-pro- blema diárias e construir conhecimentos efetivamente vividos como experiên- cias sociais não podem ser consideradas “escolhas” ou simples “opções” do tempo presente, descontextualizadas de uma perspectiva histórica. É um dese- jo “forjado” de nossa cultura reconhecer nos alunos os coautores dos proces- sos de ensinar aprender a aprender dentro de uma cultura científica – que a cada dia ganha novas/diversas tonalidades e dimensões nas redes da vida prá- tica das pessoas.
Com essa intenção, Jörn Rüsen (2001, p. 159) afirmou que as ideias históricas prévias apresentadas pelos estudantes são elementos da memória que os sujeitos têm das suas experiências com o passado. A partir dessa con- cepção, esse historiador compreendeu as ideias prévias como protonarrativas. Para ele, o cotidiano das crianças e dos jovens está cheio de elementos frag- mentados das histórias, de alusões a histórias, de parcelas de memória, de “narrativas abreviadas”. A compreensão desses fragmentos narrativos, por- tanto da protonarrativa, é possível a partir da consciência da “estrutura de uma narrativa histórica: alguém conta a alguém uma história, na qual o passa- do é tornado presente, de forma que possa ser compreendido, e o futuro é esperado”.
A instituição escolar não pode furtar-se do compromisso como articula- dora de diferentes espaços e situações que lidam com o conhecimento, propi- ciando a criação e o desenvolvimento de comunidades e culturas colaborati- vas de aprendizagem, interação e intercâmbio. Superar distâncias não signifi- ca apagar a diversidade, e sim permitir o encontro do ser humano consigo
mesmo em suas múltiplas faces. O contato, o diálogo, o clicar podem oferecer ao aluno a rara oportunidade de superar preconceitos, medos e limitações.
Dessa maneira, os indivíduos são convidados a abandonar suas ilhas imaginárias e pensar que o “navegar” é sempre preciso. Conhecer, procurar e descobrir não podem ser sinônimos de colonização e dominação. Eles preci- sam ser sinônimos de criatividade, transformação e reflexão.
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1 Doutor em História pela UNICAMP. Docente do Departamento de História do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagem e do PROFHISTÓRIA – Mestrado Profissional em Ensino de História da UFMT/Cuiabá. E-mail: [email protected].
2 Doutorando em História pela UFMT. Bolsista Capes. E-mail: [email protected].
Diálogos possíveis entre produzir, ensinar e aprender histórias decoloniais
Elison Antonio Paim1 Helena Maria Marques Araújo2
A violência contra os índios vem crescendo desde 2017, de acordo com Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, mas sofre um acirramento durante o governo Bolsonaro. O Instituto Na- cional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostra ainda que houve expan- são dos focos de garimpo ilegal no Norte, além de um aumento do desmatamento a partir de janeiro deste ano. Durante audiências com o Ministério da Justiça e da Defesa, o líder indígena da etnia Yano- mami, David Kopenawa, alertou que a invasão de garimpeiros che- gava a envolver 20 mil pessoas (REDE BRASIL ATUAL, 19/07/ 2019).
“Coisa de preto” é subtexto corrente na mente de grande parte de uma sociedade criada sob os parâmetros da Casa Grande. O diabóli- co plano que começou com tráfico, tortura e assassinato do povo negro e que durou quatrocentos anos é mais nefasto e homicida do que os cinco ou seis anos do holocausto judeu e essa dor a humani- dade respeita mais. Não estou dizendo que uma dor é menor do que a outra. Mas afirmo que o holocausto da escravidão negra continua até hoje e não comove nossa sociedade. Não importa, em geral, a quantidade de negros sem nome, sem sobrenome nobre que é assas- sinada diuturnamente nas favelas e periferias deste país. Ainda rola no imaginário brasileiro a ideia obsoleta de que “preto bom é o de alma branca”, é o sem voz, e há neste imaginário uma desvaloriza- ção da etnia negra (Elisa Lucinda, 11/11/2017).
Cotidianamente, ouvimos, lemos, assistimos a notícias como essas. O racismo e a violência nossa de cada dia permeiam o viver no Brasil há mais de 500 anos, desde que o primeiro europeu cá pôs os pés. Indígenas são conside- rados vagabundos que não sabem explorar as riquezas de suas terras e vivem na miséria. Negros são bandidos e não gostam de trabalhar, são expressões corriqueiras entre brasileiros pronunciadas por pessoas sem formação escolar, com baixa formação escolar, mas também com formação universitária. Fre- quentemente, temos a sensação de que a opinião de muitos daqueles que tive- ram anos e anos de escolarização e daqueles que não tiveram oportunidade de escolarizar-se são praticamente as mesmas quanto ao racismo e a violências
diversas – que historicamente foram/são praticadas – contra povos de origem africana e originários, que recebem a denominação racista de primitivos por alguns sujeitos. Historicamente, existe uma grande distância entre histórias narradas, memórias construídas e experiências vividas pelos homens, mulhe- res e crianças não brancos/sem origem europeia/não cristãos/heteronormati- vos e muitas histórias a serem ensinadas e apresentadas em documentos legais
– como a Base Nacional Comum Curricular, propostas curriculares de esta- dos, municípios, de redes educacionais confessionais ou laicas –, bem como aquelas inscritas nos materiais didáticos distribuidos pelo Ministério da Edu- cação e nos planos de ensino dos professores.
Após muitos anos de luta do Movimento Negro e de diversos grupos so- ciais e institucionais, foram aprovadas as leis 10.639/03 e 11645/08, que torna- ram obrigatório o ensino de História e cultura dos povos africanos, afro-brasilei- ros e indígenas. Porém pesquisas vêm indicando que elas vêm sendo cumpri- das de maneira parcial ou não são cumpridas na maior parte de nossas escolas e universidades. Assim, continuamos muito aquém no tocante ao ensino de outras histórias, ou seja, silenciando e/ou invisibilizando histórias e memórias relacionadas a grupos subalternizados, àqueles que estão além da linha abis- sal, como nos afirma Boaventura S. Santos:
O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas funda- mentam as primeiras. As distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o “deste lado da linha” e o “do outro lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece como realidade, torna-se inexistente e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer modo de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é pro- duzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção de inclusão considera como o “outro”. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibi- lidade da copresença dos dois lados da linha. O universo “deste lado da linha” só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevan- te: para além da linha há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não dialética (BOAVENTURA, 2007, p. 71).
Na tentativa de valorização das histórias não hegemônicas, alguns pes- quisadores – inclusive do campo do ensino da História – vêm se contrapondo ao registrar e narrar outras histórias, aquelas consideradas menores (PEREI- RA, 2017).
Enquanto professores/pesquisadores do campo do ensino de História atuantes em cursos de graduação e pós-graduação, temos nos aproximado do pensamento decolonial, da educação intercultural crítica e tentado desenvol-
ver nossas pesquisas e práticas de formação de professores que privilegiem a produção de histórias e memórias contra-hegemônicas. Assim sendo, estamos em diálogo com bases epistemológicas outras que procurem evidenciar sabe- res e fazeres em diferentes espaços de ensino de História que se contraponham às políticas que historicamente negaram/negam o direito dos povos indígenas e negros de ter suas histórias ensinadas. Ou seja, nessa lógica da colonialida- de, o outro lado da linha abissal não produz histórias e nem memórias; são os incivis que vivem e são produzidos por uma sociedade civil (SANTOS, 2007), muito embora sejam eles paradoxalmente a mão de obra básica dessa socieda- de. Assim sendo, nessa cartografia abissal também os conhecimentos hegemô- nicos passam a ser vistos como saberes universais.
Organizamos este capítulo no intuito de evidenciar alguns conceitos funda- mentais que vêm conduzindo nossas práticas. Inicialmente, apresentamos diálogos com autores que produzem conhecimentos com base na decoloniali- dade, experiências/vivências de grupos subalternizados, histórias e memórias contra-hegemônicas. Num segundo momento, explicitamos os procedimentos metodológicos que estamos desenvolvendo em nossas pesquisas. Num terceiro momento, apresentamos de maneira sintética algumas das pesquisas no campo do ensino de História que temos orientado nos programas de pós-graduação aos quais estamos vinculados e, para finalizar, pontuamos algumas perspectivas de aprendizagens de outras histórias e produção de memórias outras.
Decolonializando experiências e memórias
O pensamento decolonial traz a marca, desde seu surgimento a partir do último quartel do século XX, da tentativa de rompimento com as colonialidades sofridas pelos povos não europeus. Essa abordagem epistêmica vem sendo de- senvolvida principalmente por estudiosos latino-americanos, especialmente o Grupo Modernidade/Colonialidade, dentre os quais destacamos Aníbal Quija- no, Catherine Walsh, Edgard Lander, Enrique Dussel, Maria Lugones, Nel- son Maldonado-Torres, Ramon Grosfoguel, Santiago Castro Gomez, Walter Mignolo e os brasileiros Claudia Miranda, Luis Fernandes Oliveira, Maria Antonieta Martinez Antonacci, Nilma Lino Gomez, Vera Candau, entre outros. A decolonialidade não é uma abordagem nova, pois ela existe desde a imposição da colonização e escravização dos povos americanos, africanos e asiáticos. A decolonização pauta-se em eixos permanentes de luta dos diversos povos dominados/explorados contra a violência estrutural pensada, assumida e realizada pelas elites nacionais como projeto político, social, cultural, religioso,
econômico e epistêmico para subjugar e dominar os povos não europeus.
Os colonizadores europeus, ao chegarem às Américas e Àfricas, preocu- param-se em destruir não só poderes, sistemas econômicos, como imaginários, invisibilizando sujeitos e tornando alguns grupos sociais subalternizados para que assim pudessem afirmar seu(s) próprio(s) poderes-saberes-fazeres coloniza- dores pela usurpação territorial, econômica e ideológica. Utilizaram-se de múl- tiplas estratégias para naturalizar e internalizar um pensamento único, racional, moderno, cristão, masculino, heterossexual e eurocêntrico e, então, construíram a “la subalternización epistémica del otro no europeo y la propia negación y olvido de procesos históricos no europeos” (OLIVEIRA; CANDAU, 2013, p. 279). A imposição do pensamento racional eurocêntrico determinou-se como emblema da modernidade, calcando-se na racialização e despojamento dos sa- beres intelectuais como sustentáculo do “padrão de poder, material e intersubje- tivo” (QUIJANO, 2009, p. 107). Portanto “as fronteiras da civilização torna- ram-se as margens de um sentido de ordem social europeia; consequentemente, os nativos tornaram-se a própria encarnação da desordem, simbolizada no so- frimento moral, degradação física e mundo desordenado” (MENESES, 2009, p. 181). Vai se criando uma invisibilidade dos povos do Sul através do que, como já afirmamos anteriormente, Santos (2010) chama de pensamento abissal. Esse invi- sibiliza os povos subalternizados pelo colonialismo, e tais exclusões e silencia- mentos mantêm-se através das políticas liberais e neoliberais até os dias atuais.
Justificam-se pela superioridade econômica e/ou racial as múltiplas for- mas de discriminação de uns pelos outros, mesmo que quase todos sofram al- gum tipo de discriminação. Cria-se, assim, uma cadeia hierárquica de poderes e micropoderes, como: o branco frente aos indígenas, os camponeses frente aos indígenas, os homens frente às mulheres, os heterossexuais frente aos homosse- xuais, os cristãos frente a qualquer outra forma de espiritualidade, as línguas europeias frente às línguas indígenas e africanas e, assim, em nome da superiori- dade, “unos son destinados a conocer y otros a ser destinatarios de ese conoci- miento, unos son la rémora al progreso y los otros el desarrollo” (VARGAS, 2007 apud WALSH, 2008, p. 136). A colonialidade do poder manifesta-se como o elemento que une o racismo, a exploração capitalista, o controle sobre o sexo e o ser, o monopólio do saber, relacionando-os com a história colonial moderna (QUIJANO, 2000 apud MALDONADO-TORRES, 2007, p. 156).3
Catherine Walsh afirma que por meio da interiorização, subalterniza- ção e desumanização ocorre a “não existência” dos sujeitos, isto é, a desquali- ficação é de forma tão ampla, que acaba sufocando todas as possibilidades de existência daqueles sujeitados à colonialidade. Aponta ainda para a relação en- tre razão-racionalidade e humanidade, de forma que especialmente na América Latina os Estados nacionais sejam pensados e organizados na racionalidade
moderna eurocêntrica, fazendo com que “los pueblos y comunidades indígenas aparezcan como los bárbaros, no-modernos y no-civilizados, y los pueblos y comunidades negras […] como no existentes” (WALSH, 2008, p. 137).
Em palestra na Universidade Federal de Santa Catarina em 2016, o geó- grafo brasileiro Carlos Walter Porto Gonçalves afirmou que os epistemólogos da decolonialidade conduzem suas produções considerando compreender que a forma epistemicida, ecocida, memoricida da atual estrutura de poder e saber é uma falácia em relação aos povos subalternizados, mas é real enquanto prá- tica do colonialismo, do patriarcado e do capitalismo e que, portanto, deve parar de ser reproduzida.
A decolonização funda-se no grito de “espanto del colonizado ante a transformación de la guerra y la muerte en elementos ordinarios de su mundo de vida” (MALDONADO TORRES 2007, p. 159). A decolonização também se expressa no ceticismo e na dúvida para com o projeto colonial; assim pro- põe uma mudança de perspectiva e “las prácticas y formas de conocimiento de sujetos colonizados”. Representa ainda “un proyecto de transformación siste- mática y global de las presuposiciones e implicações de la modernidad, asumi- do por una variedad de sujetos en diálogo” (id, p. 160).
A decolonização deve ser uma (des)aprendizagem de tudo o que foi im- posto e assumido pela colonização e a desumanização para que homens e mulheres reaprendam a ser sujeitos de si (WALSH, 2013). Nessa lógica, para que ocorra a decolonização de corpos e mentes, é preciso assumir a perspecti- va epistemológica decolonial como um processo de ação, como também peda- gógico para a transformação social e um caminho possível para a construção de um mundo outro, onde ocorra maior justiça social, que também envolve maior justiça epistemológica ou cognitiva (SANTOS, 2010)
A decolonialidade considera a desumanização e as lutas dos povos histori- camente subalternizados para, então, construir outros modos de viver, de poder e de saber. Assim, a decolonialidade tem, entre outras, a finalidade de “visibilizar las luchas contra la colonialidad a partir de las personas, de sus prácticas soci- ales, epistémicas y políticas” (CANDAU; OLIVEIRA 2013, p. 286). A decolo- nização é também uma estratégia que vai além de sua transformação, remeten- do também a construções e criações, tendo como meta “la reconstrucción radi- cal del ser, del poder y del saber” (CANDAU; OLIVEIRA, 2013, p. 286).
No emaranhado de vozes que têm assumido uma postura decolonial é apresentada uma série de possibilidades outras para a produção de conheci- mentos e sentidos histórico-educacionais. Sendo assim, a decolonização visa:
- a) desfazer a cultura do silêncio, as contradições opressor-oprimido, rearticu- lando-as para a superação das marcas profundas da colonialidade inscrita na
memória coletiva e social dos povos colonizados; b) atuar como um semeador que cultiva ideias e premissas prenhes de indignação e esperança num mundo onde a vida seja a fonte, centro e fim da cultura de cuidado consigo, com o outro e com a natureza; c) romper com a dicotomização que coloca, de um lado, a ciência, a filosofia e a teologia e, de outro, como menores e desqualifi- cados, todos os conhecimentos que não seguem a racionalidade e cientificida- de da colonialidade moderna europeia; d) não desqualificar nenhum saber, considerando diferenças entre eles, numa proposta do que Santos (2010) cha- ma de ecologia de saberes; e) levar a sério de forma dialogal as perspectivas/ cosmologias/visões de corpos e lugares étnico-raciais/sexuais subalterniza- dos; f) lutar contra uma monocultura do saber no campo teórico/prático nos processos de investigação; g) lutar contra o desperdício da experiência que o Ocidente impôs aos outros povos pela força; h) fazer acontecer uma ecologia de saberes como uma opção epistemológica e política que levará ao respeito a à integração entre o saber científico e os saberes dos camponeses, dos indígenas ou dos afrodescendentes; i) construir projetos de educação popular em que os conhecimentos acadêmicos/científicos participam em pé de igualdade com a multiplicidade de saberes dos povos; j) diminuição e, se possível, extinção de toda e qualquer forma de racismo, quer seja estrutural, institucional, religiosa, econômica, territorial, ambiental, etc.; h) entre outros aspectos que envolvam lutas contra o colonialismo, patriarcado e capitalismo (SANTOS, 2010).
Na tentativa de decolonizarmos nossas práticas docentes e de pesquisa é que temos trabalhado com memórias e histórias daqueles explorados e esqueci- dos pelas diferentes colonialidades. Dessa forma, ao dialogarmos com as reme- morações dos sujeitos com os quais trabalhamos numa investigação, buscamos suas reconstruções do passado. Reconstruções essas desencadeadas por expe- riências que nos tocam no presente – as perguntas que formulamos e nos permi- tem projeções futuras. Portanto tais rememorações são, como defendeu Proust (1871-1922), eivadas ambivalentemente por uma dimensão voluntária e por outra involuntária. Tal ambivalência pode ser flagrada quando esses sujeitos, ao reme- morarem, extrapolam em suas narrativas as problemáticas e temas sugeridos por nós nas pesquisas realizadas. Eles entretecem experiências presentes com passadas, compartilhando possibilidades plurais e dialógicas de compreensão do narrado, colocando-nos na posição desconfortável daqueles que precisam rever continuamente suas certezas mais banais sobre um dado acontecimento.
Quando fazemos a distinção ou hierarquização dos acontecimentos, ten- demos a deixar de lado os sujeitos que foram derrotados e silenciados. Larrosa (2002, p. 27) alerta que o saber da experiência “é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal” ou “[…] experiência é o encontro da mente com o
mundo” (GAY, 1988, p. 19). Ainda, no rastro de Benjamin (1994), destacarmos que a vida é uma experiência histórica que se tem com e no corpo, incluindo: etapas, marcos temporais, de identidades, de gênero e marcas étnicas, também necessidades e funções físicas, que no todo constituem o ‘habitus corporal’.
As pesquisas histórico-educacionais com base nas narrações de memó- rias para que os sujeitos ao narrar recobrem suas experiências são realizadas para que não queiram mais apagá-las. Trabalhar com narrativas de memórias numa perspectiva de diálogo possibilita que os narradores percebam que mui- tas respostas que buscam estão presentes em suas experiências vividas nas me- mórias.
Na educação, sobretudo, na educação das relações étnico-raciais, ape- sar de vislumbrarmos alguns avanços no trato com as diferenças, com as diver- sidades e com princípios epistemológicos, nossos currículos, nossos planos de ensino, nossas aulas compartimentadas ainda privilegiam um tipo de aluno/a, um tipo de enquadramento curricular que, embora tentemos fugir, muitas ve- zes, faz-nos sentir pressionados por essa matriz colonial eurocêntrica autoritá- ria. Quantos conhecimentos ainda passam ao largo das nossas universidades, dos cursos de formação, da mídia impressa e falada, dos livros didáticos sobre as epistemes dos indígenas, dos quilombolas, dos afro-brasileiros? Quantos conhecimentos ainda precisamos adquirir para nos descolonizar efetivamente da matriz europeia?
Segundo Boaventura Souza Santos, na América Latina e na África, os povos produzem conhecimentos não reconhecidos nas universidades, porém são aqueles conhecimentos que comandam e organizam as práticas sociais. As universidades enriquecer-se-iam se trouxessem tais conhecimentos para den- tro delas. Na ecologia de saberes (SANTOS, 2010), não se pretende eliminar o conhecimento hegemônico, científico com base na colonialidade/modernida- de, mas permitir que existam outros conhecimentos igualmente visibilizados e respeitados. É urgente mostrar à universidade e em nossas escolas que existem outros conhecimentos, ligados a grupos subalternizados que sofreram e so- frem o colonialismo, o patriarcalismo e o capitalismo.
Essas contranarrativas, ou narrativas contra-hegemônicas, levantam a ban- deira a favor da representação afirmativa de negros e indígenas para desestabilizar essas representações hegemônicas. É nas escolas, e particularmente em nossas aulas de História, que podemos usufruir de práticas pedagógicas cidadãs de cará- ter emancipatório. Essas produções outras – de histórias e memórias – possibili- tam uma maior justiça cognitiva e, consequentemente, justiça social. Isso porque podem trazer visões de mundo e saberes outros referendados pelos grupos sociais minoritários e excluídos do patamar de conhecimentos hegemônicos.
Ao longo dos séculos, os povos indígenas e afro-americanos sofreram diferentes formas de subalternização, como o genocídio, o epistemicídio e a perda de elementos culturais, reconfigurando-se ao longo da História como formas de (re)existências. Uma das formas de resistir e (re)existir (QUIÑOÑEZ, 2016) é cartografando e respeitando os conhecimentos e as práticas culturais indígenas e afro-americanas com o sentido de que tais escavações decoloniais levem à construção de memórias e histórias outras. Devemos compreender a construção dos conhecimentos e das culturas como movimentos complexos e dinâmicos e, consequentemente, mutáveis, voltados ao empoderamento iden- titário, estabelecendo, assim, novas cartografias decoloniais (MIRANDA, 2017) a serem ensinadas e aprendidas em nossas escolas e universidades.
Consideramos que o trabalho de entrecruzamento das histórias e me- mórias outras certamente contribuirá para a “compreensão do ‘eu’, a afirma- ção da personalidade, situando o indivíduo no espaço, no tempo, na socieda- de em que vive como um sujeito ativo, capaz de compreender, construir e trans- formar essa sociedade, o espaço, o conhecimento e a história” (FONSECA, 2003, p. 250).
Pesquisas decoloniais como construção de memórias silenciadas ou a história a contra pelo
Temos apostado no registro e diálogo com memórias que estão fora da grande História (PEREIRA, 2017), ou seja, nas memórias contra-hegemônicas. Metodologicamente, como forma de escrita de nossas produções, tomamos como base a forma monadológica de Walter Benjamin. Tendo presente que memória é rememoração, e a narrativa encontra-se intimamente relacionada ao ato de rememorar, entendido como o “exercício do despertar, a possibilidade de ressig- nificação da própria experiência através de memórias conscientes e inconscien- tes cheias de significados, sentimentos e sonhos” (ROSA; RAMOS; CORRÊA; ALMEIDA JUNIOR, 2011, p. 203). Entrecruzamos tempos e espaços, pois “ao rememorar voltamos ao passado com as lentes do presente, para que nesta re- construção das lembranças busquemos elementos que nos possibilitem agir so- bre o presente e projetar um futuro” (PAIM, 2005, p. 41).
Para Benjamin (1994, p. 205), a narrativa “não está interessada em trans- mitir o ‘puro em si’ [grifo do autor] da coisa narrada, como uma informação ou um relatório se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”. Dessa forma, as narrativas, que são formas de dizer de nossas experiências, podem ser expressas por mônadas como “centelhas de sentido que tornam as narrativas mais do que comunicáveis: tornam-se expe-
rienciáveis” (ROSA et al., 2011, p. 203). Nessa acepção, a mônada capta a totalidade na singularidade, ou seja, na construção de mônadas como aporte metodológico com base na rememoração, nos detalhes mais miúdos das nar- rativas, há a chance de recuperar o universal, de escovar a História a contrape- lo e superar a história linear e colonial na medida em que “a mônada pode revelar o caráter singular da experiência educativa realizada, sem perder de vista suas articulações com o universo amplo da cultura em que ela está imer- sa e com o olhar subjetivo do pesquisador” (ROSA et al., p. 205).
Alargando o entendimento, Cyntia Simioni França (2015) afirma que “a mônada é concebida como a cristalização das tensões nas quais se inscre- vem práticas socioculturais, plurais, contraditórias” (p. 105) e que “a mônada é um fragmento que salta do desenrolar do tempo linear” (p. 106); assim se tem as imagens monadológicas em narrativas, rememoradas/contadas num tempo não linear da narração. Observa-se que “nessas pequenas narrativas que remetem à infância de Benjamin, é possível vislumbrar a articulação entre o vivido individual do autor e as esferas sociais mais amplas, valorizando as experiências do passado infantil e ressignificando-as a partir do olhar adulto” (SANTANA, 2017, p. 27). A historiadora Maria Carolina Galzerani instiga- nos, em diferentes momentos de sua produção, a pensar que há a possibilidade de articulação do que é vivido de quem narra com o contexto social, na qual a mônada é construída e torna-se terreno fértil para a construção de significados coletivos e particulares mais substanciais.
Nesse momento, trazemos, a título de exemplo, como se fossem môna- das benjaminianas, sínteses de algumas pesquisas que temos realizado junto com nossos orientandos de pós-graduação com o intuito de aflorar as histórias menores, as memórias contra-hegemônicas, os saberes e fazeres de professores ao trabalhar com as temáticas étnico-raciais e assumir uma posição política e ideológica ao pesquisar temáticas que fogem dos modelos monoculturais de produção de conhecimentos histórico-educacionais.
Guilherme Braunsperger de Lima Vieira, na dissertação Religiosidades em coleções de livros didáticos de história: História, Sociedade e Cidadania (2013) e Nova História Integrada (2015), desenvolvida junto ao Programa de Pós-Gradua- ção em Ensino de História – ProfHistória, analisou duas coleções de livros didáticos presentes no PNLD 2015 sob o viés da religiosidade dos povos abor- dados com a intenção de demonstrar a colonialidade das mentes como a influência de uma historiografia eurocêntrica ainda é predominante dentro dos livros didáticos e como as religiosidades dos diferentes povos apresenta- dos são tratadas nas coleções. O autor analisa as coleções didáticas sob a pers- pectiva da decolonialidade, apoiado fundamentalmente em autores como Franz
Fanon, Catherine Walsh, Homi Bhabha, Arturo Escobar, Walter Mignolo e Stuart Hall; na análise de livros didáticos, há aproximação do método de abor- dagem de Circe Bittencourt e Kazume Munakata. Em ambas as coleções, a história dos povos oprimidos tem pouca expressão em comparação com a his- tória europeia e eurocentrada; as discussões sobre exploração e opressão du- rante o período colonial são suprimidas; a cultura e as religiosidades têm dife- rentes espaços, minimizando as Áfricas e as Américas, homogeneizando-as e até justificando o caráter civilizador do colonizador.
Odair de Souza em A educação para as relações étnico-raciais no ensino de história: memórias e experiências de professoras da educação básica – pesquisa de mes- trado desenvolvida no ProfHistória – teve como objetivo investigar interfaces de memórias e experiências de professoras de História a partir da análise da implementação da Lei 10.639/2003, bem como das orientações emanadas das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana e sua associa- ção aos princípios da interculturalidade e da decolonialidade. A metodologia adotada foi a análise das mônadas oriundas de entrevistas com professoras de História do ensino médio da Escola Pública Estadual Luiz Carlos Luiz, no município de Garopaba/SC, inspiradas em Cynthia França com fundamenta- ção em Walter Benjamin. Orientou-se também na perspectiva da decoloniali- dade como uma possibilidade epistemológica radical para o rompimento com os saberes eurocêntricos e metodologias e práticas pedagógicas fundamenta- das na interculturalidade. Dialogou-se com autores e autoras latino-america- nos que postulam a colonização do poder, do saber, do ser, memória e expe- riência e interculturalidade na educação. As narrações indicam que ainda são necessários cursos de formações continuada e de disciplinas nas licenciaturas que abordem temáticas relacionadas à ERER e à história e cultura africanas e afro-brasileiras, mas ao mesmo tempo apontam para uma série de trabalhos pedagógicos produzidos por professoras/es em suas salas de aula que proble- matizam as relações étnico-raciais, o preconceito e a discriminação.
Técia Goulart de Souza desenvolveu a pesquisa Educação para as Relações
Étnico-Raciais no Centro de Ensino Fundamental Miguel Arcanjo – São Sebastião – Distrito Federal: diálogos dentro e fora da escola; teve como origem suas preocupa- ções em criar e desenvolver ações sobre educação para as relações étnico-raciais no ensino de História do CEF-Miguel Arcanjo-DF. O objetivo foi construir um projeto de educação para as relações étnico-raciais que envolva o ensino de His- tória e os saberes transdisciplinares e a comunidade escolar. A pesquisa tem uma parte propositiva com duas ações. Uma reestrutura a disciplina chamada Parte Diversificada – PD em uma disciplina voltada para a Educação para as
Relações Étnico-Raciais. Outra realiza o diálogo/parceria com educadores/as que atuam em pontos de cultura da cidade e que possam compartilhar seus saberes em nossos encontros de PD. Dialoga com Nilma Lino Gomes, Anibal Quijano, Kabengele Munanga, Stuart Hall. O trabalho está organizado em três capítulos: o primeiro composto pela reflexão sobre a disciplina Parte Diversifi- cada e o que os/as colegas do CEF Miguel Arcanjo têm trabalhado nessa disci- plina e as perspectivas de utilização dela como caminho para as práticas coti- dianas pautadas pelas relações étnico-raciais; o segundo é composto pelas narrativas das experiências com os/as estudantes dos sétimos anos com as oficinas ministradas por Sherwin Morris e pela autora em 2019; no terceiro capítulo, apresenta o programa anual para a disciplina, organizado por bimestres. Monique Magalhães Marins fez a pesquisa Todo dia é dia de índio! Que índio?. para o Profhistoria. Desde a implementação da Lei nº 11.645/ 2008, que determina a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas do Brasil já se passaram mais de dez anos. Esse trabalho investiga o que mudou no que se refere ao ensino dessa temática na última década na sala de aula, assim como representamos nossos índios ainda hoje. Analisa-se o que é lembrado e o que se tornou esquecimento referente à temá- tica indígena e se há uma política de memória por trás dessas comemorações e representações. Também é pesquisado se o nosso currículo escolar incentiva esse tipo de reflexão crítica e se nossos alunos são potenciais construtores de um conhecimento histórico que reestruture essa maneira de pensar através da chave epistemológica decolonial e da educação intercultural crítica. Dialoga principalmente com Catherine Walsh, Vera Candau, Anibal Quijano e Fidel Tubino e com autores de currículo, como Ana Maria Monteiro, Circe Bitten- court, Ivor Goodson e Tomaz Tadeu da Silva. Em relação às oficinas pedagó- gicas, ancora-se teórica e metodologicamente em Zélia Mediano. Portanto a pesquisa objetiva pensar, analisar e discutir as questões levantadas a partir do dia 19 de abril, “Dia do Índio” – uma data simbólica e significativa para a temática indígena. Foram realizadas intervenções e oficinas pedagógicas cria- das por alunos do 8° ano do Ensino Fundamental II (e pela mestranda) a fim de ressignificar o Dia do Índio para os alunos que cursam o Fundamental I. As oficinas foram elaboradas e desenvolvidas numa escola particular da cida-
de de Niterói no estado do Rio de Janeiro.
Ana Carolina da Silva Andrade está pesquisando A invisibilidade da Mulher Negra no Livro Didático de História: Desafios para uma pedagogia Decolonial para o Profhistoria. A investigação tem como objeto a invisibilidade da mulher negra nos livros didáticos de História utilizados no Ensino Médio da rede estadual do Rio de Janeiro. A coleção utilizada é a Oficina de História, dos autores Fla-
vio Campos, Julio Pimentel Pinto e Regina Claro. A proposta da pesquisa surgiu a partir da observação de que a participação da mulher negra nos proces- sos históricos é silenciada nos livros didáticos ou aparece apenas em boxes des- locados dos conteúdos dos capítulos. Além disso, pode ser constatada a falta de representatividade dos povos negros enquanto produtores de histórias e culturas nos currículos escolares. Isso ainda não está superado nos livros didáticos; ape- sar de haver avanços significativos, essa lacuna interfere negativamente, sobre- maneira, na constituição de memórias para o empoderamento identitário por parte dos alunos afrodescendentes, logo comprometendo a construção de suas identidades, principalmente étnico-raciais. Dialoga principalmente com Cathe- rine Walsh, Vera Candau, Claudia Miranda e bell hooks nas questões da peda- gogia decolonial e de gênero. Perpassando tudo isso, como pano de fundo tam- bém discute o papel do conhecimento histórico escolar, mobilizando o pensa- mento de Circe Bittencourt e trazendo para o debate Ana Maria Monteiro.
Francisco das Chagas de Alcântara Araripe está desenvolvendo a pes- quisa intitulada Das pedras pisadas do Cais – O trabalho de campo na Pequena África como método para uma educação patrimonial. Essa dissertação de mestrado feita no Profhistória envolve a temática relacionada a relações étnico-raciais e resis- tência africana e dos afrodescendentes em nosso país, tendo como caminho a utilização e exploração do roteiro pedagógico no sítio denominado Pequena África na cidade do Rio de Janeiro. Além disso, propõe-se a apresentação de um roteiro pedagógico pela Pequena África para professores aplicarem com os alu- nos contempla diversas dimensões – como o patrimônio, as memórias con- tra-hegemônicas e as heranças de resistências de grupos subalternizados e ex- plorados pelo escravismo em nosso país. O objeto de estudo proposto busca entender como esse trabalho de campo pode contribuir para pensar o território da Pequena África como patrimônio contra-hegemônico identitário da cultura africana e de seus afrodescendentes, além de colaborar para a diminuição das dificuldades existentes – e que são muitas – para que a obrigatoriedade do ensi- no de História da África, da cultura africana e afro-brasileira, previstas nas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, sejam incentivadas, potencializadas, cumpridas, colaborando dessa forma para diminuir preconceitos que insistem em existir. Além disso, relaciona teóricos da memória e patrimônio e pretende analisar os resultados de uma aula de campo com alunos da Educação Básica pelo roteiro da região da Pequena África como meio potencializador da educação patrimo- nial, da educação para as relações étnico-raciais, da construção da história e me- mória da cultura africana e afro-brasileira. Utiliza teóricos da memória como Mau- rice Halbwachs, Mário Chagas, Verena Alberti e Michel Pollack, além de autores decoloniais como Catherine Walsh, Boaventura Souza Santos, entre outros.
Construindo possibilidades de ensinar e aprender histórias múltiplas
Temos por opção o caminho de romper com o que Boaventura Souza Santos (2010) chama de linhas abissais, invisíveis, mas que não permitem que enxerguemos o outro lado, onde está a maioria da população mundial, toda a gama de excluídos sociais e econômicos.
Para que possamos ampliar de fato a garantia de acesso ao maior núme- ros de bens e direitos básicos, propomos como um dos caminhos a educação pelas memórias historicamente silenciadas por entender que a memória possui uma dimensão educativa que pode empoderar grupos sociais subalternizados. Porém o que garantirá o processo como mais democrático e igualitário é como e quais memórias serão construídas e quais histórias serão narradas. Daí a impor- tância da busca por novos saberes, rompendo verticalizações históricas, buscan- do novas epistemologias que nos desafiem a produzir conhecimentos históricos com outras metodologias, com outras perguntas, decolonizando pensamentos, conhecimentos e mentalidades. A isso Santos (2004) chama de justiça episte- mológica ou justiça cognitiva, que para ele são a mesma coisa.
A decolonialidade questiona as estruturas sociais, políticas e epistemo- lógicas da colonialidade, que mantêm padrões de poder baseados na racializa- ção, no conhecimento eurocêntrico e na inferiorização de alguns seres huma- nos como não humanos. Embora Santos (2004) aponte cinco lógicas mono- culturais legítimas na modernidade e excludentes de todos os diferentes – os outros – por não qualificação ou reconhecimento, neste trabalho interessa-nos entender como a monocultura do saber e do rigor científico pode ser transfor- mada em ecologias de saberes na luta por justiça social e epistemológica.
Precisamos pensar que os conhecimentos e as práticas sociais e cultu- rais se configuram em mosaicos de lutas sociais de forma a não as separar dos sujeitos. Resistir cartografando novas perspectivas, novas formas de olhar para as temáticas de pesquisa, buscando novos autores – especialmente latino-ame- ricanos ou africanos –, outras epistemologias, dialogando com outros espaços de produção de conhecimentos (países do eixo sul, países latinos, universida- des fora do eixo do sudeste brasileiro, entre outros caminhos).
Como opção política apostamos na possibilidade de fazer da(s) memória(s) instrumentos de luta das populações marginalizadas, assumindo-se essas como protagonistas e autoras dessa mesma construção nos movimentos sociais em que estão imersas e fazendo da escola um espaço vivo e das aulas de História espaços não só de resistência, como de (re)existência (MIRANDA, 2017).
Considerando que nossa opção pelo trabalho com memórias outras é uma opção política, não nos interessa sobremaneira a memória do poder (CHA-
GAS, 2000) e sim o poder da memória como instrumento de luta em prol do empoderamento de grupos sociais subalternizados numa perspectiva intercul- tural crítica. Essa concepção de memória que vai contra a corrente, que desli- za por outros territórios e outras concepções de poder, talvez nos ofereça cha- ves de compreensão e atuação na busca de conquistas sociais mais democráti- cas, na possibilidade real de maior justiça social, política, cognitiva e econô- mica.
Memórias outras, ou seja, memórias contra-hegemônicas são marcos referenciais nos territórios populares que visibilizam memórias subterrâneas (POLLACK, 1989), descortinando riquezas culturais, lutas de trabalhadores por terra, trabalho, educação, saúde, melhores condições de vida e qualidade de sobrevivência. Tais memórias “pós-abissais”, parafraseando Boaventura, são aquelas que estamos querendo revelar.
Concluindo, é assim que entendemos que essas reflexões podem cola- borar para a divulgação de conhecimentos libertadores e contra-hegemônicos em prol de uma sociedade mais justa e igualitária. Tais conhecimentos podem e devem ser divulgados quer em ambientes acadêmicos de salas de aula da Educação Básica, como da formação de professores, ou em espaços educati- vos não formais junto aos movimentos sociais, podendo contribuir para a am- pliação da cidadania cultural (SANTOS, 2010).
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SANTOS, Boaventura de Souza. Um ocidente não-ocidentalista? A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de pascal. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENE- SES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra, Portugal: Almedina, 2009. p. 446-486.
WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insur- gencias político-epistémicas de refundar el Estado. In: Tábula Rasa. Bogotá – Colôm- bia, n. 9, p. 131-152, julio-diciembre 2008.
WALSH, Catherine (Ed.). Lo pedagógico y lo decolonial: entretejiendo caminhos. Pe- dagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I. Qui- to, Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2013. p. 23-68.
1 Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e do Mestrado Profissional em Ensino de História (Profhistória) da Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-doutor pelo Instituto Superior de Ciências da Educação – ISCED. Doutor em Educação pela Unicamp e Mestre em História pela PUC-SP. Membro dos grupos de pesquisa Pameduc (UFSC), Rastros (USF) e Kairós (UNICAMP). E-mail: [email protected].
2 Professora Adjunta de História do CAp/ UERJ e de Estágio Supervisionado de História da UERJ, do Programa de Pós-Graduação de Ensino em Educação Básica (PPGEB) do CAp/ UERJ e do Mestrado Profissional em Ensino de História (Profhistória – UERJ). Pós-doutorado em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). E-mail: [email protected].
3 Estudiosos da decolonialidade apontam que a colonização aconteceu e continua acontecendo em várias frentes, como a colonialidade do poder, a colonialidade do ser, a colonialidade do saber e a colonialidade da natureza. Para tal conhecimento sugerimos a leitura de produções anteriores dos autores Memórias outras, patrimônios outros e decolonialidades: contribuições teórico-metodológicas para o estudo de História da África e dos afrodescendentes e de história dos indígenas no Brasil (ARAUJO; PAIM, 2018); Para além das leis: o ensino de culturas e histórias africanas, afrodescendentes e indígenas como decolonização do ensino de História (PAIM, 2016).
Consciência e Educação Históricas
Estevão Chaves de Rezende Martins1
Educação histórica é um processo dinâmico de aprendizagem e de vi- vência da experiência humana do tempo concreto com dois polos: o ensinar e o aprender, com uma relação de impacto recíproco tanto para quem “ensina” como para quem “aprende”. Isso se deve ao fato de que a construção da cons- ciência história de todo agente racional humano é constante: aprende, rea- prende e se reconstitui a cada momento presente. Tal momento presente é um contínuo entre o momento passado e o momento futuro, cuja domesticação reflexiva é necessária ao agente, para que ele se torne senhor de si e de seu tempo. A aprendizagem histórica é própria a todo e qualquer agente racional humano, independentemente de sua eventual prática profissional. Pensar a si e seu mundo no fluxo do tempo, ou seja: refletir historicamente, é uma prática humana universal. Ninguém nasce em um mundo sem história. O modo de a interiorizar (pelo pensamento e na consciência) e de a exprimir reveste-se das características específicas de cada cultura historicamente constituída, em que cada pessoa está inserida. A diversidade cultural (e, eventualmente, o conflito entre culturas ao longo do tempo e em espaços distintos) nada retira ao modo de toda pessoa de conscientizar-se historicamente. Um intelectual europeu do século XXI passa por tal processo, assim como um índio americano do século XVI ou um escravo africano do século XIX.2
Consciência e sentido
Assim, todo agente racional humano busca atribuir sentido ao que faz e/ou àquilo pelo que passa. Isso ocorre no plano intencional: valores, ideias ou interesses, presentes, transmitidos e praticados no âmbito da respectiva cul- tura, fundamentam e orientam o agir. Esse contexto cultural está interiorizado, mais ou menos ampla e conscientemente, e precede, ao menos no plano lógico, o agir concreto de cada um. No plano interpretativo, que elabora sínteses articu- ladas de sentido para a existência de cada pessoa, há a mesma preocupação com o estabelecimento de um significado plausível para a memória enraizada (lega- do cultural enraizado) e para a memória ativa (prática do viver, concreta, no dia a dia). A memória enraizada está incluída no que se convenciona chamar de consciência histórica. Nessa consciência estão reunidos os elementos confor- madores da identidade, com os quais o indivíduo elabora e estrutura o tempo
da experiência vivida em tempo refletido como história. O elemento reflexivo é fundamental para a instituição do caráter histórico da consciência da ação no tempo (passado, como presente ou futuro).
No processo de formação dessa consciência, os processos educacionais (formais como informais) são decisivos. A memória recolhida e aprendida é assim objeto de análise e crítica no contexto do tempo de cada indivíduo, ‘atualizando’ o legado cultural que herda. Trata-se de uma crítica reflexiva, que se poderia chamar também de metarreflexiva. Por que metarreflexiva? Por- que nesse processo educacional, em primeira linha, o agente é confrontado com a experiência direta da vida prática no tempo, que se pode denominar experiência imediata individual. Esse indivíduo defronta-se também, entre- tanto, com o estoque acumulado de reflexões sistematizadas, organizadas em conceitos de segunda ordem, de natureza mediata, obtidos pelo aprendizado, pelo contato, pela convivência, pela tradição. Ao lidar com esses conceitos, o indivíduo reflete em um metanível. Esse é o nível em que o indivíduo pode contrastar as tradições refletidas que encontra com a experiência imediata e com os conceitos que elabora, mediatamente, sobre as mesmas vivências de tempo histórico – objeto dos conceitos propostos, ensinados, veiculados, me- diados por terceiros (por exemplo: uma narrativa no âmbito familiar ou a aula de um/a professor/a de História). Esses terceiros podem ser, pois, tanto quais- quer outros indivíduos com que se convive de modo espontâneo (a começar, usualmente, com os integrantes do círculo próximo da família) como os que atuam nos processos educacionais formais do ensino de História, por exem- plo, em meio escolar (em qualquer grau).
Em quaisquer dos casos, tem-se um esforço pertinaz por construir um tempo histórico em que a existência e a ação possuam sentido e produzam sen- tido. Pressupõe-se, no cotidiano, que tais sentidos sejam apreensíveis e compre- ensíveis. O sentido geral atribuído à memória histórica ou construído para ela desempenha um papel decisivo para três planos (interconexos) de identidade: 1) a de cada um, 2) a do grupo a que cada um pertence e 3) a da sociedade que cada indivíduo e grupo formam. Origem cultural, estratificação social, sistema de produção, linguagem, religião, organização e hierarquia e tantos outros elemen- tos consagrados nesse processo são definidos, delimitados, investigados, inter- pretados, estruturados, articulados, transmitidos, apropriados.
Memória, identidade, cultura
A memória e a identidade formam uma encruzilhada em que as diver- sas perspectivas do senso comum como do conhecimento científico se encon-
tram. História, psicologia, literatura, economia, sociologia, filosofia, antropo- logia e tantas mais concorrem, umas e outras, para que se constitua um feixe de fatores em cuja intersecção o sujeito reconhece a si e os demais o reconhe- cem. Nesse ponto focal, memória individual, tempo coletivo e espaço social associam-se para formar a cultura histórica com a qual a identidade se forja, consolida, atua e se mantém. A memória pessoal, associada à memória coleti- va inscrita na historicidade do espaço social em que cada indivíduo emerge, marca não apenas a identidade particular do sujeito agente, mas também a coletividade identitária com que cada um se depara e que cada um quer assu- mir, modificar, transformar e mesmo rejeitar. Há aqui a inserção em uma di- nâmica que se pode chamar, com Jörn Rüsen, de constante antropológica da cultura histórica.3 O que significa isso? Tal realidade é a de todos e a de cada um: a cada instante, todos os instantes precisam ser processados idealmente (ou o são, de fato) em um construto significativo que apelidamos de “histó- ria”. Passado, presente e futuro são fatores da cultura histórica, operados pela síntese ativa do agente racional humano sob a forma de cenário existencial, encontrado e produzido, da vida concreta, tematizado na reflexão e expresso na narrativa histórica.
Um desses cenários está exteriorizado na cultura histórica praticada na vida social no formato dos museus e em sua função sociopedagógica. Nos museus em geral, como nas exposições temporárias de cunho histórico, “vê-se” a História. A estratégia estética dos museus é também uma didática da cons- ciência histórica. A representação intelectual da memória e da consciência históricas é visualizada na perspectiva do ideário presente nas mentalidades e nas organizações sociais que se pensam e se expõem de acordo com critérios de escolha de temas, objetos, textos e espaços. Encenar a História como um espetáculo – como algo que se deve ver, além de saber – é um procedimento que requer reflexão teórica e metódica, pois se articula com os âmbitos dos gostos, das afinidades, das afetividades, das emoções.
A conjuntura da construção da identidade e da especificidade dos gru- pos sociais mediante a elaboração da consciência histórica toma, na decisão de fazer museus e de preservar indícios [como no conservacionismo arqueoló- gico], uma dimensão que mescla critérios político-administrativos e posições teórico-metodológicas. O aspecto da capilaridade didática de olhar a História e de a fazer ver, no meio cultural de dada comunidade, é um dos elementos mais desafiadores para o campo epistêmico da História-ciência, pois a faz in- teragir com o espaço de sua efetividade generalizada na sociedade.4
O mesmo vale para as exposições temporárias, frequentemente conexas com efemérides clássicas (por exemplo de uma efeméride por vir: o bicentená-
rio da proclamação da Independência do Brasil em 2022) ou ligadas às micro-, meso- e macrohistórias grupal, local, regional ou nacional. Dois exemplos refe- rentes ao Brasil que recobrem esses quatro níveis: a escravidão e a imigração.
No quadro de longo prazo dos museus e no quadro de curto prazo das exposições inserem-se três das múltiplas dimensões da cultura histórica: a po- lítica, a científica e a estética. Ou seja: o poder, a verdade e a beleza, indispen- sáveis à qualificação social de histórias que tenham por escopo constituir-se como referência na realidade concreta dos agentes. Ver a história exprimiria, assim, a sintonia suposta (e esperada) entre o mostrado (ou escrito) e o obser- vador (ou leitor), na medida em que essas três dimensões encontrariam, na exposição e na compreensão, inteligência comum. Na dinâmica do curtíssimo prazo da relação pedagógica em sala de aula, a interrelação entre tais dimen- sões é constante.
O componente histórico, pois, como elo de coesão e estruturação da consciência de si, aparece como interesse primordial da constituição do agen- te racional individual e socialmente.
Independentemente de todas essas operações serem efetuadas por um “leigo” ou por um “profissional”, elas são fundamentais, originárias, estrutu- rantes da especificidade histórica do agente racional humano. Como bem lem- bra George Steiner, “a dignidade do homo sapiens é justamente isto: a realiza- ção da sabedoria, a busca do conhecimento, a busca do conhecimento desinte- ressado, a criação da beleza”5.
Humanismo – categoria universal
Tal perspectiva humanista central já orientava o ideal iluminista da se- gunda metade do século XVIII e do início do século XIX. Destaca-se nesse contexto o pensamento de Wilhelm von Humboldt, cujo projeto de educação para a humanidade constitui um marco para o curso da reflexão histórico- filosófica subsequente.
O mundo em que atuam os irmãos Wilhelm e Alexander von Humboldt corresponde a transformações excepcionais nos planos político, econômico, social e cultural. Suas vidas testemunham e acompanham a Revolução Fran- cesa, o reordenamento do mundo europeu, o vendaval napoleônico e a restau- ração promovida pelos Congressos de Viena sob a batuta de Metternich.6 O ambiente intelectual na ‘nova’ Europa era de todo favorável também a que se repensasse o projeto de formação do cidadão em um mundo transformado. O mundo viu-se repetidas vezes confrontado com a necessidade de se reinventar: após o vendaval napoleônico e a reinvenção do século XIX, a 1ª Guerra Mundi-
al, a ascensão dos fascismos, a 2ª Guerra Mundial, a Guerra Fria, a queda do Muro de Berlim, a globalização econômica, a anonimização da humanidade pela desenfreada revolução digital e tantas outras situações em diversos graus de gravidade, como em 2020 o desnorteamento de muitos perante a dura cons- tatação de uma dura obviedade: seres humanos são mortais, e a negligência política e econômica ao lidar com as sociedades tem um elevado preço moral e em vidas. O desvio doloso da função da consciência histórica, operado por inúmeros titulares de cargos públicos, contrasta com a elevação e o empenho demonstrados por outros tantos responsáveis políticos pelo mundo afora, com relação à dignidade da pessoa humana e a seus direitos, como a educação histórica bem efetivada pode consolidar.
Assim, refletir sobre quem é – ou deve ser – o ator da realização do homem, da sociedade, do Estado, do mundo enfim, continua, por assim dizer, na ordem do dia. Tais esforços já não são recentes à época dos Humboldts – a segunda metade do século XVIII já fora pródiga em reengenharias. Assim, uma das questões que se põem aos (re)organizadores do Estado no início de século XIX é: que homem, que cidadão deve ser, tornar-se, agir? Que pessoa se deve formar, instruir, cultivar, constituir, desenvolver?
Essa questão pode ser abordada (e respondida) de múltiplas maneiras. Há quatro pistas sobre como ela pode ser tratada. A primeira dessas pistas é a ideia central que animou o pensamento e a proposta de Humboldt: educar para a humanidade. A segunda aponta alguns elementos das ambiguidades que en- volvem o termo ‘universidade’ – mesmo depois do projeto humboldtiano ou, quem sabe, principalmente depois dele – e as crises que parecem ser a regra do existir das instituições que se fundaram, legítima ou apenas alegadamente, em seu nome. Mas não se trata apenas da universidade como ambiente de formação aprofundada para os que disponham de um cabedal prédio adquirido na infân- cia e na primeira juventude. Com efeito, a introdução gradual da obrigatorieda- de de frequentar a escola7, de ser alfabetizado e de conhecer o contexto de sua sociedade e de sua cultura, como de sua língua e de seus costumes, mudou o horizonte de referência, mesmo se lentamente, para os integrantes de dada sociedade. As escolas, mediante um roteiro abrangente, que não dependesse da iniciativa religiosa (própria à instrução paroquial pelo uso da Bíblia, de longa tradição, e sob controle do respectivo corpo clerical), passam a ser o ambiente coletivo de acesso generalizado (ao menos na intenção) ao conhecimento, à prá- tica e ao desenvolvimento do modo humano de ser. Tal modo somente parece poder efetivar-se e engendrar uma consciência histórica autônoma.
A terceira pista de possível resposta sugere um paralelo, no Brasil, com um contemporâneo de Humboldt, tendo semelhante engajamento no espaço
público de criação institucional: José Bonifácio de Andrada e Silva. A quarta pista remete ao papel da razão esclarecida no programa da consciência históri- ca. Algumas indicações dessas duas pistas vão mais adiante.
Importa precisar que ‘ser humano’ aqui é entendido em dois sentidos:
- a) como humanidade, a totalidade dos seres humanos concreta e empirica- mente existentes; b) como aquele que exprime a quinta essência do ser huma- no, sua substância, sua diferença específica. Entendida em ambos os aspectos, humanidade é um conceito que passou a ser articulado de forma irreversível na virada do século XVIII para o XIX com os conceitos de cultura e educação. O ser humano inteiro (integral) é uma razão unificada em um todo fascinante das mais diversas faculdades e disposições. A formação perfeita, multiabran- gente e harmônica para constituir o todo é o ideal da humanidade.8 A relação harmoniosa da unidade pessoal do homem é definida como decorrente da ação educativa e da autoformação. A educação/formação9é assim considera- da como um processo infinito de desenvolvimento das próprias possibilidades do homem que se enraíza na capacidade humana de aperfeiçoar-se e desdo- bra-se gradativamente ao longo do tempo. Vista assim, a educação enuncia-se como o fim mesmo da existência humana; o ser humano que se educa é fim de si mesmo – a autoeducação é a meta máxima.
Essa concepção do processo de formação do ser humano em ser huma-
no (uma espécie de devir existencial da condição originária de ‘ser inculto’ [potencialidade humana] à de ‘ser cultivado’ [efetivação humana cultural]) articula com clareza três dimensões da questão: a) a formação, mais ampla que o processo escolar de ensino, que dela faz obviamente parte; b) a humani- dade enquanto coletivo de sujeitos individuais concretos, em cujo meio cada indivíduo é; c) a humanidade como modo humano de ser individual e social- mente.
Uma concepção desse tipo, enquanto tal, não inclui a multiplicidade cultural e a diversidade de opiniões. Ambas estariam no plano da realidade histórica, aquém do projeto da humanidade em si. A humanidade ‘universal’ constitui uma ideia regulativa, um horizonte de referência e de expectativa, em cuja perspectiva a história concreta precisa ser conhecida.
A ideia de formar para ser humano trabalha com a noção de “ser huma- no ideal”, de um “ser humano segundo um figurino substantivo”, para cuja realização a escola “universal” dos direitos humanos serve de ambiente. A dignidade máxima do ser humano está não em ser “útil”, mas em ser “forma- do” (pleno). É por esse modelo que Wilhelm von Humboldt se pronunciara em 1792: “Não tenho ambição alguma que se pareça com talento, saber, eru- dição; mas gostaria efetivamente de pretender ser um homem, um homem
formado”10. “Formação” não quer dizer aqui um mero produto do “isolamen- to” ou da “liberdade” de uma individualidade privilegiada, mas se constitui, enquanto todo maximamente harmonioso e mais bem proporcionado de to- das as faculdades humanas, no projeto da sociabilidade histórica.11 “Forma- ção” como unidade originária na compreensão de si próprio e do mundo con- trapõe-se ao sintoma da “unidimensionalidade” do homem na cultura moder- na – diagnosticado como ameaçador12; contrapõe-se igualmente a qualquer forma de dominação do ser humano, a qualquer forma de heteronomia
No conceito de formação assim entendido está um desafio à realidade social e estatal tanto quanto um alto grau de consciência dos ‘formados’ com relação à sua função social. Com mais perspicácia do que seus contemporâneos. Para preservar a formação racional requer-se uma classe de indivíduos privile- giada pelo destino, livre de pressões instintivas, dotada de força e de acuidade de espírito. A classe dos formados, que emerge pela formação crítica integral- mente livre, está vocacionada a fomentar o ideal da formação humana, inde- pendentemente de estar no serviço público, na ciência, na arte ou em que pro- fissão for.
Universalidade e universidade
Ensino de História não se restringe ao mundo da escola básica. Ensino de História estende-se ao espaço universitário – obviamente um tipo de escola
– e insere-se também no espaço social amplo em que todo e qualquer indiví- duo se constitui e age.
Duas características da universidade, ao menos, parecem ter-se assim consolidado. Uma, compatível com a perspectiva humboldtiana, refere-se ao fato de que a instituição acadêmica afinal deve distinguir-se pela excelência da pesquisa. Dessa decorreriam a possibilidade do ensino e a difusão do saber. A autoridade do conhecimento é assim o fundamento do poder do homem culto e cultivado. Outra, menos compatível com o que imaginou Humboldt, é a progressiva e expansiva tendência de as instituições de ensino superior serem cada vez mais de ensino e cada vez mais escolares – ou seja: ensinar mais e formar menos.
A instrumentalização do sistema escolar permaneceu ao longo do sécu- lo XIX, mesmo se houve uma transferência de mãos. Dois fenômenos mere- cem ser lembrados para permitir uma contextualização pertinente das ques- tões que afloram no século XXI, em contraste com as concepções enunciadas no início do século XIX. O primeiro desses fenômenos é o progresso constan- te da escolarização, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. O au-
mento do público letrado e a crescente participação de mais e mais grupos sociais dos movimentos políticos são um dado importante, que não escapa à observação dos governantes.13 Se as igrejas (católica principalmente, mas tam- bém as demais confissões cristãs) já há muito haviam percebido a importância do controle sobre o sistema escolar e de seu efeito sobre o ideário e os ideais dos homens, o Estado dá-se conta disso no século XIX. Tem-se aqui o segun- do fenômeno: a transferência da escolaridade do campo confessional teológi- co para o campo confessional republicano, leigo. A confessionalidade residual de muitas monarquias do século XIX na Europa como no Brasil não manteve, no longo prazo, sua posição exclusiva.
Estão assim reunidos ingredientes de certa ambiguidade que permeia o espaço social das universidades. O programa da independência crítica absolu- ta, do poder analítico da razão, da compulsão criativa da descoberta do mun- do, do desvelamento das regularidades e das leis da natureza, apanágio do sacro pagode da pesquisa universitária, está também ele exposto ao contradi- tório das estruturas de poder, das rivalidades sociais, das vaidades pessoais, dos interesses do Estado. O Estado, instituidor primeiro e mantenedor majori- tário da universidade, firma sua posição em manter um olhar de avaliação e controle da atividade universitária. Na universidade, haveria funcionários pú- blicos assim como em qualquer outra repartição. A expansão da universidade de iniciativa particular, nos moldes de empresa privada, representa uma cunha debilitadora do controle estatal. Nos países da Europa, em geral, ou seja no ambiente relevante para a concepção humboldtiana, o espaço universitário é quase que exclusivamente estatal. O espaço público, porém, considera-o mais como mecenato do que como obrigação de Estado.
Na distinção entre público e estatal aparece uma ambiguidade mais. Regra geral, o espaço público universitário considera-se intérprete e porta-voz da expectativa – quando não das exigências – da “sociedade” como um todo. Não raro, o integrante da estrutura universitária contrapõe-se ao Estado em nome dessa representação. E frequentemente com ótimas razões. Mas a con- traposição crítica não elide a ambiguidade e a crise de relacionamento que dela decorrem. Se Humboldt queria que a formação universitária ensejasse a realização plena do homem, a universidade efetivamente instalada não corres- ponde integralmente ao sonho. O Estado, seja diretamente por suas próprias instituições, seja indiretamente pela autoridade de regulação e de controle da iniciativa privada, opõe norma e padrão à autonomia e à criatividade.
Como no tempo de Humboldt, a questão gira, pois, em torno do corpo de pesquisa e ensino, comumente chamado de ‘docente’. A proposta de liber- dade de cátedra, de conexão entre pesquisa e ensino, surgiu no contexto de um
mundo que emergia vagarosamente da longa tradição de tutela do Antigo Re- gime e do duplo vendaval revolucionário e napoleônico. Rapidamente, o espa- ço acadêmico tornou-se sinônimo de uma dupla imunidade: a do pensamento independente e a do território livre. Ao menos no imaginário de seus habitan- tes. Se a primeira imunidade é de cunho virtual, sem deixar de ser desbravado- ra e por vezes – diriam alguns: principalmente – incômoda, a segunda é pro- blemática para o Estado. Não resta dúvida de que nos deparamos aqui com mais uma das incontáveis ambiguidades que se instalaram no mundo univer- sitário ao longo de dois séculos. Até que ponto se poderia praticar a autono- mia crítica da cidadania virtual do conhecimento científico independente – na linhagem de Humboldt – quando, institucionalmente, o Estado é o principal sustentáculo do sistema acadêmico (e escolar, em geral)? Ainda mais: a auto- nomia parece menos garantida quando é a livre iniciativa econômica do mer- cado que promove a fundação de estabelecimentos de ensino (e raramente de pesquisa).
Com efeito, o sistema produtivo da economia põe os cidadãos diante de uma ambiguidade adicional. A realidade concreta das oportunidades de tra- balho e de renda depende da capacidade instalada de produção e comerciali- zação de bens e serviços, sobre cujo ritmo ou direcionamento o impacto da descoberta científica ou da formação de profissionais ‘diplomados’ é lento e gradual, mesmo se indispensável. As instituições universitárias veem-se des- sarte contrapostas a um chamamento dúbio: formar para o mercado ou for- mar para a sociedade. Essa dubiedade parece ser uma constante dos últimos 150 anos, acentuada em períodos de escassez ou de crise econômico-financeira. Além disso, o mercado tem interesse em pesquisa na medida em que a inovação tecno- lógica e o domínio da produção de conhecimento, tanto como o controle do fluxo de informação habilitam o concorrente econômico a vender mais eficaz- mente seu produto ou serviço. Por via de consequência, o sistema de formação superior fica facilmente exposto à instrumentalização econômica tanto como à política. Se essa última parecia mais imediatamente clara a Humboldt, a primei- ra ainda não se havia constituído como, digamos assim, fator de risco para a educação humana. E constitui-se em desafio permanente para os profissionais de História no mundo contemporâneo.14
A terceira sugestão de abordagem da questão de educar para a humani- dade referiu-se a José Bonifácio de Andrada e Silva, um ‘homem culto’, de certo modo predecessor, em terras brasílicas, da ideia universal da formação do ser humano.
Contemporâneo de Humboldt, José Bonifácio de Andrada e Silva nas- cera em Santos em 1763. Passou a maior parte de sua vida fora do Brasil.
Integrante e líder do grupo chamado de coimbrãos, facção política que advo- gava a independência do Brasil da metrópole lusitana. A expressão “coim- brão” era empregada para designá-lo, pois o grupo se caracterizava por ser composto de pessoas de mais maturidade e de experiência cosmopolita, em sua maioria saídos da Universidade de Coimbra, atuantes na administração e na política do império luso-brasileiro.
José Bonifácio é um dos poucos representantes da geração de brasilei- ros que, adulta, pôde acompanhar a transformação da Europa nos períodos da Revolução Francesa e de Napoleão.
Que paralelo se pode estabelecer entre Humboldt e José Bonifácio? Dois pontos merecem destaque. O primeiro é que ambos estão imediata e ativa- mente ligados ao processo de construção ou reconstrução de um Estado. Prús- sia e Brasil, por certo em circunstâncias diferentes, organizam ou criam seu quadro institucional e as possíveis condições de sua consolidação. O segundo ponto diz respeito à preocupação dos dois políticos com o sentido, a qualida- de e o objetivo da formação humana. Se Humboldt dá forma mais elaborada a suas propostas e exerce – tão ou mais efemeramente do que José Bonifácio – funções públicas de relevo, José Bonifácio deixou uma vasta série de escritos, conhecidos como Projetos para o Brasil15, nos quais lança análises e propostas para a organização do país de sua produção econômica, de sua arquitetura política e também para a formação de sua sociedade.
José Bonifácio faz um juízo pouco clemente acerca da realidade social do Brasil em sua época. Lida-se, para ele, com um “povo ignorantíssimo” (p. 177), no que Portugal e Alemanha não se diferenciam, pois em ambos os paí- ses os contrastes sociais são extremos.
É certo que o Portugal a que se refere José Bonifácio a fortiori inclui os brasileiros, cujo caráter é assim descrito: “entusiastas do belo ideal, amigos da sua liberdade, e mal sofrem perder as regalias que uma vez adquiriram” (p. 183). Se os brasileiros são “ignorantes por falta de instrução”, são, por outro lado, talentosos, imaginativos, inovadores, generosos. Mas a cada característi- ca positiva José Bonifácio contrapõe uma restrição: a generosidade é turvada pela bazófia, as grandes ações pela preferência pelo pouco esforço. Os comen- tários de José Bonifácio vão claramente no sentido da imagem do brasileiro indolente, calçado no regime de facilidades da escravidão (p. 184), e intrigante [“Falsidade e dissimulação fazem o caráter geral dos brasileiros – curiosos e inquietos, mas não ativos, nem aplicados” (p. 188)]. O juízo andradino é duro também em termos comparativos com outras regiões da América Latina: “No Brasil, as ciências e boas letras estão por terra, tudo o que interessa é [ilegível] vender açúcar, café, algodão, arroz e tabaco. Que diferença a esse respeito
entre as cidades do Brasil e a do México, Havana, Lima, Santa Fé, Quito, Popayán e Caracas. Só a cidade do México tem a Escola de Minas, a Acade- mia de Nobres Artes, o Jardim das Plantas, a Universidade, uma gazeta de literatura” (p. 189). A simples leitura permite de imediato constatar que José Bonifácio chama a atenção para os elementos de formação e cultura científica que distinguiriam os centros de referência dos espaços de colonização espa- nhola (sem precisar referir-se a qualquer processo de independência política). É nesse plano que se situa sua referência comparativa. Poder-se-ia dizer que, comparativamente, os brasileiros estão em posição desvantajosa por carência de formação, educação, instrução.
Sua conclusão não poderia, por conseguinte, ser outra: é imperiosa a formação dos cidadãos em valores, letras e ciências. Sem essa formação, os “bons cidadãos, zelosos e instruídos” deixariam de poder formar “lentamente um bom governo” (p. 230). Constata-se que José Bonifácio não situa a ques- tão da educação para a humanidade no plano filosófico, como faz Humboldt. Sua preocupação é de caráter pragmático. Seu interesse está na meta da orga- nização do Estado, para cujo bom governo e para a formação de cuja socieda- de determinados cidadãos têm de estar adequadamente preparados.16 Assim, insiste explicitamente que, “para evitar revoluções e melhorar progressivamente os governos, cumpre que as diversas classes da nação se instruam e se morali- zem em razão inversa desde a nobreza até a plebe” (p. 175). Percebe-se com clareza que a motivação é de cunho político e que para sua perspectiva a classe instruída tem por missão manter em mãos firmes as rédeas do poder para que não ocorram desvios (“revoluções”) de gravidade comparável com a Revolu- ção Francesa e, mais diretamente, com o terror, o que representaria a perda de controle do Estado.17
A ausência de bibliotecas e de imprensa no país, fruto da política obscu- rantista de dominação administrativa e econômica portuguesa, sobretudo de- pois da Viradeira e da devassa e repressão da Inconfidência Mineira, é um dos fatores que preocupa José Bonifácio: “Em cada governo ou capitania deve haver uma livraria pública e uma tipografia” (p. 301). Em suma: “Para aumento do império do Brasil […] [importa] … 11º) cuidar da educação jurídica e científica”. José Bonifácio não é certamente o único de sua geração a exprimir tais preocu- pações. Mas oferece um paralelo marcante com Humboldt, inclusive no que diz respeito às comparações com a experiência internacional e com os progressos relativos dos países cujo nível de competitividade industrial, agrícola e comer- cial é proporcional à sua capacitação científica, tecnológica e política.
Se algumas instituições haviam sido fundadas logo na chegada da famí- lia real portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808, somente em 1827 fundaram-se
as duas primeiras faculdades de estudos jurídicos no país. E uma universida- de, no sentido da universalidade dos campos de conhecimento (mesmo se ape- nas intencionalmente), teve de esperar o século XX para abrir suas portas. Esses são sintomas claros da deficiência crônica do ethos metódico da produ- ção de conhecimento científico no Brasil, cuja tradição de pesquisa e inovação somente veio a beneficiar-se de fomento específico e ampliação significativa na segunda metade do século XX.
Consciência histórica e razão esclarecida (quarta sugestão de resposta)
O sentido do iluminismo – em uma dupla perspectiva: a do esclareci- mento enquanto projeção de luz, que afugenta as sombras, e a do esclareci- mento como processo de desvendamento, de explicação – tem, desde a defini- ção magistral de Kant em 1783, o matiz da liberação de uma limitação de que é culpado seu próprio autor/ator: o homem. Libertar-se de uma imaturidade, de uma menoridade – mesmo se culposa – é uma missão constante. A observa- ção de Kant não se restringe a um momento temporal determinado, mas se refere a uma situação intrínseca à condição humana. Essa situação é típica de todo e qualquer homem que deva chegar à idade da razão. Nela, é-lhe imperioso aprender a servir-se de seu entendimento sem a tutela de qualquer outro. Por esse motivo Kant, no ano seguinte, já podia responder à pergunta sobre se vivemos em uma época esclarecida com a afirmação: “Não, mas sim em uma época do esclarecimento”. Anos antes, no prefácio à Crítica da Razão Pura (1781), Kant já destacava que sua época é a da crítica, à qual tudo se deve submeter. Kant então alertava para o fato de que a religião com sua pretensão de santida- de e a legislação com sua pretensão de soberania não poderiam eximir-se do exame crítico. A expressão kantiana é de uma atualidade estonteante: nada pode pretender à consideração que a razão permite possuir sem passar por sua crítica livre e aberta.18
O que Kant sinaliza, no ponto alto do projeto esclarecido de emancipa- ção da razão e do entendimento humanos, era compartilhado por seus con- temporâneos. Em que consiste a atitude básica dessa reflexão emancipadora? Pode-se destacar três componentes fundamentais: a) o engajamento esclarece- dor, iluminador, desvelador; b) a atitude liberal-democrática; c) a cientificida- de rigorosa e produtiva. Aos três componentes é comum a dimensão histórica. Na medida em que nenhum agente racional humano nasce em um mundo sem história e que toda sociedade é historicamente concreta, a consciência histórica e a cultura que a ela corresponde desempenham um papel decisivo na concepção do tempo, da origem do ser humano, de sua evolução e das
metas e critérios que organizam seu agir. Assim, a perspectiva estrutural histó- rica é fundamental. A investigação histórica fornece, caso a caso (e comparati- vamente), os elementos empíricos que identificam os agentes, seus agrupa- mentos, suas formações sociais, seus componentes mentais, suas opções inte- lectuais, suas decisões políticas, suas formas de produção econômica, seus modos de institucionalização estatal. Organizados teoricamente em uma ex- plicação compreensiva da sociedade, esses elementos servem de rede catego- rial de referência para a análise e a crítica dessa mesma sociedade. A historio- grafia, por conseguinte, exerce uma função social crítica que esteia o exame do ser humano e de suas circunstâncias, e não apenas dessas.
O esclarecimento objetivado pelas Luzes setecentistas, pois, é uma tare- fa constante, cuja meta última é a libertação da pessoa de quaisquer coerções, de preconceitos tradicionais e de dominação ilegítima mediante educação, crí- tica pública e debate livre que banissem a ignorância, a superstição e a intole- rância. Para lá chegar, é indispensável o recurso ao uso maduro da razão como reguladora de todas as relações privadas e públicas. Sem identificar-se neces- sariamente com os projetos concretos de sua época, a proposta iluminista arti- cular-se como mola propulsora da modernidade, em que crítica e utopia se completam. Como escreveu Nicolai em 1806, a História porta o facho do Ilu- minismo, pois sem a História o entendimento humano é cego, como afirmava Christian Thomasius, um dos “iluministas precoces”, cuja obra foi uma das fontes de formação de Kant e de sua geração.19 O espírito das Luzes informou o interesse social e científico pela História, em particular no aspecto da crítica da tradição e da sensibilidade individual e coletiva quanto à mudança, à edu- cabilidade, ao aperfeiçoamento.
Independentemente das interpretações restritivas, deterministas ou fa- talistas construídas ao longo do século XIX e fortemente politizadas durante o século XX, a posição iluminista trouxe para a ciência histórica moderna qua- tro inovações de monta: (a) a ideia de progresso – isto é, a humanidade, toma- da enquanto coletivo-singular (nas duas acepções enunciadas acima) – como referência de perfectibilidade constante do agente, de suas razões, de seus mo- tivos, de seus objetivos; (b) os métodos rigorosos de controle da validade das asserções, cujo fundamento são a pesquisa empírica e a intersubjetividade; (c) a perspectividade do conhecimento histórico – vale dizer: qualquer conheci- mento histórico é sempre construído (embora não inventado) a partir de certo ponto de vista (habitualmente teórico) e carece de sustentação; do que decorre a quarta inovação (d): a forma expositiva do conhecimento histórico deve ser sistematicamente argumentativa, demonstrativa. A ciência histórica fornece,
por conseguinte, com a densidade do controle metódico da teoria e da prática de pesquisa, a tessitura explicativa das necessidades de autoidentificação dos agentes racionais humanos mediante referência crítica ao presente, sem sub- meter-se, contudo, a esse ou deixar-se por ele instrumentalizar. Assim, “luzes” têm sempre a ver com conduta metódica, com racionalização, com disciplina, com autocontrole, estabelecendo ordem e contenção na espontaneidade. A crítica, que se exprime por uma dúvida metódica, deve começar, pois, pelo próprio “meio ambiente” universitário, que parece ter-se assenhoreado dela. A universidade contemporânea parece enfeitiçada pela descoberta do poder paralelo que imagina possuir com relação ao Estado, conquanto dependa dele em quase tudo. Tem-se a impressão de que se comporta como um aprendiz de feiticeiro que subitamente se vê ultrapassado pelas forças que desencadeou ao insistir na simplificação politizada das equações sociais. No século XX – em particular na segunda metade –, o itinerário dos estados e a fragilidade das sociedades levaram ao surgimento de um ceticismo crescente quanto à possi- bilidade de qualquer instituição que seja (e ainda menos indivíduos) poder conduzir evoluções socioculturais complexas e levar os homens (ou a huma- nidade, no sentido do coletivo singularizado) a uma práxis histórica efetiva como sujeitos conscientes da ação no tempo. A História, com sua chamada à consciência clara dos percursos reais dos homens e de suas sociedades, contri- buiria com o ‘roteiro’ de construção da identidade e com o ‘porto seguro’ nos vendavais das transformações valorativas, econômicas e políticas. Tal horizonte de referência orienta a consciência histórica e confere-lhe a elevada posição de tarefa educacional do ensino e do aprendizado da História em sua concretude.
Referências
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1 Professor titular emérito da Universidade de Brasília. PhD (Munique, Alemanha, 1976). Pesquisador CNPq 1A (História). Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (2009-2015). Vice-presidente da Comissão Internacional de História dos Parlamentos e Instituições Representativas (desde 2011). Contato: echar[email protected]
2 Ver dentre outros Serge Gruzinski. La pensée métisse. Paris: Fayard, 1999. Ed. brasil. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
3 Cf. Estevão de Rezende Martins. “Cultura, história, cultura histórica”, ArtCultura, Uberlândia, v. 14, n. 25, p. 63-82, jul.-dez. 2012.
4 Ver RÜSEN. Jörn, ERNST, Wolfgang e GRÜTTER, Heinrich Theodor (orgs.). Geschichte sehen. Beiträge zur Ästhetik historischer Museen. Pfaffenweiler: Centaurus, 1988.
5 A ideia de Europa. Lisboa: Gradiva, 2005. p. 65.
6 Klemens Wenzel von Metternich (1773-1859), diplomata e homem político austríaco, artífice da política imperial habsburgo, é herdeiro da extraordinária habilidade política e diplomática de Anton Kaunitz (1711-1794), chanceler de Maria Teresa, José II e Leopoldo II, de 1753 a 1793.
7 O primeiro Estado a introduzir o ensino obrigatório (a “escola obrigatória”, nesses termos, aparece na segunda metade do século XIX) foi o ducado alemão do Palatinado-Zweibrücken, em 1592, por decreto de seu titular, convertido ao calvinismo. Dos Estados de maior porte, a Prússia foi um dos primeiros países a decretar tal obrigação por alvará real de 28 de setembro de 1717. A norma prussiana de então previa um abono pecuniário por criança, em particular quando fosse necessária ao trabalho agrícola.
8 Der Streit des Philanthropismus und Humanismus in der Theorie des Erziehungsunterrrichts unserer Zeit. Jena, 1808, p. 190.
9 O vocabulário alemão a que me refiro aqui utiliza duas expressões consagradas: Bildung e Erziehung. A primeira será empregada na tradução “formação”, que encerra também parcialmente os sentidos de autoeducação, de acervo adquirido (na acepção de “pessoa de boa [ou má] formação”) e ainda de cultura em sentido amplo – sempre referida ao sujeito em si mesmo. A segunda aparece sempre como “educação”, em termos clássicos, ou seja: o processo de educar, ensinar, formar, tendo o homem como “objeto”. Não raros, os autores mesclam, no entanto, os dois sentidos. Assim, o mesmo sujeito pode ser considerado como agente de seu processo formativo e como seu próprio educador, como se outrem fosse.
10 Carta de 20 de julho de 1789.
11 W. von Humboldt: Ideen (ver nota 7), p. 107.
12 Cf. Herbert Marcuse. Onedimensional Man. Londres: Routledge, 2002 (ed. orig. 1964).
13 A república das letras, o mundo do conhecimento plural – em particular da segunda metade do século XVIII –, tal como o descreve e analisa Daniel Roche (Les Républicains des lettres. Paris: Fayard, 1988), exprime-se crescentemente ao longo do século XIX. As revoluções ditas liberais (entre 1810 e 1848) e os movimentos reivindicatórios de resgate da condição operária (notadamente o Manifesto Comunista de 1848) são suas expressões marcantes. A constitucionalização dos regimes políticos é outra forma destacada de progresso da concepção igualitária da cidadania, mesmo se lacunar, para além dos feitos da Revolução Francesa.
14 Uma análise sugestiva da incomensurabilidade da consciência histórica do e no presente encontra-se em Zygmunt Bauman. Liquid Modernity. Cambridge: Polity, 2000 [ed. br. Rio de Janeiro: Zahar, 2001] e Liquid Times. Living in an Age of Incertainty. Cambridge: Polity, 2007.
15 José Bonifácio de Andrade e Silva. Projetos para o Brasil. Miriam Dolhnikoff (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
16 Chama-se comumente essa posição de modernização conservadora em termos políticos. No início do século XIX, o passo para a independência é visto como modernizador. Que no Brasil isso se tenha feito no mesmo quadro econômico da produção fundada no sistema escravista e na continuidade política da lógica portuguesa de administrar (incluída a dinastia dos Braganças)
– malgrado resistências não negligenciáveis, em particular dos assim chamados ‘republicanos’ do Rio de Janeiro ou de Recife – configuraria a dimensão conservadora. Cf. Lúcia Maria B. Pereira das Neves e Humberto F. Machado. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999 (esp. p. 84-108) e Renato Lopes Leite. Republicanos e libertários no Rio de Janeiro 1822. São Paulo: Brasiliense, 1999.
17 Sobre a questão da antecipação de riscos políticos subsequentes à percepção no Brasil da Revolução Francesa, especialmente do Terror, pode-se ver Estêvão de Rezende Martins: “La révolution au Brésil: l’idée du nouveau et du définitif ” em X. Guerra (org.): Cahiers des Amériques Latines: L’Amérique Latine face à la Révolution Française – l’héritage révolutionnaire: une modernité de rupture. Paris: IHEAL, 1990. p. 81-89.
18 Cf. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? Berlim: Akademie-Ausgabe, vol. VIII (1912/ 23), ed. fac-similar De Gruyter, 1968, p. 33-42 (VIII, 35.1-8). Cf. Prefácio à Crítica da Razão Pura (edição de 1781), vol. IV, 9.33-35 [nota].
19 Cf. R. Koselleck. “Geschichte”, em Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch- sozialen Sprache in Deutschland. Edit. O. Brunner et al., vol. 2, Stuttgart: Klett-Cotta, 1975. p. 593-717.
Do chão da sala de aula: possibilidades para a história
das disciplinas no Ensino Superior a partir de Fernand Braudel
Aryana Lima Costa1
No texto que segue, a minha proposta é tomar uma experiência de reco- mendações para a sala de aula de História como um pretexto para fazer um exercício sobre as possibilidades que a história das disciplinas escolares, se trabalhada também no nível da educação superior, pode trazer para pensar- mos o campo da história da historiografia.
Para tanto, parti da conferência de Fernand Braudel no Instituto de Educação da Universidade de São Paulo (IEUSP) em 1936 (e publicada pela revista de História em 1955) e procurei pôr esse material em perspectiva a partir da leitura dos trabalhos de Evelyne Héry, que contextualiza as práticas de ensino de História na França desse período. Tentei ver a dimensão docente desses historiadores, cujo trabalho só temos o hábito de considerar por sua produção bibliográfica.2
O curso de História da USP nasceu em 1934, inicialmente conjugado com disciplinas da área de Geografia, e começou com as cadeiras de História da Civilização, História da Civilização Americana, História da Civilização Brasileira e Etnografia Brasileira e Noções de Tupi Guarani, além da cadeira de Geografia. A cadeira de História da Civilização desse curso é conhecida e lembrada por seus professores franceses, o mais famoso dentre eles sendo Fer- nand Braudel, que aqui permaneceu de 1935 a 1937, e que retornou por al- guns meses no ano de 1947. Outros também vieram ministrá-la (ao contrário da cadeira de História da Civilização Brasileira, sempre ocupada por professo- res nacionais): Émile Coornaert em 1934, o já citado Braudel, Jean Gagé de 1938 a 1945 e Émile Léonard como visitante em 1948.3 É a partir dessas pre- senças que a memória do curso de História da USP foi construída, sendo res- saltadas principalmente a relação próxima que os professores tinham com os alunos e suas aulas excelentes.
De como se ensinava nesse primeiro curso de graduação em Geografia e História há conjuntos diferentes de fontes. Há os depoimentos carinhosos dos
historiadores que foram tidos como dignos de ter suas lembranças transforma- das em fontes para essa história: Eduardo d’Oliveira França e Alice Canabra- va ressaltam o fascínio que Fernand Braudel despertava. Jean Gagé, por sua vez, pouco é lembrado. Aos professores de Geografia pouca ênfase é dada, uma vez que as entrevistas giram em torno do campo da História, que se con- solidou como área acadêmica separada daquela com que nasceu nas Faculda- des. Sobre os professores nacionais pouco é dito; as críticas aos professores brasileiros atêm-se principalmente ao campo da produção historiográfica. Mui- to embora alguns pesquisadores brasileiros já tenham contribuído para mati- zar essa memória disciplinar que sobrevaloriza a presença estrangeira no pos- terior desenvolvimento da historiografia brasileira, essa diferença qualitativa perdurou por algum tempo em nossas análises.
Em relação à abordagem teórico-metodológica, como já sugerido pela menção à história das disciplinas escolares na abertura do texto, pautei-me pelas contribuições de André Chervel (1990). A quantidade de obras (livros, revistas, boletins, registros de seminários e encontros, etc.) na literatura refe- rente a uma didática da História no nível da educação básica, além de maior, tem sido frequentemente publicizada e organizada em decorrência do cons- tante interesse dos pesquisadores da área, ao contrário do que ocorre com o material a respeito de uma metodologia do ensino superior de História.
É preciso ter em mente que realizar uma simples transposição das dis- cussões realizadas pela “história das disciplinas escolares” para uma suposta “história das disciplinas universitárias” ou “acadêmicas” seria inadequado. Cada um dos níveis de ensino detém função e características próprias, e uma investigação dessa natureza obrigatoriamente deve levar em consideração as especificidades da configuração dos conhecimentos universitários. Entretanto essa área de estudos abre uma seara interessante para compreender como a constituição do próprio espaço acadêmico – como os horários de aula, as ava- liações, a vulgata utilizada na bibliografia das disciplinas – interfere, seja retar- dando, seja abrindo espaço, no surgimento (e supressão) de áreas de interesse e na canonização de obras através de sua utilização em sala de aula, permitin- do a sua perpetuação através das gerações – constituindo, assim, tradições.
Gostaria de defender por meio desse exemplo que a partir da história da formação de profissionais de História é possível lançar um outro olhar sobre a circulação e produção de História, acarretando inclusive em um exercício teó- rico-metodológico para pensar novos caminhos no que concerne à historio- grafia, à história das instituições superiores de educação e da área de referên- cia enquanto disciplina acadêmica, expandindo uma história das ideias ou das
reformas educacionais. Investigar esses caminhos abertos por questões como as que a história social dos historiadores, das instituições ou da disciplina sus- cita permite tornar visíveis os rastros que constroem uma tradição, precaven- do a narrativa sobre a produção historiográfica nas universidades brasileiras das armadilhas da memória e de uma teleologia.
Sendo assim, para ilustrar esse argumento, nortear-me-ei pelas seguin- tes perguntas: sendo lembrado na história da historiografia brasileira por seus méritos na Escola dos Annales, qual seria, então, o diferencial do Braudel- professor? Haveria relação entre o Braudel que escreve e o Braudel que ensina?
Conselhos para o ensino secundário
Em setembro de 1936, Fernand Braudel pronunciou uma conferência que foi publicada sob o título de Pedagogia da História. A conferência fez parte de uma série de 14, igualmente pronunciadas por colegas seus de Faculdade num curso de extensão promovido pelo IEUSP durante os meses de setembro, outubro e novembro, a fim de “proporcionar aos interessados uma visão de conjunto das modernas metodologias no ensino das matérias que se incluem nos programas das escolas secundárias, segundo a legislação atual não só do nosso país, como de países estrangeiros” (ARCHIVOS, 1937, p. 120). O públi- co contou com alunos de vários cursos do Instituto, especialmente aqueles da Formação Pedagógica do Professor Secundário. Situando essa palestra no meio das outras que foram ministradas conjuntamente, percebemos que mais do que um destaque individual ou um interesse excepcional de Braudel pelo as- sunto pedagógico a abordagem de assuntos educacionais é, pois, uma iniciati- va institucional, em consonância com o público recém entrado na Faculdade de professores comissionados4 e com os objetivos do grupo que esteve na con- cepção da USP.5
A palestra está publicada na revista Archivos do Instituto de Educação (1936) e na Revista de História da USP (1955). A tomar pelo relatado nos Archivos, a palestra de Braudel foi dividida em dois dias, 1 e 4 de setembro6, cujos títulos correspondem às três seções em que está dividido o texto publicado: Concep- ção da História e Pedagogia da História e A Pedagogia da História adaptada à Civilização Brasileira (1936, p. 224). Na RH, ela está reproduzida como um texto só, contínuo, de forma que não é possível saber exatamente se esse texto foi lido separadamente e compilado para publicação ou se corresponde a so- mente um dos dias da conferência. Acredito, porém, que a probabilidade maior é que o texto publicado na revista corresponda mesmo às duas conferências em conjunto, pois os títulos das três subseções guardam semelhanças com os
assuntos tratados em cada um dos tópicos enumerados (Concepção, Pedago- gia, Adaptação ao Brasil), e que tenha sido reunido em um texto só para fins de publicação.
O artigo começa por uma abertura, em que Braudel agradece a oportu- nidade de falar sobre o assunto e delimita a sua fala: não vai perder tempo fazendo uma defesa da utilidade da História e discorda da necessidade de ser imparcial (parte do pressuposto de que a História é útil e de que é impossível não tomar partido). Uma terceira questão, sobre a formação para a cidadania, seria maior do que aquela do ensino de História e ultrapassaria os limites de tempo de sua fala.
Após essa abertura, a conferência é dividida em três partes: as duas pri- meiras versam sobre uma concepção de História e, por último, uma sugestão de adaptação da pedagogia à realidade brasileira. E desde já pulo do início para uma de suas conclusões no final de sua fala: o professor acredita que sua palestra tenha sido “excessivamente conservadora” e que gostaria de ter sido mais revolucionário e inovador (BRAUDEL, 1955, p. 20). Modéstia? Ou esta- ria sendo Braudel mesmo um conservador para os parâmetros de seu tempo, indo de encontro à memória celebrativa construída em torno de suas aulas (e do que lhe descende)?
Tomando a palestra como um todo, a pedagogia da História a que ali se refere gira em torno de dois referenciais: a figura do professor e o conteúdo de História, estreitamente entendido também como sua forma. As recomenda- ções fazem referência a uma determinada postura do professor diante do que deveria ser o ensino de História; sua pedagogia trata mais do dom que o pro- fessor possui de encantar seus alunos (como se diz que fazia) do que do aluno aprendiz de História, e a fala trata, então, de como motivá-los. Algumas de suas propostas são exemplos que ele próprio dá de suas aulas e que servem como ilustração para a reflexão sobre o conteúdo e a forma da narrativa esco- lar da História.
O grande fio condutor da fala é uma comparação: uma aula é uma via- gem, um romance de aventuras. Uma viagem longa e difícil que exige atenção, reflexão, esforço, compreensão e instrução (1955, p. 4). É remetendo-se sem- pre à viagem e ao romance que Braudel esclarece como deve ser uma aula de História. E é também o artifício que ele utiliza para a própria palestra: conduz o seu auditório em uma viagem pelo trabalho do professor:
Se se quiser apanhar um dos primeiros aspectos da pedagogia da História, o mais importante, imaginai-vos em uma sala de aula. O professor de História ocupa sua cátedra, digamos sua mesa de trabalho, ou, ainda melhor, seu
posto de comando. Começa sua lição, que, na realidade, é uma viagem lon- ga e difícil (…) (1955, p. 4).
Braudel narra a sua palestra da mesma forma como recomenda que seja uma aula de História (Imaginai-vos…. O professor ocupa…. Começa sua lição…). A sua narrativa começa, pois, na sala de aula, de onde mais adiante passa à casa do professor, onde esse prepara suas lições. Braudel pratica com seu auditório o mesmo que lhe recomenda, o que fará ainda repetidas vezes.
Essa viagem, a narrativa escolar, precisa ser antes de tudo simples. O mote da simplicidade norteia o formato de sua aula de História, e para alcan- çá-la, a primeira estratégia que recomenda é o foco nas grandes ideias que precisam ser discernidas das ideias secundárias. É exatamente o que Braudel faz, mais uma vez, com a sua própria fala: a simplicidade é aqui, sua primeira grande ideia, que ocupa quase toda essa primeira parte da palestra. E como ideias secundárias Braudel desfia suas estratégias. Começa pela repetição: “Não receeis ter de repetir uma ideia importante dez vezes se assim for preciso (…). O melhor a fazer no ensino secundário, sobretudo para o acomodar às pausas indispensáveis, é repetir o mesmo tema, variando a forma (…)” (1955, p. 5). E para exemplificar, o que faz? Usa repetidos raciocínios sobre o peso do mar Egeu no desenvolvimento da civilização helênica. Como se não bastasse, usa ainda o exemplo de Henri Pirenne, de quem diz que descrevia “dez, vinte vezes” o fechamento do mar Mediterrâneo na Idade Média pelos árabes e não cansava sua audiência (1955, p. 7).
Henri Pirenne é para Braudel um exemplo que sintetiza um só proble- ma para o ensino e para a historiografia: a comunicação de um pensamento, o encontro de sua forma ideal, para que seja entendido tanto nas escolas primárias como pelos eruditos.7 Nessa exortação, a busca da forma ideal do pensamento tem como objetivo “encantar o auditório, tanto o grande público como os círcu- los dos eruditos” (1955, p. 7). Em coerência com o seu apelido, aqui já fica evidente o quanto o príncipe charmant entende que o ensino de História tome a forma como conteúdo do saber histórico – a narrativa histórica é o conteúdo a ser ensinado a seus alunos não só pelos fatos que ela organiza, mas pelas estra- tégias que ela adota ao organizá-los. Quanto mais “simples” e “encantadora”, mais “bela” e mais eficaz ela se mostra em seu objetivo pedagógico.
A próxima estratégia que Braudel recomenda para atingir a simplicida- de está na seleção de conteúdos: tornar a história real para os alunos, concre- ta. Isso significa abdicar de termos muito abstratos (“Não direis a democracia, mas o povo. Não direis o Brasil, mas, conforme o caso, os brasileiros, o gover- no brasileiro”. 1955, p. 8) e fixar os fatos ao solo. O recurso à geografia é uma constante na instrução de Braudel, e aqui ele se mostra alinhado com o que a
geografia humana vinha trazendo de novidade na academia francesa. A cons- ciência disso é explícita em sua fala: “Numa época em que uma geografia inteligente nos proporciona os meios para indagar dessas coisas, não deixeis de o fazer” (idem).
A geografia a que recorre é sempre aquela em que a ação do ser humano só é entendida em sua relação com o meio circundante, uma sociedade que sofre e que age sobre o espaço que ocupa. Vejamos o primeiro exemplo de que lança mão, o da civilização helênica, antes mesmo de mencionar a importân- cia da geografia. Braudel, mais uma vez narrando ele mesmo uma aula, usa o mar Egeu como artifício para introduzir o assunto:
Penso, com alguns autores, que a base da civilização grega não é a Grécia clássica, mas o mar Egeu, este setor cheio de ilhas do Mediterrâneo. A Gré- cia, direi, então, não é a Grécia, propriamente, mas o mar Egeu, não a Gré- cia clássica, essa península da península balcânica, mas todo o mar que se estende das praias gregas às da Ásia menor, das costas da Trácia à grande ilha de Creta ao Sul (1955, p. 5-6).
O desenvolvimento do raciocínio segue na expansão da civilização gre- ga a partir da domesticação do mar Egeu, comparando-a com outras como a egípcia e sua relação com o Nilo. (p. 6). Além desse entendimento sobre o fator geográfico na explicação histórica, o espaço também é utilizado mais uma vez na forma: é preciso apresentar o cenário, a imagem dos lugares ocupados para o melhor entendimento dos espectadores.
Imaginai que na Europa, na velha Europa, um historiador proceda a estu- dos familiares a meu ilustre colega professor Taunay e queira apresentar um esquema das bandeiras (…). Imaginai ainda, graciosamente, que ele se es- queça do cenário brasileiro, de sua imensidão fantástica, da infindável corti- na das selvas, dos rios caudalosos, dos pantanais febris… Terá ele, assim, apresentado a verdadeira imagem dessa luta grandiosa contra a distância, contra o espaço, contra as forças hostis da natureza selvagem? (1955, p. 8-9).
Mais à frente, ele utiliza ainda outro exemplo em que o meio também é sujeito: a campanha da Rússia em 1812, “lance atraente para se ministrar, pelo cenário, com a planície russa, a neve, o frio e os personagens, o Impera- dor, a Grande Armée” (1955, p. 14, grifo do autor).
Continuando a recomendação para fazer viver a história junto aos alu- nos, Braudel trata da seleção dos sujeitos históricos que contam para sua expli- cação. E novamente, metatextualmente, Braudel pratica aquilo que professa. Talvez uma das passagens mais bonitas de seu texto, em que faz mais uma de suas analogias (para quem se lembra dos pirilampos e da espuma das ondas…), mais à frente Braudel diz a seu auditório que “da atividade histórica à atividade didática passa-se como de um curso de água a outro curso” (1955, p. 18). Lem-
bra que a historiografia já foi de tudo: crônica de reis, história de batalhas, fatos políticos e, à época, esforçava-se em dedicar-se às realidades econômicas e sociais do passado. Esses degraus, pelo qual passou a atividade historiadora, também precisavam ser respeitados na tarefa pedagógica.
Voltando à estratégia para a simplicidade, Braudel passa de um curso d’água a outro: fala dos grupos sociais (jesuítas, universitários alemães) e dos grandes homens (general Lapperine, Napoleão III, Rainha Hortênsia, Bismarck). Os indivíduos servem, para o professor, como janelas abertas para a profundi- dade da vida (1955, p. 10). Servem também como estratégia para atrair a aten- ção dos alunos: tem interesse em resolver o problema de como fazer reviver os grandes personagens (idem) e confessa o seu método.
O método de Braudel, no entanto, consiste, mais uma vez, em encon- trar a melhor forma de narrar, de encantar seu auditório (1955, p. 11-12). Pede a seus ouvintes que busquem em suas experiências ecos do que lhes fala para poder dar um “sopro de vida ao personagem (…) e abandoná-lo a quem me ouve, como um ser que irá viver fora de mim, entre o público e eu” (1955, p. 11). Braudel volta mais uma vez ao modo narrativo ao dar exemplos de explica- ções sobre personagens históricos (Napoleão III e Bismarck) e se regozija ao citar o exemplo de Thibaudet; os alunos pediam com frequência que repetisse suas histórias.
Essa primeira seção Braudel encerra retomando sua analogia ao roman- ce de aventuras. É o professor quem comanda o espetáculo da aula, e é ele quem decide se sua narrativa será uma comédia, uma burleta ou tragédia, con- forme a ocasião (1955, p. 14). Mas alerta: “é menos o homem que a obra o que pretendo apresentar e é nela que insistirei” (1955, p. 12). E pede: “por carida- de, não matem a história, não destruam a inquietação, a incerteza, o interesse de quem vos ouve” (idem). Braudel quer o drama, a ilusão da vida para man- ter a atenção do auditório, e para isso é preciso dar à narrativa os gêneros citados acima e prezar sempre pelo presente do passado. Isto é, descrever a mentalidade das pessoas, os cenários, com fins de criar empatia em seu públi- co. É isso que o mesmo faz ao desenvolver essa linha de raciocínio.8 Para ten- tar explicar como a fronteira da Polônia ainda se assemelha bastante à russa, Braudel compara: “Quem transpõe o Rio Grande, em face do Triângulo Mi- neiro, experimenta a sensação física de haver deixado a terra paulista?”.
Entendo por essa fala que a seleção de conteúdos nessa pedagogia brau- deliana obedece mais ao critério de sua eficácia junto aos alunos do que neces- sariamente a algum outro critério de representatividade ou legitimidade. Isso endossaria as suas palavras de abertura, em que não quer perder tempo em defender a utilidade da História. Para Braudel, o ensino de História vale pela
sua própria forma, “como uma especulação lícita e valiosa do espírito” (1955,
- 3). É um exercício intelectual, especialmente porque lembramos que para Braudel é preciso deixar de lado o ideal de formação para a cidadania. A His- tória está além da moral política e religiosa. Ela forma uma “certa maneira de ser, toda intelectual. E é só” (1955, p. 4). Não surpreende, portanto, que seu norte metodológico seja aquilo que cala aos espíritos. A Geografia serve para a História como forma de fixar os acontecimentos a um cenário na mente dos alunos; os grandes homens servem para criar empatia e melhorar a compreen- são de decisões tomadas; a forma da narrativa serve para manter a atenção. Os conteúdos servem à forma, pois é ela quem trabalha o intelecto. Pedagogia da História para Braudel é narrativa histórica.
A terceira e última seção da palestra, a que poderia ser intitulada Pedago- gia da História adaptada à Civilização Brasileira é a mais curta de todas. Brau- del admira-se que não se tenha formado uma pedagogia brasileira no terreno da História, nas minúcias e também no que diz respeito ao geral (1955, p. 20).
O plano geral a que se refere consiste no eurocentrismo carregado dos programas de história brasileiros. A história geral deveria, isto sim, ser estuda- da a partir das “frestas e janelas” que o “presente e o passado do Brasil” ofere- cem (1955, p. 20), como no exemplo que dá em seguida: “Do espetáculo dessa Idade Média moderna, povoada de automóveis, rasgada pelos trilhos e pelas estradas, não é difícil deslizar para a Idade Média clássica, em que o homem dilatou as clareiras das florestas e eliminou os pantanais… (…)” (1955, p. 20). Aqui Braudel aproveita para fazer o que acredito ter sido um gesto de cortesia à audiência local, especialmente aos historiadores paulistas, provavelmente presentes em sua plateia. Para ressaltar a viabilidade dessa ênfase na história local, enaltece o papel dos desbravadores brasileiros, o que acredito ser uma referência aos bandeirantes, tema tão caro aos institutos de história e acade- mias de letras paulistanos: “O homem nesse longo intervalo tornou-se mais forte, o que é tudo, como pormenor de indiscutível importância” (p. 20). Enal- tece o desbravamento local, o encontro do homem com a natureza, contras- tando-os com a pequenez de uma Ática (“Os eupátridas da planície ática, di- ria sem hesitação, são como os vossos fazendeiros (…)” (1955, p. 21).
Mas Braudel ainda não chegou à sua ideia principal, aquela que enten- de realmente como uma ideia mais vasta e absorvente, que alteraria o eurocen- trismo que diagnostica. Ele junta todas as histórias das três Europas que iden- tifica (a velha, que conhecemos; a Europa moça, representada pelo mundo anglo-saxão, e a Europa jovem, pela América Latina) para descentrar o eixo narrativo da pedagogia da história brasileira em direção ao mar oceânico, ao rio marítimo que liga todas elas: o Atlântico. “Por que não atribuir decidida-
mente esse lugar ao Mediterrâneo moderno que nos une e em que está o desti- no da nossa tríplice e una civilização?” (1955, p. 21).
É com essa ideia que, marotamente, pede que se reserve em nossos pro- gramas um lugar ao “mare nostrum, quero dizer, ao Atlântico” (1955, p. 21), pois, usando o termo em latim, Braudel fazia uma dupla alusão a “seu” Medi- terrâneo, sabidamente já em marcha à época.
De onde Braudel tira os seus conselhos? Naturalmente que seja da expe- riência francesa9, mas me perguntava qual o sentido que seus conselhos adqui- rem quando postos sob a perspectiva de educação em seu país.
A despeito de passar por uma reforma educacional enquanto professor de liceu (em 1925), Braudel testemunhou a permanência de vários elementos na tradição escolar, como sói ocorrer quando se trata do impacto que a legisla- ção causa na organização escolar e nas práticas docentes, o que se refletiu na conferência do Instituto de Educação. A começar pela finalidade da história escolar: a formação do espírito. O pressuposto com que abre a sua fala, na verdade dispensando o seu debate, parte de uma arraigada concepção do que deve ser o ensino secundário francês: a transmissão de uma cultura desinte- ressada (HERY, 1999, p. 28). O próprio exercício do intelecto tem como con- sequência inevitável a formação moral dos alunos e, sendo esse o objetivo da educação básica, é igualmente a tradição humanista que orienta os conteúdos e a forma da história escolar na França.10 Assim é que, despida de interesses pequenos, mundanos, ela deve ser desinteressada.
A conferência de Braudel possui duas grandes preocupações: a atuação do professor e a narrativa da História, que se fundem, na verdade, em uma coisa só: uma boa história contada pelo professor. Não há considerações sobre outros elementos constitutivos de uma aula, como materiais didáticos, exercí- cios ou avaliação, por exemplo. A conferência concentra-se em somente uma atividade: a preleção.
O que Braudel aconselha em seu texto, no final das contas, é em linhas gerais um cours dos liceus franceses nos moldes de um cours magistral, leçon magistral ou cours ex-cathedra.11 Esse modelo de aula, dominante no século XIX, já se encontrava em transição no período em que Braudel atuava como agrégé. O cours dicté fora proibido, no lugar do qual esperava-se que fosse praticado o cours parlé, com um pouco mais de liberdade para o professor:
Il peut être dicté malgré la réiteration de l’interdiction de cette pratique d’une façon continue de 1890 à 1960; il peut être lu ou <parlé>; c’est-à-dire que la lecture laisse place à plus de liberté et d’improvisation et le cours est <dit… à la vitesse normale de la conversation>; <continu> et <suivi>, ou <discontinu> et prendre allors l’allure d’une conversation, être entrecoupé de questions, de démonstrations, des lectures, où le
professeur garde la main. Toutes ces formes ont cependant en commun de relever d’une pratique pédagogique orale, caractérisée par la centralité de la parole du maître (HERY, 2007, p. 31. Grifo meu).12
Essa transição, porém, não abalava os valores que sustentavam uma boa aula, pois que se propunha mais a agregar diferentes formas de estimular o alunado do que retirar a centralidade do papel do professor, o que, como se vê, é uma das preocupações de Braudel.
A tradição desses cursos de se equilibrar entre uma forma oral e escrita, já que inicialmente eram feitos para ser lidos, remete mesmo ao século XIX, avançando no início do século XX para formas menos aprisionadas ao texto (HERY, 2007, p. 30-31), o que não significou, porém, que a preleção do pro- fessor deixasse de ser o elemento central ao qual se atribuía o sucesso da apren- dizagem dos alunos. É dessa tradição que Braudel tira o mote principal de sua fala, mais importante do que a seleção de conteúdos e muito mais do que métodos mais ativos, como os exercícios em História, que não aparecem na conferência.
As qualidades de uma boa aula, descritas pelos relatórios dos inspetores de educação, frequentemente se traduziam em qualidades pessoais; para o caso da História, as de um bom narrador, o que: a) reforça o foco no professor, em detrimento do aluno, para o sucesso de uma aula e b) remete fortemente à aula ideal descrita pelo prof. Braudel em sua conferência em São Paulo. A partir dos relatórios desses inspetores e do que eles qualificam como uma boa aula, Hery destaca que sobriété, clarté, précision, on retrouve là les critères qui, sous la plume des inspecteurs, distinguent dans les classes les bonnes, voire excellentes, leçons des autres. (…) Si la parole doit être aisée, la ‘virtuosité’ verbale fait craindre la superfi- cialité13 (HERY, 2007, p. 33). Sobriedade, clareza, precisão: é quase como ou- vir Braudel falar novamente sobre a simplicidade no vocabulário para os alu- nos, sobre a História em formato de romance de aventura e um “pensamento que busca a sua expressão, a encontra e sabe como comunicá-la” (BRAUDEL, 1955, p. 7).
Mais do que uma pedagogia, Braudel prega valores. São os valores que garantem o sucesso de uma aula, valores que derivam das qualidades e da personalidade do professor. Une bonne leçon est d’abord une composition, non une ‘conversation’. Les faits y son ordonnés, classés, la progression est méthodique, le chemin est balisé (…)14 (HERY, 1999, p. 174). É por ser ele mesmo um exemplo disso que Braudel dedica tanto tempo de sua palestra insistindo na sedução dos alunos. Essa é a medida de seu próprio sucesso e daquilo que credita como “êxito” no ensino de História. Braudel retrata plenamente os critérios que, segundo Hery, definiam o corpo professoral francês: netteté de la composition,
étendue de la culture, talent de la parole et rayonnement de la personalité –, complémen- taires les uns des autres (…)15 (1999, p. 174).
Como forma nesse caso é conteúdo e, tendo em vista a formação do intelecto, a elevação moral e a cultura geral, a defesa de uma narrativa (a for- ma que o conteúdo assume) bela e encantadora torna-se coerente e justifica o fato de que dela dependa a aprendizagem do aluno. Mas o papel do professor e a sua responsabilidade em despertar e manter a atenção e o interesse deixam pouco espaço para o aluno ou sua aprendizagem. A pedagogia na conferência do Instituto de Educação é tomada, portanto, pelo conteúdo de História. Ou melhor, pela forma do conteúdo de História: trata-se de encontrar as melhores formas de tornar os conteúdos palatáveis aos estudantes.
As três primeiras décadas do século XX são marcadas pelos esforços da administração pública em renovar o ensino de História francês. Uma reforma foi empreendida em 1902, e outras seguiram em 1925 e 1938 (HERY, 1999), nas quais se intentou organizar o ensino secundário, dividindo-o em ciclos (e depois retrocedendo) e periodizando a História. A reforma de 1902 reorgani- zou o ensino secundário em dois ciclos, totalizando sete anos, e redistribuiu os conteúdos de História.16 Braudel foi professor no fim da vigência dessa refor- ma de 1902 e no início da de 1925. Nessa última, o ministério listou os três tipos principais de procedimentos pedagógicos nas aulas de História e Geo- grafia à época do recorte deste trabalho: o ensino baseado no manual escolar, no estudo analítico da matéria e a leçon magistrale, que de longe é a forma predominante até o fim dos anos 1930 (HERY, 1999, p. 177). Uma das inten- ções era fazer a transição de um ensino fortemente calcado na cultura clássica (ensino de grego e latim) para um caracterizado pelas “humanidades moder- nas”. O ensino de História estaria justificado nessa nova configuração, pois que centrado no homem. A sua lógica explicativa (Décrire les faits, comprendre comment ils s’enchaînent, comment ils se modifient, sont des opérations intellectuelles qu’on peut envisager de transposer de la recherche à la salle de classe17 HERY, 1999, p.
50) é exatamente o instrumento que deve servir para o exercício de compreen- der esse homem.
Os debates para sanar as deficiências do ensino secundário na França nesse período questionam o cours, muito embora não abram mão dele. Há pro- gressivamente uma defesa de métodos mais ativos, que não confinam os alu- nos à passividade de fazer anotações. São Charles Seignobos e Ernest Lavisse os dois nomes que sustentam a reforma de 1902 e que defendem, nesse perío- do, práticas que vão ecoar na palestra de Fernand Braudel. São mais de um os pontos de contato entre essa tradição do início do século e a pedagogia de Braudel, a começar pela força da narrativa e a necessidade de descrever. Se-
gundo Héry, entendendo que a imaginação visual concorre fortemente para a compreensão, c’est la raison pour laquelle il (Seignobos) demande de décrire, de racon- ter avec force de détails et d’éviter, a contrario, les formules abstraites, les listes de noms propres ou de dates18 (1999, p. 92. Grifo meu). Seignobos quer que os alunos se habituem a ver os homens do passado como seres e não como palavras: Les ayant vus, il s’intéressait à eux et se plairait à entendre parler d’eux; il irait de lui-même à l’étude de leurs institutions19 (SEIGNOBOS, apud HERY, 1999, p. 98). E Lavis- se, falando do método demonstrativo, sustenta a necessidade posta pela admi- nistração de selecionar os conteúdos, de não se ater a detalhes inúteis e dar relevo aos fatos essenciais (p. 97).
O que está no ar na época da conferência é justamente a concomitância entre a manutenção dos objetivos mais arraigados da formação escolar na Fran- ça (a tradição humanista, clássica, desinteressada) e a defesa do avanço desse ensino exatamente por nomes que, ironicamente, serão classificados, eles sim, como o que havia de “mais tradicional” na prática historiográfica da virada do século XIX.
“Evitar fórmulas abstratas”, “descrever”, “fazer viver os personagens”, “simplicidade” são todos elementos que vemos repetidos na conferência de Brau- del. Por outro lado, as preocupações de Lavisse e Seignobos, por sua vez, extra- polam o cours, provavelmente porque um cânone na prática pedagógica france- sa, e aventuram-se pela transposição de elementos da pesquisa histórica para a sala de aula20 por meio de métodos que estimulem a proatividade dos alunos.
Não é possível estabelecer uma comprovação direta entre a pedagogia da História de Braudel e uma leitura de Seignobos ou Lavisse, por exemplo, mas tampouco é essa a intenção. A questão está em redimensionar a extraor- dinariedade que esses conselhos possam vir a ter. São orientações que circu- lam no corpo docente francês há pelo menos trinta anos e inclusive são defen- didos por historiadores que, no domínio restrito ao da escrita da História, não fazem parte da tradição a que se costuma filiar Braudel.
É interessante como a defesa da beleza, da aproximação da narrativa histórica às qualidades de um romance é, na escola, um elemento de aglutina- ção, de permanência da tradição liberal romântica21 que atravessa mesmo o predomínio dos metódicos nos postos de decisão das reformas educacionais (e que é reconhecida e mantida por estes), sobrevivendo como valor hegemônico ainda à época de Braudel professor. A narrativa histórica justifica os objetivos do ensino de História ao mesmo tempo em que sustenta a centralidade do papel do professor.
Essa é a singularidade da História escolar. Atravessada por múltiplos condicionamentos (função social, espaço escolar, legislação, formação de pro-
fessores, origens sociais dos alunos, etc.), ela consegue abrigar e dar sentido a orientações que, em outras esferas (na pesquisa e escrita da História), têm pro- cedências divergentes. A sala de aula constrange a prática e a necessidade de estabelecer uma relação com um público, que precisa aprender algo no fim daquele processo, regula o espaço aberto para variações. Tendo em vista que é preciso garantir o cumprimento dos objetivos estabelecidos, mantêm-se as prá- ticas já comprovadas. E é aqui que começa o “conservadorismo” de Braudel. A tradição humanista, romântica, chega a ele com os apêndices das tentativas metódicas de tornar esse ensino mais atraente aos alunos e funcional aos obje- tivos do Estado francês.
Aquilo que Braudel prega para o público brasileiro em 1936, portanto, encontra-se exatamente dentro do que é discutido na França para o ensino secundário (o que é um tanto óbvio, alguns podem afirmar). O que está em questão é que, caso estivesse falando a um público de franceses, seus compa- triotas poderiam não achar muita novidade na descrição e “propaganda” do que havia de mais tradicional nos liceus franceses: o cours. Mais do que uma proeminência na área, Braudel retira sua fala não mais do que de sua própria experiência. O Braudel professor está acompanhando o fluxo dos debates so- bre a docência na França. Sua fala espelha aquilo que há de mais corrente em seu país. É nessa chave que é possível entender por que Braudel se acha um “conservador”. Ele sabe que acabou de expor àquela plateia o básico do ensi- no francês de História.
Possibilidades
Foi por entender que os saberes docentes são construídos ao longo de uma trajetória profissional que a pergunta sobre que tipo de professor seria Braudel foi possível, especialmente diante de tantas memórias enfatizando a sua extraordinariedade. Várias são as questões que aparecem para esse tipo de pergunta: Qual metodologia? Quais avaliações? Quais conteúdos? Para abor- dá-las, sabemos, como várias pesquisas em ensino de História cujo recorte são os saberes docentes no presente ensinam, que um professor é o conjunto de sua experiência – como aluno e no formar-se professor. O Braudel que se apre- sentava na memória perpetuada por seus alunos e alunas durante sua passa- gem pela USP nos fornece uma visão congelada daquele momento, sem nuan- ces. Não dizem muito sobre como foi formado, por onde passou ou mesmo o que realmente fazia em sala de aula. Suas qualidades como professor eram qualidades pessoais: simpatia, acessibilidade, domínio do conteúdo. Qualida- des que por vezes inclusive eram confundidas com os dotes dos Annales.
E no entanto esses professores vinham de um background um pouco mais dinâmico do que essa visão cristalizada. Colocá-lo em contexto contribui para que se destrinche a famosa palestra de Fernand Braudel no Instituto de Educa- ção em 1936, iluminando também a sua prática de sala de aula, tendo em vista as enormes semelhanças entre a palestra e seu material didático.22 Uma tradi- ção interessantíssima que misturava humanismo e Michelet com algumas do- ses de Seignobos e Lavisse e que não necessariamente corresponde a uma apli- cação dos Annales nas aulas. O que coloca uma pergunta interessante de se fazer: o quanto dos temas pelos quais os Annales ficaram famosos é original? Vejamos o quanto a palestra e sua ênfase no homem em 1930 são um eco “reverso” dos textos de Febvre da década de 1940. Ou seja, o quanto já não vem de uma tradição escolar francesa?
Um caminho ainda pouco explorado também é o dos materiais didáti- cos para o ensino superior. Aproveito aqui algumas considerações metodoló- gicas já realizadas em outro texto:
De modo que no processo de construção desse objeto de estudo, se faz ne- cessário investigar justamente qual é esse corpus que constitui os materiais utilizados para fins didáticos no nível superior, se é que se pode chegar a um corpus comum. Realizar esse empreendimento significa conseguirmos res- ponder a que têm de específico, pois que diferentemente dos materiais didá- ticos do ensino fundamental, entre os quais há como que uma espécie de continuidade entre si, uma semelhança, bem como o fato de que seu propó- sito didático está na maioria das vezes bastante explícito, não é esse o cená- rio que percebemos na coletânea de capítulos de textos que geralmente re- presenta o material selecionado pelo professor da graduação. Como são se- lecionados; como são utilizados; como tem sido seu uso ao longo da exis- tência dos cursos de graduação no país. Quais seriam os limites que defini- riam esses materiais enquanto um corpus comum ao ensino superior de His- tória? Ademais, que relações podem ser estabelecidas entre sua seleção e uso e a finalidade de ensino (para retomar Chervel) que os cursos de graduação assumiram/têm assumido? (COSTA, 2017, p. 154).
Ao fim e ao cabo, quero instigar o público-leitor perguntando: o quanto a cultura escolar acadêmica também não serve de veículo para permanências na própria operação historiográfica (concebida tradicionalmente como a pes- quisa e a escrita de História)?
Referências
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BRAUDEL; PAULA. Apostilas da Cadeira de História da Civilização. 1935-1937.
CANABRAVA, Alice. Minhas Reminiscências. In: Economia Aplicada, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 157-163, 1997.
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. In: Teoria e Educação, Porto Alegre, n. 2, p. 177-229, 1990.
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COSTA, Aryana. De um Curso d’Água a Outro: memória e disciplinarização do saber histórico na formação dos primeiros professores no curso de História da USP. Progra- ma de Pós-Graduação em História Social/UFRJ. Tese de Doutorado. 2018.
DELACROIX, C.; DOSSE, F.; GARCIA, P. As Correntes Históricas na França. Séculos XIX e XX. Ed. FGV e Ed. Unesp, 2012.
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HERY, Évelyne. Les Pratiques Pédagogiques dans l’Enseignement Secondaire au 20e Siècle. Paris: L’Harmattan, 2007.
LIMA, Luis Corrêa. Fernand Braudel e o Brasil. Vivência e Brasilianismo (1935-1945). EdUSP, 2009.
LIMONGI, Fernando. Educadores e Empresários Culturais na Construção da USP. Disser- tação (Mestrado em Ciência Política). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 1988.
1 Professora do Departamento de História da UERN, câmpus Mossoró e do ProfHistória/UERN. Doutorado em História Social pelo PPGHIS/UFRJ.
2 Outros autores também já teceram considerações sobre essa palestra de F. Braudel (conferir FREITAS, 2004, e LIMA, 2009). Na minha tese de doutorado, reforcei o argumento trabalhando também com as apostilas que Fernand Braudel e Eurípedes Simões de Paula, à época seu assistente na cadeira de História da Civilização, produziram para o curso. Por motivos de espaço, não foi possível incorporar esses dados aqui. Conferir COSTA, 2018, cap. 4.
3 Mais tarde, entre 1957 e 1958, Jean Glénisson, autor do famoso manual de Introdução aos Estudos Históricos, foi o primeiro professor da cadeira de Metodologia e Teoria da História recém-inaugurada no curso de História, já separado do de Geografia.
4 As demais conferências, como já dito anteriormente, listadas no Anuário de 1936 da FFCL teriam sido: Jean Maugué, “O ensino da filosofia na escola secundária”; Pierre Monbeig: “O ensino da geografia na escola secundária”; Gleb Wataghin: “O ensino das ciências físicas”; Michel Berveiller: “As humanidades clássicas no ensino secundário”; Pierre Hourcade: “A literatura francesa no ensino secundário”; Ernst Marcus: “A zoologia como elemento de ensino rurais”; Felix Rawitscher: “A botânica no ensino secundário”; Pierre Arbousse-Bastide: “O ensino da sociologia nas escolas secundárias”; Luigi Fantappiè: “As matemáticas na escola secundárias”; Rebelo Gonçalves: “Rumos velhos e rumos novos no ensino secundário da língua”. 1936, p. 95. O Anuário da FFCL lista somente 13 conferências.
5 Conferir Limongi, 1988.
6 O Anuário da FFCL também divide a palestra de Braudel em duas conferências. ANUÁRIO, 1936, p. 95.
7 “(…) um aspecto simplesmente do pensamento que busca sua expressão, a encontra e sabe como comunicá-la: problema tão agudo para quem ensina os primeiros rudimentos da história nas mais longínquas escolas primárias, como para o erudito, que ao escrever trabalhos de fôlego prelecionou para duzentos ou trezentos historiadores dignos desse nome, em todo o mundo…” (BRAUDEL, 1955, p. 7)
8 Alice Canabrava lembra: “O Braudel dizia que a História é um ramo da literatura, que em início do seu desenvolvimento a História se desprendeu da literatura, o que deve levar o historiador a escrever bem, é uma imposição do ofício” (1997, p. 161) e ainda: “Sempre segui as recomendações do Prof. Braudel: deve-se abordar três pontos fundamentais ou no máximo quatro em cada aula, reservar um espaço ao término da aula para um resumo final” (p. 162).
9 Nas décadas de 1920 e 1930, durante as quais Braudel foi professor de liceu na Argélia e depois em Paris, a França vinha de uma reforma empreendida em 1902 e revista em 1925.
10 La reforme n’a pas modifié la nature de l’enseignement secondaire. Il reste um enseignement general et desinteresse parce que tous conviennent qu’il doit former l’esprit, le rendre libre et l’éclairer, qu’il est une discipline au sens où il soumet la raison à um exercise. Toute autre orientation le deprecie et donc le dénature (HERY, 1999, p. 110). E ainda: Il s’affirme en priorité comme un enseignement de connaissances qui concourt à l’acquisition de la culture générale et participe conjointement aux autres matières scolaires à la formation intellectuelle des élèves (idem, p. 137). “A reforma não modificou a natureza do ensino secundário. Ele permanece um ensino geral e desinteressado porque todos concordam que ele deve formar o espírito, fazê-lo livre e esclarecê-lo, que ele é uma disciplina no sentido em que ele submete a razão a um exercício. Toda outra orientação o deprecia e, portanto, o desnaturaliza.” “Ele se afirma prioritariamente como um ensino de conhecimentos que contribui para a aquisição da cultura geral e participa, juntamente com as outras matérias escolares, na formação intelectual dos alunos.”
11 Conferir HERY, 2007.
12 “Ele pode ser ditado, apesar da reiteração da interdição desta prática de uma forma contínua, de 1890 a 1960; ele pode ser lido ou ‘falado’; isso quer dizer que a leitura permite uma maior liberdade e improvisação e o cours é ‘dito… na velocidade normal da conversação’; ‘contínuo’ e ‘seguido’, ou ‘descontínuo’ e assumir, então, a velocidade de uma conversação, ser entremeada de perguntas, de demonstrações, de leituras, onde o professor está no controle. Todas essas formas têm em comum, contudo, serem oriundas de uma prática pedagógica oral, caracterizada pela centralidade da fala do professor.”
13 “Sobriedade, clareza, precisão, nós achamos aí os critérios que, pela pena dos inspetores, distinguem nas aulas as boas lições, até mesmo as excelentes, das outras. (…) Se a fala deve ser espontânea, a ‘virtuosidade’ oral faz temer a superficialidade.”
14 “Uma boa lição é antes de tudo uma dissertação, não uma ‘conversação’. Os fatos ali estão ordenados, classificados, a progressão é metódica, o caminho é balizado.”
15 “Concisão da dissertação, ampla cultura, dom da oratória e personalidade brilhante – complementares, uns aos outros (…).”
16 História Antiga foi a que mais perdeu espaço: trabalhada no sixième apenas quando antes era vista em três anos. A idade média até 1453 no cinquième; de 1453 a 1789 no quatrième e de 1789 a 1889 no troisième, encerrando o primeiro ciclo, em que predominava a história moderna e contemporânea. O segundo ciclo, oportunidade para retomar os estudos anteriores e aprofundá-lo, cobria um período que ia do século XV até o fim do XIX, mais a retomada de história antiga para as seções de letras (HERY, 1999, p. 316).
17 “Descrever os fatos, compreender como eles se encadeiam, como eles se modificam, são operações intelectuais que podemos pensar em transpor da pesquisa para a sala de aula.”
18 “É a razão pela qual ele (Seignobos) exige que se descreva, que se conte com riqueza de detalhes e de evitar, a contrario, as fórmulas abstratas, as listas de nomes próprios ou de datas.”
19 “Tendo-os visto, ele se interessaria por eles e iria gostar de ouvir falar deles; ele iria, por vontade própria, estudar suas instituições.”
20 “(…) o exercício ativo consistirá, para ele, em analisar gravuras, narrativas, descrições. Essa análise vai obrigá-lo a se dar conta com precisão dos traços característicos do aspecto externo dos homens ou das coisas e se representar os sentimentos internos” (SEIGNOBOS apud DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2012, p. 114).
21 “A escrita não é só, portanto, um meio de expor agradavelmente as informações extraídas dos velhos manuscritos; é um método de conhecimento. Quanto ao aspecto dramático, para Thierry ele não é de modo algum acrescentado artificialmente. O drama é a verdade da história, no sentido de que cada personagem, à imagem do herói de Walter Scott, se torna exemplar de uma classe, de uma atitude, de uma situação que o ultrapassa e que participa do movimento da história. O drama é a história narrada, pois a narração esclarece o sentido da história e põe sob sua luz a grande intriga que a anima: a luta das raças e a afirmação progressiva do Terceiro Estado” (DELACROIX, C.; DOSSE, F.; GARCIA, P., 2012. p. 42). Conferir os capítulos 1 e 2.
22 Conferir o capítulo 4 de minha tese: “De um curso d’água a outro: memória e disciplinarização do saber histórico na formação dos primeiros professores no curso de História da USP”, 2018, onde analiso as apostilas produzidas por Fernand Braudel, Jean Gagé e Eurípedes Simões de Paula.
O construtivismo
e o ensino de História
Eleta de Carvalho Freire1 Lúcia Falcão Barbosa2
Maria Thereza Didier de Moraes3
Primeiras palavras…
Nas últimas décadas, pesquisas apoiadas em diferentes referenciais têm contribuído para a ampliação de conhecimentos sobre o ensino e a aprendiza- gem histórica. Entre as possibilidades teóricas para a compreensão desses fe- nômenos – ensino e aprendizagem –, o construtivismo tem se apresentado como alternativa para o entendimento dos processos cognitivos envolvidos na construção do conhecimento histórico pelo estudante, constituindo-se em apoio teórico-metodológico ao trabalho do professor e professora de História.
O construtivismo apoia-se na ideia de que o indivíduo é uma constru- ção própria que se processa no dia a dia e cuja produção se dá a partir das interações entre suas disposições internas e o ambiente social. Disso resulta o entendimento de que o conhecimento não é algo pronto nem está disponível para ser acessado pelo estudante, como se fora uma reprodução da realidade. Trata-se, ao contrário, de uma construção do ser humano.
Essa construção implica a existência de esquemas mentais que atuam como instrumentos de recepção e reestruturação cognitiva de uma informa- ção desconhecida, gerando um novo conhecimento e, em consequência, a for- mação de esquemas mais complexos. De tal modo, o conhecimento constrói-se no dia a dia em diferentes contextos, é dependente da representação inicial que o indivíduo tem da nova informação e da atividade interna ou externa que desenvolve sobre a mesma. Para Carretero (2005, p. 25), “esquema es una re- presentación de una situación concreta o de un concepto que permite manejar ambos internamente y enfrentarse a situaciones iguales o parecidas en la reali- dad”. Os esquemas ou as representações podem ser muito simples ou comple- xos, mais gerais ou especializados, e medeiam a atuação do indivíduo na rea- lidade, ou seja, a ação do estudante sobre os conteúdos de aprendizagem dá-se por meio de esquemas mentais.
A compreensão de que a construção de conhecimentos implica a pre- sença e a reestruturação de esquemas cognitivos e que esses vão se tornando
mais complexos em função das interações do indivíduo com o contexto socio- cultural de suas vivências contribui com ponderações sobre a aprendizagem histórica a partir do referencial construtivista. Para uma breve discussão sobre essa perspectiva epistemológica, tomamos como referência os estudos de Car- retero, juntamente com uma equipe de outros estudiosos, cujas pesquisas têm tratado sobre os processos cognitivos envolvidos na aprendizagem histórica dos estudantes. Assim, neste texto, objetivamos refletir sobre alguns eixos que, em nosso entender, expressam contribuições do construtivismo ao ensino e à aprendizagem dos conhecimentos históricos, tais como: ensino e aprendiza- gem histórica, história e memória, identidade nacional e história escolar. Ini- ciemos, então, com ensino e aprendizagem histórica.
Ensino e aprendizagem histórica
Principiamos esta seção com a afirmação de Carretero (1997, p. 32) se- gundo a qual “(…) dois elementos parecem ser importantes para a compreen- são das Ciências Sociais e da História: de um lado, o conhecimento prévio do aluno, e, de outro, as características específicas do conhecimento social e his- tórico”.
Em relação ao primeiro elemento – o conhecimento prévio do aluno –, algumas características são destacadas pelo autor. Trata-se de concepções es- pontâneas, em geral construídas a partir de vivências cotidianas dos estudan- tes e quase sempre distanciadas do conceito. Embora possam ser comuns a um grande número de estudantes, são conhecimentos constituídos por concep- ções pessoais, ou seja, possuem significado pessoal e, talvez por essa razão, ofereçam resistência à mudança. Constituem modelos mentais que, embora fragmentados e dispersos, ao ancorar novas informações ou conceitos, favore- cem a reestruturação cognitiva e a construção de novos conhecimentos.
A esse respeito, Carretero (1997) afirma que “uma das maiores contri- buições para a adoção de uma postura construtivista no conceito de aprendi- zado foi a de destacar a importância que o conhecimento prévio possui na aquisição de novos conhecimentos”. Desse modo, argumenta que o conheci- mento prévio, tomado como ponto de partida para a adoção de estratégias de ensino pelo professor e professora de História, favorece o desenvolvimento de esquemas mentais mais complexos, contribuindo para a aprendizagem dos conhecimentos históricos.
No que concerne ao segundo elemento – as características específicas do conhecimento social e histórico –, destacamos que, no escopo deste texto, estaremos nos debruçando apenas sobre as especificidades do conhecimento
histórico, sem perder de vista, no entanto, que os conhecimentos – histórico e social – mantêm estreita vinculação com os conteúdos curriculares e certo grau de interdependência nos processos de aprendizagem dos estudantes. A esse respeito, Carretero (1997) argumenta que se faz necessário observar apro- ximações, mas sobretudo distinções epistemológicas existentes entre o conhe- cimento histórico e o conhecimento das ciências sociais, embora reconheça “que os conceitos históricos deverão ter como base a compreensão prévia dos conceitos sociais” (p.18). Essa compreensão prévia serviria de base para o en- tendimento posterior de acontecimentos sociais remotos e a reestruturação cognitiva de conceitos com alto grau de abstração.
O conhecimento histórico, segundo Carretero (1997), detém caracterís- ticas epistemológicas que demandam um olhar atento e cuidadoso sobre seu ensino. Uma delas diz respeito à própria razão de ser da História como área que estuda as ações humanas no passado, estabelecendo relações entre passa- do e presente ou relacionando, ao menos, duas diferentes temporalidades. Con- siderando que o passado não é acessível sob o ponto de vista material, o co- nhecimento das ações humanas em tempos remotos somente se torna possível por meio de uma representação prévia. De tal modo, o conhecimento históri- co destina-se à compreensão do passado por meio de conceitos que façam sentido para o estudante no presente.
Em decorrência do alto grau de abstração e complexidade dos conceitos históricos, da historicidade e da polissemia que lhes são próprias, além de sua vinculação a uma perspectiva historiográfica, a aprendizagem ou a mudança conceitual envolve conhecimentos sobre o contexto do qual esses emergem. Carretero (1997, p. 36) afirma que os conceitos históricos apresentam “algu- mas peculiaridades que os tornam especialmente difusos e, portanto, prova- velmente, mais difíceis de serem aprendidos”.
De outra parte, os conhecimentos históricos passam por transforma- ções em razão de influências ideológicas e políticas que repercutem nos currí- culos e nos materiais de ensino, a exemplo dos livros didáticos, cujos textos e imagens acabam por atender os interesses de grupos sociais que detêm o poder político em determinado momento. Dessa característica resulta que para um mesmo acontecimento histórico possam coexistir versões diferentes daquela veiculada pela história oficial presente nos currículos, considerando o com- promisso da história escolar com a construção da identidade nacional. De acordo com Junco (2010, p.11), a história escolar tem como finalidade “cons- truir uma identidade coletiva estável, criar um espaço de pertencimento sóli- do, no qual os futuros cidadãos se sintam acolhidos e reconfortados”. Sob o ponto de vista da aprendizagem, Carretero (2010) reconhece a predominância
de registros patrióticos nas histórias nacionais e defende que os estudantes tenham acesso a visões alternativas sobre os conteúdos históricos e disponham de meios para reflexão e questionamento sobre os mesmos. Considera ade- mais que, em razão da influência de valores políticos e ideológicos, a mudança conceitual tende a enfrentar resistências em função de representações sociais anteriormente construídas. Isso porque “parece claro que os estudantes tam- bém possuem ideias prévias sobre muitos conceitos sociais e históricos que são ensinados na escola” (CARRETERO, 1997, p. 34).
Carretero (1997) discute os aspectos referentes aos processos cognitivos envolvidos na aprendizagem histórica de crianças e adolescentes, bem como alguns dilemas enfrentados por professores que assumem o compromisso com a renovação, a criticidade e a compreensão dos conhecimentos históricos, de modo a favorecer o processo de mudança conceitual4 pelos estudantes. De acordo com Carretero (2007, p. 01), a mudança conceitual:
habla de la existencia de, por un lado, ideas ingenuas o ideas previas, esta- blecidas muy firmemente en la mente de muchos alumnos y que en muchos casos chocan o se contradicen con las ideas de la ciencia, o las ciencias. Entonces, se produce una dificultad en cambiar esas ideas ya que están muy arraigadas al pensamiento de los chicos. Y por esta razón, la problemática del cambio conceptual es una problemática relevante para la enseñanza de las ciencias. Muchísimas investigaciones han mostrado que si no se le con- cede una atención importante, entonces, el alumno aparentemente ha apren- dido la idea nueva, la reproduce en un examen o cualquier otro momento de la clase pero al cabo de un tiempo se nota que en realidad la idea previa ha prevalecido. Por esta razón es que le damos un espacio didáctico importante a este tema.
Para o autor, a mudança conceitual parece constituir um aspecto pro- blemático do ensino de História pelo desafio que representa transformar o conhecimento prévio do estudante, representado por ideias fragmentadas, pre- concebidas, sem apoio na ciência, ou por vezes até contrárias a esta, mas fir- memente sedimentadas na mente dos estudantes, em conceitos mais comple- xos. Considera que a aprendizagem histórica consiste na reestruturação cog- nitiva, que altera esquemas mentais, produzindo a mudança conceitual a par- tir da disciplina.
Convém anotar que, além desses aspectos, o historiador seleciona os fatos de acordo com as posições historiográficas que defende, e os professo- res, não raras vezes, também fazem suas escolhas. No entanto os estudantes tendem a encarar os conhecimentos históricos como objetivos, puros, cuja existência independe da interpretação do historiador. Isso porque a história escolar constitui “um conjunto de saberes sobre a vida pretérita da humani-
dade construído mediante o paradigma racionalista ilustrado. Almeja, por- tanto, alcançar a transmitir verdades ‘limpas’, objetivas, desprovidas, em prin- cípio, de carga moral” (JUNCO, 2010, p. 11). A esse respeito, Carretero (1997) alerta que os conteúdos destinados aos estudantes dos níveis mais avança- dos de ensino deveriam incluir informações sobre quais pressupostos anco- ram diferentes posições do pensamento histórico, uma vez que “os alunos costumam ter a tendência de manter posições positivistas moderadas a res- peito dos fatos históricos” (p. 23).
Em contraposição à representação do conhecimento histórico – por estudantes e também por professores e professoras – como atividade repetiti- va que dispensa a solução de problemas e o raciocínio frequente, Carretero (1997) argumenta que essas habilidades, “quando aplicadas a problemas so- ciais e históricos, enfrentam a necessidade de incorporar dois aspectos es- senciais. Por um lado, uma flexibilidade maior de raciocínio e, por outro, a compreensão que os alunos devem ter dos conceitos sociais e históricos”. Considerando que o conteúdo influi no processo de resolução de problemas e que o raciocínio histórico não se submete à lógica do pensamento formal que rege as ciências experimentais, a flexibilidade de que fala o autor envol- ve a comparação, a atenção a fatores políticos, econômicos ou ideológicos, além da inferência que supõe uma postura investigativa para a compreensão dos conhecimentos históricos.
Nesse sentido, o autor argumenta que a História, a despeito de não per- mitir experimentações nem formulação de leis gerais, registra a existência de regularidades, ou seja, anota aspectos comuns a processos históricos vivencia- dos em diferentes tempos. No entanto “a História, apesar de tantos esforços para acomodá-la entre leis universais, nunca é de todo previsível nem tampou- co compreensível (…)” (CARRETERO, 2010, p. 282). Assim, ainda que algu- mas circunstâncias históricas de caráter estrutural possam se repetir, dificil- mente o mesmo seria observado em relação às intencionalidades dos agentes históricos, cujas intenções “devem ser levadas em consideração a fim de que nossos alunos possam formular explicações relativamente completas dos fe- nômenos históricos” (CARRETERO, 1997, p. 28). De tal modo, como narra- tiva, o conhecimento histórico supõe a existência de interpretações distintas, mas igualmente válidas, para um mesmo acontecimento. Passemos, então, às ponderações a respeito do papel da memória, da História e do ensino de His- tória como formas de interpretação do passado.
Ensino de História e Memórias Coletivas: caminhos para outras histórias
Na obra “Ensino de História e Memória Coletiva”, os autores centram- se sobre o tensionamento do ensino de História pela memória coletiva ao lon- go do século XX. Memória, História e Ensino de História seriam, para os autores, formas distintas e legítimas de registro do passado. A memória estaria relacionada às práticas sociais de recordação. Sua matéria-prima seriam os relatos pessoais, rituais sociais, monumentos, mitos e produtos culturais (mú- sica, literatura, cinema, tv, etc.). A História estaria relacionada à produção de conhecimento acadêmico com suas regras próprias de produção: o imperativo de verdade, a causalidade e a crítica. Sua matéria-prima seriam os documen- tos, os rastros do passado e todo o arsenal do conhecimento científico. O ensi- no de História estaria relacionado ao objetivo pedagógico do Estado Moderno: preparar jovens para o exercício da cidadania, o pleno exercício de sua identi- dade pessoal e coletiva. E sua matéria-prima seriam tanto os produtos da prá- tica historiográfica como as políticas de ensino, bem como, cada vez mais, a própria memória coletiva (CARRETERO; ROSA RIVERO, 2004). Assim:
não pode haver coletividade sem recordação compartilhada, como não pode existir uma nação sem história comum (no duplo sentido de acontecimentos vividos no passado e de lembranças divididas deles). Por isso, acreditamos que parte do ensino da História deve dedicar-se a administrar essas recorda- ções. Mas aqui há uma diferença entre ensino da História e transmissão da memória compartilhada. A História é crítica: nega-se a esquecer o doloroso, não nos deve esconder coisas de que agora podemos não gostar; deve-nos ensinar que, às vezes, fomos vítimas, mas, em outras, carrascos, e que o limite entre um e outro pode ser muito tênue. Mas, além disso, a História não é apenas relatos, não é somente algo que se recebe, mas é também e sobretudo um conjunto de recursos para nos ajudar a compreender (CAR- RETERO et al., 2007, p. 23).
Segundo os autores, a compreensão seria formada por um conjunto de habilidades que permitiria aos indivíduos exercerem liberdade de pensamento, planejamento e ação. E esse seria o ponto delicado do ensino da História: administrar relatos e símbolos sobre os quais se sustente um sentido de soli- dariedade, mas sem permitir que a nação se torne demasiado pátria. A His- tória, enquanto disciplina escolar, teria surgido no século XIX como ação estratégica do Estado Nação para formar cidadãos leais. Assim sendo, a fa- bricação de um discurso oficial hegemônico sobre o passado não estava aberto ao dissenso. Entretanto
o atual momento parece caracterizar-se, por um lado, pelos processos de globalização e a consequente perda de importância das instâncias estatais nacionais na produção de identidades e no sentido social; por outro, pela
emergência de histórias e identidades – velhas e novas – de sinal muito dife- rente, que deslocam parte importante das lutas políticas para o campo da cultura (CARRETERO et al., 2007, p. 13-14).
As pautas político-identitárias de movimentos sociais atravessam a es- cola, que se torna um lugar central para a disputa de memórias possíveis da sociedade. Pautas que tensionam conteúdos escolares. Nesse sentido, o con- texto latino-americano depara-se com um desafio a mais do que o cenário mais amplo: as frágeis democracias na América Latina ainda se encontram em fase de consolidação, quando não sujeitas a retrocessos. E quais são os novos termos do pacto entre escola e sociedade nesse contexto? Não está claro ainda, mas há algumas tendências. No caso da Argentina, por exemplo, o pro- cesso de redemocratização do Estado vem acompanhado de reformas educa- cionais que colocam o ensino de história recente no centro do debate. Tanto no que diz respeito aos conteúdos escolares como à produção de documentos e materiais didáticos escolares e sugestões metodológicas.
Produzido na década de 1990, o documento Conteúdos Básicos Curri- culares (CBC) traz uma proposta de desenho curricular para a educação se- cundária. Para os 4º e 5º anos do ciclo superior da educação secundária, o do- cumento sugere uma ênfase no século XX em diversas escalas de análise – mun- dial, regional e local. E para o 6º ano da escola orientada em ciências sociais e arte sugere conteúdos da História recente na Argentina. Esses conteúdos devem ser abordados com ênfase na história oral. Em 2006, uma nova Lei de Educação Nacional estabelece que o Terrorismo de Estado deve fazer parte do conteúdo curricular comum para o exercício de construção da memória coletiva sobre os processos que quebraram a ordem constitucional com o objetivo de gerar nos jovens reflexões e sentimentos democráticos. O informe Nunca Más, dos anos 1990, ou o material de apoio ao professor Pensar la dictadura: terrorismo de Esta- do em Argentina, de 2010, referendam essa política de memória.5
Entretanto os autores defendem que, muito embora os programas de História se fundamentem em argumentos e objetivos diferentes daqueles da educação nacionalizante e ainda que os docentes assegurem que sua prática está orientada para a formação do conhecimento crítico, o desejo de identida- de nacional segue presente e constitui uma dimensão emotiva básica no ensi- no da História. Na obra A Construção do Conhecimento Histórico, Carretero e Borrelli tecem algumas considerações sobre o ensino e a aprendizagem da his- tória recente na escola. Há algumas questões envolvidas nessa estratégia de ênfase curricular na história do Terrorismo de Estado. A primeira é que ela promove um paradoxo: o conteúdo histórico escolar é marcado por uma nar- rativa consensual, positiva, que reforça a construção de uma identidade políti-
ca e cultural. O aspecto cultural consiste nas formas de vida, de expressões artísticas e culturais hegemônicas (ainda que relativamente amplas e heterogê- neas). O aspecto político consiste sobretudo na expressão de um desejo estável por parte de um grupo social dominante de construir o Estado. Mas o ensino da história recente tematiza o conflito, o negativo, expõe o desacordo com a ética da sociedade democrática. Esse seria um paradoxo. Além do relato de injustiças cometidas pelo Estado, o objetivo geral do relato histórico-moral segue sendo gerar identificação com a nação e identificação com um projeto compartilhado (CARRETERO; BORRELLI, 2010).
Outra questão diz respeito a estarmos vivendo numa paisagem intelec- tual de mnemotropismo: “uma orientação das sociedades contemporâneas à memória” (CARRETERO, 2007, p. 14), na qual há uma centralidade no teste- munho. Podemos dizer que a ênfase na história recente entra nos currículos argentinos através da luta dos movimentos sociais pela memória, e não pela historiografia, e está formulada mais sobre uma pedagogia da memória (PI- ROLA BALESTRA, 2016). Uma pesquisa de Levín et al. (2007) analisa cerca de 150 monografias produzidas em 2001 por estudantes argentinos do nível polimodal sobre o tema do golpe de Estado. Foram trabalhos produzidos para um concurso de monografias promovido pelo Ministério da Educação sobre a ditadura militar, 25 anos depois do golpe. A análise dessas monografias consta- ta uma recorrente presença da teoria dos demônios (culpados externos), que toma o informe do Nunca Más como narrativa explicativa hegemônica nas argumenta- ções, que reforça a interpretação do golpe como algo “abrupto que irrompe em uma sociedade intrinsecamente democrática e pacífica” (2010, p. 118-119).
Os testemunhos certamente podem gerar uma relação empática com o jovem leitor, mas, dentro da lógica explicativa de um relato histórico simplifi- cado, eles podem contribuir para a leitura do mundo como um lugar onde habitam naturalmente homens bons e homens maus. Ou seja, sentimentos de compaixão e indignação sozinhos não garantem uma explicação mais com- plexa do passado.
O que resta dessas duas questões é o problema. Os jovens estão fazendo apenas um julgamento moral do Estado de exceção, que aparentemente não contribui para uma explicação complexa sobre os mecanismos da excepciona- lidade. Alexander Ruiz Silva vai pesquisar, em tese de doutorado orientada por Carretero, sobre os imaginários sociais no ensino e na aprendizagem de História. Mais especificamente, sua pesquisa será sobre a nação nas margens da sociedade: como jovens que moram e estudam em zonas de periferia da grande Buenos Aires distinguem a nação aprendida mediante o acesso à histó- ria escolar e a nação vivida na experiência de todos os dias. Em sua análise, o
autor percebe que os jovens desse contexto social utilizam em suas explicações históricas a mesma grande narrativa de nação encontrada em explicações de sujeitos das classes média e alta. Nação, diga-se de passagem, da qual eles não obtêm benefícios tangíveis. Nação essa que é narrada através de uma perspec- tiva ontológica e essencialista ao invés de socialmente construída ou mesmo propriamente histórica (RUIZ SILVA, 2011).
Segundo Ruiz Silva, a maneira como os significados de nação são cons- truídos nas escolas em contexto de exclusão social promove nos estudantes noções defensivas de nacionalidade e cidadania, que dificultam ou mesmo impedem que os jovens estabeleçam relações propositivas ou vinculantes das esferas pessoal, social e política em suas vidas cotidianas e em relação às suas expectativas de futuro. São narrativas apresentadas como dadas, sem proble- matização. A aprendizagem simplifica os acontecimentos históricos e reduz o papel de seus atores a um esquema dicotômico: herói-vilão, opressor-oprimi- do, bom-mau, vencedor-vencido. E esses são esquemas que contribuem para naturalização até mesmo das relações de inclusão e exclusão no presente de forma passiva (2011, p. 53).
Los estudiantes parecen enfrentarse a un conflicto que se encuentra a mitad de camino entre lo moral y lo cognitivo, algo que ha sido, igualmente, tema- tizado en estudios con otros actores educativos: ‘Este conflicto moral, a di- ferencia de un conflicto cognitivo, no es producto de una profundización de la comprensión histórica ni de la incorporación de otras perspectivas histo- riográficas, sino de una visión fundamentalmente no comprensiva de la his- toria, donde el pasado es valorado y juzgado de acuerdo a categorías (mora- les) del presente. El problema es que este conflicto normativo-moralista, aunque presentado falsamente como moral – es muy agudo: abre juicio so- bre la historia, pero no tiene herramientas para atravesarla críticamente, y es más, se apoya en ella y la fortalece (dotándola de flexibilidad) (RUIZ SIL- VA, 2011, p. 152-153).
O dualismo maniqueísta baseado em oposições bons-maus, bárbaros-ci- vilizados, espanhóis-indígenas produz um tipo de economia mental (cogniti- va/afetiva), um essencialismo, que comporta uma espécie de esvaziamento de significado. A inclinação valorativa nos relatos dos estudantes é, em boa medi- da, resultado do ensino de uma História nacional que subvaloriza e invisibiliza as tensões e privilegia visões hegemônicas incontaminadas e mesmo imprecisas, irreais da História, como num conto de fadas (RUIZ, 2011). E, para Carretero, a simples inclusão de novos conteúdos, que são apenas agregados a essa estrutu- ra narrativa/explicativa, não tem conseguido superar essa lógica. Apenas in- verte os sinais: se antes o Estado era bom e os subversivos eram maus, agora o Estado de exceção é mau e os perseguidos políticos são bons.
Os estudantes aprendem a atribuir culpa a abstratos agentes externos. No caso da história argentina, a personagens específicos como Roca, ou Rosas, ou genéricos como os espanhóis. Essa estratégia é tão vigorosa, que inclusive os indí- genas chegam a ser compreendidos através dela: eles roubavam, atrasavam o crescimento cultural e intelectual dos argentinos, etc. Segundo Ruiz, as implica- ções ideológicas desse tipo de processo de culpabilização, para os sujeitos que aprendem, podem resultar desastrosas. O que, em princípio, parte de uma difi- culdade para ter acesso a uma compreensão histórica crítica não só afeta as representações do passado, mas pode também inabilitar os sujeitos para o exer- cício político em direção a algum tipo de transformação social no presente.
Segundo Carretero e Castorina, o conteúdo escolar de caráter social ou histórico deveria – e deve – contribuir para proporcionar uma compreensão complexa do mundo. O conhecimento vinculado às ciências sociais e à histó- ria é de grande complexidade porque não proporciona uma mera descrição ou classificação superficial dos fenômenos, mas deve gerar explicações plenas de complexidade conceitual e, consequentemente, um pensamento crítico acerca da sociedade. O domínio do conhecimento histórico influi na seleção e utili- zação de evidências, na formulação de hipóteses, na explicação que é elabora- da pelos indivíduos na solução de problemas históricos (CARRETERO; CAS- TORINA, 2005, p. 122). Em suma, é fundamental abordar e compreender o sofrimento das vítimas de violações aos direitos humanos, suas histórias de vida e suas memórias e como o poder do Estado chegou a convertê-las em vítimas. Mas é basilar também compreender as condições históricas que pro- duzem e tornam possível o horror. E para isso são necessárias ferramentas conceituais e valores que façam sentido no presente para os estudantes. Uma didática centrada no sujeito e em suas capacidades de intervenção e transfor- mação do mundo social em que habitam. Da pele em que habitam. Assim sendo, é imperativo pensar estratégias para o trabalho com conceitos de alto nível de abstração como Estado, ditadura, democracia, república, entre ou- tros. Como fazê-lo?
Ensino de História e identidade nacional
Em um de seus textos mais conhecidos, Mario Carretero coloca um desafio que julga necessário: fazer uma reflexão a respeito da elaboração das memórias e das histórias, pensando em sua particular articulação com o ensi- no escolar (2006). Considera uma demanda urgente investigar como o passa- do vem sendo estudado e transmitido. Não é uma questão menor, diz o autor, pois o cenário está tomado por dois aspectos importantes: pela globalização,
que implica a diluição da centralidade em torno das instâncias estatais nacio- nais, e pela emergência de histórias e identidades que deslocam as disputas identitárias para o campo da cultura. Por isso é necessária a revisão da relação entre historiografia, memórias e ensino de História. Segundo o autor, grande parte das pesquisas envolvendo o ensino de História está concentrada na inter- face entre as didáticas, as novas metodologias e seus desdobramentos sobre a aprendizagem. Sem desconsiderar os esforços dessas investigações, Carretero propõe outro foco de pesquisa, deslocando o olhar para a relação entre a cons- trução de uma identidade nacional e o ensino de História.
A História, como disciplina escolar, suscita discussões bastante com- plexas, notadamente quando são abordadas as suas relações com a construção de identidades associadas a uma dada nação. As tensões entre a formação dos indivíduos, vinculada à dimensão cognitiva ilustrada, e a constituição de iden- tidades nacionais, por sua vez associadas a aspectos românticos, têm sido mo- tivo de pesquisas que investigam como o ensino de História se constituiu e como isso reverberou nos conhecimentos transmitidos na escola. Essas ten- sões não são alheias ao interesse de pesquisadores como Mario Carretero.
A atenção à presença da identidade nacional entrelaçada com o ensino de História e se confundindo, algumas vezes, com suas próprias formas de narrar a nação mobilizou um grupo de pesquisadores vinculados a Carretero.6 Em diversos textos, essa equipe de trabalho apresenta reflexões sobre alguns aspectos que delineiam a História como disciplina escolar.
O autor considera que existe uma particularidade no ensino de História que urge ser pensada porque reverbera na formação dos estudantes até os dias atuais. Deixa claro também que seus interesses nesse tema partem de uma zona fronteiriça com a área de Psicologia, notadamente sua vinculação teóri- ca com Bruner (2002). O psicólogo estadunidense dedicou-se a estudar a men- te e suas conexões com as construções narrativas. Baseado na psicologia do desenvolvimento, Bruner defende que o mundo e a cultura influenciam o com- portamento humano e tomam as formas narrativas como organizadoras da subjetividade.
O intuito de acionar esse aporte teórico da Psicologia é entender como são modeladas as identidades nacionais nas maneiras de pensar das crianças que, desde a mais tenra idade, são expostas a narrativas de amor à pátria. A conclusão é que, desde cedo, esse sentimento tem sido formado nas escolas. Isso teria importância crucial, já que as experiências vividas nessa fase deixam marcas para toda a vida. Partindo de uma compreensão da História numa perspectiva cognitivista, essas questões suscitam investigações do grupo de Carretero sobre alguns fenômenos que ocorrem na escola.
A hipótese sugerida é que as efemérides celebradas nas escolas contribu- em com essa construção afetiva em relação à nação. No trabalho desenvolvido com Mirian Kriger, os pesquisadores detêm-se às questões sobre como se repro- duzem as representações das efemérides cívicas na mente dos alunos (CARRE- TERO; KRIGER 2004). Investigam também quais os significados e valores que os alunos em suas narrativas conferem a esses eventos e como isso contribui para esse sentimento de identificação com a nação. Por meio de uma aproxima- ção empírica com alunos argentinos de 6 a 12 anos percebem que os hábitos cotidianos na escola em torno das celebrações das datas cívicas criam uma espé- cie de compartilhamento afetivo entre pais, alunos e professores.
Em sua parceria com Maria Fernanda González, por sua vez, Carrete- ro explora as imagens históricas e a construção da identidade nacional em países como a Argentina, o Chile e a Espanha. Os pesquisadores observam que os estudantes interiorizam um olhar afetivo sobre determinados fatos his- tóricos que dizem respeito à formação da própria nação. Constatam ainda que os aspectos cognitivos de causalidade, compreensão e produção de narrativas demandadas para a compreensão histórica vêm entrelaçados por esse olhar sentimental pela pátria (CARRETERO; GONZÁLEZ, 2004, p. 173). Tendo em vista que a implantação da História na escola foi marcada sobretudo pelo objetivo de fortalecer os Estados Nacionais, deixou-se de investir na compre- ensão dos estudantes sobre os problemas historiográficos. Esse seria então o motivo do profundo distanciamento entre a História ensinada e a versão aca- dêmica. Interessados em como esses registros emotivos se constroem, Carrete- ro e alguns pesquisadores também analisaram os manuais e livros didáticos escolares, percebendo que, em tempos relativamente recentes, os traços dessa afetividade pela pátria ainda são bem presentes.
Assim, tomam como uma aporia o conflito entre a intenção de ensinar a pensar criticamente, em termos historiográficos, e o escopo de tramar a cons- ciência nacional de cidadãos de determinado país (CARRETERO, 2004, p.72). Para estudar a identidade nacional, nessa perspectiva, é necessário investigar como se forma a voz da nação em cada indivíduo. Por isso desenvolvem estudos que se aproximam do dia a dia dos alunos na escola. O autor propõe não tanto explicar, mas entender como isso foi sendo construído e, mais ainda, como isso tem aparecido e se expressado na atualidade em distintos países.7
Carretero enfatiza a relação entre o surgimento do Estado Liberal e o teor do que era ensinado em História durante o século XIX, quando o patrio- tismo se destaca em relação aos valores universais. Citando estudos sobre isso, apresenta exemplos de que no ensino dessa disciplina escolar prevalecia esse viés nacionalista. Marcadas por essa perspectiva, a historiografia e a escola-
rização contribuíram para a “invenção das nações”. O autor mostra que a configuração dessa “invenção” também ocorria nos romances de acervos po- pulares, em resgates de monumentos arqueológicos, em rituais que sustenta- vam um culto à nação e sobretudo nas escolas com as celebrações das efemé- rides cívicas. Muitos desses hábitos criaram uma “comunidade imaginada”, que legitimava formas de narrar e contar o passado e de propor questões para ações no presente.
Assim, destaca que a relação entre a História e a escola se compõe em uma constante tensão entre os aspectos ilustrado e romântico, já mencionados, constituindo-se em uma das dimensões importantes na vinculação entre o Esta- do e a nação. Nessa configuração tensa, diz o autor, articulam-se as noções de progresso e de emancipação, no âmbito individual, com promessas de mobilida- de social, e também no coletivo, com a imagem da educação como caminho de enriquecimento da nação. Talvez tenha prevalecido assim, diz Carretero, até o abalo causado pelo genocídio nazista e o evento da bomba de Hiroshima, que evidenciaram como o progresso também pode aprimorar a destruição sobre a própria espécie humana. Isso revela, segundo o autor, “que a liberdade, tomada como valor central de nossas sociedades, está fundamentada nos mesmo relatos que a limita, qual seja, basicamente a do progresso ilimitado e a ideia, implícita nele, de uma história única” (CARRETERO, 2004, p. 75).
Tais contradições, entre ideais ilustrados e românticos, parecem também existir, segundo o autor, na razão instrumental do mundo globalizado e nas reconfigurações de nacionalismos e fundamentalismos da atualidade. Para o autor, com a queda do Muro de Berlim, tais reconfigurações são acentuadas e provocam mudanças nas identidades políticas e nas soberanias nacionais, fa- zendo surgir mapas de uma globalização planetária (2004). Por isso, em vários de seus textos, aparecem registros do entrelace entre as histórias que se ensinam nas escolas e o sentimento pátrio. Carretero faz um mapeamento de como isso foi se modelando e como também a partir dos anos 1980, com o cenário de mundo globalizado e multicultural, a História escolar tem tido o desafio de re- configurar seus objetivos ante uma multiplicidade de histórias e identidades.
O problema, para Carretero e Krieger, é de como se pode salvar a polí- tica além das questões estatais. Além disso, assinala a proposta da União Eu- ropeia como uma tentativa ilustrada de dar rumos a essas tensões numa pers- pectiva humanista e intercultural. E nesse caldeirão de tensões e novos rumos para se pensar o ensino de História ele pergunta:
É possível relacionar a história com ideais que escapam às bandeiras nacio- nais? É possível articular história e escola em relação com suas origens mais universais distinguindo com clareza o universal e o global? É possível ensi-
nar uma história tão fluida como as fluidas identidades que parecem carac- terizar este novo tempo? (CARRETERO; KRIEGER, 2004, p. 75).
Tais questões aparecem como forma de fazer pensar sobre a possibilida- de de a História se vincular a um novo projeto de educação, de ética e de cidadania, onde se reconheçam a alteridade e a diversidade. Para ele, os fatos históricos são construções que se articulam a partir de inúmeros elementos, inclusive culturais, e observa que desde a Segunda Guerra a historiografia vem se abrindo para ampliar e aceitar uma multiplicidade de pontos de vista, reno- vando seus métodos e objetos de pesquisa. Entretanto considera que essa aber- tura não ocorre, muitas vezes, no ensino de História, que ainda toma como referência algumas ideias-chave do nacionalismo do século XIX. Afirma tam- bém que a visão unívoca, predominante na historiografia por um longo tem- po, não se sustenta mais diante das inúmeras possibilidades de narrativas e versões que não cabem na dimensão restrita das narrativas nacionalistas.
Carretero, então, diz que o fim desse projeto de Estado-nação deixou a escola em uma situação trágica. Mas lembra que
O filme continua rodando, enquanto apoiarmos seu suspense intrínseco e nada prometeico. Desapegado das certezas, nos coloca à mercê de uma liberdade até então desconhecida, nos impõe uma atenção comprometida e um pulso acelerado. A História é composta em cada uma das montagens particulares sobre frames de inúmeras câmeras. Não na soma de todos eles – uma vez que é impossível supor um olhar onisciente –, mas em cada um, na autocompreen- são e consciência de uma produção simultânea e necessariamente fragmen- tária (2007, p. 37).
Alerta ainda para não pensarmos que todos esses fragmentos de histórias se equivalem. Não se enganem, diz: não há justiça possível. Essas histórias são valorizadas e dadas a ver de formas diferentes, assimétricas e desiguais. O conflito é permanente e, como não há neutralidade, sempre haverá exclusão (CARRETERO, 2007). A História se dá no conflito. Assim, as novas vozes, novas identidades, novas histórias aparecem no conflito e na disputa. Para esse autor, a História perdeu “seu próprio destino histórico”, ao menos no que tradicionalmente se esperava, portanto seu ensino está desafiado a abandonar a dimensão da moral sustentada na máxima história magister vitae, a dimensão patriótica e a suposta neutralidade de sua narrativa. Para Carretero, é preciso mover alicerces e ouvir “outras histórias”.
Sendo assim, o que está em abalo é a própria concepção de história linear, configurada simultaneamente junto à concepção humanista de pedago- gia e a uma mirada pedagógica do humano. Se esse humano é fabricado pela História e pelo Estado, agora a cena mudou e exige, ao menos, saber quais
instituições, discursos e práticas o produzem. E finalmente, diante desse cená- rio conturbado e de mudanças epistêmicas, quais histórias ensinar?
Palavras (in)conclusivas
O aporte dos referenciais construtivistas presente nos debates apresen- tados brevemente neste capítulo permite aos autores afirmarem que o esque- ma mental que organiza e explica o passado também motiva a organização e explicação do presente, bem como a orientação sobre suas ações. O ensino de História escolar, baseado em relatos fundacionais, inquestionáveis, da nação, reforça sentimentos morais que se interiorizam de forma passiva. E há impli- cações para esse tipo de aprendizado da História: a naturalização das desi- gualdades sociais ou mesmo a reprodução de um darwinismo social. A difi- culdade para aceder a uma compreensão crítica afeta não apenas representa- ções do passado, mas pode inabilitar os sujeitos para o exercício político em direção à transformação social do presente (RUIZ SILVA, 2011, p. 171).
Por isso definem como principal objetivo da didática da História a com- plexificação dos conceitos, enquanto recursos explicativos, para superar es- quemas dicotômicos que contribuem para a reprodução simbólica de relações de dominação. A pergunta que atravessa esses debates é: que implicações as explicações do passado produzem no imaginário político de jovens sobre seu próprio tempo e lugar? E se formar para o pleno exercício da cidadania tem sido a pauta principal dos sistemas educativos de Estados latino-americanos, ao menos em seus breves momentos de governos democráticos, educar a sub- jetividade política dos estudantes numa perspectiva emancipatória torna-se um grande desafio para o qual o saber histórico escolar tem muito a contribuir.
Referências
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PIROLA BALESTRA, J. História e Ensino de História das Ditaduras no Brasil e na Argentina. Antíteses, v. 9, n. 18, p. 249-274, jul./dez. 2016. Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Brasil.
RUIZ SILVA, A. Nación, moral y narración: imaginarios sociales en la enseñanza y el aprendizaje de la historia. Buenos Aires: Miño y Dávila Editores, 2011.
1 Professora do Centro de Educação e do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal de Pernambuco. Grupo de Pesquisa Educação, Currículo e Contempo- raneidade (GPECC). E-mail: eletafreire[email protected].
2 Professora do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco e do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal de Pernambuco. Nú- cleo de Estudos e Pesquisas: História, Educação e Culturas (NEPHECs). E-mail: [email protected].
3 Professora do Centro de Educação e do Mestrado Profissional em Ensino de História da Uni- versidade Federal de Pernambuco. Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre História da Educação e Ensino de História em Pernambuco (NEPHEPE). E-mail: mariather[email protected].
4 A mudança conceitual é um tema amplo dentro dos estudos cognitivos; uma parte muito importante do campo da psicologia cognitiva (CARRETERO, M. Entrevista. Fuente: 12(ntes), número 12, año 2, abril 2007). Disponível em: <http://www.mariocarretero.com/ entrevistas1.html>.
5 Para esse tema ver PIROLA BALESTRA, 2016. CARRETERO e BORRRELLI, 2010.
6 Em torno do projeto Ensino de História e construção da Identidade Nacional, dirigido por Mario Carretero, autores de diversos países juntaram-se desenvolvendo trabalhos de pesquisa que ti- veram seus resultados publicados em várias coletâneas.
7 A rede de pesquisadores que o acompanha contempla estudos em alguns países ibero-america- nos como a Argentina, Espanha, Chile e México.
As contribuições da History Education
para a pesquisa em ensino de História
Arnaldo Martin Szlachta Junior1 Márcia Elisa Teté Ramos2
Na incompatibilidade entre as demandas sociais em momentos críticos e as práticas, artefatos e dispositivos escolares, diversos países problematizam/ ram o ensino e a aprendizagem, incluindo a História como disciplina escolar. Na formação das nações europeias e no pós-independência da América, quan- do se pensava em edificar origens, personagens e acontecimentos, mostrando um passado comum e glorioso e um futuro pelo qual valeria a pena lutar; na Europa pós-guerra, quando as promessas do progresso da nação não mais se justificavam frente a um porvir incerto e um passado recente doloroso; no pós-queda do muro de Berlim no final da década de 1980 que exigiu aproxi- mar as culturas históricas dos dois lados do muro independente de suas diver- sidades ideológicas e econômicas; quando a Guerra Fria ameaçou o futuro da humanidade ou quando na América Latina e em alguns países europeus as ditaduras impuseram um história escolar obediente e controlada. Atualmente, os revisionismos conservadores (especialmente de extrema direita) desafiam-nos a refletir sobre como (re)compor nosso engajamento como historiadores/pro- fessores, pois é certo que o pensamento/conhecimento histórico proporciona posições, intencionalidades e ações que podem contribuir para o norte do fu- turo de uma sociedade.
Afora as diversidades históricas locais com seus momentos históricos distintos de ruptura, podemos aferir que basicamente se tem caminhado para a inconformidade com um ensino de História considerado tradicional, quan- do o passado é transmitido e memorizado e privilegia-se o factual e/ou a quan- tidade de conteúdos históricos de modo acrítico, portanto, sem significado para a vida prática dos estudantes. Servimo-nos dessa ideia de “ensino tradicio- nal” apenas para distinguir um período quando o ensino e a aprendizagem histórica são postos em questão, pois, bem advertiu Peter Lee sobre o clichê “ensino tradicional versus progressista”, bastante reducionista, pois não há como verificar se as características de um ensino tido como tradicional, centrado no factual e não no aluno, efetivam-se nas ações dos sujeitos escolares (LEE, 2016, p. 111).
Neste texto, exibimos brevemente uma das vertentes contributivas na contraposição ao “ensino tradicional”, qual seja, a History Education, enten- dendo esse campo como mutável desde a década de 1960 na Inglaterra e sendo apropriado no Brasil conforme suas especificidades e reflexões/experiências historicamente acumuladas. A temática proposta é complexa, e por isso mesmo optamos por delimitá-la priorizando alguns pesquisadores, mas em especial Peter Lee, hoje professor aposentado do Institute of Education (IoE) da Universi- ty of Londres, considerando-o como expoente da History Education, provavel- mente mais utilizado no Brasil.
As investigações da History Education permanecem influenciando estu- dos em várias partes do mundo, como nos Estados Unidos, Espanha, Grécia, Tailândia, Singapura, Canadá; em Portugal e Brasil, são denominadas Educa- ção Histórica. Vale dizer que no Brasil tomou forma uma recontextualização da History Education, combinando esse campo com o da Didática da História, relacionando cognição histórica com conceitos trabalhados, sobretudo por Jörn Rüsen como consciência histórica, cultura histórica ou ainda formação histó- rica.3
Marcamos neste texto a concepção da History Education conforme a tra- jetória dos estudos desse campo, subdividindo-os em três partes: 1) os estudos iniciais de 1960 e 1070; 2) as pesquisas consolidadoras do campo na década de 1980 e 3) as críticas em relação aos empregos dos conceitos da History Education e a expansão de 1990 em diante. No final de cada parte, retomamos alguns dos principais conceitos ou procedimentos que podem ser adotados para pensar a pesquisa e o ensino de História na atualidade.
Anos 1960 e 1970: um novo olhar sobre o ensino e a aprendizagem histórica
As mudanças no paradigma do ensino e aprendizagem histórica ocorre- ram na Inglaterra na década de 1960, pois, naquele momento, se verificava que os alunos não cogitavam optar pela histórica como disciplina escolar no sistema de créditos (LEE, 2001). Como dissemos na introdução, também há que pensar esse período como repleto de inquietações, demandas, lacunas, precisando ser resolvidas por um ensino que situasse os sujeitos em outra po- sição diferente daquela da mera passividade diante do saber, de modo que vissem sentido no estudo da História.
Decorrentes desse contexto de reestruturação, algumas iniciativas, como a publicação da revista Teaching History pela Historical Association em 19694, sendo um dos primeiros periódicos dedicados às pesquisas de ensino de Histó- ria, e o Projeto The Schools Council History, vindo a ser conhecido posterior-
mente como Schools History Project (SHP) em 19725, configuravam-se espaços de argumentação interessados em sujeitos escolares que soubessem História além das informações desconexas. Porém já vigoravam estudos cujo objetivo era escrutinar o estudante como sujeito de saber, de vontade, de interesse, mas esses ainda eram selados por determinada forma de entender Piaget, confor- mando o nível cognitivo do aluno com sua faixa etária sem se vislumbrar a intersecção de outros marcadores constitutivos da identidade social.
Segundo a forma restritiva de interpretação piagetiana, tomando alguns aspectos de sua teoria de epistemologia genética, apenas entre os 16,5 e os 18,2 anos os sujeitos estariam em estágio apropriado de evolução do pensa- mento para alcançar a compreensão dos conceitos históricos, em especial de temporalidade. A pesquisa de Roy Hallam, da St. Martin’s College de Lancaster em 1967, por exemplo – que o próprio autor em 1975 passou a questionar –, corroborava a remoção dessa disciplina no currículo escolar ou sua modifica- ção mediante o interesse de outras disciplinas escolares sob a justificativa de interdisciplinaridade (BARCA, 2000; ALBERTI, 2010). Esse pretexto tam- bém foi empregado no Brasil para a substituição da História e da Geografia pela disciplina de Estudos Sociais na década de 1970 no então chamado Pri- meiro Grau. Entendia-se a aquisição do raciocínio hipotético-dedutivo em História como mais difícil de adquirir do que a dos conceitos físico-matemáti- cos, e por isso mesmo a introdução da História na escola deveria ser adiada ao máximo (BITTENCOURT, 2000, p. 132-133).6
O estudo de Edwin Peel em 1971 localizava-se em uma fase de transi- ção, ou seja, embora tomasse como ponto de partida a teoria piagetiana para construir uma tipologia da cognição, ao mesmo tempo voltava a atenção às disciplinas escolares específicas, inclusive a História (BARCA, 2000; LEE, 2012). Isabel Barca (2000, p. 25) remonta ao questionamento de Donald Thompson em 1972 sobre uma visão geral quanto à aprendizagem que culmi- nava na ideia de inoperância do ensino de História, sendo que o autor já real- çava as particularidades dessa disciplina escolar. Esta premissa da História como disciplina escolar terminou influenciando Peter Lee em 1978, quando buscava conciliá-la com Piaget em um estudo exploratório, base para os estu- dos em conjunto com Dickinson em 1978 e 1984 na utilização da noção de “equilibração”: resumidamente, um mecanismo regulador apresentado por todo sujeito ao compor o conhecimento, equilibrando a assimilação e adaptação para dar conta dos problemas oferecidos por sua realidade. Adentrando-se em uma concepção mais articulada com a História, Peter Lee usou essa ideia e produziu o conceito de “oscilação”, que originaria a ideia de progressão.
De acordo com Isabel Barca (2001), o trabalho pioneiro da History Edu- cation provém do estudo de Alaric Dickinson e Peter Lee mencionado acima. Esses professores atuavam no Institute of Educaciona (IoE) da University of Lon- don com um projeto intitulado Understanding and research em 1978. Trabalhan- do com jovens de 8 a 16 anos, o estudo demonstrava que crianças de 8 a 11 anos apresentavam, por vezes, idêntica aptidão de realizar tarefas de constru- ção do conhecimento histórico como jovens de 12 a 14 anos. Dessa forma, refutava-se a teoria de invariância dos estágios de desenvolvimento cognitivo, amparados nos estudos piagetianos, introduzindo a concepção de progressão, mais voltada para o estudo da cognição histórica situada (GERMINARI, 2011). O estudo motivou novas questões em relação ao ensino e à aprendizagem em História como: Quais ideias as crianças trazem para disciplina de História? Quais os conceitos, quais imagens a História fornece às crianças? (LEE, 2001 p. 14).
No final deste item, esclarecemos um conceito-base, começando a ser mapeado pela History Education: progressão. Esse ajuíza que: 1) o desenvolvi- mento cognitivo não se dá pela consonância com a idade ou seriação escolar, mas pelo contexto histórico vivido pelos sujeitos. Se o contexto histórico é importante para os construtos cognitivos, variáveis merecem apreciação: clas- se social; tipo de escola frequentada; estímulos culturais que chegam aos alu- nos; além da etnia, da religião, da geração, local, etc.; e 2) quando investiga- mos qual o nível onde se encontra o sujeito em termos de aprendizagem histó- rica (progressão da cognição histórica), valem a medição e a explicação pauta- das na epistemologia da História. A progressão seria avaliada segundo as ha- bilidades dos alunos de operarem metodologicamente as evidências históri- cas, mobilizando conceitos históricos. Vai se delineando a ideia de literacy (le- tramento), própria do ensino de História (designado em Portugal e no Brasil como literacia histórica), como forma de pensar historicamente.
Anos 1980, conceitos embasadores
Denis Shemilt, professor do Institute of Educacion da University of Leeds, publicou em 1983 o artigo The devil’s locomotive na revista History and Theory, onde analisa parte de uma frase atribuída a Tolstoy: “Uma locomotiva está em movimento. Alguns perguntam: ‘O que a faz mover?’ O camponês responde: ‘É o diabo que o move’”, demonstrando que a explicação do camponês pode ser uma possibilidade, mas está longe da perspectiva da ciência, que explicaria de fato o movimento da locomotiva. Denis Shemilt fez a seguinte analogia:
O camponês de Tolstoy é um engenheiro pobre, mas metafisicamente com- prometido. Ele não tem dimensão do que é ignorar o pensamento mecânico, nem de que a pergunta poderia ser respondida de outra maneira. Uma visão dentro da caldeira e fornalha da locomotiva não iria iluminar seus pensa- mentos; pelo contrário, seria uma visão do inferno. Os adolescentes rara- mente interpretam a história da maneira tolstoiana, mas muitas das suposi- ções que fazem sobre o assunto são tão inapropriadas quanto a visão do camponês. Ouvir uma lição de história, ignorante sobre as perspectivas e métodos sobre o assunto, seria semelhante a assistir a uma locomotiva sem a devida compreensão da física, fábricas e da economia. A ação pode ser segui- da, mas seu significado será ilusório (SHEMILT, 1983, p. 1, tradução nossa) .
O pensamento do camponês de Tolstoy sobre a locomotiva assemelha-se às concepções históricas distantes de sua lógica própria. Shemilt argumenta que, se há a necessidade de determinados conhecimentos mais próximos da veracidade para compreender como funcionam a caldeira e a fornalha da lo- comotiva, de igual modo o aluno de História, assim como o pesquisador do ensino de História, precisam conhecer/aplicar os métodos da ciência histórica para não ser um “engenheiro pobre” com uma explicação possível, mas limi- tada. Shemilt foi um dos coordenadores do Projeto 13-16, assumindo a lideran- ça em sua última fase, e em 1988 indagou crianças de 13 aos 16 anos sobre suas capacidades de pensar historicamente, englobando a competência analí- tica quanto às evidências históricas, então vinculada à apreensão sobre como se escreve a História de forma científica e ainda questionou como esses sujei- tos transferiam o aprendizado em História para o mundo da vida. Os instru- mentos dessa pesquisa apresentavam um viés qualitativo – entrevistas, ques- tionários e observação de campo –, aplicado a 500 estudantes de 24 escolas (SCHMIDT, 2015, p. 38-39).
Em 1984, outro estudo de Lee e Dickinson em Making Sense of History
aprofundou a concepção de progressão, examinando as ideias e explicações nomeadamente históricas, contando com jovens de 8 a 18 anos. Nessa pesqui- sa, abordaram-se questões cruciais para os pesquisadores até hoje, ou seja, a empatia histórica e a imaginação histórica como fundantes do pensamento histó- rico (GERMINARI, 2011 p. 57). Nessa direção, Peter Lee e Rosalyn Ashby realizaram, no final dos anos 1980, estudos sobre compreensão histórica, en- volvendo empatia histórica e evidências históricas (SCHMIDT, 2015, p. 39), resultando em uma série de artigos.
A pesquisa mais apurada sobre esses conceitos acima referidos ocorreu em 1987 sob a coordenação dos pesquisadores Peter Lee, Alaric Dickinson e Rosalyn Ashby. Conhecida como Projeto CHATA, sigla em inglês para Con- cepts of Histoy and Teaching Approaches, abalizava as mudanças nas ideias dos
alunos de 6 a 14 anos em relação à História, utilizando uma amostragem de 320 alunos de três escolas primárias e seis secundárias. Em uma das atividades foram dispostas duas versões distintas sobre a ocupação romana das ilhas bri- tânicas, sendo a primeira destacando os ganhos dos britânicos com a chegada dos romanos, pois não precisariam mais viver em casas de madeira, enquanto a segunda versão mostrava os britânicos em uma vida agradável antes da che- gada dos romanos, mas posteriormente passaram a imitar os romanos assimi- lando sua cultura. Na sequência, foi colocada a questão: Como poderiam existir histórias diferentes sobre um mesmo fato?
Os resultados demonstraram que as crianças mais novas entenderam as históricas como idênticas, como se houvesse alteração apenas na maneira como foram escritas: “A diferença está na forma como se conta a história. Não per- cebem como se pode contar a história sob perspectivas diferentes” (LEE, 2001,
- 18). Alguns alunos mais velhos acreditavam que as diferenças de perspecti- va aconteciam devido ao nível de conhecimento do autor sobre o assunto, mas um pequeno grupo de alunos de 7 a 9 anos demonstrou saber que “as histórias não são cópias do passado, elas são construídas” (LEE, 2001, p. 20). Os alunos também deveriam explicar as razões das ações dos sujeitos, como a do impera- dor Claudio na invasão da Bretanha, para os pesquisadores diferenciarem as explicações dos alunos sobre as atuações de personagens na História. Ainda que alguns tivessem a noção de que as pessoas apenas escolhem qual atitude tomar, outros apresentavam explicações mais plausíveis, relacionando as ações com o contexto histórico do sujeito, ou seja, revelavam ter empatia histórica.
Os novos estudos sobre a compreensão histórica possibilitaram a cria- ção de modelos mais elaborados e sistematizados de progressão da empatia e compreensão histórica. E, assim, o campo da History Education formou um corpo conceitual pertinente para a articulação entre a pesquisa e o ensino de Histó- ria, almejando-se o letramento histórico como a capacidade do sujeito de in- trojetar uma forma de pensar o mundo historicamente, utilizando para isso “ideias-chave que tornam o conhecimento do passado possível”, incluindo “o conhecimento de como podemos inferir e testar afirmações, explicar eventos e processos e fazer relatos do passado” (LEE, 2016, p. 121).
Esse letramento seria a progressão da capacidade de mobilizar os concei- tos históricos substantivos e conceitos de segunda ordem, sendo o primeiro referente aos conteúdos históricos – como Revolução Industrial, Renascimento, Expan- são marítima europeia, Estado, globalização, entre outros –, previamente pes- quisados, produzidos e sancionados pelos historiadores com o emprego dos conceitos de segunda ordem. Já os conceitos de segunda ordem – ou conceitos estruturais, ou ainda meta-históricos – são conceitos intrínsecos à construção
do conhecimento histórico, como: evidência; explicação histórica; empatia his- tórica; causalidade e multicausalidade; multiperspectividade; significância his- tórica, sem os quais não se ergueriam os conceitos substantivos.
Dos conceitos de segunda ordem, certamente o de evidência histórica é basilar para o letramento histórico e consiste na capacidade de criar hipóteses sobre iniciativas, ações e intenções não expressas de maneira direta e objetiva nas fontes em análise. A evidência é a base do trabalho do historiador, visto possibilitar narrativas explicativas do não explícito na fonte ou até mesmo daquilo intencionalmente deixado à parte. A literacia histórica demanda um “compromisso de indagação” com as “marcas de identificação” da História, como “passado”, “acontecimento”, “evento”, “causa”, “mudança”, etc., “o que requer um conceito de evidência” (LEE, 2006, p. 136). Aqui abrimos um parêntese para diferenciar fonte de evidência histórica, pois, enquanto a fonte supostamente reproduz o passado, restando apenas perceber o relatado por ela, a evidência é qualquer fonte como artefato do passado passível de inter- pretação, capaz de dar respostas às questões estabelecidas em relação ao con- texto da sociedade que a produziu (ASHBY, 2003, p. 37-58).
O uso escolar das evidências correlaciona-se com o conceito de empatia histórica, sublinhada por Peter Lee como “disposição” (reconhecimento de que ações e pensamentos são próprios de um contexto histórico) e como “realiza- ção” (compreensão da intenção dos sujeitos nas ações humanas em outro con- texto temporal) (LEE, 2003, p. 20-21). Segundo Lee, sem empatia não seria possível compreender as ações históricas, algo essencial para a aprendiza- gem histórica (2004, p. 92). A empatia histórica é o reconhecimento das dis- tâncias/diferenças temporais e, consequentemente, sobre “as nossas formas de pensar e nosso tempo atual” (ALBERTI, 2010, p. 85).
Além de tais conceitos, vimos paulatinamente validar-se determinada metodologia de pesquisa, que se estenderá nas pesquisas subsequentes da His- tory Education. Em resumo, tais pesquisas implicam a utilização de fontes his- tóricas de tipologia variada, como excertos de documentos escritos, literários ou historiográficos e materiais fílmicos ou imagéticos, para os alunos respon- derem interrogações por intermédio de diversos feitios de narrativas. Empre- ga-se uma gama de instrumentos de pesquisa, como Grupos Focais7, questio- nários, entrevistas, histórias hipotéticas8, entre outros, e tornou-se comum to- mar duas ou mais fontes históricas de perspectivas divergentes para apreender se os alunos conseguem compará-las e/ou diferenciá-las, lidando com concei- tos e procedimentos próprios da natureza do conhecimento histórico.
Por vezes, a pesquisa reporta-se à combinação de diferentes técnicas para o levantamento dos dados e evidências, permitindo uma triangulação, ou seja,
utilizam-se os princípios de investigação e análise da Grounded Theory. Uma das suas características compreende ir criando no decorrer da pesquisa as cate- gorias de análise, ou seja, percebem-se as mensagens nucleares nas regularida- des nas narrativas, reconhecendo, diferenciando e classificando as ideias his- tóricas dos alunos. Por isso, comumente, uma pesquisa nessa direção abarca de dois a três estudos, sendo que, dependendo das respostas dos agentes esco- lares em cada estudo e/ou das diferentes evidências interpretadas, as interro- gações ou as técnicas vão sendo reformuladas com vistas a um resultado com grau mais “confiável”, “plausível” ou “consistente” (GAGO, 2007).
Anos 1990 aos dias de hoje: consolidação e revisão
Outras iniciativas alçaram um movimento de influência recíproca com a History Education; entre elas notabiliza-se o Projeto How people learn – HPL (“Como as pessoas aprendem”), desenvolvido nos Estados Unidos nos anos 1990 pela National Research Council, cujo objetivo era investigar como se dava o aprendizado humano, tendo, além da História, outras áreas como Matemáti- ca e Ciências. Oliveira (2018), ao listar as referências da Psicologia em Peter Lee, citou os pesquisadores da HPL: John D. Bransford, Ann L. Brown e Rod- ney R. Cocking.
Esta pesquisa chegou a três princípios gerais do aprendizado aplicáveis a todas as disciplinas, que, transpostas para a pesquisa e o ensino de História da History Education, seriam: 1) investigação sobre os conhecimentos prévios dos alunos: O que pensam sobre a história ou sobre o passado? E se consegui- mos diagnosticar como pensam, como prognosticar conhecimentos mais fun- damentados/elaborados ou menos problemáticos/lacunares?; 2) caberia ao ensino de História a mobilização dos conceitos substantivos e dos conceitos de segunda ordem, pois todas as áreas do conhecimento têm seus próprios conceitos; e 3) os alunos devem saber avaliar o processo de estruturação do conhecimento para saber “aplicar” a lógica histórica nas situações com as quais se deparam na vida prática: “Os alunos não conseguem adquirir entendimen- tos de segunda ordem pela prática apenas, eles precisam pensar sobre o que estão fazendo” (ALBERTI, 2010, p. 93).
As relações teóricas e conceituais da Educação Histórica Inglesa com os da Didática História de Jörn Rüsen ocorreram simultaneamente à expan- são dessas para outros países durante os anos 1990 e 2000 e revelaram impor- tantes parcerias autorais. Ainda na década de 1990, os primeiros trabalhos sobre a consciência histórica de jovens começaram na Alemanha com os tra- balhos do norueguês Magne Angvik e do alemão Bodo von Borries (1997) no
Projeto Youth and History, buscando as ideias históricas dos jovens quanto ao cenário histórico pós-unificação. Um dos pontos altos da pesquisa foi perce- ber a prevalência do modelo capitalista no ideal de unificação alemã, provo- cando o receio de que a memória e a história da Alemanha Oriental pudessem ser renegadas/esquecidas (GERMINARI, 2011, p. 62). Observaram-se pro- fessores de História com formações bem diferentes, sendo os professores oriun- dos da parte oriental (RDA), orientados na lógica marxista-leninista, cujo fun- damento era essencialmente voltado à pedagogia, com foco especial na parte instrumental do ensino, na discussão de métodos de ensino, na psicologia da aprendizagem e no desenvolvimento das classes sociais. A perspectiva da par- te ocidental (RFA) privilegiou a formação histórica de seus professores, im- pulsionando mudanças significativas no ensino de História após a unificação (JUNG; STAHER, 1998, p. 135).
Angvik e Borries, amparados na Didática da História de Rüsen, tinham múltiplos objetivos de análise sobre a qualidade, as características e os resulta- dos práticos do ensino de História, desenhando e avaliando o conceito de cons- ciência histórica dos jovens de 15 anos e de seus professores, tomando 25 países europeus, além da Turquia, Israel e Palestina. A pesquisa de base intercultural contou com 32.000 sujeitos escolares, e em cada país houve de 800 a 1.200 res- pondentes de perguntas que abrangiam itens dos conteúdos históricos, aspectos sobre as metodologias de ensino e suas perspectivas de cidadania e história.
Peter Seixas, professor da University of British Columbia (Canadá), é ou- tro pesquisador a ser lembrado por suas pesquisas na década de 1990 – e sobre as pesquisas atuais retornaremos no final –, quando estudou o conceito de signi- ficância histórica e metacognição como impactantes na “importância de se conhe- cer a maneira pela qual os alunos relacionam novos conhecimentos com os co- nhecimentos que já possuem”, e ainda “as relações que se estabelecem no pen- samento dos alunos e que dizem respeito aos sujeitos históricos, à empatia, aos juízos morais e aos sentidos que eles conferem às ações de sua vida prática a partir do conhecimento histórico adquirido” (SCHMIDT, 2015, p. 40).
Keith Barton (Indiana University Bloomington) esquadrinhou em 1996 como os alunos pensavam os padrões de mudanças. Esse estudo tanto revigo- rou outros estudos do campo como servirá para outros examinarem as ideias dos alunos quanto à multicausalidade. O pesquisador perguntou aos estudantes por que as bruxas deixaram de ser queimadas no século XVIII, e as respostas expressaram a tendência em pensar a mudança como deliberação racional das pessoas e/ou de imputar a um fato singular a causa de grandes mudanças. Barton e Adam McCully (Ulster University) estudaram em 2008 as ideias de 120 crianças dos 6 aos 12 anos de oito escolas, quatro dos Estados Unidos e
quatro da Irlanda do Norte. Os alunos provinham de diferentes meios (urbano e rural) e identidades religiosas (católicos e protestantes), bem como de con- textos econômicos e sociais diversificados (BARCA, 2011). Exploraram entre- vistas semiestruturadas, e em cada entrevista eram mostradas imagens de dife- rentes épocas dos locais onde os próprios alunos moravam, com o objetivo de apreender as ideias de progresso, de mudança, de evolução ou de diversidade. Isabel Barca, comentando a pesquisa de Keith Barton e Adam McCully, viu os alunos estadunidenses conceberem “a mudança como evolução, no sentido de progresso linear e em resultado da acção individual; os alunos irlandeses inte- gram a ideia de diversidade de situações em simultâneo, quer no sentido de progresso, quer simplesmente de mudança, e têm em consideração factores de caráter social” (BARCA, 2011, p. 64).
A partir dessas considerações, Barca vem grifando em seus escritos ou- tro conceito estrutural da compreensão histórica, a multiperspectividade, ressal- tando a dificuldade de os alunos desenvolverem essa concepção, que lida com a possibilidade de a mesma situação histórica acarretar múltiplas interpreta- ções/versões, sendo interpretada através de diversos enfoques (dimensões so- ciais, grupos humanos e personagens), ritmos (permanência, evolução, ruptu- ra) e escalas (curta, média e longa duração) (BARCA, 2011, p. 62-63)
Comentando a questão da mudança, multicausalidade e multiperspectivida- de, Peter Lee argumenta a necessidade de refletir sobre o conceito de significân- cia histórica, ou seja, perceber como os alunos atribuem significado às mudan- ças e se esses alunos entendem que a seleção de acontecimentos ou períodos históricos pelo historiador não é desinteressada e não corresponde à totalida- de da História. Os fatos escolhidos “para ficar para a História” são aqueles que permitem pensar a mudança no contexto histórico em estudo, sendo que a mesma mudança pode ser significada de formas diferentes, dependendo do tema que se aborda (LEE, 2005).
Arthur Chapman assumiu a cadeira de History Education no IoE em 2013, anteriormente ocupada por Peter Lee. Em um artigo datado de 2010, por meio de uma história hipotética sobre as possíveis causas da morte de um camelo concluiu que os alunos pensam as causas históricas pelo efeito dominó, ou seja, como “entidades distintas que agem independentemente” (ALBERTI, 2010, p. 87). Chapman, sob influência do CHATA, identificou as dificuldades dos jovens na compreensão histórica ao partir da ideia de um passado único, com sentido fixo, por isso mesmo devendo ser memorizado. Os estudantes classificavam o trabalho dos historiadores conforme sua “descoberta” da ver- dade na História. O autor acreditou que o exercício argumentativo dos alunos pautava-se em suas vivências, experiências e lembranças/memórias, cabendo
ao professor trabalhar conjuntamente com eles suas habilidades argumentati- vas, suas elaborações e associações rumo a uma aprendizagem crítica e autô- noma em História.
Um dos trabalhos importantes nessa fase é o da pesquisadora Hilary Cooper do St. Martin’s College em Lancaster por ter demonstrado como é viável trabalhar a aprendizagem histórica com as crianças da Educação Infantil usando a imaginação histórica, distinguindo concepções históricas das “inventivida- des” e explorando as explanações interpretativas orais (COOPER, 2012a, p. 24). A autora propôs a “imaginação dinâmica” como transição do conheci- mento factual, estático, para um nível mais abstrato da História. As crianças podem ser incitadas a usar a imaginação histórica com as questões propostas por Hilary Cooper: O que eu sei sobre isso (objeto, pessoa ou fato)? O que posso imaginar sobre isso? Onde posso saber mais sobre isso? Dessa forma, em um primeiro momento, recorre-se ao conhecimento prévio; no segundo momento, às hipóteses, ou seja, à imaginação histórica; e, enfim, onde pesqui- sar/encontrar mais elementos sobre a temática (COOPER, 2012b, p. 32-34). Para acessar a imaginação dinâmica, produzindo conceitos históricos e signi- ficados para o passado, Cooper indicou o uso escolar das evidências com base nas inferências, sequências temporais, ampliação do vocabulário histórico, com- preensão das diferentes atitudes e dos valores do passado e a argumentação sobre a validade/verdade histórica.
Nessa fase, houve a difusão de um conjunto de métodos, técnicas, te- mas, conceitos e objetivos da History Education e ainda a articulação com ou- tros referenciais, em especial com a Didática da História alemã, como o traba- lho de Magne Angvik e Bodo von Borries (1997). Isabel Barca (Portugal), na tese intitulada O pensamento histórico dos jovens. Ideias dos acontecimentos acerca da provisoriedade da explicação histórica, defendida em 1996 e publicada em Portu- gal em 2000, orientada por Peter Lee, identificou várias referências quanto à trajetória da History Education, bem como a orientação teórico-metodológica do campo. Nesse trabalho, Barca estuda as explicações históricas dos alunos e a noção desses sobre a provisoriedade da explicação histórica. Isabel Barca representa as parcerias possíveis com estudiosos de diferentes países, e mais recentemente seus estudos sobrepõem Peter Lee e Jörn Rüsen. A nosso ver, são dois campos intercambiáveis, mas, grosso modo, a History Education apre- senta um método indutivo, privilegiando a instrumentalização metodológica na coleta de dados que possa mostrar como um grupo particular de sujeitos pen- sa, enquanto a Didática da História utiliza o método dedutivo, discutindo pre- missas gerais (consciência histórica, cultura histórica e formação histórica) em direção às premissas particulares, questionando por que os sujeitos pensam
de determinada forma e como fazer para que pensem de forma diferente, de preferência perspectivando uma sociedade mais democrática e humana.
Thiago Augusto Divardim de Oliveira realçou os cuidados nas aproxi- mações conceituais da History Education com a Didaktik Geschichte, pois esses percorreram caminhos diferentes: Jörn Rüsen comprometeu-se com “os hori- zontes políticos da formação humana”, considerando a sociedade de maneira mais ampla (OLIVEIRA, 2018, p. 5), e Peter Lee “acaba focalizando mais detalhadamente as respostas e padrões das respostas dadas pelos alunos”. O autor não refutou a possibilidade de confluência entre um campo e outro, as- sim como Ronaldo Cardoso Alves, que primou o “encontro epistemológico” das duas vertentes, principalmente na recusa da “dicotomia entre os denomi- nados saber escolar e saber científico”. Alves declarou que a Didática da His- tória “parte da racionalidade histórica, estruturada principalmente no espaço escolar, relacionando a História às necessidades da vida cotidiana com a fi- nalidade de construir consciência histórica”, enquanto a Educação História Inglesa “toma a vivência escolar como ponto de partida para a construção do conhecimento histórico, mediada por uma reflexão epistemológica cons- trutora de metodologias que dotem alunos e professores de habilidades e competências históricas que os façam ler e agir no mundo que os cerca” (ALVES, 2013, p. 60).
Alguns pesquisadores nessa última fase passam a retomar alguns con-
ceitos, questionando-os, como o conceito de empatia. Assim, Peter Lee pro- pôs substituir a palavra “empatia” por “compreensão”, mais precisamente: “compreensão histórica”, pois não seria um sentimento, “embora envolva o reconhecimento de que as pessoas possuem sentimentos” (LEE, 2003, p. 20). De acordo com Lee e Shemilt, a empatia não poder pensada como envolvi- mento afetivo e/ou como simpatia e simples identificação (LEE; SHEMILT, 2011, p. 40) ou ainda como uma maneira de entrar nas cabeças das pessoas do passado, e sim onde chegamos quando, com base em evidências, reconstruí- mos as crenças e os valores das pessoas de forma a tornar inteligíveis suas ações e práticas sociais na História (LEE; SHEMILT, 2011, p. 48).
São várias as críticas que vão adensando as concepções, os conceitos e os métodos da History Education. Lukas Perikleous, fundamentando-se na His- tory Education, analisou as ideias de empatia histórica de alunos cipriotas entre 9 e 12 anos de idade. Os alunos responderam duas questões que versavam sobre o tratamento recebido pelas crianças cipriotas na Esparta Antiga e no início do século XX, concluindo sobre a predominância do que designou pre- senteísmo. Perikleous, utilizando esse conceito, como Peter Lee (2003), desta- cou que os alunos pensam o passado como deficitário, em que as pessoas são
mais atrasadas e menos inteligentes (2011, p. 225). O pesquisador também critica o modo como a empatia histórica e a imaginação histórica vêm sendo apropriadas em alguns trabalhos. A empatia como próxima à identificação é problemática, pois nem sempre se quer alunos identificando-se com certos agentes históricos, e a imaginação não pode ser descolada do conhecimento do contexto histórico e da interpretação das evidências (2011, p. 223).
A progressão não pode ser vista de forma mecânica como “evolução” cognitiva sob o perigo de terminar usando o conceito de forma problemática, recaindo naquilo que se quer criticar. Como Peter Lee lembrou, a progressão é a potencialização “de um aparato conceitual de segunda ordem que permita a história prosseguir ao invés de forçá-la a parar”. O modo internalizado de construir a compreensão histórica e a “vontade e capacidade de empregar tal entendimento” (LEE, 2016, p. 120) resultam na disposição de produzir me- lhores argumentos, no reconhecimento de que as perspectivas históricas po- dem ser diferenciadas e de que pessoas do passado devem ser tratadas “com o mesmo respeito que gostaríamos para nós mesmos como seres humanos” (LEE, 2016, p. 121).
Outro conceito controverso é a imaginação histórica, inspirada em Robin George Collingwood, lembrando que a History Education, especialmente em Peter Lee, recorre à filosofia da História de autores como por exemplo: William Herbert Dray; Karl Popper; Carl Gustav Hempel; Arthur Coleman Danto; William Henry Walsh e Michael Oakeshott (OLIVEIRA, 2018, p. 13). A ima- ginação histórica corresponde a levantar hipóteses, já que não há como retra- tar a História como realmente aconteceu, mas aquilo que poderia ter aconteci- do (COLLINGWOOD, 1994, p. 299). Embora o ponto de partida sejam as fontes históricas, essas se transformam em evidências quando interpretadas, e para fazer isso, devemos ultrapassar o que elas indicam. As hipóteses sobre acontecimentos desenvolvem-se em concordância com a plausibilidade histó- rica, processo denominado por Collingwood como “interpolação”. Peter Lee considera que, de um lado, a imaginação não pode ser vista como ficção, po- rém, embasada pelas evidências, empatia e conceitos históricos substantivos e estruturais, de outro lado, a História apartada da imaginação só poderia for- necer informação (2004, p. 88).
Ao longo do tempo, as pesquisas proporcionaram repensar/rever alguns conceitos e técnicas de pesquisa, de modo que o campo da History Education permanece potente e continua permitindo a reflexão sobre a superação do en- sino de História tradicional. Na atualidade, alguns autores ligados a esse cam- po investigativo, sem se distanciar da empiria, passaram a incluir a ação no pensar historicamente. Desde 2004, Keith Barton e Linda S. Levstik mostram
em Teaching History for the Common Good uma inquietação sobre qual o ensino de História seria capaz de formar o engajamento no sujeito para que ele se torne um cidadão da democracia pluralista. Isabel Barca estudou a ideia de mudança de jovens, concluindo que “suas atitudes indiciam a emergência de uma orientação temporal consciente”, o que seria “um dos caminhos no sen- tido de contribuir para estimular a construção (pelos jovens e pelos menos jovens) de novas hipóteses de um futuro melhor para os seres humanos” (BAR- CA, 2011, 69). Peter Seixas explora a ação histórica como conceito de segunda ordem, entendendo que “a visão sobre o passado a partir do presente nos pre- para para a ação” (2012, p. 537); portanto a compreensão da História tem um “uso prático” se o sujeito se perceber como ser ativo que age com autonomia e ao mesmo tempo dentro de limitações sociais (2012, p. 540). Mesmo Peter Lee (2016) criticou a noção de competência que vem assolando as políticas educa- cionais, tentando converter o ensino de História em “algo genérico”, fazendo com que ele perca sua “força de luta”. Lembrando que para a História ser “transformativa”, precisa expandir o aparato conceitual histórico do aluno, o que o desenvolvimento das competências não pode fazer, pois se aparta das normas e critérios próprios ao estudo do passado.
Algumas considerações
Tentamos demonstrar neste breve texto um pouco dos caminhos da His- tory Education e sua concepção inicial de pensar o ensino de História pela lógi- ca histórica, rompendo com entendimentos psicopedagógicos até então vigen- tes. Através de diversos projetos supracitados se consolidou como uma área de pesquisa que se expandiu e se expande para outros países, engendrando a in- terlocução com outras perspectivas teóricas, como as relacionadas à Teoria e Didática da História de Jörn Rüsen.
Não conseguimos dar o devido valor a todos os autores da escola ingle- sa da History Education em um texto que se propõe abrangente, mas buscamos relacionar uma sequência temporal dos principais momentos de sua consoli- dação como base teórico-investigativa, associando-a à apresentação de concei- tos desenvolvidos por esses pesquisadores.
A empatia histórica, eixo norteador do letramento histórico, remete à compreensão contextualizada do Outro que viveu no passado, mas também do Outro que vive no presente e predispõe a problematização e contextualiza- ção do Eu inserido no mundo e na interação com os Outros. Por isso exerce papel relevante na formação de cidadãos democráticos, capazes de reconhecer e respeitar valores, atitudes, crenças e intenções de outras pessoas. O compro-
misso com o letramento histórico supera a internalização da metodologia da história para ler o mundo, pois requisita também uma vontade de mudá-lo, cimentada na interface entre ética e perspectiva de um futuro melhor, pois, de acordo com Peter Lee, considerando seus vários textos, a História realmente compreendida não é esquecida e só se muda aquilo que se conhece.
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1 Doutor em História pela Universidade Estadual de Maringá, professor do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Universidade Federal de Pernambuco.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná, com pós-doutorado pela Universidade de São Paulo, professora da Universidade Estadual de Maringá e Coordenadora Local do ProfHistória – UEM.
3 O Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica da Universidade Federal do Paraná (LAPEDUH – UFPR), coordenado por Maria Auxiliadora Schmidt, pode ser considerado um polo de investigação mediante um conjunto de trabalhos orientados e parcerias com, por exemplo, Isabel Barca (Universidade do Minho em Portugal) e Marlene Cainelli (Universidade Estadual de Londrina), resultando em pesquisas de ponta reconhecidas não apenas no território nacional. Seria complicado neste texto abranger todo o direcionamento de pesquisa pautado de uma forma ou outra na Educação Histórica sob pena de não fornecer a completude de laboratórios, programas de pós-graduação e universidades e pesquisadores envolvidos.
4 A revista continua em atividade e é possível ter acesso a todas as suas publicações em: <https:// www.history.org.uk/publications/categories/teaching-history>. Acesso em: 29 maio 2020.
5 O projeto continua em execução e promove o evento anual Schools History Project Virtual Conference, que pode ser acompanhado pelo endereço eletrônico na internet: <http:// www.schoolshistoryproject.co.uk>. Acesso em: 01 jun. 2020.
6 Piaget identificou, em sua linha de desenvolvimento, três etapas: 1) sensório motor (de 0 a 2 anos);
2) esta etapa subdividida em duas: a) estágio de preparação para as operações lógico-concretas, também chamado de pré-operacional (2 a 7 anos) e de b) operações lógico-concretas (de 7 até a adolescência) e 3) lógica formal ou hipotético-dedutiva (adolescência até fase adulta). Essa última implica a capacidade de abstração ao criar hipóteses, interpretar, comparar, deduzir, descobrir probabilidades (BERNS, 2002 p. 24).
7 O Grupo Focal reúne de 10 a 15 sujeitos mediados pelo entrevistador. O entrevistador lança uma questão e observa a interação entre os participantes, que podem manifestar consenso ou dissenso. O Grupo Focal propicia um ambiente mais interativo e autêntico, pois os participantes levam em consideração a opinião dos outros para formular a própria.
8 História Hipotética é uma metodologia de pesquisa muito utilizada pela History Education e pela Didática da História, sendo que a primeira serve como dispositivo de evocação para levantamento de ideias dos sujeitos escolares e a segunda para exemplificar conceitos, como a história de Rüsen para perceber a tipologia das consciências históricas e sua relação com as ações humanas. Ver: RÜSEN, J. El desarrollo de la competencia narrativa en el aprendizaje histórico. Una hipótesis ontogenética relativa a la conciencia moral. Revista Propuesta Educativa, Buenos Aires, ano 4, n. 7, p. 27-36, oct. 1992.
Educar para as relações étnico-raciais na escola e na universidade
Juliana Teixeira Souza1
O exercício da docência coloca-nos frente a situações desafiadoras. Em dezembro de 2016, após encerrar as atividades com a turma de Brasil Império, recebi em minha sala um aluno do período noturno. Era um senhor de meia-idade, já no final do 4º período, e seu objetivo, disse-me, era apertar minha mão e agradecer o fato de ter descoberto em minhas aulas que, “no fundo, era racista”. Acrescentou que, apesar de se considerar progressista, foi lendo os textos sobre a escravidão no século XIX e debatendo em sala sobre como essa experiência impactou a conformação das desigualdades no Brasil contemporâneo que descobrira “ser racista a ideia de que os negros tinham empregos e salários ruins por serem menos inteligentes e capazes”.
Talvez devesse ter ficado apenas lisonjeada com aquele aperto de mão, pois, afinal, no plano de curso daquele componente curricular havia estabele- cido como objetivo “promover debate e reflexão sobre os elementos estrutu- rantes da sociedade brasileira, tais como desigualdade, exclusão e precariza- ção dos direitos de cidadania”. Tal objetivo me parecia apropriado para o de- senvolvimento da habilidade de “introduzir na prática pedagógica os conteú- dos históricos, selecionando-os e associando-os ao universo cultural no qual os alunos estão inseridos”, prevista no projeto político-pedagógico do curso. Mas não posso deixar de admitir que nunca tive a pretensão de ensinar aos alunos do curso de graduação em História o que é racismo e como ele se ma- nifesta. O que pretendia era pautar estratégias, junto com os licenciandos, que os preparassem para enfrentar o desafio de construir conhecimento histórico na sala de aula da Educação Básica, de maneira que o público escolar perce- besse a importância do estudo da História para a compreensão dos problemas do tempo presente, assim desenvolvendo o aprendizado sobre os conceitos de mudanças e permanências. Dito de outra forma, assumi que o significado de desigualdade e exclusão, inclusive na dimensão das relações étnico-raciais, fi- zesse parte dos conhecimentos prévios dos licenciandos, competindo-me ape- nas ensiná-los a problematizar essas questões numa perspectiva histórica ade- quada à compreensão dos alunos da Educação Básica. Ao que parece, não poderia estar mais equivocada.
Na época, surpreendeu-me tanto a franqueza da declaração daquele se- nhor de meia-idade, reconhecendo a relevância do aprendizado e como ele mudara sua compreensão da realidade, como a percepção de que havia alunos chegando à metade do curso de graduação em História sem problematizar os estereótipos que pesam sobre os negros. E a pergunta que desde então tem me angustiado é: em que medida um único componente curricular ou outros dois ou três são suficientes para assegurar que os licenciandos estejam preparados para, em sala de aula, dar execução às políticas públicas que assumem a pro- moção de uma educação inclusiva como um dos principais objetivos da for- mação cidadã? A lei n. 10.639/2003, ao atender parte das reivindicações do movimento negro, criou demandas que se impuseram não apenas à historio- grafia escolar e aos professores da Educação Básica, como também à historio- grafia acadêmica e aos professores de licenciatura do Ensino Superior. É a partir do imbricamento entre esses dois campos de atuação do profissional de História – a Educação Básica e a Educação Superior – e desses dois campos de produção do conhecimento – a historiografia escolar e a historiografia acadê- mica – que a questão será discutida.
As demandas da Educação Básica e da historiografia escolar
Quando aquele aluno entrou em minha sala, a lei que tornou obrigató- rio o ensino de História e Cultura da África e dos afrodescendentes já havia completado mais de uma década e estava em pleno vigor a lei n. 12.288/2010, conhecida como Estatuto da Igualdade Racial, que encarregava as instituições de Ensino Superior de promover uma formação docente baseada em princípios de equidade, de tolerância e de respeito às diferenças étnicas, além de fomen- tar a elaboração de materiais didáticos que viabilizassem o estudo da história geral da África e da população negra no Brasil. Talvez por isso aquela fala me tenha surpreendido.
Mas é claro que o desconhecimento daquele estudante acerca dos pro- blemas concernentes ao racismo no Brasil poderia ser justificado pelo fato de ser um senhor de meia-idade que completou a Educação Básica num tempo em que “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, tal como propõe a Constituição de 1988, ainda não figuravam como objetivos fundantes de um projeto de nação, nor- teadores das políticas públicas de educação. No entanto, estudos recentes so- bre o impacto da lei n.10.639 têm evidenciado que, muito embora seja inegá-
vel o avanço representado pela instituição de dispositivos legais que orientem a produção de materiais didáticos e as práticas educacionais, ainda há um longo caminho a ser percorrido no que se refere à capacitação de pessoal e ao acesso a materiais didáticos apropriados, entraves que repercutem diretamen- te na formação do público escolar (COELHO; COELHO, 2018; FAGUNDES; CARDOSO, 2019).
Na historiografia escolar, as mudanças já empreendidas foram signifi- cativas. Em 1993, um relatório elaborado pela comissão responsável por ava- liar os livros da área de Estudos Sociais concluiu que havia “uma tendência marcante de transmissão explícita ou implícita de preconceitos e estereótipos sociais”, além de “uma defasagem entre a produção acadêmica na área do ensino de História e Geografia e a produção de livros didáticos voltados para as séries iniciais” (BRASIL, 1994, p. 70-71). O problema não era recente, nem tampouco desconhecido, mas seu reconhecimento por parte do Ministério da Educação e Desporto naquela conjuntura adquiria uma importância sem pre- cedentes, pois, em 1993, havia iniciado o processo de reestruturação do Pro- grama Nacional do Livro Didático, que buscou eliminar os problemas de este- reótipos e preconceitos, erros conceituais e factuais, além dos problemas gráfi- co-editoriais constatados a partir de uma avaliação das dez obras mais consu- midas até 1993.
Antes monopolizado por pesquisadores do Sudeste, em 2004, o PNLD passou por outra significativa mudança, com a avaliação se expandindo para todos os componentes curriculares e sendo realizada por especialistas que atua- vam em todo o Brasil. As comissões formadas a partir de então, compostas fundamentalmente por professores das Instituições de Ensino Superior e con- tando também com a participação de professores da Educação Básica, foram estabelecendo e aprimorando critérios que, ao longo do tempo, se consolida- ram como indicadores da qualidade da escrita didática da História, entre os quais destacamos a exigência de que os livros apresentem informações corre- tas e atualizadas e a penalidade de exclusão às obras que difundissem precon- ceitos e estereótipos (OLIVEIRA; FREITAS, 2013).
A partir daquele ano, as equipes que avaliavam os livros didáticos tam- bém assumiram a responsabilidade de assegurar o cumprimento das diretrizes que orientam a implementação da lei n. 10.639/2003, atrelando o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira aos seguintes princípios: forma- ção de uma consciência política e histórica da diversidade, fortalecimento de identidades e de direitos e promoção de ações educativas de combate ao racis- mo e à discriminações, conforme parecer CNE/CP 003/2004 (BRASIL, 2013). Essa era a parte mais ambiciosa da proposta, por isso mesmo mais difícil de
ser executada, pois a mudança pretendida não se limitava a propor novos te- mas para o ensino escolar. A rigor, incorporar novos conteúdos ao currículo escolar era o meio de concretizar a adoção de princípios que, por sua vez, conduziriam a um projeto de educação que pretendia subverter as tendências da historiografia didática produzida pelas editoras. Portanto o que se procura- va combater era o comprometimento mais ou menos explícito da historiogra- fia escolar com a manutenção das relações de poder e naturalização das desi- gualdades étnico-raciais, evidente na forma como a história dos afro-brasilei- ros e a História da África vinham sendo abordadas.
Ao analisar as temáticas predominantes nos livros didáticos que traziam capítulos específicos sobre a história africana publicados entre 1990 e 2005, Anderson Ribeiro Oliva verificou que, na abordagem do período anterior ao século VII, eram recorrentes as referências à origem da humanidade, a preocu- pação em explicitar a localização do Egito naquele continente e as referências à “anterioridade” das antigas “civilizações” africanas. Entretanto, na repre- sentação do homo sapiens, os livros didáticos recorriam à imagem de homens e mulheres de pele branca, o caráter eurocêntrico do conceito de civilização não era problematizado, e poucos livros faziam referência à participação das po- pulações negro-africanas na formação do Egito antigo. No recorte que se es- tende do século VII ao XVIII, a escravidão africana e o tráfico de escravos eram os principais assuntos, mas abordados numa perspectiva desatualizada; persistia o uso de categorias eurocêntricas na descrição da sociedade africana, tais como “reino”, “império” e “tribo”, desconsiderando as especificidades das estruturas políticas, sociais e econômicas africanas. Nos capítulos ou tópi- cos que tratam da história africana entre os séculos XIX e XX, Oliva verificou serem breves e insuficientes as referências à resistência africana frente à ocupa- ção colonial e aos movimentos de independência, ao passo que a abordagem das temáticas contemporâneas tinha na difusão de estereótipos seu traço mais característico, associando exclusivamente o apartheid, o subdesenvolvimento, guerras, massacres, tragédias e doenças à imagem da África (OLIVA, 2007). Trata-se de uma abordagem que, sem dúvida alguma, reforça os estereótipos que servem de substrato para atitudes racistas e discriminatórias, fragiliza a perspectiva de valorização de identidades étnico-raciais que não sejam euro- cêntricas e inviabiliza a construção de valores comprometidos com o reconhe- cimento e a valorização da diversidade.
A proposta de induzir as editoras a revisar a historiografia escolar, apro-
ximando-se de um projeto de educação mais atento às demandas dos movi- mentos sociais por uma educação inclusiva, ganhou reforço em 2010 com a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, em
que se assume que a formação cidadã está indissociavelmente atrelada à con- quista da inclusão social, condição indispensável para que se promova uma educação com qualidade social. Para a concretização desse projeto, o docu- mento afirmava ser inadiável o debate sobre inclusão social, garantindo o acesso e considerando a diversidade dos grupos historicamente excluídos, que come- çavam a ser contemplados por políticas públicas, tais como “pobres, mulheres, afrodescendentes, indígenas, pessoas com deficiência, as populações do cam- po, os de diferentes orientações sexuais”, o que exigia o tratamento de ques- tões de classe, gênero, raça e etnia (BRASIL, 2013, p. 16).
À frente de um componente curricular obrigatório na Educação Básica, os profissionais de História seriam compelidos a produzir conhecimento na pesquisa e no ensino que considerasse as contribuições desses grupos histori- camente excluídos na formação da sociedade brasileira e que abordasse suas experiências e práticas culturais, condição defendida no documento como fun- damental para a valorização da diversidade e para a articulação da educação escolar com a prática social. Ou seja, em conformação com essas diretrizes, os professores universitários deveriam estar atentos à implantação de um projeto de educação que, longe de se pretender neutro ou desinteressado, implicava um posicionamento crítico em relação ao currículo hegemônico que fora con- solidado pela tradição escolar, mas que também persistia sendo adotado pelos cursos de formação inicial de professores.
No entanto foi muito limitado o impacto desse debate na formulação geral dos currículos dos cursos de licenciatura em História. As Diretrizes Cur- riculares dos Cursos de História foram estabelecidas em 2001 e, desde então, não sofreram qualquer reformulação, mantendo-se absolutamente alheias às mudanças que ocorreram na Educação Básica nos últimos vinte anos. Por isso as competências e habilidades exigidas especificamente dos profissionais de licenciatura nas diretrizes dos cursos de História ainda são “domínio dos con- teúdos básicos” e “domínio dos métodos e técnicas pedagógicos que permi- tem a transmissão do conhecimento” (BRASIL, 2001), reforçando uma pers- pectiva conservadora e desatualizada sobre a formação e a função social dos profissionais de História. Isso significa que, muito embora as diretrizes que incidiam sobre a Educação Básica devessem orientar os cursos de formação inicial, os currículos dos cursos de História das IES continuaram centrados nos conteúdos, organizados de forma cronológica, numa perspectiva eurocen- trista, objetivando dar conta de toda a História da humanidade, da origem dos hominídeos ao século XXI, desconsiderando as novas demandas que precisa- vam ser respondidas pelos professores nas escolas.
Além disso, as Diretrizes Curriculares dos Cursos de História corrobo- ram institucionalmente e a nível nacional uma visão dicotômica e hierarqui- zada da relação entre o conhecimento acadêmico e o conhecimento escolar, pressupondo que o último consiste numa versão simplificada, superficial e aligeirada do primeiro. Decorre desse princípio a ideia de que bastaria as disci- plinas de “conteúdo” informarem os graduandos sobre o processo histórico, enquanto as disciplinas pedagógicas forneceriam as técnicas que viabilizariam a transmissão do conhecimento. E é assim que os cursos de licenciatura conti- nuam, supostamente, formando o professor. Trata-se, contudo, de uma con- cepção de ensino há décadas criticada pelos especialistas em ensino de Histó- ria pelo seu caráter conteudista, por desconectar o ensino de História da teoria e metodologia da História, por atribuir aos pedagogos a responsabilidade de determinar como a História deve ser ensinada, por não reconhecer a validade do conhecimento produzido no ensino e por identificar os alunos da escola como sujeitos passivos no processo de aprendizagem, entre outros problemas. Essa perspectiva contraria todo o conhecimento já consensuado pelos especia- listas em ensino de História, para os quais:
Produzir conhecimento histórico na dimensão do ensino escolar é construir coletivamente conhecimentos históricos (que serão novos apenas para os alunos) a partir do conjunto de saberes aceitos pela tradição historiográfica. É preciso ter em mente que a forma de construção do conhecimento históri- co na pesquisa serve como referência na produção do conhecimento históri- co escolar. Suas particularidades justificam sua necessidade como saber espe- cífico, que dialoga com um código disciplinar construído pela tradição esco- lar. […] A teoria do conhecimento histórico é que especifica o olhar de Histó- ria. É isso que fundamenta a necessidade do ensino de História, será essa a base para que o aluno pense historicamente (OLIVEIRA, 2010, p. 11).
O descompasso da lógica a partir da qual ainda se organizam os cursos de licenciatura em História, contrastando com o que vinha sendo demandado pelo Estado por meio de políticas púbicas educacionais e com as discussões encaminhadas pelos especialistas em ensino de História, mostra que, apesar do senso comum identificar as universidades como espaços de vanguarda na produção do conhecimento, os cursos de formação inicial de professores estão obsoletos. Ao sucumbir interessadamente ao peso da tradição e à pretensiosa suposição de que o ensino de História é um tema menor no âmbito dos gran- des debates historiográficos, a maior parte dos professores e pesquisadores universitários sente-se confortável para ignorar as mudanças que múltiplos agentes vêm procurando implantar no ensino escolar. Além disso, embora os alunos de licenciatura sejam o público predominante dos professores universi- tários, a convicção de que os melhor “qualificados” vão se dedicar à pesquisa
torna mais atrativa a tarefa de formar pesquisadores (MORAES, 2016, p. 36), justificando silenciosamente a menor atenção dispensada aos alunos menos “qualificados” que se dedicarão à docência. Resultado disso: não é incomum nossos alunos de licenciatura recém-formados manifestarem sensação de des- preparo para enfrentar os desafios da educação escolar, queixando-se da dis- tância entre o que aprenderam na universidade e as necessidades concretas da atividade docente, entre as quais se impõe a questão: como implementar a lei n. 10.639/2003?
A reação dos cursos de formação inicial
Quando a lei n. 10.639/2003 foi aprovada, os cursos de licenciatura não estavam preparados para assegurar sua implantação. Tratava-se de um grande desafio, pois, quanto à dimensão das mudanças pretendidas, as Diretrizes Curri- culares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana destacaram muito claramente:
não se trata de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a di- versidade cultural, racial, social e econômica brasileira. Nesta perspectiva, cabe às escolas incluírem no contexto dos estudos e atividades, que propor- cionam diariamente, também as contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos, além das de raiz africana e euro- peia. É preciso ter clareza que o Art. 26A acrescido à Lei 9394/1996 provo- ca bem mais do que inclusão de novos conteúdos, exige que se repensem relações étnico-raciais, sociais, pedagógicas, procedimentos de ensino, con- dições oferecidas para aprendizagem, objetivos tácitos e explícitos da edu- cação oferecida pelas escolas (BRASIL, 2013, p. 503).
No entanto aos professores universitários de História pareceu que a melhor resposta às exigências colocadas pela lei n. 10.639/2003 era criar uma disciplina para viabilizar a inclusão de um novo conteúdo, optando equivoca- damente pela perspectiva reducionista e conservadora que as diretrizes alerta- vam que deveria ser evitada. A decisão política de limitar a discussão dos cur- rículos dos cursos de graduação à inclusão de uma única disciplina – a Histó- ria da África, na maior parte dos casos – minimizou significativamente seu impacto na formação de professores, pois eximiu os professores universitários das demais especialidades de debater em que medida o caráter etnocêntrico das concepções teóricas que fundamentam a produção do conhecimento his- tórico representam um entrave para a execução das propostas de educação inclusiva. No fim das contas, de modo geral, assumiu-se que a função das disciplinas ofertadas pelos departamentos de História limitava-se efetivamen- te a assegurar o “domínio dos conteúdos básicos”, problema que a introdução
da História da África como componente curricular obrigatório nos cursos de licenciatura parecia ser suficiente para responder.
Contudo os departamentos de História estavam despreparados até mes- mo para fazer o mínimo que se propunham: ministrar uma nova disciplina. Subsumida em currículos eurocêntricos, até então não havia a menor perspec- tiva de a História da África se configurar como disciplina acadêmica, limitan- do-se a ser oferecida como componente curricular optativo em alguns poucos cursos, sem contar que a maioria dos professores e pesquisadores especialistas não se preocupava de modo algum com o lugar do continente africano no ensino escolar (OLIVA, 2009; PEREIRA, 2012). Mas, apesar do flagrante de- sinteresse pelas questões relativas ao ensino, os departamentos de História não perderam a oportunidade de acionar a lei n. 10.639/2003 para justificar pedi- dos de abertura de vagas para concurso.
No Diário Oficial da União, identificamos ao menos 37 universidades públicas federais com curso de licenciatura em História realizando concurso para História da África, Cultura Afro-Brasileira e relações étnico-raciais entre 2003 e 2019, totalizando 81 processos seletivos para cargos efetivos no ma- gistério superior. De acordo com os dados levantados, em 68% dos casos optou-se por identificar a História da África como área de conhecimento do concurso, como se observa no Quadro 1.
Quadro 1: Concursos para História da África em IES públicas federais (2003-2020)
Área de concurso: História da África | |
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira | Edital n. 17/2013, Edital n. 55/2016, Edital n. 89/2016 |
Universidade de Brasília | Edital n. 43/2009, Edital n. 93/2010 |
Universidade Federal da Bahia | Edital n. 05/2006, Edital n. 01/2010, Edital n. 04/2010, Edital n. 03/2011, Edital n. 03/2019 |
Universidade Federal da Integração Latino-Americana | Edital n. 17/2013, Edital n. 22/2014, Edital n. 95/2016, Edital n. 237/2019 |
Universidade Federal de Alagoas | Edital n. 13/2014 |
Universidade Federal de Alfenas | Edital n. 90/2010 |
Universidade Federal de Juiz de Fora | Edital n. 28/2009, Edital n. 21/2013 |
Universidade Federal de Minas Gerais | Edital n. 17/2010 |
Universidade Federal de Pernambuco | Edital n. 98/2008, Edital n. 82/2015, Edital n. 06/2017 |
Universidade Federal de Santa Catarina | Edital n. 16/2005, Edital n. 36/2007, Edital n. 31/2008 |
Universidade Federal de São Paulo | Edital n. 148/2006, Edital n. 361/2009 |
Universidade Federal de Sergipe | Edital n. 45/2005, Edital n. 20/2008, Edital n. 11/2019 |
Universidade Federal de Viçosa | Edital n. 46/2018 |
Universidade Federal do Acre | Edital n. 02/2003 |
Universidade Federal do Espírito Santo | Edital n. 05/2008 |
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro | Edital n. 08/2009 |
Universidade Federal do Maranhão | Edital n. 268/2014 |
Universidade Federal do Oeste do Pará | Edital n. 02/2012 |
Universidade Federal do Paraná | Edital n. 130/2012, Edital n. 367/2018 |
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia | Edital n. 12/2008 |
Universidade Federal do Rio de Janeiro | Edital n. 27/2010, Edital n. 450/2014, Edital n. 1054/2018 |
Universidade Federal do Rio Grande do Norte | Edital n. 08/2015, Edital n. 09/2016 |
Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Edital n. 18/2010 |
Universidade Federal Fluminense | Edital n. 07/2004, Edital 2006,
Edital n. 55/2007, Edital n. 314/2009, Edital n. 189/2011, Edital n. 245/2013, Edital n. 169/2019 |
Universidade Federal Rural de Pernambuco | Edital n. 06/2017 |
Área de concurso: História da África Contemporânea | |
Universidade Federal de Minas Gerais | Edital n. 277/2015 |
Área de concurso: História da África antiga, moderna e contemporânea | |
Universidade Federal do Pará | Edital n. 85/2012 |
Fonte: D.O.U. Tabela elaborada pela autora.
Em outros 20 concursos, na definição da área de conhecimento, optou-se por articular a História da África com outras áreas e temas, como História do Brasil, História da América, História Ibérica, História da Ásia, História Mo- derna, História Contemporânea, Relações étnico-raciais, Cultura afro-brasi- leira, Escravidão e escravismo, como consta no Quadro 2.
Quadro 2: Concursos para História da África, Cultura Afro-Brasileira e relações étnico-raciais em IES públicas federais (2003-2019)
Universidade Federal da Bahia | História da África e História Ibérica (Edital n. 02/2010) |
Universidade Federal da Fronteira Sul | História da África e História do Brasil (Edital n. 06/2010) |
Universidade Federal da Integração Latino-Americana | História da África e Ásia Contemporâneas (Edital n. 06/2011) |
Universidade Federal de Alagoas | História da África e Escravismo (Edital n. 04/2010) |
Universidade Federal de Ouro Preto | História da África, História Moderna e Contemporânea (Edital n. 07/2013) |
Universidade Federal do Amazonas | História da África e da Cultura Afro-Brasileira (Edital n. 66/2014) |
Universidade Federal do Espírito Santo | História Moderna e Contemporânea com ênfase em História da África (Edital n. 01/2007) |
Universidade Federal do Maranhão | Estudos Afro-Americanos (Edital n. 15/2008) |
Universidade Federal do Oeste da Bahia | História das Áfricas, Cultura Afro-Brasileira (Edital n. 01/2015) |
Universidade Federal do Oeste do Pará | História da África e da Ásia (Edital n. 3/2010) |
Universidade Federal do Pampa | História da África e História Moderna Edital n. 107/2010 |
Universidade Federal do Pará | História da África e História e Cultura Afro-Brasileira (Edital n. 357/2018) |
Universidade Federal do Rio Grande do Sul | História da América, História da África e Relações étnico-raciais (Edital n. 06/2019) |
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará | História da África e História e Cultura Afro-Brasileira (Edital n. 87/2015, Edital n. 80/2017) |
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri | História Moderna, História do Brasil Colonial, História da África e Humanidades (Edital n. 146/2012)
História Contemporânea, História da América, História da África e Humanidades (Edital n. 146/2012) História Moderna, História do Brasil Colonial, História da África, Humanidades (Edital n. 53/2017) |
Universidade Federal Rural de Pernambuco | História da África e da Escravidão (Edital 2003) |
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro | História da África e da Escravidão (Edital 2006) História da África e História do Brasil (Edital 2010) |
Fonte: D.O.U. Tabela elaborada pela autora.
Como não era uma área de conhecimento consolidada na pesquisa, muitas vagas foram preenchidas por especialistas migrados, principalmente, da área de História do Brasil, situação que impactava a dinâmica dos concur- sos, assim como o movimento de expansão das universidades, que elevava a oferta de concursos. Assim, não era incomum que candidatos recém-concur- sados abandonassem os cargos quando conseguiam aprovação em sua área de formação ou em outra instituição, obrigando muitos departamentos a convo- car os segundos lugares ou realizar novos concursos, situação verificada nos Quadros 1 e 2. Além disso, em apenas 6% dos concursos localizados no D.O.U. a História africana e afro-brasileira foi articulada com ensino na definição da área de conhecimento do concurso, situações apresentadas no Quadro 3.
Quadro 3: Concursos para História da África, Cultura Afro-Brasileira, Ensino e Educação em IES públicas federais (2003-2019)
Universidade Federal de Goiás | Didática e Prática do Ensino de História – ênfase em História da África (Edital n. 60/2009) História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena, Educação para as Relações
Étnico-Raciais e Educação em Direitos Humanos Edital (n. 18/2018) |
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul | Ensino de História e Cultura Afro-brasileira (Edital n. 112/2018) |
Universidade Federal de São João Del Rei | História da África e Educação e Relações Étnico-raciais (Edital n. 61/2018) |
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri | Ensino de História, História da África e Humanidades (Edital n. 62/2014) |
Fonte: D.O.U. Tabela elaborada pela autora.
Esse número tão pouco expressivo de concursos em que a educação e o ensino foram referidos na definição da área de conhecimento mostra a dificul- dade que os professores de “conteúdo” têm para reconhecer as especificidades do ensino de História como um campo de conhecimento que tem suas especi- ficidades. É difícil justificar essa reserva com argumentos plausíveis, pois se trata de um campo consolidado, que tem grupos e linhas de pesquisa registra- dos no diretório da CAPES, tem eventos próprios – como Perspectivas do Ensino de História e Pesquisadores do Ensino de História –, conta com revis- tas especializadas e, o mais importante, tem uma produção com descritores muitos particulares no que se refere a teoria, metodologia, fontes, problemáti- cas e historiografia. É claro que a não referência ao ensino de História na descrição da área de conhecimento não significa que os demais concursos não
contemplassem temáticas de ensino de modo algum, já que o tema poderia constar na lista dos pontos de prova. Mas a desvalorização desse campo entre os historiadores certamente contribuiu para que o diálogo com o ensino fosse completamente rejeitado pela maior parte das bancas dos concursos História da África, Cultura Afro-Brasileira e Relações étnico-raciais.
Nas páginas eletrônicas das universidades federais, foi possível recupe- rar o programa de 52 concursos realizados entre 2003 e 2019. Nesse conjunto, verificou-se que apenas 21 bancas propuseram pontos de prova abordando questões referentes ao ensino. Em outras palavras, considerando os concursos que tiveram o programa localizado, em 59,6% dos casos verifica-se que as ban- cas não exigiram dos candidatos qualquer conhecimento relativo ao ensino de História ou à Educação Básica, muito embora os concursos tenham sido justi- ficados pela necessidade de adequar a formação dos professores às exigências da lei n. 10.639/2003.
Essa documentação referente aos concursos também oferece algumas pistas acerca dos “conteúdos básicos” que as bancas esperavam ser domina- dos pelos candidatos às vagas que estavam sendo abertas nas universidades. Para viabilizar a sistematização dos dados, a partir das informações coletadas nesses 52 programas de concurso, foi elaborado o Quadro 4, classificando os temas abordados nos pontos de prova. Cada programa continha entre oito e doze pontos de prova, e como havia alguns pontos muito abrangentes, optou- se por classificá-los em dois ou mais itens.
Quadro 4: Temas abordados nos programas dos concursos para História da África, Cultura Afro-Brasileira e Relações étnico-raciais em IES públicas federais (2003-2019)
Fonte: Site das universidades.2 Gráfico elaborado pela autora.
Os pontos que tratavam de ensino tiveram como principais focos a legis- lação, as discussões teóricas pertinentes ao campo do ensino e a literatura di- dática, havendo também alguns pontos de prova que tratavam de recursos de aprendizagem, currículo e formação de professores, assuntos cuja abordagem está condicionada ao domínio da historiografia do ensino de História. Notem que as informações do Quadro 4 podem sugerir algum equilíbrio na atenção conferida ao ensino e às questões relacionadas a historiografia, teoria e meto- dologia da História. No entanto alguns programas concentraram grande nú- mero de pontos de prova tratando de ensino, enquanto as questões pertinentes à produção do conhecimento histórico estavam dispersas em maior número de programas. Resultado disso: enquanto o ensino foi completamente ignora- do por 59,6% dos programas de concursos, em apenas 15,3% não encontra- mos referência à historiografia, à teoria e à metodologia da História, o que corresponde a oito programas.3 Ademais, nos casos em que não houve refe- rência explícita ao processo de produção do conhecimento histórico, isso não significa que as expectativas de resposta das bancas desconsiderassem a rele- vância desse enfoque na abordagem dos demais temas.
É interessante observar os temas que apareceram em maior número de pontos de prova: escravidão e tráfico de escravizados, com ênfase no recorte que se estende do século XV ao XIX, independência dos países africanos no século XX e resistência à dominação colonial no século XIX. São temas que coincidem com os assuntos que predominam nos capítulos que tratam de His- tória da África nos livros didáticos, condição que poderia favorecer a articula- ção entre a historiografia escolar e acadêmica pelos candidatos dos concursos. Mas não houve essa indução, já que esses pontos de prova não estavam vincu- lados ao debate sobre o ensino.
Quanto aos demais temas, chamaram atenção os 39 pontos de prova sobre religiosidade na África, pois apenas 10 faziam referência às religiões africanas, religiões tradicionais africanas ou religiões nativas, prevalecendo as referências ao islamismo e ao cristianismo, evidenciando a tendência de valori- zação das manifestações culturais surgidas fora do continente africano. Entre os 27 pontos de prova que tratavam de temas contemporâneos havia 15 com refe- rências aos assuntos que, na literatura didática, são abordados de forma estereo- tipada, caso de conflitos étnicos, guerras civis, apartheid e racismo. Por fim, nos pontos de prova que focavam nas estruturas políticas, foi verificado que, em- bora o conceito de civilização pareça superado, ainda prevalece o uso de cate- gorias etnocêntricas, como Estado, Império, reino e até cidade-estado, eviden- ciando a dificuldade de lançar mão de outras categorias que permitissem des- crever as experiências históricas africanas considerando suas especificidades.
As informações coletadas nos programas também mostram que, embo- ra vários concursos tenham articulado a História da África com outras áreas de conhecimento, não há dúvidas de que o recurso à lei n. 10.639/2003 foi mobilizado pelos professores universitários com o propósito de criar um cam- po de conhecimento integrado por especialistas, tendo como ponto de partida a instituição da História da África como componente curricular obrigatório nos projetos pedagógicos dos cursos de graduação. O problema é que, em muitos casos, parece que à preocupação com a educação inclusiva, e mais especifica- mente com a educação para as relações étnico-raciais na Educação Básica, se sobrepôs o interesse em criar postos de trabalho nas instituições de ensino superior. Nesse sentido, é inegável o impacto dos concursos para a formação de quadros que viabilizassem a emergência e a consolidação da História da África como disciplina e campo de pesquisa.
Por outro lado, a decisão tomada por muitas bancas de inibir entre os concursados qualquer tipo de reflexão sobre o ensino ou conferir peso mínimo às temáticas relacionadas ao ensino nos programas de concurso parece indicar um esforço deliberado no sentido de não atrelar a emergente disciplina e área de pesquisa aos debates sobre a formação docente e o ensino de História na Educação Básica. Sobre essa decisão pesa o interesse dos professores e pesqui- sadores das universidades em reforçar a dicotomia que caracteriza as licencia- turas, mantendo a divisão dos componentes curriculares entre as disciplinas de “conteúdo”, ofertadas pelos departamentos de História, e as disciplinas “pedagógicas”, oferecidas pelos cursos ou centros de educação, assumindo-se que competiria apenas aos profissionais que atuam nesses últimos debater ques- tões relacionadas ao ensino (OLIVEIRA, 2014). Manter essa dicotomia é con- dição estratégica para a naturalização da visão elitista e hierarquizada dos pro- fissionais que atuam no ensino superior, que valorizam a universidade e a pes- quisa em detrimento da escola e do ensino, a ponto de haver muitos que não apenas desqualificam o exercício do magistério como também se recusam ter- minantemente a relacionar os conteúdos de suas disciplinas com o ensino es- colar (FERREIRA; FRANCO, 2008).
Entre os professores e pesquisadores especialistas em História da África ingressos nas universidades após a lei n. 10.639/2003, embora pareça que o lugar do continente africano no ensino escolar tenha sido incluído na pauta de preocupações, fazendo parte da maioria dos planos de ensino dos componen- tes curriculares ofertados nos cursos de graduação (PEREIRA, 2012), prevale- ceu a tendência de continuar negligenciando as questões relativas ao ensino como objeto de pesquisa. Essa tendência pode ser confirmada por meio de consulta ao Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, que nos dá acesso a
um inventário dos grupos de pesquisa científica e tecnológica em atividade no país.4 Utilizando “África” como termo de busca nos campos “nome de gru- po”, “nome da linha de pesquisa” e “palavra-chave da linha de pesquisa” e optando pela História como filtro para a área de conhecimento, o resultado da pesquisa apresentou 83 registros, entre os quais apenas 16 grupos têm linhas de pesquisa ocupando-se de questões relativas ao ensino. Ao repetir a pesquisa e optar pela educação como filtro para a área de conhecimento, o resultado apresentou 61 registros de grupos de pesquisa, e todos tinham linha de pesqui- sa dedicada a articular a História da África às reflexões sobre ensino na Edu- cação Básica. Esses indícios mostram que os profissionais de História que atuam nos departamentos de História continuam manifestando interesse limi- tado pelo que ocorre nas escolas, legando aos profissionais que atuam nos departamentos e centros de educação a tarefa de converter essas “questões menores” em objeto de investigação.
Parece que, enquanto as disciplinas de “conteúdo” e os especialistas de diferentes áreas de conhecimento continuarem resistindo em reconhecer o ensino de História como um campo de conhecimento com o qual é necessário dialogar, insistindo em atribuir-lhe menor valor, é difícil pensar que a forma- ção inicial de professores possa responder adequadamente às demandas im- postas pela Educação Básica, que exige do ensino da disciplina escolar His- tória ênfase no tempo presente e na história local, assim como a criação de situações de aprendizagem que coloquem em pauta questões étnico-raciais, de classe, gênero, região, etc., tão caras a qualquer proposta de educação inclusiva.
Há um consenso entre os especialistas de que os cursos de licenciatura em História precisam ser repensados, a fim de que os futuros profissionais de História saiam da universidade qualificados para enfrentar o grande desafio que é formar cidadãos na Educação Básica. Mas, para que essa reformulação ocorra, é indispensável que os profissionais que atuam nos departamentos de História, que se dedicam à pesquisa e ao ensino, apropriem-se minimamente das conclusões que o campo do ensino e da educação já consolidaram há al- gum tempo: é a teoria da História que fundamenta o ensino de História; as decisões sobre como ensinar devem ser norteadas pela metodologia da pesqui- sa histórica; a escola não é lugar de simplificação da ciência de referência; não existe justificativa razoável para a ideia de transmissão de conhecimento ou transposição didática que pressuponha os alunos como sujeitos passivos no processo de aprendizagem; e as situações para a construção do conhecimento precisam ser organizadas e ajustadas conforme os objetivos e público discente. Ou seja, ou efetivamos o imbricamento entre a Educação Básica e a Educação
Superior, entre a historiografia escolar e a historiografia acadêmica, ou assu- mimos o risco de continuar obsoletos.
Considerações finais
Num tempo em que se tornou lugar-comum acusar os professores de História de doutrinação ideológica e fazer objeções ao princípio da liberdade de cátedra, vale lembrar que os posicionamentos assumidos neste texto são exigências das políticas educacionais ainda em vigor no país. Na medida em que o ensino se constitui como o principal campo de atuação profissional dos historiadores, espera-se que os docentes estejam atentos às demandas do cam- po, definidas por meio de legislação específica, preocupação que em muitos casos se limita à redação dos projetos pedagógicos dos cursos de graduação, tão desvalorizados nas escolas quanto nos cursos de graduação.
A formação inicial dos professores de História, sem dúvida alguma, deve manter-se vinculada ao conhecimento científico produzido nas universidades e centros de pesquisa, mas também em correspondência com o mundo do tra- balho, com as formas diversas de exercício da cidadania e com os movimentos sociais, pois a legislação que regulamenta o ensino na Educação Básica assim o exige (BRASIL, 2013, p. 23-24). Trata-se de um projeto de Estado e de socie- dade, temas intensamente debatidos neste final da década de 2010, tão marca- do pelas polarizações. Mas talvez esse seja justamente o tempo propício para os profissionais de História derrubarem a Bastilha historiográfica que nos man- tém presos aos antigos modelos e concepções que persistem distanciando a pesquisa e o ensino, a universidade e a escola.
Referências
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1 É doutora em História Social pela UNICAMP, professora associada do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e coordenou o subprojeto História do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid-UFRN, 2013-2020). Entre suas principais publicações estão A câmara e o governo da cidade (EDUFRN, 2018) e a participação no Dicionário de ensino de História (FGV, 2019). E-mail: [email protected].
2 Foram localizados os programas de prova dos seguintes concursos: UNILAB (2013, 2016, 2016); UNB (2009); UFBA (2010, 2010, 2010, 2011, 2019); UFFS (2010); UNILA (2011, 2014, 2016,
2019); UFAL (2010, 2014); UNIFAL (2010); UFG (2009, 2018); UFJF (2013); UFMS (2018);
UFOP (2013); UFSJ (2018); UNIFESP (2006, 2009); UFS (2019); UFV (2018); UFAM (2014);
UFMA (2014); UFOB (2015); UFOPA (2012); UNIPAMPA (2010); UFPA (2012, 2018); UFPR
(2018); UFRB (2008); UFRJ (2014, 2018); UFRN (2015, 2016); UFRGS (2010, 2019);
UNIFESSPA (2015, 2017); UFVJM (2012, 2014, 2017); UFF (2011, 2013, 2019); UFRPE (2017);
UFRRJ (2010). Nos programas sublinhados havia ao menos um ponto de prova sobre ensino. 3 Não foram encontradas referências explícitas aos temas pertinentes ao processo de produção do conhecimento histórico nos programas dos seguintes concursos: UFFS (2010), UFAL (2010), UFRRJ (2010), UNILA (2011), UFVJM (2012), UFOP (2013), UFRPE (2017), UFPR (2018).
4 Pesquisa realizada na página eletrônica do Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Disponível em: <http:// lattes.cnpq.br/web/dgp>. Acesso em: 20 abr. 2020.
Notas de aulas com o patrimônio cultural: exercícios de “teorização prática sobre
a prática de ensinar História”
Carmem Zeli de Vargas Gil1 Mônica Martins da Silva2
Este texto foi concebido a partir de muitas inquietações compartilhadas por duas professoras que atuam em diferentes contextos de formação inicial e continuada de outros professores, mas que, em comum, possuem trajetórias de docência e pesquisa articuladas ao Ensino de História e à Educação Patri- monial. Outro ponto de encontro é a atuação de ambas no Mestrado Profissio- nal em Ensino de História (ProfHistória), oferecido em rede nacional, que tem atuado ostensivamente na formação de professores de História e no qual as temáticas da memória e do patrimônio cultural têm emergido de forma muito recorrente e significativa no conjunto das pesquisas desenvolvidas no curso em diferentes instituições do país, principalmente a partir da linha de pesquisa “Saberes históricos em diferentes espaços de memória”. Como resultado des- sa aproximação intelectual e profissional, ambas as professoras atuaram jun- tas na docência da disciplina Ensino de História e Educação Patrimonial, a qual foi oferecida para uma turma de mestrandos do ProfHistória da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no segundo semestre de 2019.
Um dos objetivos do trabalho era construir uma proposta de ensino que nos possibilitasse abordar o lugar do ensino de História no contexto de deba- tes sobre Educação Patrimonial, temática que, ao longo de pelo menos três décadas, acumula reflexões, dissensos, rupturas e permanências em um cená- rio polifônico que envolve instituições como o Instituto do Patrimônio Histó- rico e Artístico Nacional (IPHAN), museus, arquivos, universidades e escolas. Tomar esse aspecto como ponto de partida engajou-nos na construção de um sentido muito importante para nós: reconhecer a singularidade do trabalho do professor de História, o qual tem a sala de aula como espaço de circulação de conhecimentos, mas que também dialoga com outros campos disciplinares e espaços não formais de educação. Sendo assim, questionávamo-nos: qual a singularidade da História escolar nas discussões sobre o patrimônio cultural? Haveria um caminho metodológico específico para o professor de História que pretende desenvolver projetos e atividades de Educação Patrimonial? Quais
seriam as especificidades do trabalho escolar frente ao de outras instituições envolvidas com o patrimônio cultural, como os museus, os arquivos ou o pró- prio IPHAN e outras instituições responsáveis pela salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro? Que aproximações e distanciamentos seriam necessários de- marcar frente às diferentes finalidades dessas instituições e frente à escola?
Este artigo pretende discorrer sobre essa experiência e tem inspiração no trabalho de Ana Zavala, pesquisadora do Centro Latinoamericano de Econo- mía Humana do Uruguai (CLAEH), que há vários anos vem se dedicando a pesquisas sobre a formação docente, nas quais se nota a influência de autores como Michel de Certeau, Jean-Marie Barbier e também Paul Ricoeur. Em diálogo com esses autores, com professores da escola secundária e do Institu- to de Professores Artigas (IPA) e também com outros colegas do CLAEH, Zavala vem se empenhando na realização de investigações que já resultaram em artigos e livros que fazem parte de uma experiência de trabalho coletivo que foi intensificada, sobretudo, após a criação do Mestrado em Didática da His- tória (CLAEH). A autora vem atuando nesse curso com protagonismo desde o seu início, e em torno desse foi impulsionada boa parte da produção de um grupo de mais de 76 autores e coautores. Segundo Zavala, esses materiais, que correspondem a 11 livros, foram resultado de ricos encontros virtuais e pre- senciais desse grupo com intensas trocas intelectuais, pelos quais esses textos puderam circular e assim foram debatidos, comentados e também puderam receber críticas e sugestões.3
Nesse contexto de trabalho coletivo, de muitos estudos e afetos pelo fazer pedagógico, Ana Zavala formula, em conjunto com os(as) professores(as), o que ela nomeia de investigación práctica de la práctica de la enseñanza. Segundo essa perspectiva, existe uma diferença radical quando um investigador analisa uma ação de ensinar História e quando um(a) professor(a) faz essa análise. “La diferencia radical está en el hecho de que en el segundo caso coinciden el actor de la acción analizada y quien se aboca a la tarea de analizarla” (ZAVA- LA, 2008, p. 187). Para ela, ainda que em ambos os casos se trate do estudo de uma prática, o que resulta desse estudo é diferente nas duas situações. Há uma singularidade na teorização prática da prática de ensinar História, visto que “el trabajo de teorización está así incorporado y entrelazado con la dimensión práctica de la enseñanza de la historia” (p.190). Em Zavala, encontramos pis- tas para discutir as nossas aprendizagens no processo da docência, converten- do a prática do ensino da História em objeto de reflexão.
A autora convida-nos a olhar o universo semântico das teorias a partir de sua polissemia, propondo uma distinção entre as chamadas teorias científi- cas, também nomeadas como formais, e as teorias práticas, que podem ser
evocadas a partir das distintas práticas implicadas na teorização da prática de ensinar. No entanto o sentido proposto é distinto do que já foi defendido por autores como Lawrence Stenhouse, Wilfred Carr e Donald Schön, que, de modo geral, consideram-nas como crenças ou teorias professadas, dando con- ta de um trabalho intelectual de outra natureza e qualidade, considerando que, a partir da reflexão e da compreensão que o sujeito adquire, a sua ação pode ser modificada por outra concepção mais genuína. As teorias práticas propos- tas por Zavala são de outra natureza, pois essa teorização construída a partir do trabalho intelectual do professor pode resultar em mudanças na sua forma de ver e de conceber o próprio trabalho, mas também é possível que o caminho seja o de aprofundar e manter essa prática, recorrendo a ferramentas de análi- se mais sofisticadas (ZAVALA, 2015, p. 185). Por outro lado, as teorias práti- cas são, como qualquer teoria, atos discursivos que procuram dar conta da racionalidade daquilo a que se referem, dependendo, na maioria das vezes, de um manejo da linguagem que habilita a expressão em palavras de todo o pro- cesso, visto que é a linguagem que lhes permite existir e serem conhecidas. (ZAVALA, 2019, p. 30).
No processo de investigação prática, o(a) professor(a) formula um pro- blema prático, relacionado com seu trabalho como teórico-prático, que lhe permite pensar sobre si mesmo: por que faz as coisas como faz; por que pensa sua prática de um jeito, mas opera de outro, entre outros aspectos. Isso pode provocar um conflito entre a mudança operada e a desejada ou um jogo de uma dupla teorização prática relativa ao mesmo assunto, podendo resultar em um conflito que, de certa forma, gesta a possibilidade de se formular um pro- blema prático para ser investigado (ZAVALA, 2019). Portanto tal problema está em conexão com algo que nos causa incômodo em sala de aula. Marina Devoto Ibarra (2018), por exemplo, em sua tese orientada por Ana Zavala, indica que seu desafio nas aulas de História era o ensino da formação do Uru- guai como Estado. Ela queria tornar complexo o relato nacionalista românti- co da história da Independência que os uruguaios aprendiam na escola, e isso lhe causava desconforto porque entendia que não estava conseguindo desen- volver tais reflexões com os estudantes. Outra orientanda de Zavala, Marcia González (2018), aponta que o primeiro problema que a fez pensar sua prática foi a dificuldade de discutir em aula as teorias de Pilar Maestro4 sobre a Histó- ria ensinada. À medida que vai refletindo, ampliando as leituras e alterando as ações em aula, a autora percebe que sua relação com a teoria era prescritiva e, a partir de novas ferramentas de análise, reconfigura seu problema para conti- nuar pensando “especialmente en lo que refiere al binomio de historia investi- gada-historia enseñada” (p. 8). Nas conclusões da pesquisa, González (2018)
indica que já não entende essas duas dimensões da História como saberes se- parados, mas como dois momentos na produção da aula: o primeiro seria o estudo e a interpretação dos textos, e o segundo seria a elaboração do relato da aula em si.
É fundamental anunciar que nosso propósito não foi realizar uma “in- vestigação prática da prática de ensinar História”, tal como preconiza Ana Zavala. Sua obra foi nossa inspiração para um exercício de reflexão sobre o nosso fazer docente. Também não se trata de prescrever um modo de ensinar. Ao contrário, a intenção é tornar visível o pesquisador que pesquisa a prática dos professores, tomando a nossa própria prática docente como objeto de re- flexão, tornando-nos visíveis na escrita, refletindo sobre nossas escolhas, nos- sas intenções e nosso fazer docente. Em seus estudos, Ana Zavala aponta a situação paradoxal dos pesquisadores que analisam práticas plenas de sujeitos (professores, alunos…), mas as suas opções de pesquisa não possibilitam que ele se veja como sujeito que investiga. Segundo ela,
queda entonces claro que se trata de una práctica (la de la investigación) que toma como objeto de estudio a otra práctica (la de la enseñanza de la histo- ria), teniendo por resultado (un artículo, un libro, una ponencia, es decir, un texto) que teoriza su objeto en diversos modos, llegando en algunos casos a asumir que teoriza también la teoría práctica que ha guiado la práctica de la enseñanza (que es su objeto principal de estudio) (ZAVALA, 2015, p. 180).
O que apresentamos, a seguir, são fragmentos de um exercício de reme- moração de nossas aulas, construído com a finalidade de produzir narrativas acerca desse trabalho docente compartilhado e que expõe algumas confluên- cias do que foi desenvolvido. A nossa aposta foi construir narrativas, aqui editadas, selecionadas e configuradas em notas de aulas, como parte do exer- cício reflexivo desse trabalho docente que se converte em objeto de estudo. Em alguns momentos, as reflexões estão ancoradas no plano de ensino, nos rotei- ros de aula e em outros materiais que pesquisamos, preparamos e seleciona- mos, indicando escolhas, preferências e destaques. Em outros, acionamos as memórias das inquietações que nos defrontavam naquele contexto, expondo dúvidas, desafios e questionamentos acerca desse trabalho. Há também situa- ções em que recorremos aos materiais produzidos pelos alunos da disciplina, dialogando com aspectos da recepção, ainda que esse não seja o objeto de discussão neste texto. De todo modo, a tarefa a que nos propomos é dar evi- dência a alguns aspectos de nosso trabalho docente, apontando as suas marcas subjetivas e exercitando a construção de narrativas sobre determinadas práti- cas docentes, além de tentar compreender os desafios do nosso fazer pedagó- gico.
Ao organizarmos notas sobre essas aulas, propomo-nos a refletir sobre os significados que atribuímos a esse trabalho e que emergiram no contexto das escritas. Esse foi um exercício de deixar fluir lembranças e esquecimentos e, ao mesmo tempo, refletir sobre o que emergiu nesses textos fragmentados que buscaram tramar objetivos, intenções, vivências e teorias a partir de algo que nos provoca incômodo na formação do(a) professor(a) de História. Dan- do sequência ao texto, apresentamos as três notas construídas como parte des- se exercício.
Notas de aula 1
Na primeira aula, planejamos compreender o que sabiam os professo- res-mestrandos acerca da temática da Educação Patrimonial, promovendo um ambiente de escuta e de expressão das concepções acumuladas acerca do tema, engajando-os em um livre exercício reflexivo. Por meio do uso da plataforma on-line Mentimeter, que foi exibida em projetor multimídia e acessada pelo celular conectado à internet, cada um respondeu a duas perguntas:
- Escreva três palavras que, para você, sintetizam o conceito de patrimônio.
- Na sua opinião, qual das alternativas reforça uma Educação Patrimonial sem base democrática e dialógica? (As alternativas5 foram: 1. Alfabetização cultural; Informações sobre o patrimônio consagrado; 3. Processo de cons- cientização das pessoas; 4. É uma metodologia com cinco etapas; 5. Assu- me a premissa de que conhecer é preservar).
Da primeira pergunta, as palavras que emergiram com maior destaque foram “memória”, “identidade” e “pertencimento”. Esse breve exercício per- mitiu-nos conhecer algumas ideias do grupo: boa parte dele defendia a abor- dagem ampliada do patrimônio para além do consagrado pelas políticas de preservação. Ou seja, as propostas de Educação Patrimonial não poderiam ficar restritas à transmissão de informações sobre os bens oficiais. Observando outras palavras e expressões que surgiram nas respostas do grupo, como “re- conhecimento”, “valor”, “disputa de poderes” e “passados presentes”, perce- be-se que muitos pressupostos do campo do patrimônio apareceram imbrica- dos, indicando reconhecimento de seu papel na atribuição de valores, também apontando para a presença das disputas e da importância do coletivo, assim como a cultura e a história aparecem como processos vivos que nos ajudam a pensar o que ficou do passado no presente.
O debate construído a partir desse exercício de pensamento indicou que estávamos ministrando a disciplina para um grupo que tinha uma relação de- sigual com o tema. Alguns já haviam atuado em projetos de Educação Patri- monial, outros tinham o “Patrimônio” como objeto ou campo de interlocução
em seus projetos de mestrado. Um percentual menor não havia feito leituras sobre o assunto ou havia passado por experiências que os fizeram se afastar da temática, cansados da abordagem a partir de guias, manuais e cartilhas. Para a grande maioria, o tema não tinha sido abordado em sua formação inicial ou não tiveram oportunidades de trabalhar com o patrimônio durante a do- cência. Outros ainda haviam participado de oficinas de promoção dos bens culturais, oferecidas por agências de difusão do patrimônio. Portanto se trata- va de um grupo com perspectivas muito diferentes, e nosso desafio era tensio- nar e problematizar essas concepções e refletir sobre a Educação Patrimonial como um campo de debates instável e polissêmico. Além de percorrer essa complexidade, o nosso objetivo seria refletir: qual a singularidade do Ensino de História nesse contexto? O que nos compete discutir, considerando as fina- lidades da História ensinada na Educação Básica? O que é possível avançar a partir das reflexões e das experiências acumuladas? Como essas questões po- dem converter-se em objeto de reflexão crítica sobre o trabalho docente em sala de aula?
Entre outras questões que poderiam emergir, a nossa intenção era iniciar o trabalho com um questionamento central que dialogava com a nossa pers- pectiva crítica frente aos debates sobre o tema, assim como provocar os profes- sores-mestrandos para uma interpelação acerca de seu próprio lugar como su- jeito de sua prática profissional, refletindo sobre quais são as concepções teó- rico-metodológicas que acompanham o seu fazer docente cotidiano, especial- mente no que se refere ao trabalho com a memória e o patrimônio cultural em suas aulas de História.
Nessa primeira nota, indicamos que nosso ponto de partida foi reco- nhecer os saberes dos professores-mestrandos sobre o tema do Patrimônio Cultural. Esse é um aspecto que nos parece bastante relevante, ou seja, reco- nhecer que nossos estudantes, que também são professores, além de perspecti- vas teóricas da História que são manejadas em seu cotidiano profissional, tam- bém possuem pontos de vista e opiniões que os inscrevem como sujeitos do mundo. Assim, abordar um tema carregado de significados acadêmicos (GON- ÇALVES, 2014), políticos (CHUVA, 2012; FONSECA, 2005) e também iden- titários (CHAGAS; ABREU, 2007) significava provocá-los a não apenas se deslocar conceitualmente, mas também a rever noções de sua própria relação com o lugar onde vivem e com sua cultura. O uso da ferramenta on-line Men- timeter trazia outra intenção: tornar a discussão mais dinâmica e interativa, alinhando a forma ao conteúdo da aula, produzindo um debate circular e ho- rizontal sobre as ideias que pretendíamos explorar.
As discussões que decorreram dessa proposta fizeram-nos pensar na docência compartilhada como um encontro, ou seja, como uma intensa troca de ideias e de posições sobre o saber histórico, na didática, no campo do ensi- no de História, no uso das tecnologias e no estilo de cada uma ao estabelecer o diálogo com o grupo.
Notas de aula 2
Reconhecendo que no debate acumulado sobre Educação Patrimonial no Brasil há uma grande influência do chamado Guia de Educação Patrimo- nial6, o qual concebe o tripé conhecer-valorizar-preservar como eixo de uma metodologia de trabalho com o patrimônio cultural, nosso maior desafio nas aulas era problematizar as ideias que atribuem à Educação Patrimonial a com- preensão de uma noção prévia de Patrimônio, a partir da qual se difundem ações e práticas de valorização que promoveriam o reconhecimento e o desen- volvimento de identidades. Ao contrário, procurávamos defender que ao ensi- no de História compete refletir sobre a historicização das noções de Patrimô- nio, compreendendo-as em seus contextos específicos de produção, também identificando os sujeitos envolvidos, as suas intenções e as relações de poder, operando com um documento específico: os bens culturais. Com esse objetivo em foco, começamos a escolher as leituras, elegendo autores7 que pudessem contribuir para esse exercício de crítica conceitual, mas também indicando a leitura de sites de instituições e também de projetos já desenvolvidos que con- tribuiriam, nessa proposta, para a formação de um acervo de projetos e de ideias que percorreríamos paralelamente. Organizamos, assim, o plano de en- sino em duas colunas: na primeira, indicamos os textos de referência, cujas ideias seriam desenvolvidas e debatidas em sala. Na segunda coluna, nomeada “Em diálogo”, sugerimos projetos, sites, leituras complementares, filmes, acer- vos de museus, projetos educativos, entre outros materiais que guardavam rela- ção com as respectivas aulas, mas também ampliavam a sua perspectiva, trazen- do diferentes ideias e propostas educativas, oferecendo diferentes camadas refle- xivas que poderiam ser acionadas no contexto da sala de aula ou nas atividades que propusemos no decorrer da disciplina, também apresentando o potencial de inspirar diferentes práticas pedagógicas dentro e fora da sala de aula.
A partir da hipótese de que na escola o patrimônio cultural era aborda-
do muito mais como uma herança e a Educação Patrimonial como uma meto- dologia voltada ao trabalho de identificar, reconhecer e valorizar bens cultu- rais, nosso primeiro movimento foi reescrever, junto aos professores-mestran- dos, conceitos que compilamos de diferentes materiais que circulam no con-
texto das pesquisas na área. Eles foram apresentados a partir de pequenos excertos que explicitam diferentes concepções de autores e instituições acerca da Educação Patrimonial, representando uma diversidade de caminhos inter- pretativos, mas também indicando alguns elementos em comum. O desafio não era apenas reconhecer o eixo dessas concepções, mas reescrevê-las, tendo como referência o texto que elegemos para a discussão inicial. A orientação que formulamos foi assim apresentada:
A proposta é que você escolha um desses conceitos e reescreva-o a partir da leitura do texto de Átila Tolentino “Educação patrimonial decolonial: pers- pectivas e entraves nas práticas de patrimonialização federal” (2018). Na próxima aula, você deve apresentar o seu conceito reescrito, justificando as escolhas feitas para a reformulação.
A escolha do texto de Átila Tolentino (2018) demarcava nossa opção por um referencial teórico que permitisse aos(às) professores(as) questionarem o patrimônio como resultado das escolhas de homens, como os famosos per- sonagens do enredo oficial do patrimônio cultural brasileiro: Rodrigo de Melo Franco Andrade, Mário de Andrade ou Lúcio Costa. Do mesmo modo, per- guntávamos sobre o papel do branco na definição do barroco mineiro como lugar de “origem” do patrimônio brasileiro. A ausência das mulheres nessas narrativas era evidente, sendo o patrimônio oficial brasileiro uma expressão do que as intelectuais feministas negras chamam de “patriarcado supremacis- ta branco”. Portanto estávamos inscrevendo a disciplina em um lugar de críti- ca à colonialidade do poder e do saber, filiando-nos a autores(as) que inspira- ram a escrita de Tolentino e, desse modo, ofereciam-nos uma perspectiva teó- rica mais abrangente acerca do patrimônio cultural brasileiro.
Na atividade de (re)escrita dos conceitos, uma das alunas assim reescre- veu a concepção de Educação Patrimonial apresentada no Guia Básico de Edu- cação Patrimonial, o qual foi por ela escolhido:
Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado na construção da memória e da identidade, individual e coletiva, a fim de subverter a imposição de uma matriz homogeneizadora, reconhecendo o Patrimô- nio Cultural impreterivelmente como um bem simbólico, seja ele material ou imaterial, que é sempre produto de disputas e imbricado de relações de poder. A partir da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho da Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo e emancipatório de identificação, escolha e (re)conhecimento, de sua herança cultural multicultural, especialmente valorizando os elementos indígenas e africanos, que singularizam a cultura brasileira. Especialmente, para que haja o reconhecimento e consequente usufruto destes bens, bem como sua valori- zação e preservação, como sua ressignificação, propiciando a geração e a
produção de novos conhecimentos, num processo continuo de criação e re- criação cultural. [grifos nossos] (Acervo da disciplina)
Outra aluna, que elegeu o mesmo conceito para a sua (re) escrita, assim o escreveu:
Educação Patrimonial é uma prática social dinâmica, coletiva e democráti- ca que possibilita olhares outros sobre a cidade e suas manifestações cultu- rais. O trabalho da Educação Patrimonial busca problematizar as diversas ca- madas de tempo presentes em torno do Patrimônio, desnaturalizando narrativas he- gemônicas para lançar luz aos sujeitos históricos invisibilizados. Seu objetivo é de- senvolver ações educativas que criem condições para a produção de senti- dos e sensibilidades por parte das crianças e adultos em relação a determina- do bem a fim de construir, em termos didáticos, relações socioafetivas com o passado histórico. [grifos nossos] (Acervo da disciplina)
Ainda que o conceito (re)escrito pelas alunas tenha sido o mesmo, ob- serva-se que cada uma delas adotou uma forma diferente de conduzir a escri- ta, também demonstrando distintas formas de apropriação da problematiza- ção proposta. No entanto, em ambos os casos, é possível perceber que o exer- cício de ressignificar o patrimônio a partir do diálogo com a “decolonialida- de” explicita-se por meio de concepções críticas que reconhecem a diversidade e a multiplicidade da cultura brasileira e reivindica o reconhecimento de gru- pos subalternizados.
O trabalho com diferentes conceitos de Educação Patrimonial permi- tiu-nos apresentar aos professores-mestrandos diversos autores com diferentes concepções, demonstrando a polifonia do campo, assim como a própria di- mensão histórica desses debates que foram se complexificando, sobretudo nas últimas décadas do século XX. No entanto há que se destacar que havia, nesse trabalho, uma intenção evidente: problematizar a perspectiva colonialista do patrimônio cultural e da Educação Patrimonial, alinhando-nos ao pensamen- to de Catherine Walsh (2018), cuja perspectiva epistemológica rompe com as bases do pensamento eurocêntrico que estrutura, em grande medida, o campo do Patrimônio. Dessa forma, procuramos visibilizar memórias de povos indí- genas e afro-brasileiros, histórias das mulheres e as relações de gênero no cam- po do Patrimônio, afirmando o nosso compromisso político em abordar dife- rentes sujeitos do patrimônio em um contexto de memórias plurais.
Também procuramos apresentar e percorrer algumas iniciativas institu- cionais e acadêmicas que têm procurado superar essa invisibilidade, entre elas o Programa Santa Afro Catarina8, que, por meio de um conjunto de projetos, atua na pesquisa, na produção e na difusão de materiais sobre a história dos povos afri- canos e afrodescendentes em Santa Catarina, buscando ressignificar esse passa- do e problematizar a invisibilidade desses povos na história e na memória.
Dialogamos, em particular, com o roteiro histórico Viver de quitandas, que, por meio do percurso em diferentes espaços do centro histórico de Floria- nópolis, como ruas, praças, becos e edifícios, mediado por uma narrativa his- tórica, procura dar visibilidade à história de escravizados e libertos, homens e mulheres de origem africana, percorrendo espaços atuais que antes eram lo- cais de sociabilidade e trabalho, onde desempenhavam atividades relaciona- das ao comércio de gêneros alimentícios produzidos na ilha e no litoral adja- cente, procurando ressignificar marcos urbanos da cidade. A escolha de viven- ciar esse roteiro histórico com os professores-mestrandos também correspon- dia a um importante objetivo da disciplina, que era proporcionar experiências com acervos, instituições e projetos culturais da cidade, mobilizando-os a re- fletir acerca da potência formativa dessas atividades no ensino de História.9
Ainda é importante indicar que, em nossa trajetória na formação de professores, essa perspectiva teórica foi transformadora para tomar decisões pedagógicas alinhadas com o que entendíamos como o valor social das aulas de História. Os tensionamentos vividos como professoras formadoras em con- tato com estudantes de diferentes grupos sociais na universidade também têm nos sensibilizado a estudar o que tem pouca visibilidade. Nesta disciplina, nossa intenção era dar enfoque aos grupos silenciados nas narrativas históri- cas tradicionais e nos processos de seleção da memória em instituições, em monumentos e em espaços urbanos.
Notas de aula 3
Considerando que os museus são espaços de recorrentes diálogos com o ensino de História, planejamos realizar uma de nossas aulas no Museu Histó- rico de Santa Catarina Palácio Cruz e Sousa, principal instituição museal de Florianópolis. Pretendíamos refletir com o grupo sobre como esse museu cons- trói suas narrativas sobre o passado por meio de suas exposições. Antes da aula no museu, postamos, no site da disciplina, o seguinte desafio:
Durante a mediação, observe a disposição dos objetos, a temáticas das salas, os sujeitos representados, o jogo de luz que coloca acento em alguns objetos e em outros não, as camadas de tempo visíveis na arquitetura do palácio e no que é possível observar de suas janelas. Pense sobre as presenças e ausên- cias e escolha um objeto/cena/detalhe que sintetize uma aprendizagem sua sobre estas presenças/ausências. Crie uma legenda para sua foto, contando sobre seu exercício de pensamento com esse objeto. Após comente com os colegas e poste na sua página do site Educação Museal. Lembre-se de con- textualizar, explicando que a foto resultou de uma aula-vivência no Museu Histórico de Santa Catarina.
Também tínhamos indicado como leitura prévia o capítulo três da dis- sertação de Katianne Bruhns (2010). Assim, no momento da aula, a turma já conhecia alguns aspectos da história do museu. As partes inicial e final da aula ocorreram em um dos auditórios, o que ofereceu àquele encontro um cenário diferente, pois a materialidade do museu, expressa por meio da arqui- tetura, do mobiliário e dos detalhes da decoração, possibilitou falar sobre a instituição em seu próprio espaço físico, podendo, desse modo, vivenciá-la, senti-la e tocá-la.
Considerando o nosso desafio de compreender as narrativas que o mu- seu escolhe para expor, iniciamos o percurso conduzido pela diretora da insti- tuição. Na primeira sala da exposição permanente, emerge a primeira observa- ção a respeito do espaço dedicado a Cruz e Sousa, poeta negro que dá nome ao palácio. É uma pequena sala que procura homenagear o personagem, mas restringe a sua presença àquele diminuto cômodo. Essa inquietação acompa- nhou-nos durante todo o percurso, e a reação do grupo foi procurar objetos no museu que lembrassem o poeta. A frustrada busca justificou-se na contradi- ção que logo se tornou aparente: embora Cruz e Sousa dê nome ao palácio onde se localiza o museu, o compromisso oficial da instituição é com a histó- ria política de Santa Catarina, expondo objetos que fazem parte, em sua maio- ria, do acervo doado pelo ex-governador Antônio Carlos Konder Reis e que abrangem o cotidiano da política do Estado e a vida privada das elites de San- ta Catarina. Assim, percorríamos os salões do palácio questionando as esco- lhas daquela exposição, a disposição dos objetos e as narrativas selecionadas para contar a história de Santa Catarina. Tínhamos lido textos de Ulpiano Bezerra de Menezes e Nina Simon, o que nos ajudou nesse exercício de for- mular perguntas e tentar aprender com os objetos.
Mas tudo ganhou outro significado quando observamos de dentro do museu, a partir de suas janelas, o mural10 de 900 metros quadrados que recria o perfil do poeta simbolista no paredão do Edifício João Moritz, ao lado do Museu Histórico de Santa Catarina Palácio Cruz e Sousa. Muitas fotos foram tiradas, registrando aquela ausência-presença que se impunha pela imponên- cia do recente painel. Considerando que os professores-mestrandos tinham a tarefa de produzir registros fotográficos e, ao mesmo tempo, de elaborar refle- xões sobre as escolhas narrativas do museu, obtivemos um rico resultado, o qual foi publicado pelos professores em um site experimental produzido para exercícios criativos e reflexivos da disciplina. Uma das alunas intitulou o co- mentário de sua foto assim: O não lugar do poeta no museu. Outra aluna escre- veu: Em cada cômodo do museu, um novo ângulo de sua imagem roubava minha atenção durante a vivência no Museu Histórico de Santa Catarina. Sua pintura de 900
metros quadrados na “medianera” do prédio ao lado, revelada pelas janelas do Museu, era como uma voz em off do poeta catarinense, contando uma outra história sobre a cidade.
Acervo da disciplina. Fotos de Mariana Cardozo (aluna da disciplina).
Por meio das fotos publicadas no site, também identificamos que boa parte dos(as) professores(as) percebeu o detalhe “Não toque, por favor”. Ha- via uma sintonia entre o que queríamos abordar e o que o grupo queria saber. Tomados pela imaginação e pela criatividade, o grupo percorreu as salas con- versando sobre como podemos aprender com objetos, como fazer relações que nos permitem elaborar o pensamento histórico. Uma aluna fotografou as jane- las do palácio e postou o seguinte comentário no site junto à pintura Mulher numa janela, de Caspar David Friedrich:
Para a aula de História, eu provocaria meus alunos a pensar como a Histó- ria é construída e de que forma ela é escrita e interpretada. Começaria meus questionamentos provocando-os através da observação das janelas, condu- zindo-os para elas. Será que dessas janelas nós conseguimos ter a vista total do que acontece lá fora? Será que aqueles que passam por essas ruas conse- guem através das janelas ter a percepção de tudo o que aconteceu e acontece aqui dentro? A janela não seria um recorte da realidade? Os lugares onde elas se encontram não teriam sido selecionados? A vista lá fora não teria sido conduzida pela sua posição?
Outro aluno lembrou-se dos trabalhadores silenciados na história dos objetos no museu:
Onde caíram as gotas de suor do/os habilidoso/s manuseador/res de ma- chado/s que transformaram esse cerne de madeira de lei da mata atlântica em suporte para o imponente assoalho do outrora palácio de governo? Que rostos foram afagados pelas mãos calosas do intenso e cansativo segurar do cabo da ferramenta? Estariam todas as vidas (e histórias), esses momentos representados nessas madeiras escondidas do Palácio Cruz e Sousa?
Por que propor a aula no museu? Muito já se escreveu sobre o potencial pedagógico dos museus nas aulas de História, porém, exatamente por isso, essa aula teve um embasamento maior e conseguimos elaborar um planeja- mento mais consistente para realizá-la. Sabíamos que salas de exposições, ob- jetos e suas intencionalidades podiam ser vistos como um tema escolar “inte- ressante”. Estávamos defendendo a aula fora das quatro paredes, a aula na cidade, a cidade como aula, o museu como lugar de aula. Mas, acima de tudo, entendíamos que o museu ajudaria o grupo a formular perguntas, instigando a curiosidade e a compreensão de que todo conhecimento começa com a per- gunta. Certamente nossa decisão tinha apoio em Paulo Freire, autor que de- fende a ideia de que se deve aprender a perguntar, visto que para ele a curiosi- dade produz a busca.
Assim, entre as atividades que desenvolvemos fora da sala de aula esco- lhemos comentar sobre a aula no Museu Histórico de Santa Catarina, prova- velmente porque ali pudemos explicitar o nosso exercício de análise, de crítica e de problematização de determinadas abordagens das quais nos afastamos. Mas também consideramos que aquele foi um momento bastante distinto para promover uma aula fora da sala de aula convencional, provocando o grupo para o exercício do pensamento, sem abdicar da ideia do museu como espaço de fruição que nunca havia sido visitado por alguns dos professores-mestran- dos. Após a aula, a atividade continuou reverberando entre nós, pois cada um tinha o desafio de postar em um site uma única imagem produzida no museu e que sintetizasse a sua perspectiva sobre o acervo na interface com o debate que
estávamos desenvolvendo. Tratava-se também de educar pela sensibilidade e de provocar diferentes aproximações entre o grupo e os objetos do museu pe- los quais cada um tinha preferência. A aposta era possibilitar a crítica afetiva e criativa do ensino de História com objetos, assim como romper com os limites disciplinares do conhecimento discutindo o encontro com pressupostos da museologia.
Em nossas notas de aula, compreendidas aqui como atividades narrati- vas essenciais para a compreensão de nossas perspectivas teóricas para o Ensi- no de História e a Educação Patrimonial, expressamos saberes e conhecimentos por meio das palavras narradas com visibilidade para as nossas escolhas. Ao construirmos essas narrativas, apresentamos um compromisso: problematizar determinadas abordagens do patrimônio cultural com tendências essencialis- tas, instigando o grupo a reconhecer a singularidade do professor de História no trabalho com a Educação Patrimonial.
Ainda cabe dizer que o trabalho docente apresenta as marcas subjetivas de seu autor (o professor e a professora), que podem ser percebidas pelo modo como esse seleciona e ordena os assuntos, organiza e desenvolve um determi- nado repertório sobre os temas, produz hierarquias, apresenta ênfases, elege, interpreta e relaciona determinada bibliografia, maneja ferramentas e procura dar sentido a suas aulas. No entanto só o(a) próprio(a) professor(a) como narrador(a) de seu trabalho pode desdobrar esses elementos, dispondo da lin- guagem como recurso narrativo para atribuir significados à sua prática. Nesse sentido, as notas de aulas expostas são parte desse nosso exercício de constru- ção de sentidos e estão carregadas dessas subjetividades que marcam o nosso trabalho e que podem ser compreendidas próximo ao que Zavala (2015) define como uma teorização prática que toma como objeto de estudo outra prática (a nossa prática de ensinar), que teria como resultado um texto (aqui as nossas notas de aula).
Nesse exercício narrativo, somos autoras dessa reflexão e, portanto, su- jeitos na construção de nossos pontos de vista sobre a nossa prática de ensinar, configuradas pela nossa linguagem que selecionou, apresentou ênfases, refez os percursos dessa prática, colocou acento em determinadas escolhas e acon- tecimentos frente a outros, produzindo sentido para essa ação.
Para finalizar e seguir refletindo
Situadas nesse entrelugar da pesquisa e da sala de aula, atuando no cur- so de graduação e no ProfHistória, que recebe professores(as) que passam a estar também nesse entrelugar do ensino e da pesquisa, planejamos um con-
junto de leituras e vivências envolvendo o patrimônio e a Educação Patrimo- nial como uma espécie de campo de experimentação para refletir sobre o patri- mônio como matéria de aula de História. Assumimos que a abordagem da Educação Patrimonial no ensino de História tem outra finalidade relacionada à construção do pensamento histórico. E isso nos ajuda a definir objetivos, justificar escolhas na hora de planejar a disciplina e, acima de tudo, a respon- der à pergunta: por que fizemos as coisas dessa forma e não de outra? Reuni- mos, nesse exercício reflexivo, algumas tentativas de respostas a essa pergunta que nos ajudam a avançar na teorização prática e, quem sabe, futuramente, possamos conseguir formular um problema prático, tal como propõe Ana Za- vala. Por enquanto, ficamos na reflexão sobre as escolhas e expectativas na docência compartilhada que vivenciamos, assim como seguimos refletindo sobre as pistas indicadas pelas apropriações dos professores-mestrandos.
Uma dessas pistas é que não basta ensinar aos professores-mestrandos o que e como ensinar História com o patrimônio para que isso se transforme em práticas recorrentes na escola. Outros fatores misturam-se e reduzem nossas expectativas de encontrar respostas sobre modos de ensinar na formação do(a) professor(a). É importante ler mais sobre o campo do patrimônio e do ensino de História, vivenciar o contato com bens e projetos culturais, realizar leituras da cidade a partir de diferentes linguagens, insurgir-se diante das histórias au- sentes nas narrativas patrimoniais, das ações e dos projetos de valorização e preservação dos patrimônios de pedra e cal. Mas parece que há mais fatores que se revelam significativos. Um deles é, sem dúvida, a relação dos professo- res-mestrandos com o tema do patrimônio.
Como dissemos no início do texto, cada um participava das aulas com um repertório diferente sobre o tema. Isso definia uma relação que se expres- sava em diversos modos de aprender. O conceito de relação com o saber per- mite-nos girar o foco da metodologia para o grupo, indicando que há muitas questões em jogo, não somente os aspectos epistêmicos e pedagógicos. Esse conceito ajudou-nos a compreender um pouco o que tínhamos narrado sobre o planejado e o vivido na disciplina. Era fundamental pôr em relação o saber e os(as) professores(as). Charlot escreve: “A relação com o saber é a relação de um sujeito com o mundo, com ele mesmo e com os outros” (2006, p. 78). Assim, “não há saber senão para um sujeito”, porque implica uma relação consigo mesmo e com os outros, e “não há saber em si mesmo” (p. 63). Então, ensinar-aprender não tem uma implicação puramente cognitiva ou didática, mas também identitária.
Ainda precisamos pensar aqui o que Ana Zavala (2015, 2019, 2019b) e Marina Devoto Ibarra (2018) indicam sobre formular um problema no contex-
to de uma investigação prática. Zavala propõe pensarmos a relação entre teo- ria e prática rompendo a submissão da prática em relação à teoria. Tal separa- ção foi responsável pela divisão entre professores da Educação Básica (trans- missores do conhecimento) e da Educação Superior (produtores do conheci- mento). Disso decorre também a premissa de que “es escasísima, por no decir nula, la bibliografía de corte académico respecto de la práctica de la enseñanza de la historia que considere que existen profesores que enseñan bien” (ZAVA- LA, 2015, p. 181). Se a prática é o relato de uma ação combinada com as nossas vivências e as tradições de ensino, não parece coerente reduzir a prática à aplicação da teoria, entendida como o produto da academia.
Inspiradas nos estudos de Barbier (2011, p. 10), que diz que “la práctica es el discurso acerca de su propia actividad”, as autoras fazem-nos pensar a prática para além da ação de ensinar, visto que ela só pode ser apreendida a partir de seu relato. A análise das práticas seria um relato que analisa outro relato: o de uma ou várias aulas. O que ocorre na sala de aula é “a su vez, más o menos un relato de otro relato, el historiográfico” (IBARRA, 2018, p. 75).
Interessa pensar, então, a relação entre o que fizemos em aula e como narramos o que fizemos, ou seja, como buscamos compreender o que fizemos, porque isso é a base da teorização prática, segundo Zavala. O trabalho narra- tivo que desenvolvemos para promover essa reflexão aponta o exercício de narrar as aulas, o que nos permitiu perceber o acento teórico e metodológico pautado por nossas escolhas. A dimensão metodológica das aulas tinha como referência o encontro, a pesquisa, a discussão, o diálogo com a cidade, a auto- ria dos(as) professores(as)-mestrandos(as) e o trabalho coletivo. Mas ele tam- bém aponta a forma como percebemos e concebemos o ensino de História e a formação de professores, pois de certa forma esse caminho escolhido corres- ponde ao processo de seleção no acervo dos nossos conhecimentos e de nossas experiências vitais, materializados nas propostas das aulas.
Das notas de aula emergem intenções, hipóteses, tentativas, aberturas, permanências, mudanças, novidades e muitas perguntas sobre a aula como es- paço da invenção, da possibilidade, mas também de impossibilidades. A inven- ção permite pensar a abertura para outras ideias sobre ensinar quem ensina a aprender História. A impossibilidade sintetiza a certeza de que é necessário com- preender mais esse saber próprio, situado no encontro do grupo com as leituras oferecidas, as vivências na cidade de Florianópolis, os debates com as professo- ras, o contato com a diversidade de projetos e a elaboração de uma proposta de Educação Patrimonial para ensinar História. Há ainda outro aspecto a ser des- tacado: a aula fora da sala convencional interrompe as formas habituais de ler, de escrever, de observar e de refletir sobre o ensino da História.
Nosso incômodo em relação aos pressupostos da Educação Patrimonial e do ensino de História com o patrimônio expressa-se agora de forma mais complexa. Não se trata somente de selecionar textos pertinentes e atualizados, de considerar as abordagens historiográficas sobre o tema, de definir metodo- logias participativas, de abrir-se ao diálogo com o grupo, de considerar as suas trajetórias em relação ao tema ou ainda de entender que o patrimônio tem um componente identitário.
Ainda é importante apontar que um outro aspecto que emergiu no con- texto desse texto diz respeito à compreensão do patrimônio como herança. Parece-nos que há, nesse pressuposto da escrita, uma dimensão de futuro que precisa ser considerada quando desenhamos propostas de Educação Patri- monial. Como professoras de História, para nós é muito relevante pontuar que o campo do patrimônio tem uma historicidade que não pode ser desconsi- derada, referente à compreensão das disputas, das lutas e dos conflitos de memória que via de regra pautam esse campo, sobretudo em relação ao patri- mônio herdado. Além disso, é importante considerar que o patrimônio como herança traz junto de si a discussão do futuro. Ou seja, ao desenharmos pro- postas de Educação Patrimonial para a formação de crianças e jovens, é im- portante considerar que o futuro é uma construção do presente, no qual deve- mos tomar decisões, engajando esses grupos a refletir ativamente sobre que patrimônio desejam preservar, por quê, para quem, como e quais os usos no presente. Desse modo, a tarefa seria mais do que compreender esses processos, tal como já fazemos, mas operar na construção de ações que mobilizem utopias, traçando outros futuros, com os quais esses jovens se identifiquem e deles se sintam parte (GONZÁLEZ-MONFORT, 2019). Portanto, ao refletir sobre nos- sa prática, acabamos percebendo outras facetas do patrimônio como herança, algo que somente criticávamos ao abordá-lo para ensinar História. Eis que o exercício de teorização prática renova o tempo todo nosso pensar-fazer docente.
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1 Professora do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
2 Professora do Departamento de Metodologia de Ensino do Centro de Ciências da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
3 Desde 2017, temos dialogado com Ana Zavala sobre as ideias que permeiam a sua obra, seja em eventos, seja por e-mail. Para a escrita deste artigo, trocamos mensagens com a autora sobre nossa proposta de escrita e pudemos ampliar a compreensão de sua trajetória na formação de professores no Uruguai. A publicação dos trechos acima citados foi gentilmente autorizada por ela, assim como pudemos contar com sua generosa leitura e com comentários em uma das versões deste texto.
4 Em sua obra, a pesquisadora espanhola Pilar Maestro destaca a necessidade de que a historiografia esteja presente nas aulas de História, visto que o desenvolvimento de competências não se sustenta sem o conhecimento da disciplina, ou seja, o professor deve ensinar as diferentes abordagens historiográficas se quiser que os estudantes compreendam a complexidade do discurso histórico.
5 As alternativas foram elaboradas a partir da consulta do texto: TOLENTINO, Átila Bezerra. O que não é educação patrimonial: cinco falácias sobre seu conceito e sua prática. In: TOLENTINO, Átila Bezerra e OLIVEIRA. Emanuel. Educação Patrimonial: políticas, relações de poder e ações afirmativas. João Pessoa: IPHAN-PB, Casa do Patrimônio da Paraíba, 2016.
6 O Guia de Educação Patrimonial, publicado em 1999 pelo IPHAN, em parceria com o Museu Imperial, é uma das publicações mais conhecidas e utilizadas no campo da Educação Patrimonial, a despeito de inúmeras críticas e problematizações sobre essa proposta já produzidas em diferentes áreas. Para saber mais sobre o assunto, consultar CHAGAS (2006), DEMARCHI (2018), SCIFONI (2019) e TOLENTINO (2016).
7 Além dos já citados ao longo do texto, é importante indicar as dissertações desenvolvidas no âmbito do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do IPHAN. Entre elas destacamos: AMARAL, João Paulo Pereira do. Da colonialidade do patrimônio ao patrimônio decolonial. Dissertação (Mestrado) – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural, Rio de Janeiro, 2015.
8 As atividades do Programa Santa Afro Catarina podem ser conhecidas por meio do seguinte site:
<http://santaafrocatarina.ufsc.br/santaafrocatarina/>.
9 Outro projeto que estudamos foi Territórios Negros de Porto Alegre10, um percurso realizado por uma linha de ônibus especial da companhia Carris Porto-Alegrense, passando por lugares que historicamente apresentam marcas de pertencimento social e cultural da população negra na cidade de Porto Alegre. Durante quase dez anos, esse projeto concretizou-se percorrendo pontos específicos da cidade, reconhecidos como territórios de moradias, trabalhos, lutas, sociabilidades e religiosidades vinculadas à negritude. Para saber mais sobre o projeto: SANTOS, A. C. S.; MEINERZ, C. B.; GIL, C. Z. V.; SILVA, M. J. A.; ANDRE, F. R. S.; DORNELES, M. S. (org.).
Territórios Negros e Porto Alegre: Múltiplos Escurecimentos em Educação e Patrimônio. 1. ed. Porto Alegre: EST Edições, 2018. v. 1, p. 109-129. Alguns materiais produzidos podem ser consultados a partir do seguinte link: <https://www.ufrgs.br/lhiste/extensao/territorios-negros/>.
11 Iniciativa idealizada pelo artista Rodrigo Rizo e por Marina Tavares e Arturo Valle Junior, com patrocínio do município de Florianópolis e da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes; o painel em homenagem ao poeta Cruz e Sousa faz parte do projeto Street Art Tour, que busca valorizar e incentivar a arte urbana em Florianópolis. Num primeiro momento, o trabalho registrou e catalogou, em plataforma digital, mais de 100 murais na capital catarinense, além de fazer outros quatro murais na cidade. Disponível em:: <https://www.nsctotal.com.br/ noticias/painel-em-florianopolis-homenageia-poeta-cruz-e-sousa-e-chama-atencao-para-seu- legado>. Acesso em: 18 maio 2020.
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Parte 2
Estratégias metodológicas
das pesquisas em ensino de História
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Análise de Conteúdo e Análise de Discurso na pesquisa em ensino de História
Flávia Eloisa Caimi1 Letícia Mistura2
Chegamos ao final da segunda década do século XXI, vivenciando um tempo sui generis, caracterizado pelos pesquisadores como um cenário de pós-verdade (post- truth). Nele se impõem narrativas de pensamento único, em que noções de plausibilidade e relações de causalidade são deliberadamente desprezadas, especialistas são descartados e fatos alternativos desprovidos de cientificida- de são tomados como referência no cotidiano das pessoas. Num contexto as- sim configurado, a escola e a universidade, por oferecerem conteúdos e desen- volverem modalidades de pensamento bastante específicos, têm um papel fun- damental e insubstituível na apropriação pelos sujeitos da experiência coletiva culturalmente acumulada e na inteligibilidade do mundo.
O exercício de pensamento histórico, por sua vez, promove um modo sofisticado de analisar e generalizar os elementos da realidade, fomenta o ques- tionamento, a imaginação, a empatia, o respeito pelo outro, a convivência e a inclusão em sociedades complexas e plurais. Possibilita, além disso, interpre- tar e cruzar fontes com diversos pontos de vista; distinguir assunções pessoais racionais de pressupostos altamente emocionais e/ou sobretudo orientados por interesses exclusivos; argumentar e contra-argumentar face a pontos de vista diferentes e divergentes dos seus.
A prática científica ocupa, portanto, um lugar central no enfrentamento de visões absolutistas e de posições relativistas que alimentam cotidianamente a produção de fake news, fake History e autoverdade. Isso porque a ciência busca estabelecer uma linguagem universal, fundada em conceitos, métodos e técni- cas para a compreensão dos fenômenos, processos e relações (MINAYO, 2006). Discorrer sobre práticas científicas, então, remete-nos necessariamente a abor- dar métodos e técnicas de investigação. É a essa tarefa que nos dedicamos neste texto, especialmente no que diz respeito a dois métodos de produção e análise de dados que se desenvolvem sob o enfoque da pesquisa qualitativa: a Análise de Conteúdo (AC) e a Análise de Discurso (AD).
Ao escolher essas duas perspectivas metodológicas para aprofundar aqui, não ignoramos que há outras abordagens de análise de dados que tomam como
objeto central os produtos e as condições de produção do discurso ou, dito mais simplesmente, as diferentes formas de extrair significados – expressos ou latentes – das comunicações contidas nos textos ou em outras formas de lin- guagem. Pode-se citar, como exemplo, a Análise de Conversação (MARCUS- CHI, 2003), a Análise Textual Discursiva (MORAES; GALIAZZI, 2016), a Análise Dialógica do Discurso (BRAIT, 2006), entre outras.
Todas essas abordagens respondem singularmente a distintas proposi- ções investigativas, mobilizando estratégias particulares de tratamento dos tex- tos, de acordo com as teorias de base que as orientam. Frequentemente, no ofício de investigação, os pesquisadores iniciantes envolvem-se em dicotomias frente ao que consideram “a melhor teoria” ou o “melhor método” entre tan- tas possibilidades que se apresentam no universo da pesquisa qualitativa. Pa- rece que muitos querem encontrar “um autor para chamar de seu” e uma “me- todologia milagrosa” que possa oferecer todas as fórmulas para conduzir a investigação.
Ora, aqueles que já percorreram por mais tempo o caminho sinuoso da prática científica no âmbito das ciências humanas e sociais já perceberam que não se trata de escolher “o melhor” dentre todos e sim de selecionar teoria e método que guardem coerência com os propósitos da pesquisa e que efetiva- mente contribuam para responder à problemática colocada. Trazendo uma metáfora para ilustrar esse falso dilema, não se trata de escolher aleatoriamen- te se um martelo é melhor do que um serrote, pois isso depende do que se quer fazer com essas ferramentas. Assim é também com a pesquisa, que exige a escolha do referencial teórico-analítico mais adequado e pertinente com co- nhecimento e responsabilidade.
Neste texto, como já anunciado, debruçamo-nos sobre a Análise de Con- teúdo e a Análise de Discurso, duas perspectivas de pesquisa que lidam com informações/dados e com os efeitos provenientes da relação humana com a linguagem. Tais perspectivas, a partir de diferentes enfoques, oferecem trata- mento a distintos objetos e a um variado leque de objetivos e temáticas de pesquisa. Na próxima seção, objetivamos traçar um breve panorama de cada uma das perspectivas em suas propriedades e distinções, explorando-as em suas propostas teórico-metodológicas. Na seção final, avançamos em direção a apontamentos acerca de seu emprego nas pesquisas em ensino de História, tomando como estudo de caso representativo duas dissertações cujo tema se desenvolve em torno do Ensino de História e da Cultura Afro-Brasileira na sala de aula, sendo que uma delas se pauta pela Análise de Conteúdo (RIBEI- RO, 2018) e a outra pela Análise de Discurso (SILVA, 2016).
Análise de Conteúdo, Análise de Discurso: perspectivas e processos
Ao olharmos para a literatura que tem se dedicado a discutir as práticas científicas das ciências humanas e sociais em geral, vemos uma considerável tradição em justapor Análise de Discurso e Análise de Conteúdo, admitindo inúmeras formas de atribuir-lhes uma unidade primária comum. No esforço por elucidar seus lugares teóricos e sua pertinência no escopo da prática de pesquisa de diferentes saberes, faz-se por vezes um movimento de equipara- ção, perdendo-se a natureza de suas diferenças. Julgamos importante que ini- ciemos nossa discussão por essa basilar diferenciação sob pena de, ao preterir- mos essa tarefa, emaranharmos o posicionamento que cada uma pode assu- mir em processos de pesquisa. Preferimos para essa definição seguir a pista dos caminhos diretamente manifestados por duas referências clássicas: no caso da Análise de Conteúdo, por Laurence Bardin (2011), e no caso da Análise de Discurso, por Eni Orlandi (2003).
De acordo com Bardin (2011, p. 37), a Análise de Conteúdo é
[…] um conjunto de técnicas de análise das comunicações. Não se trata de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor, será um único instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações.
Para Orlandi (2003), a Análise de Discurso é uma proposta disciplinar do campo do discurso, localizando-se entre a Linguística e as Ciências Sociais e herdeira de noções da Psicanálise e do Marxismo. Nas palavras da autora:
A análise de discurso, trabalhando na confluência desses campos do conhe- cimento, irrompe em suas fronteiras e produz um novo recorte de discipli- nas, constituindo um novo objeto que vai afetar essas formas de conheci- mento: este novo objeto é o discurso (ORLANDI, 2003, p. 20).
A diferença entre ambas habita, dessa forma, em um nível mais comple- xo do que o da nomenclatura: a Análise de Conteúdo propõe-se como um conjunto de técnicas de análise textual flexível teoricamente, ao passo que a Análise de Discurso coloca-se em outro patamar, oferecendo uma argumenta- ção teórica que constitui um novo objeto investigativo: o discurso. Rocha e Deusdará (2005; 2006) historicizaram, em duas ocasiões, os caminhos de gê- nese da Análise de Conteúdo e da Análise de Discurso, compreendendo o surgimento da AD de tradição francesa com Michael Pêcheux3 como uma resposta a insuficiências percebidas nas práticas de análise de conteúdo, espe- cialmente no interior das ciências humanas e sociais na primeira metade do século XX. A crítica de Pêcheux recaía principalmente sobre a inexistência de problematização das condições de produção do objeto de análise, o que o le-
vou a propor um redimensionamento do objeto. Não pretendemos, nessa opor- tunidade, reconstruir esses percursos já traçados pelos autores. Limitar-nos-emos aqui a desfrutar de seus apontamentos reflexivos: basta dizer que as trajetórias históricas da AC e da AD se interpelam; a Análise de Discurso de Pêcheux surge no desenvolvimento pleno da Análise de Conteúdo, posicionando-se em questionamento a essa, o que resulta em posteriores desenvolvimentos ao lon- go do século XX e que faz com que as consideremos, no século XXI, como circunscritas a dois planos claramente distintos.
Moraes e Galiazzi (2016) oferecem uma metáfora interessante para ilus- trar o lugar ocupado pela Análise de Conteúdo e pela Análise de Discurso, localizando-as em um mesmo eixo. Entendem que se trata de “um mesmo rio de discurso, no qual as diferentes características emergem e se concretizam em diferentes graus ou intensidades” (MORAES; GALIAZZI, 2016, p. 162), mas em posições distintas. Funcionam “como exercícios de se movimentar num rio. A primeira [AC] assemelha-se ao deslocar-se rio abaixo, a favor da corren- teza. Já a Análise de Discurso corresponde a se mover rio acima, contra o movimento da água” (MORAES; GALIAZZI, 2016, p. 164). Compreendere- mos melhor essa metáfora ao longo do texto ao perseguir AC e AD em seus objetivos e principais conceitos/noções.
Análise de Conteúdo: gênese, objetivos, processos
Embora ímpetos interpretativos e de sintetização de mensagens sejam muito mais antigos do que aquilo que hoje compreendemos pelas técnicas de Análise de Conteúdo, pode-se dizer que esse instrumental se consolidou entre os séculos XIX e XX como um referencial de análise inicialmente quantitati- vo, útil para uma variedade de campos do saber. Nesse intento, ofereceu um conjunto de técnicas de organização e interpretação de dados escritos, notada- mente documentos de interesse político como materiais de imprensa (impres- sa e radiofônica). Atualmente, os processos de análise propostos pela AC são adotados tanto em pesquisas de natureza quantitativa como qualitativa, prio- rizando características como a exploração, a interpretação e a inferência e uti- lizando-se de balizas como a quantificação, a frequência e a exemplaridade/ generalização.
Bardin (2011) mostra a dualidade objetiva da Análise de Conteúdo en- tre a “superação da incerteza” e o “enriquecimento da leitura”. Isso porque suas técnicas prestam-se tanto à interpretação de mensagens em conjuntos de dados buscando sua reiteração ou significado coletivo como se direcionam para movimentos de leitura mais densa e atenta no esforço de deslindar “con-
teúdos e estruturas que confirmam (ou infirmam) o que se procura demons- trar a respeito das mensagens” (BARDIN, 2011, p. 35). É nessa dualidade que se vê o desenvolvimento, ao longo das décadas, da AC enquanto conjunto de técnicas disponíveis aos propósitos majoritários tanto da pesquisa quantitati- va como da investigação qualitativa.
O interesse da AC reside, portanto, na análise de mensagens, ou seja, da linguagem como expressão de significado e sentido. Isso sugere que seu bojo de análise está localizado em processos, produtos e efeitos de comunicação, um campo de aplicação vasto. Ao discutir o campo territorial da AC, reflete Bardin (2011, p. 38) que, “em última análise, qualquer comunicação, ou seja, qualquer veículo de significados de um emissor para um receptor, controlado ou não por esse, deveria poder ser escrito, decifrado pelas técnicas de análise de conteúdo”. Seu leque de uso pode alcançar, portanto, todo tipo de manifes- tação de sentido em diferentes suportes e meios: escritos, orais, iconográficos, musicais, etc.
Na AC, visam-se, por meio de técnicas específicas, a aproximação, a descrição e a análise sistemática e objetiva do conteúdo de textos, avançando para a produção de inferências sobre as condições de produção desses textos usualmente por meio de indicadores. Trata-se de um processo descritivo e de- dutivo que permite encapsular o texto para além de si em diferentes camadas de significado, como as características da comunicação (quem diz/a quem diz/como diz), as condições de produção da comunicação (o que levou a di- zer/por que disse) e os possíveis efeitos da comunicação. Para a AC, portanto, a linguagem é vista como expressão de sentido e instrumento de comunicação humana. O texto fornece indícios de significado para além da superfície, que podem ser perseguidos em descrição, inferência e interpretação pelo analista, a fim de conhecer significados “ocultos” na articulação entre a esfera semânti- ca do texto e as camadas mais profundas dele, seus significados (intencionali- dades, contextos, atitudes).
Procedimentalmente, a organização da análise de conteúdo acontece em três níveis cronologicamente desenvolvidos, conforme Bardin (2011, p. 125): a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. No nível da pré-análise, organiza-se o processo investigativo, de modo a fazer a preparação para a análise. Trata-se do momento de definição dos materiais textuais/documentos, da elaboração de objetivos e formulação de hipóteses. Inicialmente, faz-se uma “leitura flutuante” (BARDIN, 2011, p. 126), um contato inicial de reconhecimento dos documentos que possivelmente poderão integrar o corpus de pesquisa, fazendo emergir impressões e hipóteses. Após, procede-se à escolha dos documentos, que pode ser feita a priori ou con-
duzida por meio dos objetivos da pesquisa. Logo, selecionam-se indicadores, ou seja, elementos exemplares presentes nos textos que podem ser “recorta- dos” e posteriormente transformados em categorias de análise para a verifica- ção de sua frequência ou comparação mútua. A próxima etapa, a da explora- ção do material, refere-se à execução das decisões tomadas na pré-análise, en- volvendo repetidas leituras, registros e a transformação do corpus em unidades de análise (recortes elaborados de acordo com a natureza textual do corpus). A etapa final da AC consiste no tratamento dos resultados, que envolve opera- ções de frequência, comparação e elaboração de relações entre as informações obtidas por meio dos textos, de acordo com os objetivos previamente selecio- nados.
A pertinência da Análise de Conteúdo reside, portanto, em seu potencial de auxiliar na construção de um instrumental de análise e de organização do desenho de pesquisa flexível e norteador para diversos campos do saber, ajus- tável aos objetos, propósitos e especificidades de cada investigação.
Análise de Discurso: proposta e principais noções
A Análise de Discurso constitui-se como uma proposta disciplinar que busca construir um aporte teórico-conceitual ao estudo das práticas de lingua- gem e deslocar seu objeto do texto para o discurso, oferecendo uma relação “menos ingênua [do homem] com a linguagem” (ORLANDI, 2003, p. 9). A AD surge da articulação de dois campos, as Ciências Sociais e a Linguística, operando confrontações diante de ambos: questiona o esvaziamento histórico da língua produzido pela análise linguística e critica a transparência da lingua- gem como efeito das análises feitas pelas Ciências Sociais.
A AD propõe um corpo teórico-metodológico encabeçado por três prin- cipais proposições: (1) a opacidade da linguagem, (2) a determinação dos sen- tidos pela História e (3) a constituição do sujeito pela ideologia e pelo incons- ciente. Para isso mobiliza conceitos e conhecimentos no limiar crítico de três filiações teóricas: a linguística, o marxismo e a psicanálise. Exploraremos sin- teticamente cada uma dessas noções que compõem a tese central da AD: a linguagem produz a realidade pelo sentido materializado no discurso; o discur- so contribui para a construção da vida social como materialidade da língua.
A primeira noção da AD que trabalharemos aqui diz respeito à opaci- dade da linguagem, ou seja, em denúncia à “transparência da linguagem” (1) veiculada pela Linguística. Essa noção concerne à ideia de que, embora a lín- gua tenha ordem própria, não é completamente autônoma – ela não existe independentemente de um sujeito e da História, mas sim é inscrita na História
e nos gestos de interpretação dos sujeitos. Isso significa deslocar a ideia de uma “comunicação” – um texto, uma fala – para a ideia de “discurso”, a pala- vra em movimento (pelo sujeito), em materialidade, a prática de linguagem imbuída de história. Orlandi (2003, p. 18) explicita que
[a Análise de Discurso] não trabalha com os textos apenas como ilustração ou como documento de algo que já está sabido em outro lugar e que o texto exemplifica. Ela produz um conhecimento a partir do próprio texto, porque o vê como tendo uma materialidade simbólica própria e significativa, como tendo uma espessura semântica: ela o concebe em sua discursividade.
Atravessa-se à ideia de opacidade da linguagem a da “determinação dos sentidos pela história” (2), que conecta diretamente a produção de sentido (pela linguagem) à sua inscrição na história, em materialidade, noção essa que é recuperada do marxismo. A linguagem só faz sentido porque está inscrita na história, e só se pode produzir sentidos da/na história pela língua. Como mostra Orlandi (2003, p. 20), “as palavras simples do nosso cotidiano já chegam a nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que, no en- tanto, significam em nós e para nós”. Tem-se, nessa explicitação, o terceiro elemento e essencial noção da AD: a (3) “constituição do sujeito pela ideolo- gia e pelo inconsciente”. Construindo um tecido teórico aportado nos concei- tos de ideologia e de inconsciente, a AD postula que as formações discursivas (memórias da palavra, históricas) representam, no discurso, as formações ideológicas – e não há sentido que em sua produção (pelo discurso) não esteja inscrito ideologicamente. Os sentidos, assim, não estão na língua, mas na for- mação discursiva/ideológica. Ideologia, na AD, é estrutura-funcionamento da produção de sentido: sendo levado a interpretar o mundo e a produzir sen- tidos, o sujeito recorre à língua, que, inscrita historicamente, reflete formações discursivo-ideológicas. Trata-se da complexa noção de que “as palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua” (ORLANDI, 2003,
- 32). Daí decorre a noção de “inconsciente” do sujeito linguístico: embora creia ter, ele não tem domínio total sobre o que fala – recuperando o processo de assujeitamento da psicanálise –; o indivíduo é sempre assujeitado pelo dis- curso, que inscreve o que ele fala em níveis de memória-história que não estão disponíveis à sua consciência e nem sempre correspondem à sua intencionali- dade ao falar.
A AD busca, portanto, oferecer uma estrutura teórica robusta para a construção de um dispositivo analítico que permita aproximar-se do “real do sentido, em sua materialidade linguística e histórica” (ORLANDI, 2003, p. 59). Nessa direção, encaminha para a construção de um dispositivo de inter- pretação que consiga captar, em um texto transformado em discurso (explora-
do em sua historicidade linguística e social), o dito, o não dito, o que poderia ter sido dito, as escolhas e o porquê delas, e os modos de dizer. Não trata apenas de mergulhar na profundidade textual de uma comunicação, mas de reconfigurar e recuperar sua profundidade não apenas textual, mas ideológi- ca, histórica, social.
AC e AD na pesquisa em ensino de História: quais são as suas contribuições?
Como vimos, Análise de Conteúdo e Análise de Discurso são perspecti- vas de pesquisa de diferentes naturezas e que concebem o objeto a que se dedi- cam a interpretar – o texto, o discurso – em sentidos específicos. Cada uma oferece, de acordo com seus domínios, possibilidades fecundas para as pesqui- sas no campo do ensino de História.
A Análise de Conteúdo tem sido largamente utilizada nas pesquisas nas áreas da Educação e da História, não sendo diferente no ensino de História. Sua potencialidade reside, especialmente, em oferecer uma estrutura organi- zacional para a lida científica com corpus de fontes escritas disponíveis ou de fontes produzidas pelo pesquisador (como entrevistas, por exemplo). As opor- tunidades são muitas: análise de conteúdo de materiais didáticos, de constru- ções conceituais em diferentes materiais e em recortes temporais e espaciais; análise de conteúdo de produções escolares; análise de representações de estu- dantes/professores/gestão escolar sobre determinado tema histórico; análise de documentos oficiais sobre o ensino de História, entre outras.
A Análise de Discurso, por sua vez, oferece uma potente perspectiva teórica por meio do objeto “discurso”, em que é possível investigar os sentidos do discurso histórico e social em diferentes documentos e momentos da histó- ria do ensino de História; propor análises de discurso de fontes imagéticas, iconográficas, jornalísticas em sala de aula, em pesquisas de intervenção; in- vestigar o discurso escolar sobre o ensino de História; analisar se e como estu- dantes interpretam/reconhecem formações discursivas, etc.
Diante da impossibilidade de realizar um estudo mais amplo para iden- tificar as práticas investigativas no ensino de História, ancoradas na AC e na AD, aos moldes de um estado da arte, optamos por apresentar dois casos re- presentativos de uso desses métodos, destacando as operações analíticas neles empreendidas. Realizamos uma busca na Biblioteca Brasileira Digital de Te- ses e Dissertações4, com recorte temporal de 2015-2020, a partir de descritores auxiliados pelo operador booleano and: “Ensino de História” and “Análise de Conteúdo” e “Ensino de História” and “Análise de Discurso”.
Nesse domínio figuraram diversos trabalhos, muitos dos quais não ex- plicitam a metodologia utilizada, apenas a nomeiam como AC ou AD, ope- rando-a sem o devido aprofundamento. Selecionamos, então, duas disserta- ções que demonstram maior rigor na operacionalização metodológica e têm objetos e campos de investigação bastante próximos: ambas tratam do ensino de História e da Cultura Afro-Brasileira; ambas ocorrem em espaços escola- res, mais especificamente em sala de aula; ambas trazem as vozes dos profes- sores e/ou dos estudantes; ambas explicitam o uso de referenciais/metodolo- gias pautados na AC ou na AD. Assim, configura-se como caso representativo da Análise de Conteúdo a dissertação de Irlanda Maria Silva Ribeiro (2018), intitulada Práticas pedagógicas: ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas de Parnaíba-PI, e como caso representativo da Análise de Discurso, a disserta- ção de Rosalia de Moraes Romão da Silva (2016), nomeada De ‘café com leite’ a negra: africanidades, discurso e construção de abordagens identitárias positivas em au- las de História. É importante ressaltar que os casos são representativos porque atendem os critérios estabelecidos no estudo que propomos, mas não os toma- mos como exemplares ou modelos a serem seguidos. As dissertações não se- rão avaliadas ou julgadas aqui, pois isso já foi realizado quando se submete- ram à banca examinadora por ocasião da defesa para a obtenção do título de mestre.
A Análise de Conteúdo operada em Ribeiro (2018)
A pesquisa que resultou na dissertação de Irlanda Maria Silva Ribeiro (2018), intitulada Práticas pedagógicas: ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas de Parnaíba-PI, investigou as práticas pedagógicas de quatro professores de História atuantes em duas escolas públicas estaduais de ensino médio, ten- do como foco o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, na perspectiva da Lei nº 10.639/03, no contexto da educação das relações étnico-raciais. Entre os principais propósitos de investigação a pesquisadora buscou identificar as percepções dos professores frente à Lei 10.639/03; verificar se os professores de História desenvolvem práticas que contemplem a referida lei; analisar se os professores percebem o racismo e a discriminação racial na escola e na socie- dade e identificar possíveis dificuldades para o desenvolvimento de práticas pedagógicas com vistas à educação das relações étnico-raciais.
Com tais propósitos e questionamentos, a autora desenvolve uma pes- quisa que denomina como exploratória, baseada em estudo bibliográfico, do- cumental (legislação, projeto político-pedagógico) e de campo, esse último con- templando entrevistas semiestruturadas e audiogravadas com os professores
de História. Quanto aos procedimentos de análise, aspecto que nos interessa especialmente aqui, Ribeiro (2018, p. 23) informa preliminarmente que “os dados gerados com as entrevistas foram interpretados por meio da análise de conteúdo, que consiste em uma técnica que propõe analisar o que está explíci- to no texto, obtendo-se indicadores para se fazer as inferências”. Ainda se ancorando em Bardin (2011), a autora refere que a AC “tenta compreender o que não está muito claro nas mensagens, buscando outros significados que vão além das aparências, portanto afastando-se da compreensão espontânea” (RIBEIRO, 2018, p. 92).
No processo investigativo, a autora explicita o modo como opera a AC, lançando mão das etapas principais propostas por Bardin (2011), a saber: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Inicialmente, selecionou as entrevistas que, uma vez transcritas e organizadas, constituíram o corpus da pesquisa. Submetidas à leitura flutuante, as entrevistas forneceram impressões iniciais à pesquisadora. Em sequência, na fase de codificação, “o texto das entrevistas foi todo recortado, estabelecendo-se as unidades de regis- tro, que são partes de texto que tenham interesse e importância para os objeti- vos da pesquisa e contêm indicativos para as questões do estudo” (RIBEIRO, 2018, p. 93).
Das unidades de registro, que consistem de fragmentos das entrevistas, a autora definiu as subcategorias. As categorias, por sua vez, foram estabelecidas a priori, tendo em vista os objetivos e o referencial teórico. As categorias e subca- tegorias foram assim configuradas: Categoria 1: Conscientização; subcategorias (1.1) Percepções positivas; (1.2) Intenções de educar relações étnico-raciais; (1.3) Práticas pedagógicas limitadas; Categoria 2: Racismo e Discriminação racial; sub- categorias (2.1) Presente na sociedade e na escola; (2.2) Enfrentamento ao racis- mo e discriminação; (2.3) Manifestação velada e inconsciente.
A fase de tratamento dos resultados foi desenvolvida no capítulo final da dissertação, momento em que os fragmentos das entrevistas foram analisa- dos e interpretados com base no referencial teórico em articulação com as categorias definidas a priori e as subcategorias advindas das unidades de regis- tro. No estudo de Ribeiro (2018), a Análise de Conteúdo foi tratada como técnica tanto para organizar as informações como para ilustrar/confirmar al- gumas premissas.
Essa prerrogativa pode ser visualizada em diversas passagens, especial- mente na fase de tratamento dos resultados, ao trazer as unidades de registro. Por exemplo (grifos nossos): “As falas, a seguir, confirmam essas observações” (p. 97); “Na sequência, os trechos das entrevistas reforçam o que foi inferido nos três parágrafos acima” (p. 99); “O que foi inferido acima pode ser compro-
vado nos trechos das entrevistas que estão apresentados na sequência” (p. 100); “Em seguida estão os trechos das falas que mostram os objetivos pretendidos pelos professores com o ensino de história e cultura afro-brasileira” (p. 103); “Na sequência estão as falas que comprovam o que foi inferido sobre a aborda- gem dos conteúdos pelos professores” (p. 109); “As falas a seguir confirmam essas observações sobre as dificuldades encontradas” (p. 118).
Observa-se, assim, que a pesquisadora se serviu da Análise de Conteú- do como uma técnica que lhe permitiu organizar, classificar e categorizar/ subcategorizar as informações disponibilizadas pelos professores nas entrevis- tas. Assim procedendo, não se ocupou de outras possibilidades analíticas da AC, como, por exemplo, considerar o contexto funcional e vivencial dos pro- fessores; abordar as condições de produção de suas falas; inferir a respeito de suas representações e estados de espírito; ou mesmo examinar variáveis, como sexo, idade, tempo de atuação profissional, etc. Quanto aos procedimentos de categorização, optou por um sistema misto, sendo as categorias definidas a priori (sistema fechado) e as subcategorias criadas por indução no processo de análise (sistema aberto).
A Análise de Discurso operada em Silva (2016)
Nesta dissertação, intitulada De ‘café com leite’ a negra: africanidades, dis- curso e construção de abordagens identitárias positivas em aulas de História, a autora dedica grande espaço para descrever o método, os conceitos nucleares, as ope- rações metodológicas, sem que isso esteja restrito a um ou a outro trecho do texto. A explicitação e a operacionalização do método de análise transversa- lizam todo o texto, pois constituem, além de um instrumental, também e sobretudo um constructo teórico-conceitual e uma posição epistemológica diante dos alunos, da sala de aula, do Ensino de História e da Cultura Afro- Brasileira.
Ao iniciar os estudos de mestrado, tencionava conduzir a pesquisa pela Análise de Conteúdo, tendo mudado de rumo sob a orientação de outra pro- fessora, especialista em Análise de Discurso. Com isso, diz Silva (2016, p. 19), “o olhar da pesquisa sai do ponto de vista de quem emite a mensagem, no caso, as músicas do CD ‘Áfrico’ […] e passa a ser direcionado para os sujeitos que não são meros receptores passivos e que atribuem e constroem sentidos e trabalham com as informações que recebem para conduzi-las a algo novo: os alunos”. Argumenta que recorreu à AD “para explicar o texto além de sua historicidade, para entender como se constrói o sentido de um texto e sua articulação com História e com a sociedade que o produziu” (p. 19).
O corpus da análise está constituído pelo discurso de 19 alunos de uma escola municipal do Rio de Janeiro em uma turma de 7º ano, em que a pesqui- sadora atua como professora de História. Foram realizadas três aulas-encon- tro de 100 minutos cada, baseadas em um planejamento organizado a partir de diversos dispositivos/gêneros do discurso (gênero notícia, depoimento, mú- sica e lei) e práticas pedagógicas voltados a responder às seguintes questões de pesquisa: “1. De que maneira as práticas do ensino de História podem contri- buir para a abordagem de atribuições identitárias positivas? 2. De que forma se configura a identidade-interação com o espaço escolar? 3. De que forma se configura a identidade-interação com bairro de Paciência? 4. De que forma os dispositivos utilizados configuram a identidade-alteridade, identidade-intera- ção e identidade-relação com a disciplina História?” (SILVA, 2016, p. 20). O objetivo geral do trabalho consistiu em “promover práticas do ensino de His- tória e Africanidades que contribuam com abordagens identitárias positivas” e, como objetivos específicos, a autora pretendeu, entre outros, “refletir sobre Africanidades; propiciar a fala e a escuta dos estudantes sobre temáticas rela- tivas às identidades negras; recuperar, por meio da AD, sentidos relativos às identidades negras positivas […]”.
Quanto ao método, a autora opta pela Análise de Discurso de linha enunciativa, na perspectiva francesa, por entender que essa contribui para o entendimento de conceitos como linguagem, discurso, relação entre lingua- gem e discurso, discurso como construção social, etc. Silva (2016, p. 33) anun- cia sua adesão aos postulados da AD nestes termos: “Com Pêcheux (1995) entendo que todo discurso, enquanto objeto de análise, é uma construção so- cial, coletiva, de cunho ideológico e deve ser analisado de acordo com o seu contexto histórico-social, apoiado na História, na Linguística e na Psicanáli- se, isto é, em tudo o que envolve o discurso, seu tempo e seu espaço, as intera- ções e as percepções do escritor e do leitor”.
Na operacionalização da pesquisa, as falas dos estudantes foram regis- tradas em áudio, mas a autora optou por analisar a produção textual elabora- da por eles sempre no final dos encontros. Para a sistematização dessa produ- ção, Silva (2016) analisou primeiro por encontros, depois pelas respostas indi- viduais dos alunos e, por último, relacionou as análises entre si, amparada pelo conceito de “negociação de sentidos”, conforme Brigagão (2014).
Fiel aos postulados da AD, Silva (2016) levou em conta as condições de produção dos enunciados dos estudantes, dando centralidade aos seguintes constructos: (a) as marcas de pessoa reconhecem que alunos e professora-pesqui- sadora são parceiros da enunciação e mobilizam duas maneiras de narrar a his- tória: a primeira, quando utilizaram o ‘eu’ dentro do texto, e/ou o tu/você,
colocados dentro do texto, e a segunda forma, em que se utiliza de ele/eles/ ela/elas, enquanto narrativa em terceira pessoa; (b) as marcas de espaço dizem respeito aos lugares de enunciação e dos enunciados, podem ser tanto internos como externos, qualquer um ou mesmo um inexistente; (c) as marcas de tempo, estabelecidas no momento da enunciação, permitem localizar e temporalizar os acontecimentos em diversos marcos: anterior, simultâneo e posterior ao momento presente; anterior simultâneo e posterior ao momento passado; an- terior, simultâneo e posterior ao momento futuro.
A mobilização de tais constructos conceituais possibilitou constatar que “as falas dos alunos se constituem a partir dessas relações dialógicas e materiali- zam determinadas marcas de alteridade, interação com o bairro e o espaço escolar e a relação com a História” (SILVA, 2016, p. 122). Para a autora, a dinâmica de aulas-encontro como lugares de pesquisa, de interações discursi- vas e de relações dialógicas fomentou a construção de conhecimentos e permi- tiu compreender como os alunos produzem suas atribuições identitárias ne- gras positivas de forma coletiva.
Considerações finais
Neste texto, propomo-nos a introduzir brevemente os fundamentos teó- rico-conceituais da Análise de Conteúdo e da Análise de Discurso como mé- todos de análise em/para pesquisas em Ensino de História, além de explorar como essas abordagens analíticas foram operadas em dois casos representati- vos.
A assertiva por meio da qual nos posicionamos no início acerca da dife- rença de natureza entre ambas as perspectivas metodológicas torna-se visível por intermédio da exploração dos dois casos representativos: as dissertações de Ribeiro (2018) e Silva (2016). A função da AC no trabalho de Ribeiro (2018) manifesta-se justamente de acordo com os limites de emprego desse tipo de análise nas pesquisas do ensino de História. A AC serve ao tratamento do conteúdo das informações/dados linguísticos como uma técnica de organiza- ção, manejo e descrição. Como técnica, a AC foi eficiente para os propósitos da pesquisa, já que ofereceu um desenho que possibilitou a hierarquização dos dados em unidades e categorias e permitiu a confirmação de hipóteses e a elaboração de inferências pela pesquisadora.
A natureza de perspectiva teórico-epistemológica robusta da Análise de Discurso também se evidencia, de acordo com nosso posicionamento inicial, na dissertação de Silva (2016), uma vez que orienta o trabalho vertical e hori- zontalmente, permitindo à autora encontrar e explorar marcas de discurso nos
gestos de interpretação dos estudantes por meio de suas produções textuais, descobrindo lugares de produção de discurso e visualizando as possibilidades do ensino de História entre esses dois patamares da linguagem (lugares de produção de discurso e gestos de interpretação). A AD, nesse sentido, não é tomada apenas do ponto de vista analítico como possibilidade de interpreta- ção dos dados, mas sim como postura epistemológica da pesquisadora e possi- bilidade de interpretação da realidade, que engloba todo o processo de pesqui- sa. Essa é a marca das pesquisas fundadas na Análise de Discurso.
Por meio dessa síntese final retomamos as palavras de Moraes e Galiaz- zi (2016) ao metaforizar os lugares da AC e da AD em um “rio de discurso”. A primeira, Análise de Conteúdo, localiza-se a favor da correnteza: agarra-a e busca compreender o que há nela além do aparente, organiza-a e a explora em sua existência. A Análise de Discurso de fato vai contra a correnteza: quer antes perguntar os porquês da existência da correnteza, de onde ela vem e o que e como significa o seu fluir. Ambas, portanto, oferecem posições e funções distintas e operacionalmente específicas em seu emprego em pesquisas no Ensino de História, de acordo com a posição da pergunta, do objeto e do pes- quisador em relação ao “rio de discurso”.
Referências
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BRIGAGÃO, J. I. M. et al. Como fazemos para trabalhar com a dialogia: a pesquisa com grupos. In: SPINK, M. J. P. A produção de informação na pesquisa social: compartilhan- do ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2014. p. 73-96.
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MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 9. ed. revista e aprimorada. São Paulo: Hucitec, 2006.
MORAES, Roque; GALIAZZI, Maria do Carmo. Análise textual discursiva. 3. ed. rev. ampl. Ijuí: Editora Unijuí, 2016.
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PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
RIBEIRO, Irlanda Maria Silva. Práticas pedagógicas: ensino de história e cultura afro- brasileira nas escolas de Parnaíba-PI. Dissertação (Mestrado). Universidade Nove de Julho – UNINOVE, São Paulo, 2018.
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SILVA, Rosalia de Moraes Romão da. De ‘café com leite’ a negra: africanidades, discurso e construção de abordagens identitárias positivas em aulas de História. Dissertação (Mestrado). Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CE- FET/RJ, Rio de Janeiro, 2016.
1 Mestre em Educação (UPF), Doutora em Educação (UFRGS) e Pós-Doutora em Educação (Flacso-Argentina). Professora aposentada do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu/Mestrado-Doutorado) da Universidade de Passo Fundo/RS. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação (Gespe) e membro do Conselho Editorial da revista História Hoje.
2 Mestre em Educação. Professora da Rede Pública Estadual de Passo Fundo/RS.
3 Neste texto, baseamo-nos nessa corrente de AD inaugurada por Michael Pêcheux na França e que tem sua discussão e divulgação no Brasil preconizada, entre outros, por Eni Orlandi (2003). É importante dizer, no entanto, que não existe apenas uma corrente de AD, embora todas se agrupem sob as mesmas noções fundamentais: a não transparência e a centralidade da linguagem, materializada em discurso, como produtora da sociedade.
4 Disponível em: <http://bdtd.ibict.br/>. Acesso em: 20 mar. 2020.
Uma pesquisa sobre ensino e aprendizagem de História com métodos quantitativos
Luis Fernando Cerri1 Emerson Urizzi Cervi2
Após décadas de debates e ações concretas, o que efetivamente mudou nas concepções e práticas de ensino de História? O que efetivamente chega dos avanços pedagógicos e historiográficos na sala de aula? Como está a “com- petição” dos professores contra os outros focos de enunciação de discurso his- tórico (redes sociais, cinema, videogames, etc.)? Quais são as semelhanças e diferenças nesses assuntos em distintos países do continente? Essas e outras perguntas encontram-se na categoria geral da avaliação ampla e coletiva dos resultados culturais do ensino da História, quer dizer, de seu significado dentro da cultura histórica de uma sociedade em conjunto com as demais sociedades com que se relaciona. Essas perguntas constituem uma demanda de conheci- mento que pode ser suprida de diferentes maneiras, seja a partir de métodos comparativos entre diversos estudos de caso feitos em lugares distintos, seja através da compilação de resultados de pesquisa e composição de estados da arte, seja ainda através de estudos quantitativos de ampla base empírica. Essa última al- ternativa é o objeto deste texto, no qual abordamos e caracterizamos o “Projeto Residente: Observatório das relações entre jovens, história e política na América Latina”3 como caso que nos permite discutir o uso de métodos quantitativos para a pesquisa sobre o ensino e a aprendizagem históricas.
Qualquer que seja o método ou o desenho da amostra, não se pode negar que as pesquisas que atendem essa demanda ampla, de balanço em larga escala dos resultados dos processos de ensino e aprendizagem, abordam um importante objeto, dado o contexto atual do conhecimento sobre o ensino de História. Trata-se de produzir números a partir do enfoque e do interesse aca- dêmico e educacional dos professores de História, e portanto trata-se de um ato político, pois, ao invés de ficar à mercê de números produzidos pelo Esta- do e seus gestores da educação ou de agências privadas que partem dos inte- resses e visão de mundo dos agentes do mercado, produzimos nossos números e dados com o devido método e rigor para diagnosticar e dar respostas aos problemas da educação e da sociedade.
Paulatinamente, começa a se afastar no passado o tempo em que histo- riadores e pedagogos preocupados com o ensino de História que se aventuras-
sem a trabalhar com dados quantitativos deveriam estar dispostos a enfrentar questionamentos sobre a efetividade do método para esses campos do conheci- mento e da ação educativa. Ainda hoje, ao lado de questionamentos que só revelam falta de familiaridade com esses métodos, persistem questionamentos relevantes e aprofundados que demandam respostas elaboradas, mais com a pre- tensão de seguir o debate do que de fechar questão. É muito comum, por exem- plo, que, embora não se estranhe a efetividade ou relevância de pesquisas quali- tativas que trabalham em profundidade com poucas pessoas ou mesmo uma só, acaba-se estranhando uma amostra de 120 jovens para representar os jovens de um bairro ou cidade. No caso de entrevistas, por exemplo, a noção de represen- tatividade não está em causa, mas na amostra quantitativa, diante do universo pesquisado, a representatividade pode parecer insuficiente, principalmente di- ante das trajetórias de formação nas Ciências Humanas, que atualmente evitam a passagem pelo conhecimento matemático e estatístico. Embora impossível, a tentação é a de um mapa, como no conto de Borges, tão preciso que cubra todo o reino mapeado. Porém o desenvolvimento concomitante de pensamento e lin- guagem na pesquisa e na comunicação dos resultados científicos em busca de uma precisão cada vez maior exige interdependência entre o pensamento verbal e a matemática, uma linguagem que expressa um aspecto fundamental de gran- de parte dos objetos de pesquisa (MINAYO; SANCHES, 1993, p. 240).
Ainda no tocante às dificuldades com a compreensão das formas da produção de dados dos métodos quantitativos, temos o problema dos instru- mentos de pesquisa. Um questionário com questões fechadas aparentemente produz um tipo de resposta totalmente conformado pela pergunta: o sujeito parece não ter suficiente liberdade para expor seu ponto de vista (que pode até não ter sido previsto pelo pesquisador ao planejar o questionário) ou para es- colher uma opção intermediária entre duas alternativas.
Além disso, quando se trata de responder a questionários em sala de aula, pode-se imaginar que o estudante responde mais de acordo com o que imagina que o professor espera do que com o que de fato pensa, ou seja, o questionário não parece seguro para evitar que o depoente minta na sua res- posta, seja para ocultar uma opinião que é publicamente reprovada, seja para coincidir com a opinião dos colegas ou da professora. Mas, acolhendo uma reflexão sincera, temos que responder à pergunta: esse não é um problema que a pesquisa qualitativa também tem que prever e enfrentar, ainda que com ou- tras técnicas e métodos? Por exemplo, quando pesquisamos sobre a prática de discriminação racial na escola, numa primeira abordagem, aparentemente os métodos quantitativos seriam incapazes de evitar que eventuais racistas mentis- sem. Claro que, por meio de perguntas diretas ou considerando só os depoimen-
tos e representações dos sujeitos sobre si próprios, os métodos qualitativos também não encontrarão evidências do que se busca. Em ambos os casos, tanto pesquisas qualitativas como quantitativas em amostras que tenham di- versos indicativos anteriores de práticas discriminatórias, que usem suas técni- cas e não encontrem esses elementos em seus resultados, apenas demonstra- rão que provavelmente estão fazendo isso de forma errada.
Nossa perspectiva neste texto é demonstrar que as pesquisas de base quantitativa podem ter um impacto bastante positivo não apenas sobre as pes- quisas que estudam o ensino e a aprendizagem, mas também sobre a própria prática de ensino dos professores de História. Para isso defenderemos que:
- Grande parte da reserva à pesquisa e à contribuição dos dados quan- titativos decorre de nossa formação nas Ciências Humanas hoje avessa aos números, o que não raro ganha contornos anedóticos. As representações so- bre os métodos quantitativos tendem a ser de maior descrença e em torno de sentimentos negativos em estudantes universitários de História e Antropolo- gia, por exemplo, conforme estudo de Ramos e Carvalho (2009, p. 29). Além do mais, a formação epistemológica recente em Ciências Humanas ocorre no contexto de combate ao positivismo, ao neopositivismo e congêneres, e há tendência de associar método e raízes epistemológicas de modo unívoco, o que é um exagero. Muitas dessas críticas qualitativistas aos métodos quantita- tivos são descritas por Chizzotti (2003).
- As restrições que fazemos à pesquisa, aos dados e às conclusões geradas por métodos quantitativos quanto à sua efetividade – por exemplo, participantes não são absolutamente sinceros, as perguntas conformam as respostas, há possibi- lidade de que a interpretação do significado das perguntas e das respostas entre pesquisadores e respondentes seja dissonante; tudo isso também afeta, de outros modos, os métodos Trata-se, para ambas as famílias de métodos, da mesma vigilância epistemológica e abertura à autocrítica e à crítica intersubjetiva.
- Os dados e estudos quantitativos podem aportar contribuições funda- mentais para a sala de aula de História, que, de outro modo, não poderiam ser adquiridas pelo Seja pelas dimensões da amostra, seja pelo tipo de per- gunta, seja pela possibilidade de reduzir a grande quantidade de dados a poucos ou a um número e pela possibilidade de controlar e deduzir a partir de variáveis.
Redefinições e legitimidade para o quantitativo nas Ciências Humanas e Sociais
O que nos oferecem as estatísticas? Uma massa de instrumentos que podem nos desviar do caminho se tentamos aplicá-las ao material sem reflexão su- ficiente, mas que, usadas com discernimento, podem ajudar a melhor com-
preender e explicar os fenômenos e as situações, contribuindo assim para a construção dos saberes (LAVILLE; DIONE, 2007, p. 204).
Em contraponto ao panorama traçado acima, é preciso lembrar que, em alguns campos das ciências sociais, principalmente no exterior, mas também no Brasil, os estudos de estatística fazem parte da formação básica do graduando, e o uso de métodos estatísticos – aliados com a produção e a difusão cada vez mais ampla desse tipo de dado – cresce exponencialmente nas últimas décadas (AGRESTE; FINLAY, 2012, p. 17). No Brasil, a estatística já foi uma disciplina comum na grade da licenciatura em Pedagogia, por exemplo, e na História tive- ram força a História Quantitativa e a História Serial (BARROS, 2012) em déca- das passadas. Determinar por que esse quadro mudou é uma busca que pode começar acompanhando o questionamento de Hartmut Günter: pesquisa quali- tativa versus pesquisa quantitativa, esta é a questão? (GÜNTER, 2006), bem como reconhecer, com Minayo e Sanches (1993), que a articulação e o trabalho con- junto de aspectos quantitativos e qualitativos da pesquisa são uma necessidade contemporânea. A raiz desse quadro nas Ciências Humanas deve-se em boa medida, a um processo anterior em que um paradigma emergente, pós-cartesia- no, precisou bater-se contra a prevalência de um pensamento cientificista, neo- positivista e/ou tecnicista. Constituíram esse processo, por exemplo, a ação dos estudos baseados em pesquisa participante e da própria história oral para afir- mar-se como ciência. Obviamente, esse confronto no campo da epistemologia terminou por colaborar com uma mudança de paradigma científico e de mudan- ça da própria concepção de ciência, de objeto, sujeito e verdade.
A crítica à racionalidade técnica e instrumental alinhou as iniciativas
nas Ciências Humanas à necessidade de afirmação frente às outras ciências e de disputa por espaço e recursos. O timing desse enfrentamento foi diferente para as diferentes áreas, e a superação do modelo instrumental e técnico de razão e de ciência constituiu-se numa luta acadêmica e política, cognitiva e pedagógica. Exemplos de afirmação do novo modelo e superação do anterior podem ser identificados, por exemplo, na epistemologia freiriana, em que o processo educativo não é mais visto como o domínio de técnicas que permiti- riam aos sujeitos (professores) moldarem os objetos (os alunos) eficientemen- te à sua imagem. Pelo contrário, tratou-se de afirmar que professores e alunos interagem no processo educativo; ambos aprendem e ensinam, são e não são sujeitos e objetos de ensino e de aprendizagem. Assim, busca-se a superação da lógica formalista em que uma coisa é – apenas e tão somente – essa mesma coisa e não outra. Essa provisoriedade e multiplicidade do ser tem o caráter político de recusar os processos de dominação de um pelo outro. De modo semelhante, a proposta metodológica da pesquisa-ação beneficia-se da possi-
bilidade do pesquisador ser também participante daquilo que pesquisa: pes- quisador e pesquisado mesclam-se, enfraquecendo a lógica da racionalidade técnica, que culmina nos meios para a dominação do mundo e das pessoas por parte da ciência instrumentalizada pelo poder. Nesse imaginário revolucioná- rio, os números (por exemplo, os números pelos quais o Banco Mundial im- põe as ideias de fracasso educacional do terceiro mundo, culpabilização do professor, formação ideologizada de docentes) ficam emudecidos. É preciso, entretanto, argumentar em favor dessa criança, para que se lance fora apenas a água do banho: os números foram aí os mensageiros da ideologia, não a ideo- logia em si. Na ética da guerra, recomenda-se que não se mate o mensageiro. Criticou-se também nas pesquisas quantitativas no campo das Ciências Humanas que esse método promove um ocultamento dos sujeitos nos proces- sos. É forçoso reconhecer que, se é para ocultar a especificidade dos sujeitos, não são necessários o dado e o encaminhamento quantitativo (vide o pensa- mento althusseriano criticado por Thompson, 1981, por exemplo). Por outro lado, pesquisas que focam nos sujeitos como os jovens – por exemplo, o proje- to Youth and History (ANGVIK; BORRIES, 1997) – não só não esconde-se o papel do sujeito como se pode descobrir relações que não eram sequer imagi- nadas ou eram apenas intuídas e assim colaborar para a compreensão de iden-
tidades, papéis, expectativas, etc.
Destaque-se ainda que por muito tempo nos foi imposta uma espécie de imperialismo científico das ciências duras, segundo o qual a única cientifici- dade possível para as Ciências Humanas era a quantificação. De fato, era uma imposição do padrão de objetividade das Ciências Exatas e Naturais como único confiável ou “científico”, o que terminava com a exclusão de outras técnicas e metodologias. Parte da resposta a isso foi um conformismo que buscou autoafirmação em outros campos, confluindo para as perspectivas que afirmavam a História como arte, como saber específico e não científico, como ofício, etc. Tal imposição e sua resistência duraram até que se disseminaram as incertezas no próprio campo das Ciências Exatas e Naturais, mas os vestígios dessa distinção primária permaneceram como ecos na cultura laboral dos cien- tistas das humanidades. No fundo, trata-se de uma disputa por recursos mate- riais, humanos e financeiros, bem como por prestígio social, o que nos leva a outra crítica, associada a essa: o alto custo da pesquisa quantitativa contribui- ria para a elitização dos grandes projetos de pesquisa, colocando-os na depen- dência de fundações e corporações privadas. Essa avaliação já não é plena- mente verdadeira, uma vez que as novas tecnologias de reconhecimento ótico de marcas em questionários eliminaram a necessidade de mão de obra de digi- tadores, assim como as práticas colaborativas permitem amostras com abran-
gência espacial e social relativamente grande. Além disso, a implantação de grandes exames nacionais (por exemplo, resultados do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM – e Exame Nacional de Aprendizagem de Estudantes
- ENADE) e a produção de bancos de dados para a avaliação institucional do ensino básico e superior geram amplas bases com variáveis riquíssimas, que permanecem subutilizadas em suas potencialidades para vários campos, mas notadamente para entender melhor os problemas do ensino de História.
Na atualidade, outras bases epistemológicas colocam-se para uma ciên- cia em crise com os postulados modernos e em processo de construção de um novo paradigma. Nesse quadro, aquelas críticas são datadas, e ao mesmo tem- po nos perguntamos sobre a viabilidade de pesquisa e formação de profissio- nais da educação com dados e métodos quantitativos. Afirmamos essa viabili- dade juntamente com Günther (2006) pelos motivos a seguir. Hoje em dia, parte daqueles argumentos acadêmicos contra a pesquisa quantitativa em Ciên- cias Humanas estão respondidos ou não fazem mais sentido. Atualmente, ocor- rem a diversificação das fontes e a ampliação exponencial de sua quantidade e disponibilidade devido aos fenômenos da internet, da produção e a disponibi- lização eletrônica de uma quantidade massiva de textos e imagens, as redes sociais e as opiniões dadas de forma espontânea e sincera por uma quantidade enorme de pessoas. Diante desse quadro, cada vez mais se impõe um trata- mento tecnológico das evidências, o que é permitido pelo tratamento quanti- tativo de textos com base em novos softwares. Tais softwares produzem resulta- dos que contribuem para a progressiva diluição das fronteiras entre os méto- dos quantitativos e qualitativos. Se antes, por exemplo, o método qualitativo era caracterizado como uma ciência do texto, hoje, diante da avalanche de textos, a análise quantitativa aparece como um recurso – auxiliar ou principal
- que vai se tornando indispensável para lidar com a avalanche de textos oriun- dos de uma sociedade de massas em que os consumidores de informação, cul- tura e entretenimento passam também a produtores de conteúdo e de crítica aos conteúdos
A pesquisa em ensino de História é um caso que apresenta crescimento exponencial da produção; pesquisar esse campo, e mesmo fazer revisões da bibliografia, é um desafio que cada vez menos pode ser enfrentado com um tratamento artesanal dos dados. Avançar implica saber, por exemplo, quais são as áreas de reflexão que estão saturadas e quais as carentes, quais dos problemas já estão suficientemente respondidos e quais estão em becos sem saída. Um conjunto imponente de estudos de caso só ultrapassa a sua data e local se sistematizados em processos de síntese que passam pelo tratamento massivo dos dados que produziram. Pode-se destacar aí, por exemplo, o estu-
do das referências bibliográficas utilizadas pelos pesquisadores e das ligações entre diferentes grupos de pesquisa. Sem esse tipo de visão de conjunto, o risco de uma comunidade de pesquisa cujas conclusões começam a parecer circulares e de pouca utilidade é real.
Entre as razões científicas a favor da utilização dos métodos quantitati- vos nas Ciências Humanas podemos elencar as seguintes, que resumem as considerações de Günther (2006):
- a adequação dos métodos aos objetos: assim como os métodos quali- tativos, os métodos quantitativos também consideram hoje o princípio da aber- tura, quer dizer, a adequação dos métodos aos objetos e objetivos. Considerar métodos quantitativos nas Ciências Humanas não restringe o campo de visão aos resultados de um questionário fechado, porque há objetos e amostras para os quais o questionário fechado é inferior na qualidade da informação que gerará, mas há outros, por sua vez, em que os métodos qualitativos são inade- quados ou inviáveis. Na perspectiva de uma integração efetiva, os métodos quantitativos não concorrem com os qualitativos pela exclusividade de obje- tos, objetivos ou amostras, mas o contrário: abrem a pesquisa para outros ob- jetos, objetivos e amostras, em pesquisas que podem ser complementares e dar o passo seguinte ao que se descobriu pela via qualitativa, e vice-versa. Assim, um tema profundamente pesquisado na perspectiva qualitativa pode ser pes- quisado quantitativamente, como é o caso dos tipos de geração de sentido histórico, tema caro à Didática da História (CERRI, 2014).
- Assim como nos métodos qualitativos, os métodos quantitativos tam- bém permitem uma reflexão contínua na confrontação entre os métodos e os resultados ou na interação dinâmica entre o pesquisador e o objeto de estudo. Embora os questionários possam ser fechados, não é fechada a perspectiva de revisão do próprio encaminhamento técnico e metodológico, mas, nesse caso, isso se dá principalmente através dos estudos-piloto e dos testes de hipóteses, que têm uma fundamentação estatística.
- Os estudos de base quantitativa também são passíveis de generaliza- ção argumentativa, quer dizer, a partilha e a submissão ao debate de seus pres- supostos metodológicos. Usar um questionário fechado ou uma amostra bem delimitada não implica que os resultados serão certos ou indiscutíveis: deba- tem-se sempre a memória de cálculo, as características da amostra e o históri- co da criação de categorias e variáveis.
- De modo algum, os estudos quantitativos significam abandonar o desafio da compreensão da complexidade em favor de uma simplificação do real a variáveis. Todo pesquisador sério tem a clareza de que o objeto de estu- do não se limita às suas variáveis, mas entende que a produção de dados de
base ampla e a identificação de relações entre eles são uma contribuição fun- damental para a compreensão do real em sua complexidade.
- Por fim, em vários campos das Ciências Humanas e das atividades educacionais, o conhecimento de dados quantitativos e o domínio das condi- ções de sua produção são fundamentais para o debate social e político em defesa, por exemplo, do próprio ensino da História. Basta ver que os costumei- ros ataques aos professores, à sua autonomia e às condições de trabalho por iniciativas economicistas e “à prova de professor” (GIROUX, 1997) para a educação baseiam sua argumentação em extensos corpos de dados produzi- dos por entidades como o FMI e o Banco Mundial, contra os quais não temos os nossos próprios dados ou nossa análise crítica dos dados deles para contra-argumentar nessa arena. E a política educacional decide-se, em grande parte das vezes, nessa arena. Ao rechaçar os números e desqualificar o quanti- tativo, é comum que os professores e suas entidades percam por “W.O.” o confronto com os organismos sustentadores de políticas educacionais que ex- cluem a perspectiva e a experiência dos
Superando limitações para as pesquisas quantitativas em Ciências Humanas: a experiência do Projeto Residente
O “Projeto Residente: observatório das relações entre os jovens, a histó- ria e a política” recebeu influência direta do survey europeu Youth and History, (ANGVIK; BORRIES, 1995) desenvolvido nos anos 1990. A partir do estudo dos resultados, promoveu-se a tradução dos questionários, tanto em termos linguísticos a partir do português de Portugal ao português brasileiro e ao es- panhol da Argentina como em termos culturais, eliminando questões que não faziam sentido ou não eram tão significativas para a realidade sul-americana, resultando no primeiro projeto da série em 2008 intitulado “Os jovens diante da História”, com amostra envolvendo Brasil, Argentina e Uruguai, que pode ser considerado um projeto-piloto. Dessa primeira iniciativa e do balanço de seus erros e acertos surgiu o projeto “Jovens e a História no Mercosul”, envol- vendo Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile, de 2010 a 2018, com a coleta de dados chegando a mais de 4 mil questionários de estudantes. Em associação com esse projeto foi desenvolvido o Proyecto Zorzal, sob liderança de Maria Paula Gonzalez e Ernesto Bohoslavski, da UNGS (Argentina), que produziu material didático para uso de professores, partindo dos dados do projeto Jovens e a História. O Jovens e a História no Mercosul gerou várias publicações, sendo as principais os livros “Jovens e a História: Brasil e Améri- ca do Sul” (CERRI, 2018) e “Los jóvenes frente a la Historia: Aprendizaje y
enseñanza en escuelas secundarias” (AMÉZOLA; CERRI, 2018). Uma recu- peração e análise abrangente e crítica da produção do projeto foi publicada por Barom (2016). O Projeto Residente é, portanto, a terceira versão dessa iniciativa. O ponto de partida foi a divulgação dos resultados anteriores e um convite público amplo para agregar pesquisadores interessados ao grupo já existente, reformulando e expandindo a rede de pesquisa.
Conceitos e sua relação com os instrumentos de pesquisa
A pesquisa está sustentada em dois conceitos principais, que se desdo- bram. Um é o conceito de cultura política, e outro é o conceito de cultura histórica, que é aqui considerado uma expressão coletiva e materializada de outro fenômeno contemplado, portanto por um terceiro conceito: o de cons- ciência histórica.
Cultura histórica está sendo entendida, nesse projeto, como
[…] o campo em que os potenciais de racionalidade do pensamento históri- co atuam na vida prática. Essa expressão quer deixar claro que o especifica- mente histórico possui um lugar próprio e peculiar no quadro cultural de ori- entação da vida humana prática. […] nada mais é, de início, do que o campo da interpretação do mundo e de si mesmo, pelo ser humano, no qual devem efetivar-se as operações de constituição do sentido da experiência do tempo, determinantes da consciência histórica humana (RÜSEN, 2007, p. 121).
A relação entre cultura histórica e consciência histórica está dada, se- gundo o autor, considerando a cultura histórica como
[…] a articulação prática e operacional da consciência histórica na vida de uma sociedade. Como práxis da consciência tem a ver, fundamentalmente, com a subjetividade humana, com uma atividade da consciência, pela qual a subjetividade humana se realiza na prática – cria-se, por assim dizer (RÜ- SEN, 1994, p. 4).
Estamos tomando a cultura política a partir do estudo clássico sobre o tema de Almond e Verba, em que pesem as críticas e atualizações posteriores. Para essa dupla de autores norte-americanos,
O termo “cultura política”, portanto, refere-se às orientações especificamente políticas – atitudes em relação ao sistema político e suas várias partes, e atitudes em relação ao papel do self no sistema. Falamos de uma cultura política, assim como podemos falar de uma cultura econômica ou de uma cultura religiosa. É um conjunto de orientações para um conjunto especial de objetos e processos (ALMOND; VERBA, 1989, p. 12, tradução livre).
Mais adiante, eles complementam o conceito destacando o aspecto de internalização das concepções prevalentes em uma sociedade ou grupo, assim
como o caráter de orientação dos sujeitos, que é um expressivo ponto de con- tato com o conceito de consciência histórica e, portanto, com o conceito de cultura histórica, com o qual está intimamente relacionado:
Quando falamos da cultura política de uma sociedade, referimo-nos ao sis- tema político tal como internalizado nas cognições, sentimentos e avaliações de sua população. […] A cultura política de uma nação é a distribuição parti- cular de padrões de orientação em relação a objetos políticos entre os mem- bros de uma nação (ALMOND; VERBA, 1989, p. 13, tradução livre).
Duas categorias são ainda fundamentais para a configuração dos fun- damentos teóricos da pesquisa, que são o ensino e a aprendizagem escolar de História e o ensino e a aprendizagem extraescolar de conteúdos históricos. A primeira parte do questionário está estruturada em torno das categorias de ensino e aprendizagem escolar e extraescolar da História, que se confrontam amiúde: pergunta-se sobre como os estudantes definem o significado da His- tória para si, o agrado e a confiança nas formas e meios pelos quais eles têm contato com a História, a frequência de tipos de atividade pedagógica e os objetivos percebidos pelos estudantes na aula de História, o uso do livro didá- tico, um teste de ordenamento cronológico básico de acontecimentos, associa- ções quanto aos temas da Idade Média, colonização da América e Revolução Industrial, uma questão para avaliar a competência da empatia histórica e a compreensão do conceito de historicidade, uma questão sobre as ditaduras militares e uma pergunta sobre verdade em História.
No tocante à consciência histórica e à cultura histórica, as perguntas pertinentes são o interesse por temas, períodos e lugares da História, avaliação da importância de uma lista de fatores de mudança no passado recente e no futuro próximo, escolha de uma entre várias linhas do tempo para representar a História, listagem dos cinco personagens por ordem de importância para o país, avaliação de uma lista de características sobre como era o país há 50 anos e como será o país daqui a 50 anos, bem como uma estimativa de como será a vida do respondente daqui a 50 anos.
Questões de perfil envolvem, além de idade, sexo e tipo de escola, o interesse em política e em religião, a atuação pessoal em atividades políticas e sociais, escala de valores pessoais e comunitários.
Por fim, a cultura política é estudada com base em uma versão reduzida da bússola política4, na qual serão combinadas informações referentes a todos os aspectos das orientações políticas dos respondentes nos campos econômi- co, político e de comportamento.
O questionário de professores traz questões específicas sobre formação acadêmica e atuação profissional, avaliações sobre a importância da História,
características das orientações pedagógicas recebidas e formação em serviço, bem como algumas questões iguais às dos estudantes, exceto pelo sujeito nas afirmações ser o professor, de modo a possibilitar comparações gerais entre a visão dos estudantes e a visão dos professores.
O estabelecimento da rede de pesquisadores pela lógica Ubuntu
A base da colaboração dentro da rede de pesquisadores e instituições vinculadas ao projeto está na lógica Ubuntu, palavra da língua Zulu que, em poucas palavras, significa “sou o que sou pelo que nós somos”. Consequente- mente, cada participante trabalha ajudando na tomada de decisões, na cons- trução do projeto e do instrumento de pesquisas e sua revisão constante, na coleta de dados e em troca utiliza os dados produzidos por todos, bem como na estrutura e no auxílio da coordenação, para investigar seus próprios interesses de pesquisa, desenvolver suas publicações, aproveitar os resultados para plane- jamento de atividades em sala de aula e assim por diante. Às escolas que abrem suas portas é garantido o acesso organizado aos dados coletivos de seus alunos, lembrando que as identidades pessoais dos estudantes sequer são coletadas.
Ubuntu permite o desenvolvimento de pesquisas de grande porte em situações de poucos recursos financeiros, o que é o caso das Ciências Huma- nas historicamente, mas em especial no momento político e social atual.
A técnica e o(s) método(s)
A produção da base de dados decorre da aplicação de um questionário para estudantes e outro para professores. O questionário de estudantes é desti- nado a indivíduos de 15 e 16 anos. Sua produção foi estabelecida coletivamen- te, partindo do estudo dos questionários anteriores, do projeto Jovens e a His- tória no Mercosul, descartando as perguntas que não foram utilizadas nas pro- duções dos pesquisadores, melhorando outras e incluindo questões visando atualizar o instrumento (por exemplo, envolvendo o papel de redes sociais, Youtube, jogos eletrônicos, problemas atuais como pós-verdade, imigração, representações sobre negros e índios) e contemplar pesquisas e interesses aca- dêmicos dos pesquisadores (por exemplo, sobre os usos do livro didático, valo- res pessoais, questões raciais e de gênero, influência da tecnologia, posição e participação política e social – bússola política). O processo de reconstrução do questionário e do projeto em si foi feito utilizando tecnologias de comuni- cação a distância, envolvendo dezenas de pessoas, e por essas características ocupou grande parte do ano de 2018, momento em que também foi redigido o projeto submetido ao Edital Universal do CNPq de 2018, no qual foi aprova-
do e submetido ao Conselho Nacional de Ética em Pesquisa, no qual recebeu parecer favorável.
A amostra é desenhada da seguinte maneira: em cada cidade em que há pelo menos um pesquisador engajado, são coletados no mínimo 90 questioná- rios de uma escola pública que não seja de excelência e 60 de uma escola par- ticular que não seja de projeto pedagógico alternativo. Nem sempre esse pa- drão é possível seguir. Por exemplo, em algumas cidades, há escolas particula- res nas quais os pesquisadores conseguiram amostras maiores do que as espe- radas, enquanto em outras não houve acesso a escolas particulares, e em ou- tras ainda não foi possível acessar as escolas públicas. Assim, ao fator cidade, que depende da adesão voluntária de pesquisadores que tenham se engajado no projeto, soma-se o fator tipo de escola. Desse modo, trata-se de uma amos- tra não probabilística (quer dizer, não se pode falar em representatividade es- tatística e nem em margem de erro), na qual os resultados referem-se somente à amostra, o que não invalida a sua significância. Na versão anterior do proje- to, foi possível notar que as respostas variavam mais por tipo de escola do que por cidade ou região, apontando alguma regularidade que sugere que os resul- tados sejam significativos, quer dizer, descontadas as variações normais de distribuição, tende-se a encontrar distribuições parecidas nas respostas se apli- carmos o mesmo questionário em escolas não pertencentes à amostra.
O questionário de professores foi enviado dessa vez apenas eletronica- mente a indivíduos que fossem colegas dos professores com os quais as equi- pes estão em contato, evitando colegas que sejam, por exemplo, pós-graduan- dos nas universidades envolvidas, o que enviesaria a amostra. Essa escolha metodológica, entretanto, trouxe pouco retorno, e vários dos questionários foram respondidos sem apresentar informações fundamentais, o que compli- cou o uso da amostra e indicou a necessidade de estabelecer outras estratégias para outras coletas no futuro.
Os questionários para estudantes foram apresentados em duas versões, uma em papel e outra on-line, construída utilizando os recursos do Google Formulários. Em escolas que dispunham de bons laboratórios de informática ou bom sinal de internet sem fio, os questionários foram respondidos pelos estudantes em computadores, tablets ou celulares. Ausentes essas condições, os estudantes responderam em papel, e as respostas foram subidas ao formulá- rio eletrônico pelos pesquisadores. O recurso do Google permite a criação de planilhas de dados que podem ser baixadas, editadas, corrigidas para ter con- sistência e, a partir disso, importadas para softwares de análise estatística.
Os questionários são quase inteiramente baseados na escala de Likert. Estudantes e professores respondem, diante de afirmações, se concordam to-
talmente, concordam, não têm opinião, discordam ou discordam totalmente do que está dito. As respostas são transformadas em uma escala que vai res- pectivamente de 2 a -2, a partir das quais se pode analisar e comparar as frequências, quartis, valores mais frequentes, valores intermediários, médias, sempre no sentido de reduzir a quantidade de informações a medidas de ten- dência central que facilitem as inferências.
As principais formas de análise estatística utilizadas até o momento concentram-se no campo da análise descritiva, que envolve, entre outros, estu- do das frequências e distribuições, desagregação dos dados por grupos e com- paração entre as frequências em cada um, tabelas cruzando valores de ques- tões distintas e sobre as quais se calcula que há relação, criação de variáveis de segunda ordem a partir das questões (por exemplo, predisposição à integração latino-americana, adesão à democracia, solidariedade social), análises a partir de índices, correlações e associações entre características de variáveis categóri- cas. No caso da única questão aberta, na qual se pede que os estudantes escre- vam o nome de cinco pessoas mais relevantes para a história de seu país por ordem de importância, a análise envolve os valores combinados de frequência e de ordem média de evocação.
No caso da cultura política, as questões que envolvem opiniões sobre a vida econômica geram uma média por indivíduo que vai compor um valor no eixo x de um plano cartesiano, enquanto as questões que envolvem opiniões sobre a vida política e social geram uma média que vai compor um valor no eixo y. Combinados, esses valores resultam em um ponto que localizará o in- divíduo em um de quatro quadrantes do plano cartesiano que representam respectivamente a direita autoritária, a esquerda autoritária, a direita demo- crática e a esquerda democrática. Com esse recurso é possível fazer diversos estudos, sendo que o estudo da distribuição dos estudantes nesses quadrantes é um dos mais relevantes para analisar criticamente os fundamentos de alega- ções, por exemplo sobre doutrinação política nas escolas.
Considerações finais
Pretendemos com este ensaio haver contribuído para a efetiva supera- ção de renitentes polarizações entre as metodologias quantitativas e as quali- tativas, que se verificam em várias estratégias discursivas, inclusive de negação de que a dicotomia exista ou de desqualificação das especificidades dos méto- dos quantitativos. Defendemos aqui a total ineficácia da oposição entre quanti e quali. Não se analisam números. Eles servem para acessar de forma organi- zada as características dos indivíduos. Não se descrevem qualidades sem uma
sumarização mínima delas. Técnicas quanti e quali são complementares nas pesquisas, não excludentes.
Procuramos demonstrar, ainda que de modo preliminar e provisório, a possibilidade da contribuição de pesquisas e dados quantitativos na formação docente e na reflexão didática de professores, interferindo positivamente em suas concepções e práticas em sala de aula.
Aponta-se, como desenvolvimento possível, que a produção de questio- nários customizados de acordo com as necessidades dos professores (ou seja, aplicados diretamente às suas turmas, adaptados com perguntas de seu inte- resse), bem como a aplicação e a disponibilização de dados para os mesmos (com análise e cruzamentos a partir de questões e hipóteses postas pelos do- centes) constituem uma perspectiva duplamente importante: em primeiro lu- gar, para dar continuidade e aprofundamento à contribuição desse tipo de es- tudo para a prática docente e, em segundo lugar, para criar meios de investigar empiricamente essa contribuição.
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1 Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente do Departamento de História e dos mestrados acadêmico e profissional em História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Bolsista do CNPq Processo 306190/2019-2. E-mail: [email protected].
2 Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Docente do Departamento de Ciência Política e dos mestrados em Ciência Política e em Comunicação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: ecer[email protected].
3 Os projetos mencionados neste texto receberam apoio financeiro, respectivamente: Projeto Jovens e a História: CNPq e Fundação Araucária; Proyecto Zorzal: Programa de Apoyo al Sector Educativo Del MERCOSUR (PASEM)/União Europeia. Projeto Residente: CNPq (Edital Universal 2018).
Aproximações etnográficas da escola: entrada furtiva em um pomar ou mergulho em significados partilhados?
Helenice Aparecida Bastos Rocha1
Rafael Cintra2
A pesquisa em sala de aula coloca ao pesquisador do ensino de História
- e da educação escolar em geral – um desafio. Como se aproximar de seu objeto? Como adentrar o espaço da escola e da sala de aula? Alguns consideram resolver tal desafio como alguém que entra furtivamente em um pomar para colher frutas que supõe estarem lá. Outros sentem-se compelidos a buscar for- mas para mergulhar em significados que lá circulam, compreendendo-os.
Tais imagens sugerem pressupostos diversos sobre o objeto da pesquisa e os sujeitos que fazem a aula de História. O espaço escolar e seus sujeitos existem para além de documentos já fixados no tempo que um historiador examina em determinadas condições de análise. São vidas em movimento e interação, pessoas de diferentes gerações e referências que se relacionam com conhecimentos específicos em um contexto institucionalizado e em mudança permanente, às vezes perceptível, às vezes não.
Esses sujeitos produzem e usam documentos ordinários de diferentes tipos, normalmente desprezados – trocam impressões a partir da fala magis- tral do professor, fazem registros em cadernos, leem textos em livros didáti- cos –, que usam de forma planejada ou imprevista como materiais produzi- dos para a aula em determinado tempo e espaço escolar, o que atua no acon- tecimento da aula. Como capturar esse acontecimento e os documentos mo- bilizados na aula e para a aula, respondendo a questões de pesquisa? Partici- pando ativamente dele? Tentando ficar à parte deles como um ladrão furtivo em um pomar?
Tais características da sala de aula como espaço de pesquisa aproxima- ram os seus pesquisadores das metodologias de pesquisa qualitativas desde aproximadamente a década de 1970 por diferentes motivos e caminhos. Em um campo semântico amplo, que evidencia diferentes aproximações, pesqui- sadores da educação e do ensino vêm afirmando que realizam pesquisas de caráter qualitativo, pesquisas e observações participantes, pesquisas de caráter ou inspiração etnográfica e assim por diante. Tais afirmações demonstram,
por um lado, a riqueza potencial dessa aproximação e, por outro, sugerem uma dificuldade em registrar, qualificar e realizar escolhas teórico-metodoló- gicas ao pesquisar na escola.
Este capítulo pretende apresentar uma discussão sobre o uso – mais ou menos intenso – de recursos do que estamos denominando largamente como “etnografia” na pesquisa sobre o ensino de História que acontece na escola e na sala de aula, contribuindo para escolhas teórico-metodológicas dentro desse amplo referencial. Para isso discute inicialmente a vinculação da etnografia à Antropologia e sua inserção na pesquisa qualitativa, bem como alguns movimentos de sua apropriação nas pesquisas educacionais. Em sua segunda parte, apresenta algumas tendências de pesquisas sobre o ensino de História que se apresentam com o uso de abordagem etnográfica no Brasil, evocando, como exemplos, teses do início do século XXI. Por últi- mo, aprofunda algumas noções do âmbito da etnografia que apresentam po- tência para as pesquisas sobre o ensino de História com o uso da abordagem etnográfica em sala de aula.
Etnografia: uma biografia não autorizada
Vamos começar esta seção com algumas definições que os etnógrafos evitam enunciar sobre o que é etnografia e seu fazer.3 Não só etnografia é um termo de difícil definição, como também duas ideias subjacentes e fundantes: trabalho de campo e descrição etnográfica, que sugerem algo delimitado a um espaço e a um fazer. Parte da dificuldade da definição vem daí; elas não são nem um espaço delimitado tampouco um fazer restrito a procedimentos. Sem nos considerarmos etnógrafos, podemos arriscar-nos com mais liberdade para fazer tal definição e biografia.
Compreendemos a etnografia como uma noção relacional. Relativa a um conjunto heterogêneo de formas como etnógrafos fazem sua pesquisa, o que envolve estar no campo de pesquisa. Mas o que é esse campo e o que é esse estar no campo? O campo não está circunscrito a um espaço ou lugar. Utili- zando o exemplo de campo para a escola, o campo não é a escola ou a sala de aula. Ele também é pensar e estudar – buscando aportes teóricos e explicativos
– “sobre” a escola e a sala de aula, sobre as pessoas que a frequentam, sobre as práticas que se desenvolvem ali. Se o pesquisador tem como tema a violência na escola, ele estará observando, pensando, lendo, registrando o que vê, pen- sa, estuda e percebe como tendo sentido no campo relativamente a essa vio- lência. Isso é estar no campo. Não se esgota ao sair do espaço da escola. Ou até mesmo ao dar por encerrado o período da pesquisa em sala de aula, pois aí
ele irá registrar, rever seus registros, comparar, ler, estudar para produzir sua etnografia.
Um exemplo desse movimento do fazer etnográfico mostra-se na expli- cação do sociólogo Bernard Lahire (1997) sobre a pesquisa realizada a partir dos “fenômenos de dissonâncias e de consonâncias entre configurações fami- liares e o universo escolar”. Para isso construiu seu campo entre a escola e a casa desses alunos. Demonstrando que o campo e a escrita relativa a ele não têm um espaço-tempo delimitado, ele afirma:
[…] Portanto estamos inclinados a pensar que a qualidade principal do sociólogo não pode ser a de intérprete final, mas sim uma qualidade de arte- são, preocupado com os detalhes e com o ciclo completo de sua produção, introduzindo sua ciência nos momentos menos “brilhantes”, mas mais deter- minantes da pesquisa: constituição da população a ser entrevistada, constru- ção da ficha de entrevista, notas etnográficas sobre o contexto… Em vez de refletir assim que acabar a pesquisa, o sociólogo deve fazê-lo a cada instante e, particularmente, naqueles momentos banais, aparentemente anódinos, em que tudo leva a crer que não há nada a se pensar (LAHIRE, 1997, p. 16).
O fazer de idas e vindas, de complexificação, aprofundamento e alar- gamento do conhecimento sobre o outro se estabelece em práticas de pesqui- sa há mais de um século, quando antropólogos foram a campo para conhe- cer sociedades não complexas em oposição às sociedades assim considera- das.4 Os estudos dos primeiros antropólogos foram determinantes para o de- senvolvimento de técnicas de pesquisa que permitem recolher diretamente observações e informações sobre a cultura nativa. Naquele período, alguns nomes – como Lewis Morgan, Bronislaw Malinowsky e Frans Boas5 – desta- caram-se e apresentaram necessidades teórico-metodológicas para a produ- ção desse conhecimento, entre elas a importância do trabalho de campo e da observação participante, uma forma peculiar de relacionamento com os na- tivos e sua cultura, e as formas de escrever essa experiência, denominada de etnografia.
Com o fim das relações de dominação colonial entre povos ao longo do século XX, o trabalho do antropólogo também se voltou às cidades e às sociedades urbanas. No lugar de buscar familiarizar-se com o diferente, o an- tropólogo passou a buscar compreender o familiar a partir de seu estranha- mento, inserindo-se em espaços e temas cotidianos: o universo da política, as festas de bairro, a religião.6
A proposta de uma metodologia qualitativa surge baseada em teóricos que defendiam a importância de compreender o significado que a experiência possui para aqueles que as vivenciam, o que remete a clássicos da Sociologia
como Max Weber e da História como Wilhelm Dhiltey.7 Contrapondo-se ou, posteriormente, aliando-se à metodologia quantitativa, a alternativa qualitati- va abarcou práticas da etnografia, tais como a entrevista em profundidade, a observação participante e o estudo de caso. Nesse sentido, a busca pelo mode- lo qualitativo indica também uma disseminação do fazer etnográfico para ou- tras áreas do conhecimento.8 E é nesse ponto da discussão que, especialmente a partir da década de 1970, as pesquisas educacionais aproximam-se da meto- dologia qualitativa e passam a mobilizar abordagens e procedimentos etno- gráficos, às vezes tratando-os como sinônimos.
Estabelecendo uma primeira distinção entre termos, podemos ter então pesquisas que utilizam alternativas da metodologia qualitativa na busca de compreensão dos significados para os que as vivenciam e que não se caracteri- zam, necessariamente, como etnográficas, caso não considerem os pressupos- tos apresentados nos parágrafos iniciais desta seção, especialmente a impor- tância conferida às peculiaridades do campo. Compreendemos que a metodo- logia qualitativa está presente em toda pesquisa que prioriza a busca de senti- dos presentes em práticas e documentos relativos a essas práticas. Ela pode ser usada com o apelo à etnografia ou não. Ou seja, utilizando a inserção no cam- po e a descrição etnográfica, em que o pesquisador buscará, no campo e em sua escrita, sentidos relativos à sua problemática. Ou poderão ser usados outros recursos e estratégias de pesquisa, como entrevistas, grupos focais, questionários, sem a pretensão de imersão etnográfica.
Partimos do pressuposto de que, no contexto das pesquisas educacio- nais, a escolha por essa abordagem e suas nuances resulta da busca por um rigor investigativo; quer dizer, uma maneira crítica e implicada de observação do campo e de si mesmo dentro desse campo. Recorreremos a Green e Bloome (1997) para organizar as possibilidades dessas aproximações. Segundo as auto- ras, as possibilidades de aproximação de uma pesquisa educacional à etnografia poderiam ser da mais próxima à mais distante: fazer etnografia, adotar uma perspectiva ou abordagem etnográfica e utilizar ferramentas etnográficas.
Segundo as mesmas autoras, fazer etnografia, o que responde às neces- sidades do campo da antropologia e não é habitual na pesquisa educacional, envolveria: “o enquadramento, conceituação, condução, interpretação e escri- ta associada a um estudo amplo, aprofundado e de longo prazo de um grupo social ou cultural, atendendo aos critérios para fazer a etnografia dentro de uma disciplina ou campo” (GREEN; BLOOME, 1997, p. 4)9.
Adotar uma perspectiva ou abordagem etnográfica, o que é buscado e assumido em mais trabalhos educacionais, ainda envolve o uso com centrali- dade de teorias da cultura e práticas da Antropologia e Sociologia e significa:
“adotar uma abordagem mais focalizada (ou seja, fazer menos do que uma etnografia abrangente) para estudar aspectos particulares da vida cotidiana e práticas culturais de um grupo social” (GREEN; BLOOME, 1997, p. 4). Tal focalização permite que se considerem os aspectos específicos da cultura esco- lar e da sala de aula e as práticas culturais de alunos e professores da região em que se insere a escola, sem desconsiderar os pressupostos do fazer etnográfico. Sem assumir necessariamente tais pressupostos, o uso de ferramentas etnográficas, como a observação participante e o registro minucioso dessas observações, além de entrevistas em profundidade, o que pode ser atribuído à metodologia qualitativa, constaria do “uso de métodos e técnicas geralmente associadas ao trabalho de campo. Esses métodos podem ou não ser guiados por teorias culturais ou perguntas sobre a vida social dos membros do grupo”
(GREEN; BLOOME, 1997, p. 4).
Em nossa compreensão, essa terceira forma de aproximação, que, na verdade, é a mais distante dos referenciais etnográficos e mais instrumental, desconsidera um debate que é o da assunção da centralidade da cultura, inclu- sive na educação escolar (HALL, 1997). A escola é um espaço de cultura, mais ainda de culturas diversas. E, digamos mais, cada disciplina escolar na realização da tarefa de inserção das novas gerações em um universo comparti- lhado de significados através de práticas realizadas por professores e alunos na aula realiza um papel nesse espaço de cultura. O que não se traduz apenas pelos conteúdos de ordem cognitiva, mas pelas emoções e valores, comparti- lhados ou não.
De acordo com sua problemática e objeto de pesquisa, o pesquisador precisará considerar as culturas escolares que se constituíram (na instituição escolar ou em uma escola, em especial) ao longo de décadas e séculos. E cada escola passa a ser considerada como local de encontro de diferentes culturas: geracionais, de classe, de trabalhadores, nas diferenças entre os turnos escola- res e aí por diante…
Tendências de abordagem etnográfica nas pesquisas do ensino de História
Nesta seção, apresentaremos as duas tendências que orientam um con- junto de pesquisas no ensino de História que se apresentam como etnográfi- cas – de “tipo” ou “inspiração”. Destacamos que as duas tendências em exa- me não apresentam características absolutamente diversas, pois ambas pos- suem pontos de contato em seu diálogo com a etnografia com diferenças que procuraremos delinear. O objetivo da seção é tanto apresentar as ideias-força mais mobilizadas nas tendências apresentadas nas teses, no que se refere à
questão do fazer pesquisa sobre o ensino de História na escola, quanto apon- tar uma discussão crítica sobre tais ideias, considerando as problemáticas envolvidas.
Realizamos, para isso, uma pesquisa bibliográfica exploratória e delimi- tada. Localizamos teses de doutorado concluídas no início do século XXI na região Sudeste e que estão inseridas nessa perspectiva. No total, encontramos doze trabalhos, sendo que dois deles não possuem referências em comum, sendo amparados por outras perspectivas. Em nove delas identificamos que a proposição da pesquisadora brasileira Marli André é a referência mencionada; a proposição presente no trabalho coletivo das pesquisadoras mexicanas Justa Ezpeleta e Elsie Rockwell é referência em cinco teses; três teses referem-se a ambas. Denominaremos essas tendências de etnografia da prática escolar (AN- DRÉ, 1995) e pesquisa participante (EZPELETA; ROCKWEL, 1986) em refe- rência aos títulos das obras em tela.
Um aspecto – para além da quantidade de trabalhos – que nos levou a considerar as duas obras como tendências na pesquisa com uso do etnográfico é a longevidade comum a ambas e a amplitude de uso como referências. Res- pondendo a desafios da pesquisa no final do século XX, ainda respondem aos problemas postos por diferentes pesquisadores, possuindo pertinência para suas compreensões acerca de seus objetos. Ao mesmo tempo nos perguntamos so- bre seus possíveis limites – que também atravessam o tempo – e como podem ser superados. A seguir, apresentaremos as duas tendências com alguns exem- plos e problemáticas de pesquisa das teses encontradas.10
Etnografia da Prática Escolar
A primeira edição do livro “Etnografia da Prática Escolar”, de Marli André, é de 1995 e atualmente se encontra na décima oitava edição. A pesqui- sadora dedica-se, desde a década de 1970, às associações possíveis da etnogra- fia com o contexto educacional. Em 1978, publicou o texto “A abordagem etnográfica – Uma nova perspectiva na avaliação educacional”, sob a influên- cia do livro Beyond the numbers game, oriundo das discussões de um seminário realizado em Cambridge sobre métodos não tradicionais de avaliação de currí- culo (ANDRÉ, 1995). Em 1986, sugeriu-nos apropriações da abordagem et- nográfica para as pesquisas sobre a sala de aula (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).
A etnografia da prática escolar, concordando em parte com Green e Bloo- me (1997), afirma que as pesquisas educacionais, quando estabelecem o diálo- go etnográfico, não estão realizando uma etnografia stricto sensu, como admi- te: “Se o foco de interesse dos etnógrafos é a descrição da cultura (práticas,
hábitos, crenças, valores, linguagens, significados) de um grupo social, a preo- cupação central dos estudiosos da educação é com o processo educativo” (AN- DRÉ, 1995, p. 24).
Nessa proposta de abordagem etnográfica, admite-se a apropriação da etnografia pelos pesquisadores em Educação no sentido de ser possível reali- zar um trabalho que estabeleça com ela um diálogo, mas não se caracterize por todos os seus matizes. Isso justifica-se por um motivo simples: os etnógra- fos estão interessados nas descrições das culturas (de acordo com a acepção de cada linha de estudo), enquanto os estudiosos da Educação preocupam-se com os processos educativos. Por isso afirma que as pesquisas em Educação reali- zam um trabalho de tipo etnográfico e não uma etnografia. Na tentativa de esta- belecer distinções entre a perspectiva dos antropólogos e a dos pesquisadores em Educação, afirma:
Para os antropólogos, o termo [etnografia] tem dois sentidos: (1) um conjunto de técnicas que eles usam para coletar dados sobre os valores, os hábitos, as crenças, as práticas e os comportamentos de um grupo social; e (2) um relato escrito resultante do emprego dessas técnicas (ANDRÉ, 1995, p. 24).
Alvo de críticas (OLIVEIRA; DAOLIO, 2007), essa definição reduz a etnografia a um conjunto de técnicas ou a um relato escrito. Contudo, como lembra Geertz (2008), a etnografia não se define pelas técnicas ou por proces- sos determinados, mas pelo esforço intelectual empreendido na descrição – que é também um processo analítico.
Circunscrevendo-se ao trabalho de tipo etnográfico na Educação, a au- tora propõe o conjunto de características abaixo de forma interrelacionada:
- Adotar as técnicas usualmente utilizadas pela etnografia (observação participante, entrevistas intensivas e análise de documentos);
- Atenção ao princípio de interação entre o objeto e o pesquisador, que pode responder ativamente aos eventos, modificando e revendo seus planos diante deles;
- Ênfase no processo e não nos resultados;
- Preocupação com os significados que as pessoas atribuem àquilo que as
Na tese de Riger (2016), encontramos: “Devido aos desvios que precisei fazer frente aos desafios que me foram colocados, sobretudo pelo campo, con- sidero que a pesquisa que desenvolvi deva ser classificada como de ‘tipo etno- gráfico’”, em referência direta à nomenclatura de André, “e não etnográfica propriamente dita” (RIGER, 2016, p. 20). O seu objetivo é compreender a relação entre os diferentes paradigmas historiográficos e o ensino de História
e identificar se algum deles é predominante em sala de aula. A pesquisadora enquadra sua pesquisa na categoria de “tipo etnográfico”, pois aceitou os des- vios que o campo lhe impôs e porque não pode atender outras prerrogativas de uma etnografia stricto sensu.
A afirmação de Riger sugere que a autora se mostrou flexível ou sen- sível ao campo de pesquisa. A proposta de André, tão largamente mobiliza- da pelos pesquisadores, parece conceder a eles a liberdade para inspirar-se na etnografia, mas não precisar comprometer-se ou conhecer seus enraiza- mentos. A cultura pode ser um nó que os etnógrafos buscam desamarrar e que as pesquisas em Educação, quando em diálogo com ela, não podem per- der de vista. Este é o argumento de Green e Bloome (1997), como vimos na primeira seção: podemos tangenciar a etnografia em diferentes níveis, con- tudo, quando assumimos que não estamos utilizando somente suas técnicas, a dimensão cultural cria entre os dois campos (educação e etnografia) uma relação coerente e justificável. Isso faz sentido para as pesquisas do ensino de História?
As pesquisas de “tipo etnográfico” permitem aos pesquisadores uma liberdade relativa, pois a origem da etnografia e diálogos com outros campos de conhecimento lhe conferem potência. Essa trajetória, quando ignorada, tende à redução da etnografia (e denominações correlatas) a um conjunto de técnicas e à consequente fragilização da investigação, do estar no campo.
Pesquisa Participante
A primeira edição brasileira da obra “Pesquisa participante”, de Justa Ezpeleta e Elsie Rockwell, data de 1986 e é referenciada em cinco teses que encontramos. As autoras realizaram a primeira pesquisa latino-americana in- teressada em compreender o cotidiano escolar como realidade não documen- tada, porém histórica (EZPELETA; ROCKWELL, 2007). Em 1983, Ezpeleta esteve no Brasil por ocasião de um seminário sobre pesquisa participante, pro- movido pelo Instituto Nacional de Estudo e Pesquisas Educacionais (Inep), o que explica, em parte, a disseminação do referencial das autoras a partir da- quele momento.
O capítulo introdutório do mencionado livro, “A Escola: relato de um processo inacabado de construção”, foi republicado em dezembro de 2007 pela revista Currículo sem fronteiras. Em “La experiencia etnográfica: historia y cultura en los procesos educativos”, (2009), não explorado nas pesquisas encontradas, Rockwell recupera algumas noções e sugere problemas de pes- quisa que poderiam ser atendidos pela pesquisa etnográfica, embora advirta
que nem todas as problemáticas em Educação podem ser respondidas por ela.11
Inspirada nos estudos que emergiram nas ciências sociais sobre o folclore e a história popular, a pesquisa participante incorpora a noção de “vida cotidia- na”, acreditando que é possível “reconstruir o que ocorre diariamente em qual- quer ‘parte’ da realidade social, mesmo nos lugares privilegiados pelas visões legitimadoras da dominação” (EZPELETA; ROCKWEL, 1986, p. 140). Esta perspectiva parece levar os pesquisadores a buscar essa tendência, como vere- mos adiante.
A pesquisa participante pode ser definida como a prática que evidencia os limites dos paradigmas tradicionais a partir dos quais a escola geralmente era observada. Tanto na versão positivista de Durkheim como na crítica de Bour- dieu e Althusser, a escola conforma as vontades estatais, reproduzindo-as. Na pesquisa participante, apresenta-se uma mudança de escala, transpondo as cate- gorias estruturais (sistema social, classe, reprodução) para a análise de situa- ções particulares. Essa mudança impõe aos pesquisadores um modelo teóri- co-metodológico também alternativo em relação ao que estava sendo utiliza- do, capaz de capturar essas nuances particulares. Essa mudança possui um caráter eminentemente político, que é explicitado ou não, mas que caracteriza essa tendência. Sendo assim, convocam-se a participação e a observação não somente como ferramentas de coleta de dados, mas como fundamentação epis- temológica. Isso leva as pesquisadoras à abordagem etnográfica. Além dessa definição, a pesquisa participante caracteriza-se também pela incorporação das nuances que tentaremos explicitar abaixo.
No segundo capítulo do livro (1986), escrito exclusivamente por
Rockwell e constantemente evocado nas teses analisadas, a tendência contri- bui para expor a importância da teoria mesmo nas pesquisas que se denomi- nam de “inspiração etnográfica”: o pesquisador não pode ir a campo com o simples objetivo de testar suas hipóteses, devendo permitir que os aconteci- mentos observados sugiram novas categorias de análise e compreensão. Na pesquisa participante, percebemos a necessária dialética entre observação e de- senvolvimento teórico: “o pesquisador relaciona continuamente os fenôme- nos observáveis que podem ser relevantes. Trabalha com as categorias teóri- cas, mas não as define de antemão em termos de conduta ou efeitos observá- veis” (EZPELETA; ROCKWELL, 1986, p. 51). Essa necessária permeabili- dade do pesquisador ao campo faz parte dos pressupostos da etnografia em sua origem e é comum à proposta da etnografia escolar de André.
Observamos que, mesmo nas pesquisas que não abordam essa tendên- cia ou a etnografia da prática escolar, municiadas de outros referenciais teóricos
do campo da etnografia, é comum a declaração dessa condição de construção do conhecimento (ROCHA, 2006; ANDRADE, 2006). Por exemplo:
Assim, o trabalho que apresento, como se poderá perceber, buscou referên- cias na etnografia por trabalhar com práticas escolares de linguagem, for- mas de organização da aula de História e por estabelecer, em relação ao pensamento do professor sobre o aluno, um estatuto de teoria, no sentido de conformar categorias nativas que merecem ser levadas a sério, nem mais nem menos que uma categoria científica, no sentido de lhe servirem como explicações e orientações no mundo. […] Mas não é um trabalho etnográfi- co, no sentido de ter como finalidade produzir uma etnografia (ROCHA, 2006, p. 38).
Rocha (2006) investiga o lugar da linguagem no ensino de História, com- preendendo-a como fenômeno interacional. Duas problemáticas orientadoras da tese são a relação entre oralidade e escrita e a história escolar no processo de letramento dos alunos do ensino fundamental. À medida que sua estada no campo avança, compreende que a teoria da mente que mobiliza inicialmente pode não dar conta de todas as nuances observadas e convida as noções de pessoa e teoria nativa, da Antropologia, para ampliar seu estudo.
A tendência da pesquisa participante em exame propõe que os estudos etnográficos devem considerar os aspectos que extrapolam a escola ou a co- munidade, aplicando uma teoria social que reconheça os processos educacio- nais dentro de sua historicidade. Para tanto sugere um caminho teórico-meto- dológico que inclua:
- complementação da informação obtida em campo com informações relativas às políticas educacionais ou outras ordens sociais;
- construção de um presente histórico e não um presente sistêmico: quer dizer, a pesquisa precisa reconhecer os vestígios históricos que podem caracterizar o processo social ou cultural – ele não é acabado;
- percepção da escola como espaço que permeia outras instituições e espaços sociais, como o trabalho, a política local e a concepção de mundo dos sujeitos;
- as ações dos sujeitos não têm a coerência que a teoria cultural geral- mente lhes atribui, tendo em vista que podem apresentar contradições que só poderiam ser mapeadas quando sua história é rastreada. Sendo assim, opta-se pela noção de “categorias sociais” e não “categorias culturais;
- os processos não se reduzem ao processo de comunicação ou signifi- cação dos sujeitos, mas devem passar por uma reconstrução que permita co- nhecer seus planos de
Na etnografia, a “comunidade” é o nível de análise – um etnógrafo cir- cunscreveria sua análise sobre a escola e, no limite, a seu entorno. No entanto
a pesquisa participante acredita que tal nível é insuficiente para os problemas de pesquisas em Educação, que devem relacionar o cotidiano escolar ao movi- mento histórico do qual faz parte. Nas teses encontradas, percebemos que o foco de interesse está nas interações em sala de aula e recai, muitas vezes, sobre os professores: seus saberes, escolhas, “o modo como ensinam”, as apro- priações que fazem dos materiais didáticos, etc. Isso, entretanto, não implica dizer que as conclusões das pesquisas são alcançadas somente pela análise da observação da aula: percebemos o esforço em situá-la dentro de uma escola, a escola respondendo a políticas educacionais e sucessivamente.
Destacamos a tese de Franco (2009), que tem como problema de pes- quisa a apropriação de livros didáticos de História por professoras das primei- ras séries do ensino fundamental. Sua investigação parte das “interações e en- frentamentos entre as propostas dos gestores das políticas educacionais e a dinâmica das instituições escolares e dos saberes docentes” (FRANCO, 2009,
- 5). Em seu quadro conceitual estão as categorias de apropriação e saberes docentes; para capturá-los, recorre à pesquisa participante:
Ao pesquisar esse restrito grupo de quatro professoras de 3ª série, cuidei para não limitar as análises a esse “pequeno mundo” (professoras de algu- mas escolas de uma cidade). Se, por um lado, a pesquisa etnográfica requer a observação de “pequenos mundos” para ser realizada (grandes amostra- gens inviabilizam a análise mais qualitativa das complexidades do cotidiano escolar), por outro, a interpretação dos dados observados no espaço restrito deve ser articulada à análise da macroestrutura (Estado, sociedade civil, contexto histórico). Assim, procurei não ficar presa à mera descrição das relações internas observadas nas salas de aula […] (FRANCO, 2009, p. 38).
Embora seu objeto de pesquisa seja construído por teorias que enfati- zam os sujeitos, a pesquisadora coloca-os em perspectiva, considerando a rea- lidade externa que pode até não os governar, mas possivelmente os orienta. Compreendemos que a “triangulação” dos dados, assim como a necessidade de um diálogo ativo e não determinístico com a teoria na investigação etno- gráfica sejam as principais contribuições dessa tendência para as teses que se referem a ela. Essas características parecem atrair os pesquisadores, que se apropriam delas de acordo com seus problemas de pesquisa. Aqui, o que está em jogo é a especificidade da pesquisa educacional na relação da escola com a sociedade, que cria e recria a instituição através de políticas específicas, bem como a afirmação da existência de espaços no cotidiano escolar para suas rein- venções e contradições.
Etnografia ou abordagem etnográfica?
Vimos nas seções anteriores que a etnografia é uma noção de significa- dos partilhados, definidos pela relação entre o pesquisador, o seu lugar – social, cultural ou um campo de conhecimento – e o objeto de estudo. A construção desse objeto não prescinde das categorias de análise ou quadros teóricos, mas a abordagem etnográfica caracteriza-se por não os tomar absolutos, e eles po- dem ser construídos durante a própria inserção no campo, conforme as cate- gorias vão se desenhando na observação. Sendo o ensino de História um terri- tório de fronteira, tais categorias poderão ser construídas em diferentes cam- pos das ciências humanas.
A subjetividade, tanto quanto a teoria, não escapa à própria análise do pesquisador, que deve considerá-la e explicitá-la ao longo do estudo, pois é determinante para a descrição que será feita, entre muitas possíveis. É por isso que, insistimos, em etnografia, o campo inclui – para além do espaço de obser- vação – todos os processos mentais através dos quais o pesquisador elabora sua análise sobre os grupos observados – que pode acontecer em momentos improváveis.
Além disso, tivemos o objetivo de apresentar a existência de limites na compreensão existente sobre o que é realizar um trabalho de abordagem etno- gráfica em Educação e ensino. Nas pesquisas analisadas, observou-se uma ten- dência a que a etnografia e as noções e técnicas que dela se oriundam por vezes se confundem. Ora evocam um conjunto de técnicas, ora assumem uma postura flexível no campo, ora estão realizando uma descrição… Como disse- mos na primeira seção deste texto, o campo não se qualifica pelo uso ou não de determinada abordagem, mas pela articulação profícua entre a problemáti- ca de pesquisa e a fundamentação teórico-metodológica.
Duas defesas permeiam este texto, que reiteramos:
- O campo não é somente um espaço que se Ele é o caminho da escola até as nossas casas, momento em que realizamos divagações sobre o que observamos. Ele é o tempo em que transcrevemos as gravações e refaze- mos com a memória o percurso do que foi registrado. Ele é também o conjun- to de textos que lemos, os filmes a que assistimos, as associações que estabele- cemos. O campo é intangível, pois está onde moram nossos pensamentos.
- Ao definir uma pesquisa como de inspiração etnográfica, carece co- nhecer o enraizamento da Tal definição não isenta o pesquisador de conhecer suas fontes. Caso contrário, não fará trabalho etnográfico em ne- nhum nível – estará somente utilizando suas técnicas. Nesse aspecto, acredita- mos que a cultura na escola possui uma centralidade que justifica uma aproxi- mação para além das técnicas e estratégias de pesquisa.
Sendo assim, diante das problemáticas que rodeiam esse fenômeno, suge- rimos que os pesquisadores em Educação e do ensino de História considerem a incorporação de noções oriundas da Antropologia, que constituem os significa- dos das práticas etnográficas. Acreditamos que a busca por essas noções e sua incorporação às pesquisas, de acordo com suas próprias problemáticas, podem conferir substância ao necessário diálogo entre campos de conhecimento.
Estranhar o familiar
Na discussão sobre a necessidade de tornar familiar o exótico e estra- nhar o familiar, Gilberto Velho (1999, p. 127) registra que todos nós dispomos de um mapa que nos familiariza com os cenários e situações sociais de nosso cotidiano, dando nome, lugar e posição aos indivíduos. Tais mapas são cons- truídos ao longo de nossa inserção na(s) cultura(s), e ela se dá, em parte, na escola. Nossas rotinas, hábitos e os estereótipos através dos quais enxergamos a paisagem de nossa janela, tão rotineira, podem nos conduzir a uma interpre- tação limitada sobre ela.
Maurice Tardif (2017) afirma que o professor é um profissional que cons- titui seus saberes desde o início de sua escolarização como aluno e, depois, professor. A escola é extremamente familiar para ele. O mapa com cenários e situações sociais do cotidiano escolar, situando professores, alunos e demais participantes nesse cotidiano, oferece elementos desde a problemática da pes- quisa, questionários a serem respondidos, até a inserção no campo.
É o próprio Velho que nos oferece uma alternativa para essa tendência à familiarização do que ocorre na escola, que pode nos cegar para descobertas. Ele observa: “Os repertórios humanos são limitados, suas combinações são suficientemente várias para criar surpresas e abrir abismos, por mais familiares que indivíduos e situações possam parecer” (VELHO, 1999, p.129). Ou seja, podemos criar, metodologicamente, distância e estranhamento com o que nos é familiar, ampliando nossa compreensão sobre o que vemos em tais mapas.
Como pesquisadores do ensino de História, precisamos realizar um traba- lho reflexivo de estranhar os saberes, memórias e sentimentos que constituímos como professores para criar surpresas e abrir abismos diante da escola e de seus sujeitos. Vejamos um exemplo em pesquisa do ensino de História:
Procuramos, em primeiro lugar, causar um estranhamento no familiar com o intuito de tornar visíveis os comumente invisíveis padrões e práticas cultu- rais do grupo em estudo, uma vez que estes não se constituem apenas como pano de fundo cultural, mas como constituintes e constituidoras dos próprios processos e eventos que ocorrem no interior da sala de aula (ANDRADE, 2006, p. 24).
Observemos que existe uma ação intencional de estranhamento da pes- quisadora. Considerar que o cotidiano escolar revela ações não documentadas é acreditar em um universo explorável, mesmo familiar. Estranhar o familiar é admitir rupturas possíveis dos sujeitos nos e sobre os lugares que ocupam den- tro de um contexto sociocultural.
Creditar aos professores a possibilidade de se apropriar do livro didáti- co, para utilizarmos uma problemática de pesquisa citada na seção anterior, é considerar que cada sujeito poderá fazê-lo de uma maneira única, mesmo sen- do todos professores de História. Ao contrário, se o pesquisador pressupõe que os professores só reproduzem o que os livros apresentam, poucas desco- bertas sobre as singularidades das práticas poderão fazer.
Se cada contexto educacional possui particularidades que constituem culturas, como é possível afirmar que esse é um espaço totalmente conhecido? Portanto a intimidade cultural com o cotidiano escolar não é sinônimo de “conhecimento” sobre ele, e estranhá-lo parece-nos condição necessária se quisermos observá-lo fora de nossos próprios padrões de inteligibilidade, am- pliando o universo de conhecimento sobre a escola, a sala de aula e o ensino de História.
Velho (1999) oferece, na proposição de estranhamento do familiar refe- rida às sociedades urbanas, uma fundamentação teórico-metodológica para esse estranhamento. Acreditamos que um diálogo com essa noção possa ser fecunda aos pesquisadores do ensino e da Educação, para quem a escola e a sala de aula são uma das paisagens que avistam de suas janelas.
A noção de pessoa e as categorias nativas
Até que ponto algo é peculiar a um professor, uma turma ou uma esco- la? Quando podemos dizer, em uma descrição, que os professores, os alunos, a escola são de tal jeito? Tais questões remetem a um debate caro aos antropólo- gos em sua busca por limites do particular e do geral, sendo que eles os expli- cam reportando-se a teorias sociais diversas. Quando um historiador faz uma pesquisa com pessoas em sala de aula, essas são questões que se apresentam. Algumas das noções que contribuem para essa reflexão necessária são as de pessoa e categoria nativa.
Segundo Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979), a noção de pes- soa trata de um rótulo útil para descrever as categorias nativas, que, grosso modo, significam o modo como as pessoas de determinado grupo denomi- nam, explicam e definem suas ações e interações. Isto é, a noção ocidental de “indivíduo” não pode totalizar a compreensão do pesquisador sobre o grupo
pesquisado, pois as pessoas têm categorias nativas com as quais explicam o mundo – seus mundos. O estudo de Seeger et al. defende que as categorias forjadas pelos antropólogos nas tribos africanas, polinésias ou australianas não dão conta de explicar os fenômenos que acontecem nas aldeias indígenas sul- americanas. Isso porque esses mundos possuem complexidades diferentes, que urgem explicações e categorias em seus próprios termos a partir da visão das pessoas que deles participam.
Escolas são escolas. Entretanto uma escola pública é diferente de uma escola privada – e mesmo dentro de cada rede há matizes importantes entre alunos, professores e culturas escolares em funcionamento. Dimensionar no trabalho de campo tais especificidades é algo que permitirá ao pesquisador que tem como tema o ensino de História considerar aspectos tais como con- texto social e geográfico da escola, pertencimento de alunos e professores a classes sociais, grupos étnico-culturais, quais categorias nativas vão constituir os quadros explicativos para a aula de História e seus sentidos. Uma aproxi- mação com a noção antropológica de pessoa pode contribuir para a elaboração teórica das aproximações e distanciamentos entre tais sujeitos ao tratar e co- nhecer a história do país.
Pesquisas em curso demonstram que a recepção de alunos evangélicos de escolas de periferia no Rio de Janeiro para aspectos da História da África é traduzida por muitos deles como coisa do diabo, atraso, pobreza. Isso faz com que eles manifestem não desejar que a professora aborde esse conteúdo, pois ele traz azar para eles. Essas são categorias nativas potentes, que mobilizam fortemente os alunos. A abordagem etnográfica nessa escola e sala de aula necessita considerar a vivência religiosa desses alunos e de suas famílias, que constitui tais categorias em seu mapa explicativo do mundo (MAIA, 2019).
A noção de projeto individual e de projeto coletivo no ensino de História
A História estabeleceu-se há alguns séculos como disciplina, conforme sugerido por François Furet (1990) e considerando a proposição de regime de historicidade moderno no jogo entre passado, presente e futuro, voltada para o futuro (HARTOG, 1996; KOSELLECK, 2006). A escola cumpre, desde en- tão, a função de preparar alunos para o amanhã, para o devir. E a disciplina História possui o papel especial de apresentar uma história muitas vezes linear, que vem do passado até o presente, sendo que até o início do século XX a narra- tiva que sustentava essa linha era dirigida a um futuro otimista e de progresso.
Os desacertos históricos globais de diferentes ordens, transcorridos no século XX e início do XXI, bem como a exclusão social que afeta diretamente
as novas gerações e, em especial, segmentos expressivos da sociedade nacional vêm tornando cada vez mais frágil e inconsistente a tentativa de apresentação de uma narrativa vitoriosa sobre a aventura humana. Fernando Penna (2015) registrou o pessimismo de jovens diante do futuro no ensino de História. Como construir – na aula e na vida de cada um – uma narrativa e uma trajetória que entreteçam os projetos individuais e coletivos em direção ao amanhã? (RO- CHA, 2019).
Essa é uma questão relevante para as pesquisas do ensino de História, pois a noção de projeto conferirá sentido, ou não, ao que os professores têm a dizer para seus alunos. Ao currículo e aos materiais. Seja na dimensão de futuro ou na dimensão de partilha de horizonte de ideias, como “estamos no mesmo barco” ou “cada um que busque o seu salva-vidas”, a pesquisa sobre o ensino de História requer considerar os projetos que habitam alunos e pro- fessores.
Gilberto Velho (1999) afirma, ao discutir a noção de projeto (individual ou coletivo), que ele é formulado dentro de um campo de possibilidades, cir- cunscrito histórica e culturalmente tanto em termos da própria noção de indi- víduo como dos temas, prioridades e paradigmas culturais vigentes. De inte- resse para a pesquisa do ensino de História, os projetos mudam e estão referi- dos a outros projetos:
Por isso, é fundamental entender a natureza e o grau maior ou menor de abertura ou fechamento das redes sociais em que se movem os atores. Posso me inspirar em algum varão de Plutarco, mas tenho de levar basicamente em conta os meus contemporâneos com quem terei de lidar… (VELHO, 1999, p. 27-28).
Velho ainda demonstra que o projeto não envolve somente cognição e defende a necessidade de realizar uma sociologia das emoções:
As minhas emoções estão ligadas, são matéria-prima e, de certa forma, constituem o meu projeto. Há sentimentos e emoções valorizados, tolera- dos ou condenados dentro de um grupo, de uma sociedade […] Um código ético-moral definirá o errado, inadequado, incestuoso, impróprio, sujo, po- luído, perigoso, que possa haver nos corações e mentes dos homens e nas suas condutas e interações (VELHO, 1997, p. 27-28).
Quando, na atualidade, temos conflitos na escola ocasionados por posi- cionamentos inflexíveis e até violentos acerca de valores e projetos, seja por parte de alunos, dirigentes ou professores, procurar compreender as direções e trajetórias que delineiam os projetos desses sujeitos pode conferir novos senti- dos às pesquisas que se voltam para o ensino de História, bem como outras problemáticas.
Se o pesquisador deseja realizar sua pesquisa em uma perspectiva com- preensiva dos fenômenos – o que justifica a escolha pela pesquisa qualitativa e também pela abordagem etnográfica –, as considerações acima acerca das no- ções de projeto, pessoa, categoria nativa, entre outras, podem contribuir para que se considere o ponto de vista do aluno e do professor de História como nativos da escola, bem como suas imbricações inarredáveis com outros espa- ços sociais que a conformam, constituindo esse campo de observação pomar ou oceano a mergulhar para conhecer.
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1 Helenice Aparecida Bastos Rocha é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), pesquisadora Procientista da UERJ/FAPERJ e PQ2 do CNPQ e a participação neste capítulo está inserida no escopo do projeto: Narrativas nos livros didáticos de história: tradição e rupturas (Prociência e CNPQ) e Usos do passado: história pública, didática e formação do professor (CNPQ).
2 Rafael Monteiro de Oliveira Cintra é doutorando do PPGHS-UERJ, e a participação no presente capítulo foi realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
3 Em “O ofício do etnólogo ou como ter anthropological blues”, Roberto da Matta (1978) registra a evasividade de etnógrafos para definir a etnografia e seu ofício.
4 Gilberto Velho caracteriza a dupla noção de sociedade complexa e não complexa. Para uma conceituação, v. VELHO, 1999, p. 15-19.
5 Lewis Henry Morgan publicou o primeiro tratado científico de etnografia em 1851. Bronislaw Malinowsky e Frans Boas consagraram a ideia de que os antropólogos deveriam passar um longo período na sociedade em estudo e interpretar seus dados. Para mais informações, v. GOLDENBERG, 2004.
6 No livro “O antropólogo e sua magia,” trabalho de campo e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras, Vagner Gonçalves da Silva (2000) demonstra como a etnografia nas sociedades complexas possui marcas daquela praticada pelos antigos etnógrafos, mas se diferencia dela em outros aspectos.
7 Max Weber, assim como Wilhelm Dilthey, são precursores dos estudos qualitativos nas ciências sociais no final do século XIX na busca de alternativas ao pensamento positivista, hegemônico na organização das ciências humanas. Eles reivindicavam que os contextos dos problemas sociais são fundamentais para a investigação. O primeiro elaborou uma teoria sobre a compreensão dos significados que os homens atribuem às suas próprias atitudes, e o segundo aproximou-se da hermenêutica, que se preocupa com a interpretação dos textos. Para mais informações sobre o surgimento da metodologia qualitativa, v. GOLDENBERG, 2004.
8 A aproximação entre a Sociologia e a Antropologia teve a contribuição especial da chamada Escola de Chicago, em que os pesquisadores dessas duas áreas estavam no mesmo departamento desenvolvendo pesquisas sobre problemas sociais da cidade de Chicago. Isso propiciou trocas em que a etnografia conferiu legitimidade a técnicas e métodos da pesquisa qualitativa sociológica.
9 Tradução dos autores das citações de Green e Bloome. Para os originais, v. GREEN; BLOOME, 1997.
10 Não nos detivemos em dissertações, pois partimos do pressuposto de que a pesquisa de abordagem etnográfica demanda uma certa permanência do pesquisador em campo. Como as pesquisas de mestrado têm menor tempo de duração, consideramos haver maior dificuldade de mobilização dessa opção e optamos por não as incluir no escopo da busca. A região Sudeste justifica-se pela sua alta concentração de pesquisadores em ensino de História. Por esses motivos consideramos estar respondendo de forma parcial e exploratória à pergunta que nos colocamos. Como nosso objetivo principal é a apresentação das tendências e não das teses, nosso foco não recai sobre elas. Por isso não utilizaremos exemplos de todas as teses, mas sim os exemplos que consideramos pertinentes. As teses do estudo exploratório estão listadas nas referências.
11 Rockwell (2009) sustenta que a abordagem etnográfica é potente para as pesquisas sobre “saberes
docentes” em oposição à noção de “saberes pedagógicos” (compreendidos como prescritivos).
Comendo pelas beiradas: História Oral nas aulas de História
Verena Alberti1
Em maio de 2016, aconteceu na Universidade Federal do Rio Grande do Sul o XIII Encontro Nacional de História Oral, organizado pela Associa- ção Brasileira de História Oral (ABHO). A professora Carla Simone Rodeghe- ro, então presidente da ABHO, havia sugerido, junto com a comissão científi- ca, que o tema do encontro fosse “História oral, práticas educacionais e inter- disciplinaridade”. Tive a honra e o desafio de proferir então uma aula pública, que intitulei “Dois temas sensíveis no ensino de História e as possibilidades da história oral: a questão racial e a ditadura no Brasil” (ALBERTI, 2016). Na aula, mencionei a sessão de votação na Câmara dos Deputados que ocorrera duas semanas antes, em 17 de abril, e que determinara a abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e lembrei que um representante de meu estado, o Rio de Janeiro, havia dedicado seu voto ao coronel Ustra.
Quatro anos depois, em 17 de abril de 2020, a jornalista e escritora Eliane Brum publicou uma crônica que intitulou “Brasil de 17 de abril de 2020: meu diário”. De acordo com Brum, naquele dia de 2016, com seu voto Bolsonaro tornara-se presidenciável:
Ainda não sabíamos, mas aquele também foi o dia do lançamento da cam- panha presidencial de Jair Bolsonaro. Ao votar pelo impeachment de Dilma, homenageando o mais notório torturador e assassino da ditadura e não ser punido pelo crime de apologia à tortura, ele se tornou presidenciável. Ao votar homenageando o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um homem capaz de torturar até crianças pequenas e não ser punido, descobriu que podia tudo […] [e] começou a se tornar o pavor do Brasil (BRUM, 2020).
No dia seguinte à minha aula pública, tive a satisfação de conceder duas entrevistas nas quais a relação entre história oral e ensino de História foi trazi- da à baila mais uma vez (ALBERTI, 2016b e 2016c). Na entrevista concedida à professora Aryana Lima Costa e ao professor Jocelito Zalla (ALBERTI, 2016c), pude detalhar iniciativas que venho empreendendo no ensino básico e na formação de pedagogos e pedagogas no ensino superior, as quais tangenciam o trabalho com a história oral. É sobre esse “tangenciar” que se constrói o presente texto, o qual, por isso mesmo, recebeu o título “Comendo pelas beira- das: história oral nas aulas de História”.
A história oral é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fon- tes para o estudo do passado e do presente (ALBERTI, 2004 e 2013). Uma de suas especificidades consiste em privilegiar narrativas de experiência pessoal como forma de ampliação do conhecimento. Essas narrativas nos aproximam tanto “daquilo que ocorreu no passado” como das maneiras como as pessoas se lembram daquilo que ocorreu no passado.
Empreender uma pesquisa de história oral ou analisar fontes orais já constituídas não é simples, absolutamente. Quando tenho a oportunidade de ministrar um curso sobre o assunto, uma das primeiras coisas que faço é aler- tar os e as ouvintes sobre as dificuldades envolvidas num projeto de história oral, as muitas injunções que precisamos considerar, bem como a necessidade expressiva de tempo e recursos. E procuro convencer meu auditório a somente se lançar numa pesquisa de história oral se não houver mesmo outra possibili- dade (ver, por exemplo, ALBERTI, 2020).
Considerando toda essa complexidade, será que é possível trabalhar com história oral nas aulas de História no ensino básico? No já mencionado XIII Encontro Nacional de História Oral, que abordou, entre outros temas, a relação da história oral com “práticas educacionais”, foram apresentadas algumas ini- ciativas instigantes (ver, por exemplo, GUILLEN, 2016; PONTES, 2016; ABHO, 2016). Na revista da ABHO e em publicações de associações de história oral de outros países, também podem ser encontrados materiais que discutem essas pos- sibilidades (FONSECA, 2006; SHOPES, s/d; Oral History Society, s/d), sem falar nas publicações voltadas para o ensino de História propriamente dito (HORN, 2014; HENKE-BOCKSCHATZ, 2004; HDBG, s/d, por exemplo).
Entre os benefícios de trabalhar com história oral apontados por essas e outras publicações estão o estudo da história local; a comunicação entre estu- dantes e pessoas mais velhas; o aprendizado fora do espaço escolar; o enfren- tamento dos desafios de uma pesquisa; a valorização de histórias de “pessoas comuns” e a consciência de que somos todos e todas sujeitos históricos. As possibilidades de trabalho vão desde gravar entrevistas no contexto de um pro- jeto específico, passando por trazer atores e/ou testemunhas para dentro da escola para contar suas experiências de vida até trabalhar com entrevistas dis- poníveis em arquivos e instituições congêneres.
Mas por que isso tudo é tão complicado?
Comecemos pela especificidade da fonte oral. Entrevistas de história oral – assim como outros documentos retrospectivos, como relatórios, atas, autobiografias, etc. – são mais do que relatos do passado; são também ações no presente, pois, ao concordar com sua realização, seus autores e suas auto- ras têm em mente, com razão, incidir sobre a realidade. Assim, para analisar
essa fonte, precisamos, como em todas as fontes, perguntar-nos sobre as inten- ções de quem a produziu e preservou (não só os/as entrevistados/as, como os/as entrevistadores/as e suas instituições) e precisamos perguntar-nos para quem, além de seu/sua interlocutor(a) direto(a), o(a) entrevistado(a) está falando. Ao trazer para a escola uma pessoa que tenha atuado em ou testemu- nhado determinado acontecimento ou conjuntura, ou ao incentivar nossos estudantes a fazer entrevistas de história oral, precisamos prevenir-nos em re- lação a pelo menos dois riscos: de um lado, os e as estudantes podem reificar aquilo que está sendo dito, sem se dar conta de que o que alguém diz depende de quando diz, para quem diz, etc.; de outro, os e as estudantes podem colocar em xeque a possibilidade de aquela pessoa realmente ter conhecimento daqui- lo que está contando ou ter “isenção” suficiente para não misturar seus senti- mentos e sensações com suas lembranças. Ou seja, ou aquele relato ganha uma aura de “história viva” e “retrato” do passado, ou, ao contrário, a fonte é
desmerecida e, quiçá, desrespeitada.
(Convém lembrar que, durante muito tempo, a história oral foi desacre- ditada por ser uma fonte “subjetiva”, o que, nas discussões do campo, já é assunto resolvido, seja porque aprendemos a reconhecer “subjetividade” em praticamente todas as fontes, seja porque, como defendia Claude Lévi-Strauss (1971), é preciso tornar “inteligíveis” os “sensíveis”, isto é, tomar a subjetivi- dade também como objeto de estudo para conhecer nossas sociedades.)
De que forma podemos preparar nossos alunos e nossas alunas para compreender a especificidade de uma entrevista de história oral ou de um tes- temunho sobre o passado para que a experiência de ouvir aquela pessoa seja aproveitada da melhor forma possível?
Devemos também considerar outros fatores imponderáveis: e se a pes- soa que vem falar com os e as estudantes ou aquela que eles e elas vão entrevis- tar também concebe seu relato como “história viva” e “retrato” do passado? Ou ainda: e se seu relato adquire o tom de denúncia em relação a uma injusti- ça percebida?
De que forma podemos discutir esses e outros aspectos com nossos alu- nos e nossas alunas para que aquela experiência não se perca ou não se trans- forme numa experiência negativa?
Claro, a própria profissão docente é repleta de imponderáveis, e é im- possível querer controlar tudo de antemão. Mesmo que pensemos ter tudo sob controle, sabemos que nossas turmas são diversas e que jamais saberemos como determinada abordagem vai chegar em cada um e em cada uma de nossos alunos e nossas alunas (ver, por exemplo, ALBERTI, 2014a). Ser professor e ser professora é correr riscos.
De que forma – repito – podemos prevenir-nos de riscos e discutir as- pectos que se revelaram importantes nas entrevistas e/ou nos testemunhos? Precisamos, como sempre, de tempo. Tempo para discutir a especificidade da fonte oral, tempo para ouvir e entender o que foi relatado, tempo para voltar a ouvir e voltar a discutir. Uma entrevista (ou um testemunho) precisa ser com- preendida como um círculo hermenêutico (o todo dá sentido às partes e vice- versa). Conceitos ou expressões que se repetem ganham novos significados quando os compreendemos nos diferentes contextos em que foram evocados. A sequência em que algo é narrado também pode ser significativa. O mesmo acontece com o que não é dito, ou seja, as omissões que, às vezes, são percep- tíveis quando consultamos outras entrevistas e outras fontes. Temos tempo para tudo isso? Temos tempo para conhecer o tema com certa familiaridade a ponto de identificar pontos altos do relato e poder fazer novas perguntas?
Decididamente não temos tempo. Mas o professor e a professora, como são autores de suas aulas (MATTOS, 2006), tomam decisões apesar da falta de tempo e apesar da complexidade das fontes. Narrativas de experiência pesso- al, como as entrevistas de história oral e outros depoimentos, podem ser extre- mamente ricas na aula de História, principalmente porque trazem casos con- cretos para ser examinados e vivenciados pelas turmas. Casos concretos têm duas vantagens (e, como já sabemos, muitos riscos também): permitem uma primeira abordagem “metonímica” (quando se toma a parte pelo todo) de as- suntos para os quais talvez já se tenha perdido a sensibilidade, como escravi- dão e ditadura, por exemplo; também permitem enfrentar os perigos das “his- tórias únicas”, como bem explicou a escritora Chimamanda Adichie em seu Ted Talk de 2009 (ADICHIE, 2009).
Na aula pública que ministrei durante o XIII Encontro Nacional de História Oral, eu trouxe um exemplo da primeira vantagem, explorado pelo professor Paul Salmons do Centro para Educação do Holocausto da Universi- dade de Londres: começar o estudo do holocausto com um sapato de criança encontrado em Auschwitz e refletir sobre o contexto em que foi usado e en- contrado, como forma de talvez perceber o que foram os seis milhões de ju- deus mortos no extermínio (SALMONS, s/d). Com relação à segunda vanta- gem, cabe reforçar que uma das grandes possibilidades da história oral e do estudo de narrativas de experiência pessoal, em geral, é o fato de deixar evi- dente para nós a diversidade da experiência humana (isto é, o fato de existir tudo menos uma “história única”). Nas aulas de História, essa vantagem pode ser explorada no sentido de desmontar ideias preconcebidas e estereótipos (os quais são alimentados pelo poder das histórias únicas, como bem demonstrou Chimamanda Adichie em sua palestra).
Por que foi possível que, na sessão de votação da abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o então deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro Jair Bolsonaro dedicasse seu voto a Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff ”, como disse, e não sofresse san- ção por essa homenagem? Dois anos depois, em maio de 2018, uma senhora de 89 anos chamada Ursula Haverbeck, reincidente na negação do holocausto e que já havia sido condenada por oito acusações de incitação ao ódio, foi presa na Alemanha (El País, 2018). Uma das razões da diferença de tratamen- to dado pelo Estado alemão e pelo Estado brasileiro a atitudes públicas de negação das ditaduras é certamente o fato de que, no Brasil, ações em prol da memória, da verdade e da justiça foram proteladas e alvos de muita oposição. Como sabemos, essa situação tem a ver com os entraves ao estabelecimento de uma justiça de transição efetiva, a despeito de esforços empreendidos por movimentos sociais e instituições como o Ministério Público Federal e as di- versas comissões da verdade nacional, estaduais, municipais e institucionais (ver SOARES, s/d; MPF, 2017; STAMPA; RODRIGUES, 2016; HOLLAN- DA; ISRAEL, 2019; MÜLLER; FAGUNDES, 2014).
A Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada por lei, foi instalada
em maio de 2012, e seu relatório foi publicado em dezembro de 2014. O Cen- tro de Referência Memórias Reveladas do Arquivo Nacional mantém uma cópia do portal da CNV no endereço http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/. No mesmo ano de 2012 e em anos subsequentes foram instaladas comissões da verdade em diferentes estados do país, em municípios e em instituições, como as universidades, por exemplo.2 A maioria dessas iniciativas produziu um conjunto expressivo de depoimentos e coletou um grande número de do- cumentos, os quais estão disponíveis em páginas da internet, prontos para serem consultados e usados em nossas aulas de História. Todas as comissões da verdade produziram relatórios, os quais também estão disponíveis para con- sulta. Parte importante deles é aquela que concerne às recomendações, como, por exemplo, a implementação de ações de memória sobre crimes da ditadura e a criação de meios para que tais crimes não se repitam.
Os relatórios das comissões da verdade constituem documentos oficiais produzidos pelo Estado brasileiro – seja em âmbito federal, estadual ou muni- cipal – ou ainda pelas instituições em que tais comissões tiveram lugar. Dar andamento a suas recomendações é, pois, atitude legítima e legal.
Um depoimento prestado a uma comissão da verdade não é o mesmo, evidentemente, que uma entrevista de história oral, mas, em geral, trata-se, em ambos os casos, de narrativas de experiência pessoal. Gostaria de propor o uso desses depoimentos como uma das formas de tratar, “pelas beiradas”, a histó-
ria oral nas aulas de História. Trata-se da terceira possibilidade citada no iní- cio deste texto: trabalhar com entrevistas já produzidas, disponíveis em arqui- vos e instituições congêneres.3 Em se tratando de depoimentos públicos, te- mos a garantia de que seus autores e suas autoras não restringiram seu acesso e que, portanto, estamos autorizados e autorizadas a trabalhar com eles em nossas aulas.
Alguns cuidados precisam ser tomados, a meu ver. Em primeiro lugar, avaliar se descrições pormenorizadas das atrocidades sofridas durante as tor- turas cabem nas aulas de História; penso que, em respeito aos alunos e às alunas, bem como às vítimas, devemos evitá-las. Em seguida, buscar relatos que se contraponham às “histórias únicas” equivocadamente sedimentadas sobre a resistência à ditadura, as quais muitas vezes apontam “subversivos” ou “terroristas” como os alvos das violações cometidas pelo Estado. O volume II do relatório da CNV contém análises que estimam em oito mil o número de indígenas mortos pela ação do Estado brasileiro durante a ditadura e textos dedicados a violações cometidas contra camponeses, militares e homossexu- ais, entre outros (CNV, 2014). Talvez possamos encontrar narrativas de expe- riência pessoal de representantes desses grupos para nossas aulas de História. A proposta que trago aqui é trabalhar um conjunto de depoimentos pro- duzido no âmbito da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, instalada por resolução da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) em fevereiro de 2012. Em maio de 2013, a comissão promoveu o seminário “Verda- de e infância roubada – crianças atingidas pela ditadura”, que resultou no livro Infância roubada (SÃO PAULO, 2014). Durante uma semana, homens e mulhe- res que eram crianças na época da ditadura relataram suas experiências no audi-
tório da Alesp em evento presidido pelo deputado estadual Adriano Diogo.
Trabalhar com depoimentos de pessoas que eram crianças durante a ditadura pode aproximar nossos alunos e nossas alunas daquelas experiências em razão de suas idades. E também pode funcionar como “quebra de expecta- tiva” em relação à história única comumente difundida sobre que tipo de pes- soa sofreu as graves violações de direitos humanos durante a ditadura. Os irmãos André e Priscila Almeida Cunha Arantes, por exemplo, tinham respec- tivamente três e dois anos de idade quando foram detidos com a mãe, perma- necendo quatro meses presos em instalações da Polícia Militar e da Escola de Aprendizes Marinheiros de Alagoas (ARANTES, 2014, p. 23).
Depois de assistir a alguns desses depoimentos pela internet, escolhi trazer para este texto o de Eliana Paiva, filha de Rubens Paiva, prestado no dia 9 de maio de 2013 (PAIVA, 2013) e publicado com alterações no livro Infância roubada (PAIVA, 2014).
Eliana Paiva está sentada junto com outras pessoas que já prestaram seu depoimento naquela tarde, numa mesa extensa, no palco do auditório da Alesp, tendo a seu lado o presidente da sessão, deputado Adriano Diogo, que não poucas vezes interrompe a depoente perguntando coisas que haviam sido ditas momentos antes. Isso também acontece às vezes em entrevistas de histó- ria oral, quando o entrevistador ou a entrevistadora não estão prestando muita atenção ao que está sendo dito. Quando isso acontece, a pergunta pode soar desrespeitosa, pois evidencia que o interlocutor não estava prestando atenção. Isso são circunstâncias da entrevista que incidem sobre aquilo que está sendo dito e fazem parte das condições de produção de um documento, as quais precisam ser consideradas quando de sua análise.
Durante sua fala, Eliana Paiva interage com pessoas que estão na mesa e na plateia, aspecto que também faz parte das condições de produção do depoi- mento, mas que desapareceu do relato publicado em livro. É importante lem- brar que aquilo que falamos depende de a quem falamos, quando, como, etc.
O depoimento de Eliana Paiva pareceu-me bastante interessante para uso em aulas de História, porque, ao mesmo tempo em que ela narra aconte- cimentos de janeiro de 1971 (quando seu pai, sua mãe e ela mesma foram presos), mantendo sua audiência atenta querendo acompanhar o fluxo dos acontecimentos, ela também oferece reflexões sobre como os acontecimen- tos puderam ser percebidos por uma adolescente de 15 anos, que, em suas palavras, sabia a “leitura” daquilo, mas talvez não soubesse “decifrar” aqui- lo. Além disso, sua narrativa inclui de forma bastante acurada reações e sen- sações físicas que teve naqueles dias, fazendo com que tenhamos a impres- são de estar acompanhando um relato autêntico. E, o que pode ser muito importante para trazer a discussão da memória para as aulas de História: Eliana Paiva sublinha com frequência que algumas coisas ficaram esqueci- das por muito tempo.
O fato de se tratar de um depoimento em sessão aberta ao público, no contexto de uma comissão da verdade, não pode ser menosprezado. Por isso penso que o trabalho com esse tipo de depoimento nas aulas de História deve começar com a possibilidade de os e as estudantes assistirem ao relato gravado em vídeo (PAIVA, 2013). Isso permite também se perguntar quais informações são trazidas pela gravação: o cenário, a disposição e o comportamento das pes- soas presentes, a entonação da voz, o ritmo da fala, os gestos e as expressões.
Como, neste texto, não temos essas possibilidades, apresento a seguir alguns trechos, que foram transcritos da gravação disponível na internet (PAI- VA, 2014).
Eliana Paiva começa apresentando-se e apresentando seu pai:
Meu nome é Eliana Paiva, Maria Eliana Facciolla Paiva (o nome todo), eu sou filha do ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva, que foi cassado em 1964, foi refugiado na embaixada da Iugoslávia […] [que] forneceu exílio a esses senho- res militantes, que hoje em dia teriam entre 80 e 90 anos de idade. Poucos restam. […]. Minha história, enquanto “adolescência roubada” – eu já era mais velha, tinha 15 anos e meio quando fui presa –, eu acho que é um pouco diferente do que eu ouvi aqui hoje, apesar de ter coisas bastante semelhantes, entre elas uma capacidade incrível da memória nossa: “eu vou esquecer o que aconteceu, e um dia eu não vou lembrar mais”. Isso está claro. Tanto que, agora, em depoimento, apesar do nome do meu pai, apesar de toda a midiatiza- ção que existe em torno dele, eu só fui dar o meu depoimento faz dois anos. […]. O que foi a minha adolescência roubada? Eu sabia o que se passava neste país, exatamente por causa dessa introdução toda. O meu pai foi deputado federal, foi um deputado engajado. Ele já era engajado politicamente desde a sua juventude. Ele foi vice-líder da UEE, vice-presidente da UEE paulista, fez parte da campanha do “O petróleo é nosso” – ele e a maioria desses políticos da geração dele, grande parte já falecida. Foi eleito aos 34 anos de idade deputado federal pelo estado de São Paulo, uma das primeiras ou se- gundas gerações a entrar no atual Congresso Nacional em Brasília. Antes disso, ele ajudou também a construir Brasília. Papai era engenheiro civil; ele ajudou a construir pontes em Brasília.
A leitura desses dois parágrafos já permite perceber que trabalhar com fontes dessa natureza não é simples. Nas primeiras linhas, deparamo-nos com um trecho algo truncado, coisa que é comum de acontecer em relatos orais: Eliana Paiva menciona a “capacidade incrível da memória nossa” de esquecer coisas. Em nossas salas de aula, talvez haja necessidade de parar um pouco nessa parte para entender o que a autora quis dizer. Além disso, as menções à UEE e à campanha “O petróleo é nosso” talvez requeiram elucidações.
Prosseguindo seu relato, Eliana Paiva conta que, depois de nove meses no exílio, seu pai resolveu voltar ao Brasil, e a família transferiu-se para o Rio de Janeiro:
Ele era engenheiro civil; como empreendedor ele não podia assinar mais nada; como deputado cassado ele não podia se reeleger… Então a ideia dele foi… Conseguiu ser sócio de uma firma de engenharia no Rio de Janeiro, a Macha- do da Costa, que acho que nem existe mais. Ele não podia assinar nada; ele era o engenheiro, uma espécie de eminência parda; pegou o dinheiro que ele tinha, investiu nessa empresa e era sócio dessa empresa no Rio.
Então nos mudamos para o Rio de Janeiro. Estilo do meu pai: a vida conti- nua. O que ele fez? Alugou uma casinha, um sobradinho em frente à praia do Leblon. Então, de repente, a vida continuava mesmo e da melhor manei- ra possível: em frente à praia do Leblon, nós moramos numa casinha, ma- mãe, todo mundo.
Só que nessa pequena casinha circulavam todos os ex-militantes… Militan- tes – desculpa! Não existe ex-militante. Todos os militantes, ex-deputados, todo o pessoal ligado ao governo João Goulart, principalmente, que foi o governo apoiado pelo grupo dele. E os militares sempre estiveram de olho nessa casa, porque papai era um sujeito muito alegre, muito afetivo, social- mente muito engajado. Então ele achava tudo muito engraçado. A vida era uma festa naquela casa, tanto que a famosa expressão “esquerda festiva” acho que vem um pouco daí. [riso] Se alguém não sabia o que era esquerda festiva, agora está sabendo. Era uma esquerda que tinha sido cassada em 1964 e que achava que os militares não iam longe.
Até que veio o AI-5, até que começaram a ter prisões, torturas e mortes. Quando começaram a ter prisões, torturas e mortes, meu pai achou que a coisa era séria e começou a ajudar militantes do que a gente considera “mi- litantes 68”, que era uma geração acima da minha e acho que duas abaixo da dele – Alípio, se eu não estou enganada. É isso? A tua geração. Entre eles, amigos e filhos de amigos dele que se engajaram no rapto de embaixadores, principalmente do embaixador americano. Essas pessoas não entenderam muito bem o perigo da situação e envolveram meu pai, no que meu pai dava de dinheiro, de apoio financeiro, de apoio até político, conversas, e acaba- ram envolvendo papai dentro do próprio circuito de luta armada no qual ele não estava engajado. Não sei se ele concordava, porque eu era muito criança para saber se ele concordava ou não – não cheguei a conversar isso com ele. Mas ele se preocupava, sim, com a segurança física desse grupo, porque foi
– aqui o depoimento das crianças que eram filhos dessa geração – foi um grupo que foi trucidado; alguns bastante maltratados, a maioria bastante torturada e era uma maioria de jovens, entre… acredito que entre… Quantos anos tinham seus pais?… 32, 33 para baixo… Entre 18, 15… – Ivan Seixas não está mais aqui; Ivan tinha16 anos – a 32.
Meu pai nessa época já tinha 40 anos. 41 anos recém-feitos quando ele foi preso. Meu pai faz anos dia 26 de dezembro e foi preso no dia 20 de janeiro. Foi um mês depois de fazer 41 anos.
Essa é a história do meu pai. Agora, a minha história em relação a ele… Pri- meiro, o que está sendo colocado aqui, volto a dizer: eu esqueci o que aconte- ceu. Por que eu esqueci o que aconteceu? Porque eu tinha 15 anos de idade. Eu tinha 15 anos de idade e tinha a vida inteira pela frente. Eu tinha que conviver com os meus colegas, eu tinha que conviver numa sala de aula, eu tinha que olhar para os professores, eu tinha que ir pra a praia na turma da praia, eu tinha que dançar um rock, eu tinha que ouvir uma música, e não interessava para os meus amigos, para o grupo com quem eu andava, que eu contasse a história do meu pai ou que eu tinha sido presa no DOI-CODI do Rio de Janei- ro na Barão de Mesquita. Não interessava de jeito nenhum, muito menos inte- ressava para os meus avós, os pais do meu pai, que acreditaram durante muito tempo que meu pai poderia estar vivo. Meu pai é desaparecido político. Meu avô morreu com essa certeza; meu avô morreu três ou quatro anos depois, com a certeza de que meu pai poderia voltar um dia para ele.
O trecho que acabo de citar contém alguns aspectos importantes a ser discutidos. Em primeiro lugar, cabe observar que o pedido de desculpas de
Eliana Paiva em relação ao uso da expressão “ex-militante” (“Só que nessa pequena casinha circulavam todos os ex-militantes… Militantes – desculpa! Não existe ex-militante.”) desapareceu da versão escrita de seu depoimento, que se refere à “circulação de políticos, militantes, ex-deputados, ex-ministros e de todo o pessoal ligado ao governo João Goulart” (PAIVA, 2014, p. 162). Mudanças entre versões gravadas e editadas de entrevistas de história oral são muito comuns – e esse é outro fator a considerar quando trazemos a história oral para as aulas de História. Nesse caso, a versão gravada permite que co- nheçamos a posição intelectual de Eliana Paiva sobre o assunto: para ela, não existe ex-militante.
No mesmo parágrafo, a menção à “esquerda festiva” aparece, na versão editada do depoimento, acrescida de uma alusão ao jornal Pasquim, indicando uma elaboração sobre o que havia sido dito.
A parte mais importante, a meu ver, do trecho recém-citado é a que se refere ao AI-5, logo em seguida à menção à esquerda festiva: “Era uma esquer- da que tinha sido cassada em 1964 e que achava que os militares não iam longe. Até que veio o AI-5, até que começaram a ter prisões, torturas e mor- tes”. Quando assisti a esse trecho pela primeira vez, logo pensei que mereceria uma discussão, pois sabemos todos – inclusive, certamente, Eliana Paiva – que as prisões, torturas e mortes começaram logo em 1º de abril de 1964. Ocorre que não controlamos o que é dito em entrevistas e depoimentos, assim como não controlamos o que está escrito nos livros didáticos que usamos em sala ou ainda aquilo que aparece em “vídeo-aulas” que alguns de nossos alunos e al- gumas de nossas alunas parecem adorar. Trechos como esse necessitam ser trabalhados com cuidado para não jogarmos fora o bebê com a água do ba- nho, pois, se afirmamos que, nessa passagem, a autora não foi acurada, o que garante que ela foi acurada em outras passagens? Por isso, trazer história oral para as aulas de História é tudo menos simples!
Outras passagens do trecho recém-citado também mereceriam pesquisa e discussão: Quem é Alípio, a quem Eliana Paiva se refere com frequência e que está na plateia? E quem é Ivan Seixas e por que esteve no seminário? E quem são os companheiros de mesa cujos pais tinham entre 32 e 33 anos? Deixamos assim, ou é melhor pesquisar para informar os alunos, ou pedir que eles mesmos pesquisem…? Um pouco antes aparece a expressão “rapto de embaixadores”. Podemos deixá-la assim, sem discussão, ou é melhor introdu- zir a ideia de “sequestro”? Qual é a diferença entre “rapto” e “sequestro”? Isso tem importância heurística e política nesse momento, ou podemos deixar pas- sar? E, é claro, será preciso trabalhar com os e as estudantes o que significa DOI-CODI e quais eram os aparelhos de repressão durante a ditadura.
Mas eis que essas preocupações se esvanecem quando nos deparamos com o relato de Eliana Paiva dos acontecimentos do dia 20 de janeiro de 1971, feriado no Rio de Janeiro:
Primeiro, eu me despedi dele. Papai estava sentado com o Raul Ryff, que era muito amigo dele e que morava perto de casa, jornalista que foi assessor de imprensa de João Goulart, muito amigo lá de casa. Tinha uma areazinha fora, estavam os dois sentadinhos conversando. Eu fui pra praia, dei um beijo nos dois e fui pra praia encontrar minha turma. Isso devia ser umas dez e meia, onze horas da manhã. Voltei duas horas depois e, quando eu voltei, a casa estava fechada… Eu estou entrando em casa, vejo uns homens, meio na penumbra, não entendi nada, mas a minha mãe me pega na entrada da casa para a cozinha, fala assim, com a cara muito assustada, os olhos muito arregalados: “Teu pai foi preso. Você vai tentar sair e avisar o teu tio (que é o marido da irmã caçula do meu pai – que também é a única que está viva), vai avisar o teu tio em São Paulo, o teu tio advogado”. Falei: “O quê? Tá, tá bom”. Subi… Nessa época eu jogava vôlei pelo Botafogo, eu era atleta juvenil do Botafogo, de voleibol. Eu me vesti de atleta do Botafogo, fui descendo a escada, saindo, alguém olhou pra mim, falei “Olha, estou indo jogar, não vou poder ficar” e fui saindo. Me lembro o grande alívio que eu tive… Gozado que me vêm lembranças que eu não tinha antes – vocês falando. Na hora que eu abro a porta da minha casa, que eu sinto o ar de fora… – Alípio, você deve ter sentido isso na hora em que você saiu da cadeia… – que eu sinto o ar, aquilo é de uma… Isso eu me lembrei agora, neste momento: o ar existe, eu comecei a respirar de novo. Eu me lembro que eu estava agitada, esse ar entrou com uma vida muito grande dentro do pulmão mesmo e eu fui andando…
Pensamos: Oba! Que bela passagem. Não apenas permite que acompa- nhemos os passos e as sensações da adolescente, mas o fato de ela se lembrar do ar entrando nos pulmões naquele exato momento, juntamente com outras pessoas que estavam dando seu depoimento, imprime a essa informação um caráter autêntico. E vemos a força de narrativas de experiência pessoal, con- cretas, únicas, que são capazes de nos pegar pela mão e ampliar nosso conhe- cimento sobre o passado e o presente.
Eliana Paiva conseguiu telefonar para o tio da casa de um amigo, mas esse mesmo tio, preocupado, telefonou à mãe para saber o que estava acontecen- do e, quando ela voltou para casa, os militares que estavam em sua casa já sabiam o que ela tinha feito. Uma parte do depoimento trata de como ela conseguiu “conversar” com um deles, que estava prestes a machucá-la com um cabo elétri- co. Esse relato também é interessante, pois prende a atenção dos e das ouvintes, além de trazer um elemento a mais para a análise da entrevista, pois Eliana Paiva refere-se ao sofá, no qual se sentou para conversar com o militar, o qual é o mesmo que aparece em uma fotografia muito divulgada da família Paiva. Es- tudar essa fotografia e sua difusão pode ser um ponto interessante no estudo.
No dia seguinte, Eliana Paiva e sua mãe, Eunice Paiva, foram levadas ao DOI-CODI para depoimento. Mais uma vez, o relato prende a atenção dos e das ouvintes e traz detalhes importantes para a compreensão da situação, como o cheiro da prisão e o capuz:
Eu não me lembro mais muito o que aconteceu depois dessa conversa com esse homem. Eu não me lembro mais. Isso já devia ser o quê?… Umas cinco horas da tarde? A gente foi dormir, eu não me lembro se eu vi televisão, eu não me lembro o que a gente comeu, eu não lembro mais nada; isso foi realmente apagado, eu não consigo lembrar. Eu sei que eu dormi porque eu me lembro da minha mãe me acordando e falando: “Acorda, se veste, que a gente vai ter que dar depoimento”. No dia seguinte. E me lembro de esco- lher uma roupa que me cobria o corpo, porque eu fiquei com medo, comecei a ficar com medo. Eu me lembro que era uma túnica preta que vinha até o meio do joelho e uma calça. Eu me lembro de ter jogado muitos meses de- pois disso… Acho que eu joguei no mar, joguei num lugar muito longe, por- que ficou com cheiro da prisão, por mais que eu lavasse.
Fomos colocadas num fusquinha, atrás; duas pessoas na frente. Em frente ao Manequinho4 que tem no Maracanã – eu lembro porque, hoje, cada vez que eu vejo a reforma do Maracanã, eu vejo ele lá –, pararam o fusca, nós fomos encapuzadas. Era um capuz que vinha daqui até aqui embaixo, fedorento – quer dizer, aquele capuz já devia ter sido usado para tudo – e fomos parar no DOI-CODI. Eu e minha mãe fomos separadas, eu fui inteiramente revistada, minha mãe deve ter sido também, e fui colocada numa espécie de corredor polonês, sentada. Por que corredor polonês? Cada um que passava me dava um coque na cabeça… Não é choque – na Globo sai choque, na minha entre- vista. É coque. Ou me chamavam de comunista. Chegavam no meu ouvido e me chamavam de comunista. E eu falei: “Bom, está acontecendo alguma coi- sa”. E você não consegue entrar… Enquanto adolescente, você não consegue entrar na leitura da história. Eu nunca entrei na leitura da história, na verdade. Quer dizer, aquilo não faz parte do teu mundo. O teu mundo é… sei lá, National Kid,5 naquela época, da televisão, tinha outras coisas. Não faz parte. […]
No meio da tarde, eu fui interrogada por um sujeito bastante grosseiro, um
sujeito moreno, grandão, bastante grosseiro. Conforme ele foi falando comi- go, foi me agredindo, me agredindo, e eu fui respondendo, respondendo. Foi perguntando dos amigos do meu pai, foi uma coisa que me assustou bastan- te. Mas eu pensei: é público e notório – tem que pensar muito rápido… […] E eles tinham, na minha frente, uma espécie de uma planilha, uma espécie de gráfico enorme, parecia uma página dessas A3, com gráficos com nomes de pessoas. A sensação que eles estavam tentando organizar o que estava acon- tecendo – o que, pelo menos, era saudável – quer dizer, menos maluco. Quer dizer, em vez de partir pra porrada – desculpa os termos… E estavam orga- nizando… Este senhor… Inclusive, é muito engraçado porque eu vi o progra- ma da Globo… O programa da Globo, na hora que eu começo a falar que eu entrei numa sala de interrogatório, eles botam uma sala de interrogatório linda, com uma mesa belíssima, com arquivos… Não: era uma sala desse tamanho, na verdade era debaixo de uma escada, devia ter uma escada em
cima, com uma mesa de madeira rota e mais nada, e uma porta escura. Eu vi que ele olhava praquilo e me perguntava: “Tal pessoa é amigo de seu pai?” Eu falava: Bom, é público e notório. “É, é amigo do meu pai.” “Tal pessoa…?” “É.” “Então teu pai era um grande comunista.” Eu me lembro exatamente desse diálogo. “Teu pai é um grande comunista.” Eu virava para ele e falava assim: “Olha, eu não sei se meu pai conhecia alguma coisa de Marx. Nem sei se ele era um grande comunista…” Eu me lembro dessa frase até hoje, eu não sei de onde eu tirei essa frase na hora: “Eu não sei se ele era um grande comu- nista porque eu não sei se ele conhecia alguma coisa sobre Marx.” Papai não lia, papai era um militante socialista, acho que nem Marx papai tinha lido na vida. Papai era um grande político. Eu já falei isso pra você. Quer dizer, um sujeito bastante político. Aí, foi indo, foi indo, até que, uma certa hora: “Mas se o teu pai não era comunista, você é comunista”. Eu falei: “O quê?” “É, você é comunista. Está aqui a prova”. Então ele tira de trás dele um trabalho que eu escrevi para o Notre Dame de Sion para a professora Ilma sobre a invasão da Tchecoslováquia, sobre a Primavera de Praga, que foi muito inte- ressante. Na verdade, a Primavera de Praga era uma reação contra os comu- nistas stalinistas! E eu relatava… Era um trabalho que eu adorei fazer. É um trabalho que eu fiz junto com o Ryff, quer dizer, o Ryff me franqueou as por- tas do recente Departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil, o qual ele diri- gia e em que eu encontrei coisas fantásticas, quer dizer, o que você encontra em arquivos. Quer dizer, fotografias lindas… Aí que eu fui entrando na histó- ria… Tudo o que eu via em casa, de repente eu achei aquilo fantástico. Quer dizer, como um povo tinha conseguido reagir e de uma maneira tranquila, vamos dizer, em termos, a um regime soviético que era terrível. As discussões lá em casa não eram essas, mas eu começava a pegar extratos dessa discussão e tentar eu mesma entender o que era e o que não era. […]
Na hora em que ele colocou esse trabalho na minha frente, aí eu tomei um
susto. Eu me lembro que eu dei um pulo da cadeira e falei: “Hum, e agora? Agora eu fui pega.” E ele, com um sorriso – aquele sujeito, que era um bru- tamontes –, com um sorriso que parecia que ele tinha comido um doce. Eu olhei pra ele e falei assim: “Bom, esse trabalho é meu”. Depois eu tentei lembrar onde é que eles tinham pego isso. Eu tinha uma gaveta dentro… Nós tínhamos gavetas – eu e minha irmã dormíamos no mesmo quarto – com trabalhos de escola. Eles reviraram a casa toda. A gente não percebeu isso, eu não me lembrava disso – que eles tinham revirado a casa toda.
Bom, aí, por sorte ou por azar, entra nessa sala de interrogatório um outro militar – não se sabia as patentes, não se sabia nomes, eles andavam com placas de metal no peito, à paisana – vira-se para o monstro na minha frente e fala: “Ô, cirurgião, nós temos um trabalho para você”. Aí encerra-se o interrogatório. Imediatamente ele levanta, eu vou de novo para o corredor e, nesse momento – nessas horas, sempre quando eu dou esses depoimentos, eu começo a chorar, mas acho que agora já passou –, começam as torturas na sala ao lado. Senhores e senhoras, pessoas que já passaram por isso, Alí- pio e Adriano, para uma criança de 15 anos de idade ouvir “Pelo amor de Deus, parem com isso!”, repetido em sequência, foi a coisa mais alucinante que eu já ouvi na minha vida. Até outro dia me parecia que a coisa estava enterrada. Ela fluiu… Por isso que eu digo: aos 15 anos você tem maneiras
de escapar da loucura humana. Quer dizer, aquilo ficou como filme na mi- nha cabeça. Quando eu revelei, deixou de ser filme. Agora, voltou um pouco a ser filme. Então você vê que eu não me emociono mais com isso. Mas a primeira vez que contei isso, eu não parava de chorar – e aos urros, de choro. Porque ouvir tortura vedada – inclusive eu estava vedada num corredor –, 20 de janeiro, verão no Rio de Janeiro, dentro do DOI-CODI, foi a coisa mais enlouquecedora do mundo. Aí eu comecei a chorar, não parava de chorar… Não, nesse momento, não, eu fiquei meio estática: agora eu sei onde eu estou, agora eu acho que eu sei onde eu estou. Será que esse negócio não vai parar nunca? Não parava, não parava, e a coisa piorava, piorava. Ou seja, o tal do “cirurgião” tinha ido fazer a sua torturazinha cotidiana.
Nisso também tinham dois rapazes na minha frente. Toda vez que alguém passava, chutava os meninos. Chutava, acho que devia ser naquele lugar, porque doía muito, porque eles davam berros e uivos tremendos.
A comparação entre o depoimento gravado (PAIVA, 2013) e o editado em livro (PAIVA, 2014) pode ser um investimento interessante. Em relação ao trecho recém-citado, cabe observar que a versão editada ajuda a entender o que seria aquela “espécie de corredor polonês”: “Fui colocada em uma espé- cie de corredor polonês, sentada em uma cadeira de madeira. Por que chamo de ‘corredor polonês’? Porque cada um que passava me dava um coque na cabeça ou me chamavam de comunista” (PAIVA, 2014, p. 164).
Por outro lado, as menções ao programa da Globo desapareceram da versão editada. Para as aulas de História, isso pode ser um material precioso, pois sabemos que depoimentos são comuns em programas de televisão e na mídia em geral. Quando trechos de entrevistas aparecem justapostos a outros elementos e métodos de apresentação, acabam influenciando as formas de per- cebermos o passado. Assim, é muito interessante a observação que Eliana Pai- va faz da discrepância entre a sala de interrogatório que ela vivenciou e aquela que apareceu no programa da Globo. Seria muito interessante conseguir tra- zer esse programa à sala de aula para discutir as diferenças. Discutir o uso de entrevistas e depoimentos em documentários ou outros programas é muito importante para que nossos alunos e nossas alunas aprimorem seu olhar crítico em relação a eles, perguntando-se sobre as condições de enunciação dos depoi- mentos e as modificações introduzidas na produção dos programas (edição das entrevistas, acréscimos de músicas, sons de fundo, imagens, filmes, etc.).
A menção ao trabalho sobre a Primavera de Praga é um presente para o professor e a professora de História, pois reforça o valor de trabalhos de pes- quisa bem feitos, permite discutir o que foi a Primavera de Praga, traz a reali- dade da jovem Eliana Paiva para perto das turmas.
Já foi possível perceber que estamos diante de uma fonte atraente, que traz experiências concretas e, com ela, a possibilidade de ampliação do conhe-
cimento sobre a ditadura e a vida nos anos 1970 – basta ver que Eliana Paiva teve de ir à casa de um amigo para telefonar para o tio em São Paulo, coisa que hoje possivelmente seria muito diferente. A fonte permite que conheçamos algumas coisas, mas não outras, e isso porque nosso conhecimento sobre o passado e o presente é mediado por fontes e evidências, as quais não trazem nunca resposta para tudo (mesmo porque não sabemos exatamente o que seria “tudo” sem antes despertarmos nossa atenção para o que está faltando). Há, portanto, elementos que permanecem sem explicação e, uma vez sendo identi- ficados, podem ensejar novas pesquisas.
Sabemos que é sempre bom tomar entrevistas de história oral juntamen- te com outros documentos na análise de acontecimentos do passado e do pre- sente (ALBERTI; PEREIRA, 2008). O caso Rubens Paiva está bastante docu- mentado, e um trabalho com o depoimento de Eliana Paiva pode ser ampliado e enriquecido com outras fontes, bem como com a leitura do livro Feliz ano velho, de autoria de seu irmão, Marcelo Rubens Paiva, cujo acidente em 1979 foi mencionado no final do depoimento. No caso desse exemplo, aliás, pode ser até interessante comparar duas modalidades de narrativas de experiência pessoal: a autobiografia Feliz ano velho e o depoimento de Eliana Paiva.
Trabalhar narrativas de experiência pessoal juntamente com outros do- cumentos pode iluminar suas especificidades. Os alunos e as alunas podem perguntar-se, por exemplo, quais informações trazidas pelas narrativas de ex- periência pessoal poderiam também ser encontradas em livros didáticos e quais não poderiam. E principalmente: o que aprendemos que só poderia ter sido contado por essa pessoa? Finalmente: aquilo que aprendemos nos ajuda a co- nhecer a história? Ou seja, até que ponto histórias de indivíduos contribuem (ou não) para o conhecimento de histórias das sociedades?
O depoimento de Eliana Paiva estende-se ainda sobre um segundo e um terceiro interrogatórios, a noite passada na prisão e sua libertação no dia se- guinte, enquanto sua mãe permaneceria onze dias detida. No final, ela ainda traz uma informação pessoal, que, como sugerido no parágrafo anterior, pode ajudar-nos a conhecer a sociedade brasileira. Ela começa se referindo a uma sugestão trazida por pessoas que a antecederam na mesa.
A Camila sugeriu, e o Paulo, qualquer coisa de museu. Quando eles começa- ram a falar… Nunca me pareceu a ideia de um museu tão importante. Museu do Holocausto. Eu, quando eu tive… Eu tive um estresse muito grande muitos anos depois. Quando eu tive esse estresse, eu apaguei, e o que me vinha eram lembranças de holocausto, que eu nunca vivi e que, depois, inclusive, eu fui ver em filmes. Quer dizer, uma coisa de memória coletiva. Foi numa época em que eu trabalhava muito, devia ter vinte e… Foi depois do acidente do meu irmão que a coisa ficou meio pesada em casa, que eu tive um bruto de um
estresse. Chegaram a me dar remédio, eu fiquei meio que delirando uns dois dias e passou. Mas o que vinha, nesses delírios, eram exatamente memórias de judeus e de holocausto que eu não deveria ter porque não sou judia. Então eu me lembrei disso com você falando. Que é o que eu vi no DOI-CODI. Eu vi um campo de concentração ali dentro. Então eu sugiro que, desta belíssima semana que vocês estão organizando, que saia a ideia – Adriano Diogo, eu te dou essa ideia de mão beijada – da construção de um museu da ditadura, ou um museu da repressão, ou um museu que conte histórias das pessoas…
Nas faculdades de história, aprendemos, logo nos primeiros semestres, que a história nacional é, na verdade, uma “invenção”; que a “identidade nacional” muda com o tempo, dependendo daquilo que é valorizado em determinado mo- mento; que os feriados e heróis e heroínas também são objeto de disputa; que os símbolos nacionais têm história, etc. No ensino básico, contudo, muitas vezes não temos tempo nem condições de trazer essas questões para dentro das nossas salas de aula e, se não tomarmos cuidado, corremos o risco de nos surpreender, repe- tindo, por exemplo, a estranha ideia de que o “Brasil” “começou” em 1500… Nos últimos anos, ficou cada vez mais difícil para professores e professoras de História buscarem registros que coloquem em xeque a “história única”, trazerem para as salas de aula a discussão sobre a memória nacional e abrirem espaço para a discus- são sobre as disputas de memória em torno da ditadura militar.
Contudo, se não abrirmos cuidadosamente espaço para essas discussões e para fontes efetivas, atraentes e estimulantes sobre a ditadura militar e outras questões espinhosas como o racismo, o que será de nossos e nossas estudantes? Hoje temos, no Brasil, uma única instituição de memória dedicada ao período da ditadura militar, o Memorial da Resistência, inaugurado em 2008 na cidade de São Paulo nas instalações do antigo Departamento Estadual de Ordem Política e Social (sobre o assunto ver ALBERTI, 2018). Na Alemanha, talvez não haja cidade que não tenha um único memorial dedicado à reflexão sobre a ditadura nacional-socialista. Em nossos delírios, seja dormindo, seja na vigília, é capaz de, como Eliana Paiva, termos mais lembranças do holo- causto do que das graves violações de direitos humanos cometidas em nosso
país ao longo da história.
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SHOPES, Linda. Making Sense of Oral History. History Matters. The U.S. Survey Cour- se on the Web. Disponível em: <http://historymatters.gmu.edu/mse/oral/>. Acesso em: 14 maio 2020.
SOARES, Inês Virginia Prado. “Justiça de transição”. Dicionário de direitos humanos. Escola Superior do Ministério Público da União. Disponível em: <http:// escola.mpu.mp.br/dicionario/tiki-index.php?page=Justi%C3%A7a+de+transi%C3% A7%C3%A3o>. Acesso em: 15 maio 2020.
STAMPA, Inez; RODRIGUES, Vicente (org.). Ditadura e transição democrática no Bra- sil. O golpe de Estado de 1964 e a (re)construção da democracia. Rio de Janeiro: Arqui- vo Nacional, 2016.
1 Verena Alberti é professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) na área de ensino de História e professora de História na Escola Alemã Corcovado no Rio de Janeiro. É doutora em teoria da literatura pela Universidade de Siegen, Alemanha, e pós-doutora em ensino de História pela Universidade de East Anglia (Norwich, Reino Unido) e pela Universidade de Londres. Endereço institucional: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj); Rua São Francisco Xavier, 524, Pavilhão João Lyra Filho; 12º andar, sala 12.019, Bloco B, Maracanã, CEP 20550-900; Rio de Janeiro, RJ.
2 Um apanhado dessas iniciativas pode ser encontrado na página <http://www.dhnet.org.br/ verdade/index.htm>. Acesso em: 15 maio 2020, e também em HOLLANDA; ISRAEL, 2019, e MÜLLER; FAGUNDES, 2014.
3 HORN, 2014, considera que não há necessidade de professores conduzirem entrevistas a não ser que seja uma política da escola e que haja tempo para isso.
4 Eliana Paiva possivelmente está se referindo à estátua de Bellini, capitão da seleção brasileira em 1958 e 1962. Novamente será preciso ponderar se o equívoco merecerá ou não atenção de docentes e discentes nas aulas de História.
5 O professor ou a professora poderá avaliar se “gasta um tempo” explicando a série japonesa dos anos 1960. O tempo “gasto” poderá ensejar comparações entre séries de hoje e de outrora e um mundo de outras possibilidades. Temos tempo para elas? Perderemos o foco com isso?
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Parte 3
Fontes de pesquisa para
a pesquisa em ensino de História
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Livros didáticos de História: consolidação e renovação de um objeto de pesquisa
Itamar Freitas de Oliveira1 Margarida Dias de Oliveira2
No período de 2004 a 2020, tratamos de problemas e estratégias de in- vestigação sobre história, produção, avaliação e uso dos livros didáticos de História (LDH) no Brasil, e é isso que discutiremoss neste capítulo.
Partindo das demandas apresentadas pelos organizadores, empregamos nossa experiência não em um sentido exclusivamente pessoal, mas como a trajetória de dois professores formadores de profissionais de História e Educa- ção e pesquisadores do campo do ensino de História que delinearam suas es- colhas a partir das necessidades de trabalhos de ensino e extensão relaciona- dos à construção de políticas públicas.
Quando nos referimos às nossas participações e contribuições em polí- ticas públicas, não estamos de forma alguma subestimando a participação dos outros sujeitos que formaram o coletivo. Se enfatizamos a nossa participação nas políticas públicas, é para afirmar e demonstrar o modo dialético com o qual tratamos as esferas do ensino, da pesquisa e da extensão. Enfim, a oferta de disciplinas e/ou projetos de ensino, a elaboração de projetos de pesquisa, a orientação de graduandos, mestrandos e doutorandos e a coordenação de pro- jetos de extensão em constante reciprocidade foram cumpridas em interação com a nossa participação na avaliação e elaboração de políticas públicas.
Além de inscrita entre a atividade acadêmica e as políticas públicas (e, talvez, por isso mesmo), essa nossa reflexão possui outra característica: é um trabalho de “como se faz” pesquisa sobre LDH. O modo como entendemos esse “fazer”, contudo, difere de outros profissionais. Teoria e Metodologia da História ou Teoria da Pesquisa Histórica não é um saber que se sustenta por si mesmo, apesar de a disciplina ser ministrada dessa forma na maioria dos cur- sos de graduação. A reflexão sobre um objeto, sobre os recortes que são reali- zados e as justificativas fornecidas para suas pesquisas, entre outras questões, é o que leva à escolha de um método (ou seu inverso), ações diretamente rela- cionadas à demanda que move o pesquisador. Isso significa dizer que anunciar “como se faz” ou “como foi feito” implica declarar as razões coletivas e pesso-
ais, as crenças, os engajamentos político-partidários. Afinal de contas, eles determinam grande parte de nossos empenhos, acertos e erros.
Por causa desse entendimento sobre Teoria e Método, o capítulo foi estruturado da seguinte maneira: relatamos nossa experiência por meio de questões, procedimentos, resultados e consequências das nossas ações de pes- quisa. Por isso expusemos e discutimos pesquisas autorais ou orientações que trataram sobre representações; discorremos sobre as pesquisas balizadas pela fundamentação teórica dos livros didáticos; as que executaram revisões de li- teratura e análises em perspectiva histórica; as que utilizaram os princípios e processos de avaliação do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD, como questões ou fontes; e os trabalhos que discutiram propostas de nomen- clatura e propunham a divulgação da produção científica da área. Nas consi- derações finais, apresentamos novos desafios e motivações para o engajamen- to na pesquisa sobre o livro didático no Brasil.
Representações nos livros didáticos de História
Nossas empreitadas de pesquisa com o livro didático não iniciaram com o exame de representações. Aliás, como verão adiante, fomos bastante críticos com a prática da “historiografia da falta”. Assim mesmo nos engajamos e até orientamos trabalhos que descreviam como os LDH abordavam determina- dos sujeitos ou períodos históricos. Estudamos representações construídas sobre História da América, História dos Indígenas, História Medieval e das Ima- gens.3 A demanda provinha de nossa simpatia e, evidentemente, do engaja- mento crítico nas bandeiras de movimentos sociais. Também provinha da ne- cessidade de entender o livro para além do texto no caso das imagens. O modo de atendê-las foi, em geral, o emprego da análise de conteúdo, comparando livros e/ou coleções sincronicamente.
Examinamos, então, critérios que envolviam as propostas curriculares do tipo integrado, intercalado, justaposto, temático e convencional, como tam- bém orientamos trabalhos que visavam a uma melhor compreensão do modo como eram construídas.4 Também usamos para triagem as coleções de maior circulação ou coleções de menor circulação, comparando entre estados ou entre regiões. Além disso, comparamos coleções e/ou livros diacronicamente: antes da existência do PNLD e após sua implementação em momentos diferentes do programa desde 1985.
As primeiras representações de História da América nós examinamos nos livros didáticos de História Regional (LDHR), que circulavam em 26 estados brasileiros entre 2006 e 2009, ressignificando o região e o regional
(L. Cunha, P. Bourdieu) e representação (R. Chartier). O resultado indicou-nos que apenas dois eventos realizavam uma representação residual: Guerra do Paraguai e Descobrimento da América. A bibliografia especializada não era empregada, e as inserções foram feitas apenas nos LDHR dos estados frontei- riços. Além disso, detectamos um desvio até hoje inexplicado: enquanto os textos principais citavam Cristóvão Colombo, os exercícios citavam Américo Vespúcio e Vasco da Gama.5
Quanto à história indígena, percebemos que ela focava, isoladamente, os textos escritos e, isoladamente, os textos iconográficos. Empregando con- ceitos da nova história indígena (M. Coelho, L. Grupioni) e a ideia de indíge- na (J. M. Monteiro), constatamos que no texto iconográfico as representações eram próximas quanto ao espaço na narrativa em número de unidades. Come- çavam a distanciar-se na presença por períodos. No escrito, predominava a Colônia. No iconográfico, a distribuição das representações indígenas era equi- librada entre Colônia e República. O escrito explorava as denúncias (terra, genocídio, etnocídio), e o iconográfico privilegiava os modos de vida. Em ambos encontramos ambiguidades, contradições, erros de informação e lugares co- muns.6 Mediante orientação de mestrado, constatamos que a literatura consi- derava conservador um livro que empregava o quadro da Primeira Missa no Brasil. Nos livros didáticos, contudo, encontramos ressignificações operadas pelos autores na leitura da imagem. Assim, demonstramos a arbitrariedade do signo (F. Saussure) na construção da representação indígena via imagens clás- sicas.7
Com as representações sobre Idade Média a atitude foi similar. Estáva- mos interessados em testar a hipótese da representação equivocada sobre o período nos LDH do ensino fundamental. Era lugar-comum afirmar que a Idade Média estava representada como “Idade das Trevas”, período de deca- dência das artes e da ciência. O resultado surpreendeu até nós mesmos que seguíamos a opinião majoritária e reforçou um hábito centenário salutar para o ofício: duvidar sempre, até mesmo dos pares especializados em História da Idade Média. A orientação de graduação indicou-nos, finalmente, que a Idade Média era vista como um momento de perdas de conhecimentos de algumas áreas, mas de ganhos em outras, como qualquer período histórico. O que se evidenciava era o eurocentrismo, mas não o estereótipo. É provável que esse caráter tenha se aperfeiçoado hoje, quando distamos duas décadas da apresen- tação daquele trabalho de conclusão de curso.8
Além de Idade Média, indígenas e América e sob demandas dos movi- mentos sociais, recém-contemplados por inserções nos editais do PNLD, investigamos as representações sobre famílias e homossexuais. As famílias
(C. Ghasarian) eram tratadas como sujeitos históricos, agindo, sofrendo e sub- metidas às ideias de bem e mal. Suas representações oscilavam entre aborda- gens de luta de classes segundo as ideias marxianas e de piedade e dignade humana, tributária da vulgata cristã. Estimulados pelos conceitos de identida- de (C. Lévi-Strauss; S. Hall), constatamos a enorme assimetria entre a família do nosso tempo presente, que pode se constituir como família monoparental ou com diferentes arranjos, e a família do tempo presente narrado nos LD, que era tratada como elemento natural, nuclear, formada por pares heterossexuais que geram filhos.9
No que diz respeito à representação dos homossexuais e ao combate à homofobia (T. Lionço), constatamos que os livros didáticos do ensino funda- mental ampliaram a representação dos homossexuais em eventos como o na- zismo e a contracultura. A inserção ocorria em termos de exercícios, imagens e novos termos como “homossexual”, “homofobia”, “orientação sexual” e “grupo gay”. A identidade (T. Silva) projetada sobre os sujeitos, contudo, osci- lava entre “vítimas indefesas” (quando se tratava principalmente do nazismo), indivíduos “determinados”, “questionadores” e “fortes” (quando o tema era a contracultura) e novamente vítimas (em relação ao final da década dos anos 2000), sugerindo uma regressão em termos de sensibilidades e de valores.10
Fundamentação teórica dos livros didáticos de História
Além das representações equivocadas e das sub-representações, exami- namos a fundamentação teórica potencial ou realmente empregada na escrita dos livros didáticos. Quanto à natureza do LDH, ele efetivamente era um pro- duto diferenciado em relação aos manuais distribuídos no ensino superior? Existiria um modelo cientificamente correto de orientação para a escrita do LDH? Em que medida os autores empregavam teorias da aprendizagem, teo- rias linguísticas e teorias da História na efetivação de seus projetos? As univer- sidades poderiam contribuir para a melhoria da produção? Essas demandas provinham, em sua maior parte, dos critérios de qualidade do PNLD, que foram se modificando, e à medida que acompanhavámos a política pública, necessitávamos de mais estudos para embasar nossas ações.
A estratégia comum foi a análise de conteúdo (L. Bardin), conceito a conceito, tese a tese, mediada pela comparação entre as prescrições e as reali- zações dos textos introdutórios destinados ao professor, aos textos principais, complementares e aos exercícios. Os procedimentos, contudo, foram adequa- dos às necessidades. Em determinado momento, chegamos a abusar dos mo- delos oferecidos pelos que estudavam textos, estratégias textual-discursivas e
sintaxe, processos sintáticos, problemas respectivamente caros à Linguística Textual (L. A. Marcuschi) e à Linguística Textual Aplicada (O. Garcia). Em outros, a busca foi mais simples: apenas capturar palavras, inventariar breve- mente suas histórias e colher os significados em uso nos LDH.
Assim trabalhamos quando a demanda foi conhecer a natureza dos exer- cícios e as suas efetivas relações com os textos de apresentação. Percebemos, então, que os exercícios dos Livros Didáticos Regionais – LDR eram marca- dos pela ênfase em itens do tipo “responda à questão”, focando habilidades de busca da informação e restrito uso de habilidades analíticas e avaliativas.11 Assim também procedemos quando testamos a hipótese circulante de que os livros didáticos eram escritos em linguagem infantil (para não dizer infantili- zada). As investigações indicaram-nos que os livros não obedeciam padrão em seu processo linguístico de orientação do leitor na produção de sentido. As inserções para exemplificar ou justificar eram raras. As constituidoras de co- nhecimento prévio eram usadas em todas as aberturas de capítulos. E as inser- ções que exemplificavam ou ilustravam enunciados anteriores foram mais fre- quentes em todos os LDR.12
A hipótese demonstrou-se falsa também porque constatamos que os au- tores construíam períodos com mais de uma oração (coordenada, subordinada e mista) e não apenas oração absoluta. Os tempos do mundo narrado (pretérito perfeito, imperfeito) eram os mais empregados. Pobre em articuladores textuais lógico-semânticos e argumentativos, os textos ofertavam parágrafos com frases justapostas umas às outras. Enquanto nos anos iniciais predominavam os perío- dos simples e compostos por coordenação, no ensino médio predominavam os compostos por subordinação. No que diz respeito aos operadores argumentati- vos, contudo, não havia diferença expressiva. Os livros empregavam o conectivo “e” na messma proporção. No ensino médio, raramente empregam o “embora” e “apesar de”.13 A lição da pesquisa foi a sinalização para o setor produtivo de que a infantilização linguística deveria ser abolida dos LD e coleções, pois ela representava mais obstáculo do que estímulo ao letramento.
As questões afeitas aos domínios da linguística e da pedagogia não re- percutiram no meio. As relacionadas à teoria da História gozavam de maior prestígio. A mais candente, acreditamos, foi a que envolveu a difusão da Teo- ria da História de Jörn Rüsen, no que diz respeito ao modelo de livro didático que ele difundiu. Muita tinta gastou-se contra e a favor do filósofo alemão. Para nós, o que importava era conhecer a sua teoria, por um lado, e combater a nociva tentativa de transformar o seu modelo em prescrição de política pú- blica para a área. Por isso empreendemos várias análises sobre o valor dos seus conceitos de cultura histórica e livro didático. Nesses textos, apontamos três
limitações da referida teoria: a conciliação da pluralidade teórico-metodológi- ca dos programas de formação inicial e da pós-graduação com a teoria uni- versalista de Rüsen; a concilição entre as capacidades mentais e a ideia de consciência em Rüsen e as capacidades mentais e a ideia de consciência mais popular no Brasil, a de P. Freire (empregada, equivocadamente, como elemen- to combinável); e a tentativa de tomar a teoria sistematizada nas publicações de Rüsen como valor principal para a avaliação do livro didático do PNLD.14 Um dos desdobramentos dessas leituras foi a investigação sobre o valor heurístico das categorias de humanidade e igualdade (abonadas na Teoria da História de Rüsen). Na época, pretendíamos observar possibilidades de apro- priação da teoria alemã e compreender os modos pelos quais essas categorias eram apresentadas nas narrativas dos livros didáticos, tendo em vista ser parâ- metro eliminatório, presente no Edital do PNLD. No final da pesquisa, em- preendida em projeto de iniciação científica, constatamos a necessidade de “traduzir” esses conceitos em valores específicos. Examinando o fenômeno da capoeira no livro didático, percebemos a importância das categorias para a compreensão das disputas geradas em processos históricos específicos na so-
ciedade brasileira.
Revisões da literatura e análises em perspectiva histórica
As revisões de literatura são um procedimento básico em qualquer ativi- dade de pesquisa. Em nossa trajetória, ganharam um peso maior, dado o espí- rito adverso ao LD, principalmente em programas de pós-graduação em His- tória. Assim, necessitávamos de dados e resultados de análises para convencer os colegas da História sobre a plausibilidade do LD como objeto de pesquisa e tentar pautar, junto aos colegas da educação, a importância de excluir das suas pesquisas os vícios dos historiadores por formação. Assim, empreendemos revisões e, em paralelo, pesquisas sobre a história do LD. As fontes das revi- sões eram, dominantemente, teses e dissertações, a até então única revista es- pecializada (Revista História e Ensino da Universidade Estadual de Londrina – UEL), os raros dossiês sobre ensino de História e as coletâneas em livro. Para a história do LDH, trabalhamos com material arquivístico, legislação, notícias e artigos de periódicos coetâneos.
Os procedimentos foram idênticos aos já anunciados no tópico anterior, embora tenhamos ampliado bastante o modo de explorar o livro didático a partir das leituras de Alain Choppin e Egil Borre Johnsen. Entre as categorias que utilizamos, acrescentadas na segunda metade da década passada, destaca- mos: livro didático ideal (J. Rüsen), pedagogia histórica (H. Herry), disciplina
escolar (A. Chervel), livro didático (K. Munakata), transposição didática (Y. Chevallard).
As primeiras interrogações à literatura eram muito gerais, já que buscá- vamos construir um perfil da área. E as respostas confirmavam, inclusive, as hipóteses de colegas de que o livro didático era um instrumento permissivo, que contava mentiras, que estava diretamente associado a um ensino tradicio- nal, embora tenhamos sempre chamado a atenção de que esse adjetivo nunca foi problematizado e definido. Eram sobretudo análises extremamente polari- zadas sobre o livro didático, apontado como a fonte de todos os males: do ensino tradicional, do erro, do preconceito, do estereótipo e da ideologia. Pou- cas vezes, o LDH foi visto como um material que deveria ser utilizado “mes- mo quando era ruim” para ensinar a crítica aos alunos, mas sempre ressalta- das as dificuldades para uso, seja pela dificuldade das famílias em comprar ou pelo fato de que a escolha pelo professor na escola pública não era respeitada ou, ainda, a quantidade insuficiente deles para os alunos.
Era esse tipo de conclusão que estava chegando aos professores dos en- sinos fundamental e médio. A experiência de sala de aula e do uso efetivo do livro didático fazia-nos entender que as nuances entre esses dois pensamentos deveriam ser examinadas e, principalmente, que o livro didático não era o ponto de partida para entender as dificuldades de formação de professores e os problemas constatados no “chão da escola”. Esse objeto cultural poderia ser um grande catalisador de questões, mas que emergiam das relações de sujeitos e experiências históricas na escola e em outros lugares. Por isso passamos a incentivar nossos orientandos e também nos propusemos a discutir temas até então naturalizados como ensino tradicional, livro didático, estudos sociais, interdisciplinaridade, conteúdos da disciplina História e divulgação do conhe- cimento histórico.15
As revisões da literatura geraram também exames sobre a experiência brasileira com LDH de cunho retrospectivo, em que a expressão “historiogra- fia didática” foi cada vez mais empregada em nossos trabalhos. Desses inte- resses emergiram textos que empregavam livros didáticos como fontes de si mesmos (em análises de conteúdo) e, principalmente, como fontes do ensino de História em seus vários modos de realização.16 De Sergipe constatamos, por exemplo, a apropriação de princípios escolanovistas, sobretudo a adequa- ção da linguagem a um ideal aluno, a reprodução do ambiente familiar do aluno e o uso de desenhos, como também a difusão de gêneros secularmente conhecidos, a exemplo da corografia17, que nada de escolanovismo mantinha em sua forma e conteúdo.18
Da antiga capital federal, Rio de Janeiro, ressignificamos indícios so- bre as práticas de ensino de História e percebemos que fazer LDH conferia prestígio suficiente para ser aceito como sócio do IHGB e não o contrário.19 Percebemos ainda que ensinar História do Brasil no século XIX, prescrito pelo LDH, era fazer indagações sitemáticas, sucessivas e cumulativas ao alu- no do primário via perguntas e respostas que não chegavam à maiêutica so- crática.20 Já no primeiro terço do século XX, ensinar História era combinar estratégias socráticas e estratégias psicológicas dos testes (E. Thorndike) e estimular a construção de quadros sinópticos e comparativos que ampliariam as habilidades da compreensão histórica: analisar, sequenciar, ordenar, compa- rar, fornecer as ideias de mudança e simultaneidade e sintetizar.21 Ensinar História prescrito pelo LDH era, por fim, difundir orientações mistas sobre o processo histórico da história da Humanidade ou da História Universal (Kant/Hegel, Agostinho/Buckle), mutilar ou adaptar concepções de teoria da História pregadas no IHGB22 e combater o materialismo com modelos do Brasil e de História Universal, que mesclavam filosofias especulativas da His- tória (Bossuet/Hegel).23
Princípios e processos de avaliação do LDH
Revisões de literatura, análises em perspectiva histórica, fundamenta- ção teórica na cadeia produtiva e estudos sobre representações foram ativi- dades demandadas pelas funções acadêmico-políticas ao longo desses 16 anos. Contudo essas mesmas demandas geraram ações propositivas no sentido de avançar para o aperfeiçoamento de tecnologias sociais em um domínio pra- ticamente intocado no Brasil, em se tratando de ensino de História. Elas geraram trabalhos analíticos sobre os processos registrados em documentos oficiais e, em paralelo, obrigaram-nos a comparar o que se pensava e fazia à época, inclusive no Ministério da Educação (MEC), em termos de princípi- os e processos de avaliação.
Um parâmetro de comparação foi a prática documentada dos intelectuais dos anos 1930. Na Comissão Nacional do Livro Didático, o “reconhecido valor moral” e a especialização na matéria relativa ao componente curricular eram os critérios de recrutamento dos avaliadores. Quanto aos critérios de julgamento, eles eram prescritos pelo Estado, que privilegiava o apuro da lin- guagem, a informação técnico-científica, o emprego de conceitos básicos da pedagogia e o respeito às normas pedagógicas expedidas pelo Estado.24 Tam- bém percebemos que os maiores erros dos LDH estavam no tratamento da linguagem e, em proporção quatro vezes menor, os erros de informação his-
tórica, inadequação da linguagem, deficiências didáticas, tipográficas e ma- teriais.
Sobre a primeira década do século XXI, o trabalho principal foi reco- lher experiências, inclusive as datadas do passado imediato, dos processos de escolha ocorridos entre 2004 e 2015. A necessidade de avaliar e a determina- ção explícita de universalizar o livro didático e nacionalizar o PNLD, com a diversificação da Comissão Técnica e dos avaliadores, pode parecer pouco, mas, se lembrarmos que até 2004 todos os avaliadores dos livros didáticos de História eram dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, com exceção de uma professora do Paraná, podemos ter ideia do impacto desta decisão política.
Chamou nossa atenção o fato de que nenhuma das equipes anteriores se prontificou a relatar suas experiências. Quando indagávamos sobre as difi- culdades e as adequadas formas de agir, infelizmente, sem exceção, os antigos participantes afirmavam: “nós usamos a ficha de avaliação”. Uma resposta óbvia, pois a ficha era o instrumento oficial. Como uma politica pública, con- tudo, entendemos que era necessário registrar e publicizar o processo. Por isso, em 2014, publicamos um capítulo de livro no qual deixamos registrados todos os princípios e as etapas de avaliação no PNLD, como também relatamos ações construídas no período de 2004 a 2015 por meio de um relato de memória.25
Ao longo da década, acompanhamos as alterações nos editais e procu- ramos entender os sujeitos que dialogavam sobre a avaliação e como executa- vam essas trocas, indo além da análise da prática já estruturada em: lançamen- to do edital, análise do suporte, análise da documentação, treinamento dos pareceristas, análise duplo-cego, confronto de avaliações e consolidação, ava- liação dos resultados por grupos focais de professores do básico.26
Esse olhar sobre o passado e o presente da avaliação no Brasil também nos levou a reconhecer as principais insuficiências do LDH do nosso tempo e a propor análises sobre os impactos no ensino a partir dessa experiência. A padronização é, de longe, o maior problema. Paradoxalmente, a cristalização ocorre por causa da legislação inclusiva, mas também é provocada pela inape- tência de editores e autores, que não tiram proveito da liberdade prevista nos editais lançados pelo governo federal. A padronização é explícita na indife- renciação dos LDH destinados aos anos finais do ensino fundamental e ao ensino médio e entre os LDH projetados para a escolarização regular e o ensi- no de jovens e adultos, na manutenção da História magistra vitae nos capítulos iniciais do livro do aluno, na apresentação de uma diacronia equívoca de his- toriografia ocidental que mistura referências da escola metódica, do marxis- mo, dos Annales, da Nova História/História social inglesa e da Nova História
Cultural e na recusa em selecionar e cortar conteúdo substantivo da versão anterior.27
Flagrar a cristalização do LDH, contudo, não implicava mudança na política pública, porque o próprio PNLD vivia sob ataques diversos, mesmo entre pesquisadores do ensino de História. Foram várias as declarações de que a avaliação deveria ficar na alçada do professor, de que o dinheiro dos livros deveria ser distribuído entre as escolas para que elas decidissem que materiais comprar e assim por diante. Essas acusações obrigaram-nos a examinar prin- cípios e procedimentos de avaliação nos Estados Unidos da América e na Fran- ça, lugares prestigiados pela academia brasileira, e ainda dois modelos de ges- tão da educação, respectivamente descentralizado e centralizado. Interroga- mos ainda sobre o papel dos secretários de educação, diretores de escola, téc- nicos das secretarias estaduais e municipais de educação, técnicos do MEC, professores, editores, autores, legisladores, ministérios públicos, alunos, movi- mentos sociais na construção das políticas públicas para o LDH.28
A questão gerou, inclusive, a orientação de uma dissertação de mestra- do sobre as relações entre os sujeitos históricos e os elementos que estrutura- ram o espaço escolar (M. Certeau) no momento de produção dos critérios de qualificação dos livros didáticos no PNLD. Observando as tensões políticas inerentes ao período imediatamente posterior à ditadura civil-militar e exami- nando as publicações Definições de Critérios para Avaliação dos Livros Didáticos – Português, Matemática, Estudos Sociais e Ciências/ 1ª a 4ª (1994) e Recomendações para uma política pública dos Livros Didáticos (2001), constatamos que o modelo de livro didático hegemônico no país é o que se consolidou pela tradição esco- lar por meio do PNLD. Também constatamos que o próprio PNLD necessita retomar o diálogo com quem faz a escola, sobre o que efetivamente acontece na escola.29
Na busca por experiências extranacionais, reunimos especialistas em publicação bilíngue que trataram de iniciativas similares: Para que(m) se avalia? Livros Didáticos de História e Avaliações (Brasil, Chile, Espanha, Japão, México e Portugal). O resultado desse encontro demonstrou que a experiência nacional é única. No Brasil, é o professor quem faz a escolha. O país também oferece livros regionais e contempla, no mundo, em um só programa a maior quanti- dade de alunos e de escolas.
A coletânea também demonstrou que a pesquisa brasileira na área é endógena – como de resto é todo o campo do ensino –, o que causa a hipercrí- tica sobre a experiência brasileira, quando outros países passam por proble- mas semelhantes aos nossos. A ausência de uma historiografia comparada afe- ta até mesmo a distorção da experiência nacional. Como as casas editoriais, os
colégios modelos, as instituições formadoras pioneiras no ensino superior de História estão localizadas no centro-sul do país, as singularidades das demais regiões ficam obscurecidas.30
Em outra iniciativa de análise do extranacional, constatamos que os critérios eram, dominantemente, os conhecimentos pedagógicos, seguidos por suporte/design e conteúdo substantivo disciplinar. Entre os residuais estavam: o apuro linguístico, valores, acessibilidade e legitimidade acadêmico-profissio- nal. Nos EUA, país de políticas educacionais descentralizadas (mas também na França e no Brasil), os critérios variavam conforme os interesses: Estados focavam no conteúdo substantivo, associações de historiadores na apresenta- ção exata dos conhecimentos e habilidades e na vigilância ideológica, e os empresários interessavam-se por padrões de suporte e design. No Brasil, nos últimos quinze anos, o livro teve que explicitar e cumprir propostas pedagógi- cas, historiográficas e os dispositivos legais sobre princípios de cidadania. O manual do professor foi reestruturado, a “aprendizagem” ganhou espaço so- bre os “métodos de ensino” e as habilidades meta-históricas estão distribuídas por todo o impresso.
Percebemos também que a maneira de selecionar livros didáticos, no
caso dos EUA, não implicava mudança na qualidade dos LDH. Os livros dos EUA permanecem muito parecidos, a despeito das várias formas experimen- tadas simultaneamente: escolha escolar, distrital, estadual, adoção de listas fechadas ou listas abertas, entre outras. Algo que determinava a padronização era, efetivamente, o mercado, ou seja, a quantidade de potenciais comprado- res, como também ocorre no Brasil.31
Com trabalhos desse tipo, por fim, convencemo-nos de que não existiria uma “solução” para os problemas apontados, principalmente, por avaliadores e professores envolvidos na cadeia de produção do LDH. Cada instância elege padrões e prioridades: professores, estudantes, sistemas educacionais nacio- nais e subnacionais, meios de comunicação, mercado e epistemológos da His- tória e da Educação. O conflito foi e provavelmente será a tônica da discussão sobre idealidade e a qualidade do livro didático no Brasil.32
Propostas de nomenclatura e trabalho de divulgação científica
Além de consolidar e ampliar princípios e processos de avaliação, enga- jamo-nos, por fim, no trabalho de discutir e estabelecer alguns termos do glos- sário para a pesquisa com LD e, não menos importante, para divulgar os tra- balhos de pesquisadores que se ocupavam da história, produção, avaliação e usos do LDH no Brasil.
Esse trabalho de divulgação foi determinado pelo trabalho cotidiano com a avaliação de livros didáticos evidentemente. Mas o cruzamento de ex- periências, bibliografias e procedimentos metodológicos foi também determi- nante porque nos fez perceber algumas fragilidades conceituais na área. Algu- mas categorias foram reexaminadas: “anacronismo” e “nominalismo”, por exem- plo. Outras categorias foram ressignificadas ou estabelecidas, como as tipo- logias “história integrada”, “história intercalada”, “história justaposta”, que reclassificaram os livros didáticos do PNLD. Tais distinções ainda possuem fun- cionalidade: uma proposta integrada é aquela que trata da História Geral, do Brasil e da América de forma simultânea. A intercalada trata desses recortes espaciais, mas separados em capítulos. Já o tipo justaposto faz uma espécie de colagem dos recortes espaciais dentro dos mesmos capítulos ou unidades.33
Elementos estruturantes do LDH também foram definidos, e até a pró- pria ideia de livro didático, tratado como algo naturalizado pela maioria dos colegas da educação básica34, foi expressa de modo diferente em texto recente. O exercício foi identificado como uma atividade que o aluno desempenha em situ- ação de aprendizagem escolar. É um trabalho, segundo concepção marxiana. Já a seção foi definida como o elemento constituinte LDH e o menor segmento orgânico do livro didático. A menor parte que pode ser lida e compreendida autonomamente. Seções, assim definidas, transformam-se em ferramentas úteis para o analista de livros didáticos, que, dada a diversidade de projetos gráficos e editorias, tem dificuldade para segmentar a obra em unidades de leitura.
A ideia de livro didático foi outra conquista. As primeiras iniciativas foram mediadas pelas definições de K. Munakata (artefato de papel e tinta), que já substituíam a primeira, mas limitada definição de C. Bittencourt (um objeto complexo). Nossas primeiras pesquisas empregaram essas definições, que foram ampliadas apenas na dimensão do suporte (do papel ao digital). Adiante consolidamos uma pesquisa subnacional e transnacional e a apresen- tamos no Dicionário do Ensino de História. Nossa definição é ideal e típica. Ela considera a etimologia dos termos “livro” e “didática”, as circunstancialida- des das efetivas definições, disparidades entre a função, o uso e a designação do artefato e os dominantes critérios de definição em outros países para comu- nicar a ideia de que o livro didático não tem essência (seja mercado ou ideolo- gia, seja suporte ou uso). É categoria designadora de um artefato que “apre- senta o conhecimento”35.
A informação sobre a literatura nacional e subnacional e também o co- nhecimento dos pesquisadores que atuavam isoladamente em suas cidades e instituições possibilitaram-nos a entrada em outro ramo da atividade acadê- mica: a divulgação científica. Dada a reunião periódica dos profissionais e as
usuais trocas nos intervalos de trabalho, planejamos e executamos ações que quase ganharam status de programas editoriais. Com o auxílio dos professores pesquisadores da área do ensino de História e História da Educação e especialis- tas que se propuseram a dialogar com o campo, lançamos sete volumes de uma Coleção de Ensino de História com textos que discutiram36 o ensino de História sob diversa perspectiva, desde os espaços onde ele ocorre até as dife- rentes experiências de formação inicial e continuada e sobretudo com a ini- ciação à docência.
Dois desses volumes foram integralmente dedicados ao livro didático. No primeiro, mais de duas dezenas de pesquisadores de várias regiões do Bra- sil debruçaram-se sobre as políticas públicas para o livro didático, discutindo as relações entre livro didático e Estado, formação docente, práticas de uso em sala, autoria, demandas sociais.37 Dois terços dos capítulos foram especial- mente dedicados ao aprofundamento de questões de pesquisa relativa às cole- ções e aos LDR avaliados e distribuídos pelo PNLD.
O segundo tratou de dois elementos do ciclo vital do LDH: as escolhas dos livros e o uso desses mesmos livros.38 Ele emergia das avaliações sobre o alcance do PNLD. Como os professores escolhiam os livros didáticos? Qual a importância do guia do livro didático? Que usos os professores faziam dos LDH em seu consumo próprio e nas prescrições dirigidas aos alunos? O livro didático avaliado pelo PNLD cumpria as funções estabelecidas pelo programa? Essa edição recolheu textos sobre representações, linguagens, educação patri- monial, história local, História da África e a legislação sobre o livro didático.
Mediante pesquisa interinstitucional sobre escolha e uso do livro didáti- co, coordenada por Maria Inês Sucupira Stamatto em 2006, reunimos pesqui- sadores dos estados da Bahia, Ceará, Mato Grosso do Sul, Paraná, Pernambu- co, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Sergipe. Também publicamos um banco de dados com a tecnologia disponível na época e apresentamos os critérios e os resultados da pesquisa em publicação impressa e em CD-ROM. Hoje, alguns desses textos são clássicos. O escrito de Ana Maria Mauad,
por exemplo, é bastante requisitado pelos pesquisadores quando esses querem se referir às reflexões necessárias à utilização das imagens nos livros didáticos. Os textos de Maria Telvira da Conceição foram, da mesma forma, as primei- ras divulgações de uma dissertação sobre o assunto, quando a pesquisa sobre África em sala de aula ainda engatinhava no Brasil. Essas coletâneas serviram também para lançar novos pesquisadores e novos temas, como as pesquisas sobre linguagem e poder simbólico nos LDH, de Ana Gabriela Seal. Essas publicações serviam também para promover a interação entre pesquisadores de produção (naquele momento) consolidada, como Marlene Cainelli e Décio
Gatti Júnior, e pesquisadoras como Flávia Eloísa Caimi e Marta Margarida de Andrade Lima, que se tornariam referências em suas respectivas temáticas dentro do campo.
As coletâneas, por fim, forneceram-nos a convicção de que os caminhos trilhados após aquelas sucessivas revisões da literatura resultaram em benefí- cios para o campo. Em primeiro lugar, pluralizamos questões, fontes, recortes temporais e espaciais e abordagens teóricas e metodológicas sobre livros didá- ticos. Em segundo lugar, e mais importante, instigamos nossos colegas a tra- balhar coletivamente e a cooperar para fazer avançar o campo.
Considerações finais
O esforço do trabalho coletivo e cooperado é uma meta reguladora. Es- tamos sempre nos aproximando e nos distanciando ao sabor das vicissitudes em nossas vidas. Coletâneas como esta, contudo, ativam nossas memórias e apuram nossas decisões: onde devemos investir nossas energias?
Hoje, consideramos que os pares de formação inicial em História foram convencidos de que o livro didático de História é um objeto de pesquisa histó- rica a ser tratado por historiadores. Os pesquisadores do ensino de História conseguiram evitar que se repetisse com o LDH o que ocorreu com a história da escola, a história do pensamento e das práticas escolares, competentemente consolidados como “seus” nos programas de pós-graduação em Educação.
Batalhamos, como esperamos que este texto tenha demonstrado, contra a nossa ultraespecialização em um único objeto de estudo – apesar de essa ser a tendência incentivada pelos programas de pós-graduação e as principais agên- cias de fomento federais e estaduais. Compreendemos, como já afirmado an- teriormente, o livro didático como um catalisador de questões e, sempre que podemos ou encontramos alunos dispostos a trabalhar conosco, tentamos res- ponder a algumas das perguntas.
Outras batalhas, contudo, estão à nossa espera. Praticamente não há dissertações do Mestrado Profissional em História sobre livros didáticos, tra- zendo de volta um fantasma: a ideia de que o LDH é mediador ultrapassado. Não há, no Brasil, uma revista especializada em livros didáticos de História, e mesmo as duas únicas revistas de ensino de História só recentemente recebe- ram conceitos medianos do Qualis Periódicos, o que desestimula – dentro das regras em vigor – o envidar de esforços para refletir e fazer chegar ao público pesquisas sobre o livro didático.
O debate transnacional no Brasil ainda é raro. E não nos referimos à moda transnacional de inserção da pós-graduação brasileira, revivida ciclica-
mente. O diálogo e a comparação transnacional são fundamentais para fins pragmáticos, a exemplo do que tratamos aqui sobre qualidade do livro didáti- co, formas de escolha e relação história acadêmica e historiografia didática.
Por fim, o engajamento social é ainda premente. Devemos estar alertas e bem fundamentados para enfrentar, por exemplo, as tentativas de “suaviza- ção” dos LDH por governos de espirito ditatorial, a abordagem do criacionis- mo de modo equivalente ao evolucionismo, a oficialização do “design inteli- gente” como matéria científica, a absurda apresentação de duas verdades para cada problema histórico, o negacionismo do Holocausto e do Golpe Militar de 1964 no Brasil e a exclusão das narrativas e problemas identificados pelo termo “gênero”. Para tanto é necessário não apenas estudar, mas manifestar posição, algo adormecido na maioria dos pesquisadores do livro didático des- de o golpe de 2016.
1 Itamar Freitas de Oliveira é licenciado em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS- 1996), especialista em Organização de Arquivos pela Universidade de São Paulo (USP-1997), mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ (2000), doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP-2006), doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS-2019) e fez estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (PPGH/UnB-2014). É professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História (UFS). Tem experiência nas áreas de Ensino de História, Teoria e Metodologia da História e foi parecerista do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em sete edições e da primeira versão da Base Nacional Curricular Comum (PNLD). Atua como gestor na educação superior pública, com passagens pela direção do Centro de Educação Superior a Distância (CESAD/ UFS), presidência da Fundação de Apoio à Pesquisa de Sergipe (FAPESE). Atualmente, é pró-reitor de Gestão de Pessoas na UFS. Endereço institucional: Cidade Universitária Prof. “José Aloísio de Campos”, Av. Marechal Rondon, s/n, Jardim Rosa Elze. 49.100-000 / São Cristóvão-SE.
2 Margarida Maria Dias de Oliveira é graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba
(1988), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (1994) e doutorado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2003). Tem experiência na área de História, com ênfase em Teoria da História e Metodologia do Ensino de História, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino de História, livros didáticos de História, formação de professores, historiografia, memória e patrimônio cultural (histórico). Atualmente é professora titular do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Foi representante de História na Comissão Técnica do PNLD de julho de 2004 a janeiro de 2015. É coordenadora da Coleção Ensino de História da EDUFRN. Endereço institucional: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus Universitário Lagoa Nova, CEP 59078- 970, Natal/RN – Brasil.
3 Livros didáticos de História: imagens e representações. 2005. Projeto de pesquisa. Margarida
Maria Dias de Oliveira. UFRN.
POTIER, Leda Virginia Belarmino Campelo. História para “ver” e entender o passado: didática da História, cinema e livro didático no espaço escolar. Orientador: Margarida Maria Dias de Oliveira. 2014. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.
4 SILVA, Davi Martins Pereira. História do Brasil nos Livros Didáticos: uma análise da proposta de História Integrada. Orientador: Margarida Maria Dias de Oliveira. 2005. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.
5 SANTOS, Analice Marinho. História da América nos livros didáticos de História Regional. In: FREITAS, Itamar (coord.). História regional para a escolarização básica no Brasil: o texto didático em questão (2006-2009). São Cristóvão: Editora da UFS, 2009. p.163-194.
6 FREITAS, Itamar (coord.). História regional para a escolarização básica no Brasil: o texto didático em questão (2006-2009). São Cristóvão: Editora da UFS, 2009. p. 195-238.
7 SANTOS, Kleber Rodrigues. Representações sobre indígenas em textos escritos e imagéticos de livros didáticos de história do Brasil (1920/2010). 2012. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Sergipe, 2012. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
8 PEREIRA, Alzenira Oliveira. A Idade Média nos livros Didáticos de História da 2ª Fase do Ensino Fundamental. 2000. 38 f. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em História) – Centro Universitário de João Pessoa, 2000.
9 FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de Oliveira. Família como sujeito da historiografia didática sobre o contemporâneo e o tempo presente. Fronteiras: Revista de História, Dourados, v. 18, n. 31, p. 322-338, jan./jun. 2016.
10 SILVA, Márcia Barbosa. Representações de homossexuais nos livros didáticos de história para os anos finais do ensino fundamental, distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático – PNLD (2005- 2011). 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Sergipe, 2013. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
11 FREITAS, Itamar (coord.). História regional para a escolarização básica no Brasil: o texto didático em questão (2006-2009). São Cristóvão: Editora da UFS, 2009.
12 GALLY, Christianne. As estratégias teextual-discursivas de construção de sentido nos livros didáticos de História. In: FREITAS, Itamar (coord.). História regional para a escolarização básica no Brasil: o texto didático em questão (2006-2009). São Cristóvão: Editora da UFS, 2009. Iniciação científica.
MOURA, Ana Maria Garcia. Ensino de história para as séries finais da escolarização básica no Brasil: análise linguística. Orientador: Itamar Freitas. 2009. Iniciação Científica. (Graduando em História) – Universidade Federal de Sergipe, 2009. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
OLIVEIRA, Carla Karinne Santana. Ensino de história para as séries iniciais da escolarização básica no Brasil: análise linguística. Orientador: Itamar Freitas. 2009. Iniciação Científica. (Graduando em História) – Universidade Federal de Sergipe, 2009. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
13 OLIVEIRA, Carla Karinne Santana; MOURA, Ana Maria Garcia; AZEVEDO, Max Willes de Almeida. Escrevendo a história regional para crianças. In: FREITAS, Itamar (coord.). História regional para a escolarização básica no Brasil: o texto didático em questão (2006-2009). São Cristóvão: Editora da UFS, 2009.
14 FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Cultura histórica e livro didático ideal: algumas contribuições de categorias rüsenianas para um ensino de história à brasileira. Espaço Pedagógico, Passo Fundo, p. 23-234, jul./dez. 2014.
SOARES, Jandson Bernardo. Espaço escolar e livro didático de História no Brasil: a institucionalização de um modelo a partir do Programa Nacional do Livro Didático (1994- 2014). Orientador: Margarida Maria Dias de Oliveira. 2017. Dissertação (Mestrado em História)
– Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2017. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Orientamos os seguintes projetos de iniciação científica, todos voltados para a discussão dos fundamentos teóricos sistematizados por Jörn Rüsen:
CONRADO, Amanda da Cunha. Os livros didáticos de História e as orientações para a vida prática. Orientador: Margarida Maria Dias de Oliveira. 2012, 2013 e 2014. Iniciação Científica. (Graduando em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
SOARES, Jandson Bernardo. O ensino de História como orientação para vivência no tempo. Orientador: Margarida Maria Dias de Oliveira. 2011. Iniciação Científica. (Graduando em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
ALVES, Raiane de Alexandria. O livro didático… ideal? Aproximações teoria e prática a partir de livros aprovados pelo PNLD nos anos 2004 a 2015. 2014. Orientador: Margarida Maria Dias de Oliveira. Iniciação Científica. (Graduanda em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
15 OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Livros didáticos de História: o estado atual da questão.
Boletim de Pesquisa Unipê, João Pessoa, v. 02, p. 152-163, 2000.
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de/ DIAS, Margarida Maria Santos. Livros didáticos de História: o estado atual da questão – 2ª parte. Boletim de Pesquisa Unipê, João Pessoa, v. 03, p. 113-125, 2001.
Planos de trabalhos de pesquisas de Iniciação científica:
SILVA, Mônica Fagundes de Sousa e. Ensino de história na educação básica: mídia, memória e memorização. Orientador: Margarida Maria Dias de Oliveira. 2007. Iniciação Científica. (Graduando em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.
ASSUNÇÃO, Victor Gabriel Campelo. Ensino de história na educação básica: mídia, memória e memorização. Orientador: Margarida Maria Dias de Oliveira. 2007. Iniciação Científica. (Graduando em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.
MOURA, Ana Maria do Nascimento. Ensino de história na educação básica: mídia, memória e me- morização. Orientador: Margarida Maria Dias de Oliveira. 2007. Iniciação Científica. (Graduan- do em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.
Professores de História e interdisciplinaridade: entre concepções e práticas construídas a partir dos livros de Ciências Humanas adquiridos pelo PNLD 2016. MARTINHO LUIZ MEDEIROS DUARTE, 2018.
Livros didáticos de Ciências Humanas e suas Naturezas: entre concepções e práticas de produção de livros interdisciplinares a partir do PNLD 2016. VIVIAN MIKAELLY DA SILVA PEREIRA, 2018.
Progressão do conhecimento histórico na segunda versão da BNCC – Segunda etapa. MATHEUS OLIVEIRA DA SILVA, 2018.
Progressão do conhecimento histórico na segunda versão da BNCC – Segunda etapa. REBECA NADINE DE ARAUJO PAIVA, 2019.
O papel do conhecimento histórico no Youtube (2005-2019). GLICIA KALIANE LUCAS MACHADO DE SOUZA, 2019.
16 Exemplos de trabalhos desse tipo são:
LIMA, Caio Rodrigo Carvalho. Mestres-escola e a construção das ideias do Ensino de História no Brasil: Sérgio Buarque de Holanda. Orientador: Margarida Maria Dias de Oliveira. 2010. Iniciação Científica (Graduando em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
DANTAS, Felipe Mykael Alves. A instituição da disciplina Cultura do RN: discursos e práticas. Orientador: Margarida Maria Dias de Oliveira. 2009. Iniciação Científica (Graduando em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
SILVA, Katiane Martins Barbosa da. A instituição da disciplina Cultura do RN: discursos e práticas. Orientador: Margarida Maria Dias de Oliveira. 2008. Iniciação Científica (Graduando em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
17 ANDRADE, Leila Angélica Oliveira Moraes de. Para a formação do bom sergipano: um estudo do livro didático Meu Sergipe, de Elias Montalvão (1916). Orientador: Itamar Freitas de
Oliveira. 2002. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em História) – Universidade Federal de Sergipe.
SANTOS, Maria Fernanda dos. Historiografia didática em Severiano Cardoso. Orientador: Itamar Freitas de Oliveira. 2007. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal de Sergipe.
18 Também constatamos a manutenção, ainda na segunda metade do século XX, do gênero livro de leitura, a história pela biografia dos seus governantes e a produção artesanal do livro didático de história de Sergipe na primeira década do século XXI. A história de Sergipe não era contemplada pelo PNLD simplesmente por falta de iniciativas editoriais.
SANTOS, Kléber Rodrigues Santos. História de Sergipe para a escolarização básica: a experiência do livro didático Sergipe nossa história. 2008. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal de Sergipe, 2008.
MONTEIRO, Diogo Monteiro. A produção didática sobre história de Sergipe: a iniciativa de Acrísio Torrres de Araújo. 2007. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal de Sergipe, 2007.
SANTOS, Maria Fernanda dos Santos. Historiografia didática em Severiano Cardoso. 2007. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal de Sergipe, 2007.
19 REIS, Aaron Sena Cerqueira. A ideia de ensino de história na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1860). Orientador: Itamar Freitas de Oliveira. 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Sergipe, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
20 FREITAS, Itamar. A História Universal de José Estácio Correia de Sá e Benevides (1890- 1903). In: Histórias do ensino de História no Brasil (1890-1945). São Cristóvão: Editora da UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2006. p. 127-182.
FREITAS, Itamar. História do brasil para crianças: o livro escolar nos primeiros anos da República e a iniciativa de Joaquim Maria de Lacerda (1880-1918). In: Histórias do ensino de história no Brasil. v. 2. São Cristóvão: Editora da UFS, 2010. p. 45-66.
21 FREITAS, Itamar. História e Escola Nova: as inovaçções do professor Cesarino Júnior para o ensino secundário em São Paulo (1928-1936). In: Histórias do ensino de história no Brasil. v. 2. São Cristóvão: Editora da UFS, 2010. p. 155-178.
22 FREITAS, Itamar. Erudição histórica e livro didático de História na Primeira República: as iniciativas de Sílvio Romero e de João Ribeiro (1890-1900). In: Histórias do ensino de história no Brasil. v. 2. São Cristóvão: Editora da UFS, 2010. p. 13-43.
23 FREITAS, Itamar. A pedagogia histórica de Jonathas Serrano: uma teoria do ensino de história para a escola secundária brasileira (1913-1935). São Cristóvão/SE: UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2008.
24 FREITAS, Itamar. A historiografia escolar na Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD): pareceres de Jonathas Serrano (1838-1941). In: Histórias do ensino de história no Brasil. v. 2. São Cristóvão: Editora da UFS, 2010. p. 179-198.
25 OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; OLIVEIRA, I. F. Programa Nacional do Livro Didático
– PNLD: processo de uma política e possibilidades de aperfeiçoamento. In: Margarida Maria Dias de Oliveira; Aryana Lima Costa (org.). Para que(m) se avalia? Livros Didáticos de História e Avaliações (Brasil, Chile, Espanha, Japão, México e Portugal). 1. ed. Natal: EDUFRN, 2014. p. 11-25, v. 1.
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Uma profissional de história em gestão de políticas públicas: como a memória construiu minha experiência no PNLD de 2004 a 2015. In: Helenice Rocha; Luis Reznik; Marcelo de Souza Magalhães. (org.). Livros didáticos de história: entre políticas e narrativas. 1. ed. Rio de Janeiro: FVG Editora, 2017. p. 55-66.
26 SILVA, Jefferson Pereira da. Relações étnico-raciais e o espaço escolar: uma análise das prescrições do Programa Nacional do Livro Didático: (2001-2014). Orientador: Margarida Maria Dias de
Oliveira. 2017. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Planos de trabalho de Iniciação Científica: Relações étnico-raciais e o Livro Didático de História: uma análise das fichas de avaliação do PNLD (2003-2015). AMANDA COSTA BRITO. 2018. Relações étnico-raciais e o Livro Didático de História: uma análise das fichas de avaliação do PNLD (2003-2015) – Segunda etapa. MARIA BEATRIZ DE BRITO CAVALCANTI. 2018. O Exame
Nacional do Ensino Médio e a história e cultura da África e dos afro-brasileiros e O Exame Nacional do Ensino Médio e a história e cultura da África e dos afro-brasileiros – Segunda etapa.
27 FREITAS, Itamar. Livro didático. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; OLIVEIRA, Maria Margarida Dias. Dicionário do Ensino de História. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2019. p. 143-148.
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; SOARES, Jandson Bernardo. Programa Nacional do Livro didático – PNLD. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; OLIVEIRA, Maria Margarida Dias. Dicionário do Ensino de História. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2019. p. 202- 208.
28 OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Múltiplas vozes na construção do PNLD. In: Décio Gatti Junior; Selva Guimarães Fonseca (org.). Perspectivas do Ensino de História: ensino, cidadania e consciência histórica. 1. ed. Uberlândia/MG: EDUFU, 2011. p. 351-360.
29 SOARES, Jandson Bernardo. Espaço escolar e livro didático de História no Brasil: a institucionalização de um modelo a partir do Programa Nacional do Livro Didático (1994- 2014). 2017. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
30 OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; DIAS, Margarida Maria Santos; COSTA, Aryana Lima (org.) . Para que(m) se avalia? Livros Didáticos de História e Avaliações (Brasil, Chile, Espanha, Japão, México e Portugal). 1. ed. Natal: EDUFRN, 2014. 164p.
31 FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. A qualidade do livro didático de história: No Brasil, na França e nos Estados Unidos da América. Rio de Janeiro: FGV; Natal: EDUFRN, 2016.
32 FREITAS, Itamar; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Programa Nacional do Livro Didático – PNLD: processo de uma política e possibilidades de aperfeiçoamento. In: Margarida Maria Dias de Oliveira; Aryana Costa (org.). Para que(m) se avalia? Livros didáticos e avaliações (Brasil, Chile, Espanha, Japão, México e Portugal). 1. ed.Natal: Editora da UFRN, 2014. p. 11-25.
33 GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS: PNLD 2010: História. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2009.
34 OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; DIAS, Margarida Maria Santos. Livros didáticos: decifra-me ou devoro-te. Cadernos Didaticos Unipê, João Pessoa, v. 1, p. 44-50, 1996.
35 FREITAS, Itamar. Critérios de qualidade para o livro didático na França (1983-2013). Acta Scientiarum. Education (On-line), v. 38, p. 21-29, 2016.
FREITAS, Itamar. Livro didático de história: definições, representações e prescrições de uso. In: Margarida Maria Dias de Oliveira; Almir Félix Batista de Oliveira (org.). Livros didáticos de História: escolhas e utilizações. Natal: Editora da UFRN, 2009. p. 11-19.
FREITAS, Itamar. Livro didático. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; OLIVEIRA, Maria Margarida Dias. Dicionário do Ensino de História. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2019. p. 143-148.
36 A Coleção Ensino de História, publicada pela Editora da UFRN – EDUFRN está assim constituída:
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; STAMATTO, M. I. S. (org.). O livro didático de História: políticas educacionais, pesquisas e ensino. 1. ed., v. 1. Natal-RN: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (EDUFRN), 2007. (Coleção Ensino de História).
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; CAINELLE, Marlene Rosa (org.); OLIVEIRA, Almir Félix Batista de (org.). Ensino de História: múltiplos ensinos em múltiplos espaços. 1. ed., v. 2. Natal-RN: EDUFRN, 2008. 200p. (Coleção Ensino de História).
STAMATTO, M. I. S. (org.). Escolha e uso do livro didático. Pesquisa interinstitucional (Ensino Fundamental – Brasil/2006). 1. ed., v. 3. Natal-RN: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (EDUFRN), 2008. (Coleção Ensino de História).
ANDRADE, João Maria Valença de; STAMATTO, M. I. S. (org.). História ensinada e a escrita da História. 1. ed., v. 4. Natal-RN: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (EDUFRN), 2009. (Coleção Ensino de História).
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; OLIVEIRA, Almir Félix Batista de (org.). Livros didáticos de história: escolhas e utilizações. 1. ed., v. 5. Natal/RN: EDUFRN, 2009. 100p. (Coleção Ensino de História).
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Como se formam os professores de História: vivências e experiências na iniciação a docência. 1 ed. v. 6. Natal: EDUFRN, 2009. 70 p. (Coleção Ensino de História)
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; Costa, Aryana Lima (org.). Para que(m) se avalia? Livros Didáticos de História e Avaliações (Brasil, Chile, Espanha, Japão, México e Portugal). 1. ed. Natal: EDUFRN, 2014. v. 1, p. 164p. (Coleção Ensino de História).
37 OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; STAMATTO, Maria Inês Sucupira (org.). O livro didático de história: políticas educacionais, pesquisa e ensino. Natal: Editora da UFRN, 2007. [No sumário veem-se, além das organizadoras, Itamar Freitas, Isaíde Bandeira, Iranilson Buriti, Maria Telvira da Conceição, Grinaura de Medeiros Morais, Ana Gabriela Seal, André Victor Cunha, Éden Lemos, Marta Lima, Juçara Luzia Leite, Sônia Nikitiuk, Arnaldo Pinto Júnior, Ana Maria Mauad, Décio Gatti Júnior, Luís Fernando Cerri, Ângela Ferreira, Marlene Cainelli, Sandra Ferreira, Flávia Caimi e Maria Augusta de Castilho].
38 OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; OLIVEIRA, Almir Félix Batista de (org.). Livros didáticos de História: escolhas e utilizações. Natal: Editora da UFRN, 2009. [Além dos organizadores, constam como autores nessa obra: Itamar Freitas de Oliveira, Maria Inês Sucupira Stamatto, Marta Margarida de Andrade Lima, Isaíde Bandeira, André Victor Cavalcanti Seal da Cunha e Ana Gabriela de Souza Seal].
Desafios e possibilidades de análise de teias discursivas no currículo de História
Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro1 Maria de Fátima Barbosa Pires2
O ensino de História em questão
O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é o passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações (FOUCAULT, 2000, p. 7).
Nas pesquisas que temos realizado3, utilizando a categoria de análise “professores marcantes” (MONTEIRO, 2015), tem sido possível identificar, localizar e investigar, a partir de indicações de ex-alunos, professores que, em suas aulas, desenvolveram explicações reconhecidas pelos estudantes como significativas e que criaram ou produziram interesse nesses estudantes em in- vestir no estudo da História no Ensino Superior. Ao investigarmos as alterna- tivas utilizadas para atribuição de sentidos nos processos de didatização, en- contramos no conceito de “narrativa histórica” um instrumento de grande potencial heurístico (GABRIEL; MONTEIRO, 2014; MONTEIRO, 2019).
Ao longo desse período, considerando os resultados obtidos, verifica- mos algumas regularidades nos encaminhamentos, possibilitando configurar uma certa tradição com recorrências muito frequentes. Dentre elas podemos destacar a permanência da sequência cronológica e a referência eurocêntrica na seleção e organização dos conteúdos4, bem como a busca da aproximação dos processos estudados com a realidade do aluno, o que gera grande diversi- dade de contextualizações e o risco recorrente do anacronismo – fato que já foi objeto de análise em artigos e publicações (MONTEIRO, 1999, 2012, 2015). Outra característica observada é a frequente utilização de “narrativas de si” para ilustrar e conferir autenticidade e validade ao tema em estudo, o que tam- bém tem gerado alguns problemas do ponto de vista da abordagem histórica (MONTEIRO; AMORIM, 2015).
Expressão de configurações do “saber ensinado” (MONTEIRO, 2007(1)) e também do “conhecimento pedagógico do conteúdo” (SHULMAN, 1986, 1987); (MONTEIRO, 2007(1)); (MONTEIRO; PENNA,2011; (MONTEI-
RO, 2019), pensamos que tais regularidades podem ser consideradas também
constituintes de um código disciplinar. Conforme propõe Cuesta Fernandez (1998), o processo de constituição de um código disciplinar refere-se à cons- trução do processo de escolarização e de formação da cultura escolar, de cons- tituição das disciplinas escolares que en virtud de una acción recontextualizadora efectuada por vários agentes sociales, convierte el saber académico en conocimiento esco- lar legítimo, transmuta la ciência que se hace en la ciência que se enseña (CUESTA FERNANDEZ, 1998, p. 102 apud SCHMIDT, 2012). Esse processo implica a produção do que ele chama de “textos visíveis do código disciplinar”, tais como currículos e manuais didáticos, além dos “textos invisíveis do código disciplinar”, isto é, as práticas dos professores e dos alunos.
Com base em Cuesta Fernandez, alguns autores defendem que, no Bra- sil, pode-se definir uma periodização com quatro momentos de definição e redefinição do código disciplinar da História escolar: construção do código disciplinar da história no Brasil (1838-1931); consolidação do código discipli- nar da história no Brasil (1931-1971); crise do código disciplinar da história no Brasil (1971-1984) e reconstrução do código disciplinar da história no Brasil (1984-?) (SCHMIDT, 2012, p. 78).
Essa periodização expressa tendência de interpretação em estudos so- bre a história da disciplina escolar História (ABUD, 1993, 2011; BITTEN- COURT, 1998; MATTOS, 1993; FONSECA, 1993) e as especificidades de sua constituição ao se manter nos currículos escolares no Brasil desde meados do século XIX. No período de 1971 a 1984, foi objeto de deslocamento e subs- tituição pela disciplina escolar Estudos Sociais, configurando uma época de “crise do código disciplinar”, pois seus conteúdos foram integrados a conteú- dos da Geografia, Sociologia e Antropologia, com base em matriz disciplinar diferenciada, oriunda dos Social Studies norte-americanos, introduzidos no Brasil por Anísio Teixeira quando assumiu a Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal. Inspirada no pragmatismo de Dewey, os Estudos Sociais configuram uma disciplina escolar que rompe radicalmente com a matriz vin- culada aos estudos históricos dos historiadores, tendo suscitado grande reação e oposição (NADAI,1988,1993; MARTINS, 2002; SANTOS, 2009). Além
disso, a implementação dessa disciplina escolar de forma intempestiva, sem planejamento ou ações para a formação dos professores, além da exclusão dessas disciplinas do currículo, gerou grande desorganização e descaracteriza- ção dos conteúdos específicos de História e Geografia em sua “integração” na nova disciplina com profundo empobrecimento da formação dos estudantes.5 A partir de 1984, de acordo com alguns autores, teve início o período
que foi denominado de “reconstrução do código disciplinar da história no
Brasil” (SCHMIDT,2012) e que pode ser caracterizado por um movimento intenso de renovação da seleção dos conteúdos a serem ensinados: busca de superação de uma história tradicional por uma história crítica; de uma histó- ria político-administrativa por uma história econômica ou sociocultural; por tentativas de substituir uma forma de organização curricular linear para uma história temática ou organizada por eixos temáticos ou integrada; de abando- no de metodologias de ensino ainda baseadas em questionários, exercícios de memorização a serem substituídos por uma proposta de ensino baseada em problematizações e no uso de fontes que aproximam o ensino de História das perspectivas da história dos historiadores.
Na área da História, influenciados pelas concepções teóricas oriundas da Escola dos Annales e do marxismo, desenvolvidas na primeira metade do século XX, os estudos históricos voltaram o olhar para as camadas subalter- nas da sociedade, na perspectiva de uma História Social com foco nos “venci- dos”. Novos objetos, problemas e abordagens foram propostos. Essa nova pro- dução repercute entre os professores de História, que passam a questionar mais ainda os Estudos Sociais, a Educação Moral e Cívica e a disciplina Organiza- ção Social e Política Brasileira (OSPB), instituídas a partir da Lei 5692/1971. Assim, na década de 1980, críticas acentuadas à então chamada “história tra- dicional” foram apresentadas, partindo de diferentes grupos e por diferentes motivos.
Mas o que podemos verificar é que a História “a ser ensinada” ou “ensinada” foi posta em questão, foi problematizada no momento da retira- da dos Estudos Sociais do currículo do então Primeiro Grau – nesse aspecto havia praticamente uma unanimidade entre professores e historiadores; op- tava-se pelo retorno das disciplinas História e Geografia. Mas que História? Que Geografia?
No âmbito dessa problemática, estamos desenvolvendo pesquisa6 que tem como foco produções textuais curriculares da disciplina escolar de História, elabo- radas para as redes públicas municipal e do estado do Rio de Janeiro no perío- do de 1985 a 2015. Nos primeiros anos desse período, no contexto do processo de redemocratização em nosso país, uma de suas principais iniciativas foi a elei- ção de uma Assembleia Constituinte e posterior promulgação da Constituição de 1988 e que teve reverberações na área educacional por meio de ações para a redemocratização da gestão das instâncias governamentais e para a reformula- ção dos currículos. Tornava-se urgente atualizar as propostas frente aos avanços científicos e afirmar encaminhamentos no sentido de valorizar a cidadania, o protagonismo dos sujeitos, a realidade dos estudantes com a perspectiva da forma- ção de cidadãos para a consolidação de uma sociedade democrática.
Assim, a partir de 1983, após a primeira eleição direta para governado- res estaduais, foram iniciados movimentos em vários estados brasileiros para reformular os currículos escolares de forma geral e restabelecer o ensino da História e da Geografia no 1º Grau por meio de processo democrático de con- sulta aos professores.7 No caso da História, incorporando contribuições da nova produção historiográfica e pedagógica, que vinha se desenvolvendo des- de a década de 1960, para a realização de aprendizagem significativa e afirma- ção da escola pública democrática.8
Nesse contexto, disputas entre diferentes comunidades disciplinares – educadores e historiadores – e internamente dissensos e divisões entre grupos envolvidos com diferentes temáticas de pesquisa que competem por status, territórios e recursos (GOODSON, 2012) têm se verificado, sem que um con- senso ou hegemonia de uma tendência tenha sido alcançado. Ou precisaria ser alcançado?
Como foi possível a emergência desses textos curriculares? Como foram constituídos? Que inovações expressaram descontinuidades em relação à tra- dição dominada pela perspectiva eurocêntrica e colonizada? Constituiu-se um novo código disciplinar? Que perspectivas eram afirmadas para a construção de uma educação emancipadora? Como se constituiu a teia discursiva articu- lada para o ensino da disciplina escolar História?
Como objeto de análise da pesquisa, focalizamos os currículos dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio da Educação Básica, fixa- dos em documentos escritos e em narrativas docentes produzidas no Rio de Janeiro, cujas experiências de mudança curricular foram ainda pouco estuda- das, embora esse contexto tenha sido espaço estratégico de formulação e im- plementação de políticas desde a década de 1970.
Reconhecendo o momento estratégico de realização dessas reformas, optamos por realizar a análise tendo por base perspectivas teóricas que pos- sam contribuir para a compreensão dos contextos de produção curricular, nos quais se desenvolvem conflitos por hegemonia e regulação de poderes. Enten- demos que a problematização dessas produções curriculares para o ensino de História, compreendidas como discursos (FOUCAULT, 2000) em meio a jo- gos de poder, de linguagem e processos de subjetivação, pode contribuir para a produção de novos sentidos para o ensino dessa disciplina e superar tradições que nos aprisionam em perspectivas há muito questionadas.
Nesse sentido, em nossas pesquisas atuais, temos voltado a atenção para o conceito de teia discursiva (ALBUQUERQUE JR., 2007), que possibilita articular, por meio de tessituras mais amplas, enunciados presentes nos currí-
culos, espaços-tempos de produção discursiva de saberes, práticas, sujeitos e relações de poder.
Nas teias do discurso
O conceito de “teia discursiva” foi proposto por Albuquerque Jr. (2007,
- 101-112)9 com base nas análises elaboradas por Foucault sobre o caso singu- lar de Pierre Rivière, o camponês francês que matou a mãe, a irmã e o irmão10, e o modo como ele foi constituído/se constituindo como sujeito a partir do memorial por ele escrito e no qual explica seu crime e dos diversos relatórios então produzidos pelas autoridades encarregadas da investigação do crime.
Essas análises são emblemáticas para a compreensão das regras que nos permitem a produção de certos discursos, interdições de outros, ou sequer imaginá-los. Assim:
Foucault tenta explicar, ao longo do seu trabalho, como foram possíveis his- toricamente o discurso de Rivière e todos os outros que o tomaram como objeto e o produziram como sujeito. Sua preocupação é a explicação da teia discursiva e das práticas que a sustentam e não de um discurso em particular (…) o discurso de Rivière é uma construção feita a partir de condições enunciativas histori- camente produzidas (ALBUQUERQUE JR., 2007, p. 103 – grifos adiciona- dos).
Indo além de um discurso em particular, estamos nos dedicando em nossas pesquisas à produção de constructos teóricos para a apreensão da teia discursiva constituída na elaboração das propostas curriculares focalizadas em nossa pesquisa. Esse conceito possibilita-nos posicionar/compreender tanto sujeitos como discursos em suas tramas e dispersões.
O conceito de teia discursiva como resultado da compreensão do traba- lho desse filósofo e, portanto, desdobramento de sua teorização, possibilita-nos buscar na trama dos enunciados, além de sentidos possíveis nos discursos, silêncios, apagamentos, interditos.
Encontrar o silêncio nos discursos é um exercício que nos provoca a compreendê-los em suas continuidades e descontinuidades nos estratos do tem- po. Assim se, por exemplo, o discurso psiquiátrico que constrói o Rivière lou- co evoca o discurso científico para a compreensão de seus atos por meio das práticas psiquiátricas, “o discurso da justiça constrói o Rivière cruel, o próprio discurso de Rivière o constrói ora como louco, ora como justiceiro que livra seu pai de suas atribulações” (ALBUQUERQUE JR., op. cit., p. 105, 106). Acabam, de certo modo, por silenciar outros possíveis discursos na busca de afirmar uma verdade, uma essência.
Para Foucault, as verdades são produzidas por regimes que se organi- zam a partir de interesses e dispositivos para a regulação de poderes. Investigar a trama discursiva para “recuperar os mecanismos e estratégias que produzi- ram o silêncio em nossa cultura” implica desafios que possibilitam compreen- der sentidos afirmados, práticas de regulação de poderes.
Em “As palavras e as coisas”, por exemplo, Foucault preocupou-se em fazer uma “arqueologia das ciências humanas”, objetivando refutar uma vi- são linear e progressiva da História. Diagnosticar o porquê de como as coisas são pensadas de um modo e não de outro, isto é, “o fato de que em alguns anos, por vezes, uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo” (FOUCAULT, 1999, p. 68). Nesse sen- tido, não é que haja um desaparecimento das formas de pensar anteriores; elas estarão em estratos no solo arqueológico dos saberes disponíveis, entre- tanto não remetem a um saber universalizante na totalidade, e sim às suas dispersões:
Na análise proposta, as diversas modalidades de enunciação, em lugar de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito, manifestam sua dispersão: nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala. Se esses planos estão ligados por um sistema de relações, este não é estabelecido pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si […] É um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos (FOUCAULT, 2008, p. 61).
Temos, então, que tais dispersões emaranhadas na tessitura de discur- sos em suas multiplicidades irão constituindo as teias discursivas: o silêncio não como um sentido oculto, mas gerado nessas dispersões.
História de nosso povo e de outros: o “Livro Azul”
Para este trabalho11 selecionamos em nossa pesquisa um recorte da em- piria voltado para a análise do documento curricular História 5a-8a séries, publicado em 1988, elaborado pela equipe do Grupo de Trabalho de Estudos Sociais/História e Geografia da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.12 Nosso objetivo é discutir caminhos que temos trilhado para a análi- se da teia discursiva então constituída nas orientações para um ensino de His- tória a ser renovado, com enunciados em disputa em meio às relações de po- der, nas arenas discursivas que os produzem nos diferentes contextos.
O conceito de teia discursiva vem, pois, em auxílio no sentido de que sua elaboração constituía sentidos sobre saberes em seus pontos entrecruza- dos ou desprendidos, envolvendo construções pedagógicas, políticas e cultu-
rais nesse território do currículo. Um território de fronteiras, no qual se verifi- cam atravessamentos de saberes em conflitos e em consensos (construídos nem sempre de modo harmonioso).
No contexto da redemocratização de nosso país, o documento apresen- ta uma primeira proposta com o objetivo de reinserção da História no currícu- lo do então 1º Grau após discussão com os professores da rede “sobre a defini- ção do campo de trabalho de cada uma das ciências” (op. cit., p. 6). Conforme afirma Moacyr de Góes, então Secretário Municipal de Educação:
Este livro que fala da história do nosso povo e de outros representa apenas um momento da luta contínua, árdua e infinda pela melhor qualidade do ensino da História em nossas escolas públicas. Seus textos, de diversos auto- res, revelam a renovação historiográfica que hoje ocorre, apesar do obscu- rantismo intelectual imposto por duas décadas de ditadura (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1988, p. 6).
Produzido em uma secretaria de educação, um lugar de poder, politica- mente posicionado em perspectiva progressista, no documento são afirmadas orientações “pela melhor qualidade do ensino da História em escolas públi- cas”13 e para que fosse possível superar o “obscurantismo intelectual de duas décadas de ditadura”14.
Cabe destacar também que, ao trabalhar com a noção de teia discursiva (ALBUQUERQUE JR., 2007), procuramos compreender tramas entrecruza- das nos discursos, capazes de produzir sentidos, ainda que provisórios. Um fio discursivo disperso nessas tramas reguladas pela lógica da Modernidade e que agrega outros diz respeito ao ideário iluminista, seja afirmando-o ou contes- tando-o.15
A seleção e abordagem dos conteúdos na escola de primeiro grau deve, as- sim, passar necessariamente pela significação que possa ter para o aluno, não só enquanto ser jovem, mas também enquanto ser social. Se não con- cordarmos com isso, não podemos afirmar com tanta convicção que a escola pretende formar sujeitos com espírito crítico e capazes de pensar e fazer coisas novas (Grifo adicionado) (Prefeitura do Rio, op. cit., p. 7).
Foucault (2008) alerta-nos sobre como os discursos na esteira da Mo- dernidade produzem noções sobre a questão da consciência por meio do ins- trumental da Educação a fim de desenvolvê-la nos sujeitos: o progresso (nar- rativa iluminista), a consciência de classes (marxismo), a maturação da cons- ciência em Piaget (epistemologia genética). É possível, ademais, compreender esses discursos como intencionalidades que produzem subjetividades entre os egressos da escola. A crítica que advém do trabalho de Foucault é justamente a impossibilidade de gerir esse tipo de “produto”. Obviamente, essa é uma
reflexão sobre a dicotomia que podemos reconhecer entre a teorização que orienta a análise aqui proposta e aquela que orientou a produção desse docu- mento.
A teia discursiva no “Livro Azul”
Nesse documento em análise, constatamos algumas evidências das arti- culações entre variados campos de saber compondo um solo arqueológico para o ensino de História em suas múltiplas camadas discursivas não estanques. Nele é possível observar por meio de diversos enunciados a negociação de sentidos entre continuidades e descontinuidades para as produções discursi- vas curriculares da História a ser ensinada, constituindo compósitos híbridos, como pretendemos aprofundar a seguir.
O texto de apresentação da proposta, intitulado “Por uma história social” (PREFEITURA DO RIO, 1988, p. 7), é iniciado com a afirmação de que “o processo de aprendizagem em História teria como meta maior o desenvolvi- mento da capacidade de compreensão do movimento das sociedades huma- nas ao longo do tempo, em seu próprio tempo e seus desdobramentos nos diferentes espaços” (PREFEITURA DO RIO, 1988, p. 7).
Articulado como “meta maior” do “processo de aprendizagem”, o “de- senvolvimento da capacidade de compreensão” enuncia uma perspectiva de descontinuidade em relação a uma “história tradicional”, baseada em memo- rização, o “movimento das sociedades humanas”, uma perspectiva orientada para a dinâmica social: grupamentos, hierarquizações, disputas, lutas, confli- tos.
Podemos reconhecer aqui a orientação que preside a elaboração da tra- ma discursiva constituinte desse texto e na qual concepções pedagógicas se articulam com concepções sobre o objeto de estudo da disciplina História e seu ensino: o papel preponderante conferido às relações sociais para o desen- volvimento intelectual, contribuindo diretamente para o processo de aprendi- zagem através das relações interpessoais. E também na orientação para a apren- dizagem pelos professores dessa nova proposta pedagógica que não é teoriza- da e sim demonstrada nas atividades apresentadas.
Embora não citado no texto nem nas referências bibliográficas, as con- tribuições do psicólogo russo Lev Vygotsky (1984) podem ser reconhecidas, especialmente no que diz respeito à aprendizagem por meio dos processos de socialização, pois, para esse teórico, essa decorre da compreensão do homem como um ser que se forma em contato com a sociedade.16 E nesse documento é possível identificar a articulação proposta entre o processo de socialização, a
contextualização histórica e a problematização necessária para a compreen- são da historicidade do social.
O processo de socialização do aluno é indispensável para a aprendizagem do aluno: são as vivências do aluno na sala de aula e fora dela que vão lhe permitir entender a essência dos conteúdos que, vistos por outros ângulos, seriam meramente o estudo do passado pelo próprio passado, ou até mesmo de um presente no qual a vida do aluno e sua identificação social não se inserem (PREFEITURA DO RIO, 1988, p. 7).
A expressão “essência dos conteúdos” carrega marcas de concepção re- alista da História, realidade que precisa ser acessada pela pesquisa ou pelo ensino, ensino este que deve ser realizado em abordagem crítica no escopo da “pedagogia crítico-social dos conteúdos”. Nessa proposta, é afirmado que “o papel primordial da escola é difundir conteúdos vivos, concretos, indissociá- veis das realidades sociais E os conteúdos do ensino não são outros senão
os conteúdos culturais universais que vieram a se constituir em patrimônio comum da humanidade, sendo permanentemente reavaliados à luz das reali- dades sociais nas quais vivem os alunos” (SAVIANI, 2007, p. 417).
A “socialização do aluno indispensável para a aprendizagem”, relacio- nada ao estudo dos conteúdos universais “reavaliados à luz das realidades so- ciais nas quais vivem os alunos”, constitui o discurso sobre a aprendizagem da História, que deve partir da “realidade do aluno” para a construção de: “con- teúdos significativos [. ] conteúdos que se vinculem direta ou indiretamente
com o entendimento do aluno e de sua vida: [. ] o entendimento de sua posi-
ção, sua vida e sua cultura [. ]” (PREFEITURA DO RIO, 1988, p. 7). Esses
conteúdos tornados significativos porque articulados com a realidade do alu- no – “sua posição, sua vida e sua cultura” – poderão ser compreendidos em perspectiva crítica, como, por exemplo, ao estudar as “áreas colonizadas”, con- forme o trecho documental abaixo afirma:
A busca no passado de nossas raízes culturais vai remontar às sociedades da Antiguidade e ilustrar o processo de transmissão cultural ao longo do tem- po. As bases da civilização ocidental cristã levam à Grécia antiga e ao impé- rio romano, através da dominação cultural, imposta por este à Europa, e ao seu legado pela idade média, ao homem “moderno”. A partir daí, toma-se como fio condutor a relação da Europa com as demais partes do mundo, decorrente da expansão, e o processo de dominação cultural sobre as áreas colonizadas. Estas serão estudadas “por dentro”, tendo o Brasil e a América como foco principal, ou seja, a história dos colonizados ao invés da história da Europa colonizadora (PREFEITURA DO RIO, 1988, p. 7).
A transgressão da relação opressor-oprimido, conforme reflexões de Paulo Freire (1987), ao propor um estudo “por dentro”, tendo “o Brasil e a
América como foco principal”, enuncia uma tentativa de “ruptura” com o eurocentrismo, “ou seja, a história dos colonizados ao invés da história da Europa colonizadora”. Mas essa proposta se insere em teia discursiva que afir- ma a importância de buscar “no passado de nossas raízes culturais” o proces- so de transmissão cultural. A proposta de ruptura com a abordagem coloniza- da da história do Brasil é articulada sem negar a herança cultural da história europeia, os conteúdos culturais universais reavaliados conforme o novo con- texto político e historiográfico.
A seguir, selecionamos atividades desenvolvidas para a quinta série do 1º Grau (atual sexto ano do Ensino Fundamental) para aprofundamento dessas aná- lises que possibilitam compreender como essas produções curriculares articulam fluxos de saberes na teia discursiva constituinte do conhecimento histórico esco- lar, “lugar de fronteira” (MONTEIRO, 2007[2]) entre História e Pedagogia.
Desafios e possibilidades de análise nas teias discursivas
Como já analisado, o “Livro Azul” apresenta como proposta a aprendi- zagem de História de modo ativo a partir de “casos concretos” expressivos dos vínculos que envolvem todos os seres humanos que trabalham e se relacionam em diferentes espaços-tempos, enquanto produzem sua própria História. A proposta curricular, que sob muitos aspectos tem sido considerada inovadora e de vanguarda para a época, colocava diante dos professores as renovações historiográficas e pedagógicas do período a partir de uma nova organização dos conteúdos básicos.
Nesse documento, verificamos um silêncio sobre as “teorizações” tanto pedagógicas como historiográficas. Esse significante é citado de forma negati- va ao ser enfatizado que os conceitos devem ser aprendidos “a partir da exem- plificação de casos concretos, e só concretos (e não através de teorização)” em contexto no qual era valorizado o saber gerado na “prática social” como aque- le que é a “matéria-prima do processo de ensino” (SAVIANI, 2007, p. 416). Professor como um “prático” que se formaliza nas enunciações sobre uma “epistemologia da prática” (TARDIF, 2002).
A fim de contribuir para o trabalho do professor, o “Livro Azul” dispo- nibilizava diversas sugestões metodológicas, entendendo que essas não dis- pensavam a atuação/reflexão dos professores inseridos nos processos de ensi- no e em diálogo com os conteúdos curriculares apresentados previamente no documento.
Para a 5a série (atual 6º ano), o “foco central” eram “os grupos humanos no tempo e no espaço”, assim explicitado:
Os grupos humanos criando cultura e suas relações com o meio e com outros grupos, em diferentes tempos e em diferentes espaços, são o foco central. Esse trabalho permitirá aos alunos a aquisição daquele instrumental mínimo de compreensão e reflexão histórica sobre o mundo que os cerca, compatível com seus níveis cognitivos (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 1988, p. 11).
A compreensão da História deveria ser entendida sob dois aspectos: o estrutural e o processual, considerando as “constantes da História, expressas em situações concretas” no passado e no presente” (Idem, p. 11). Concebida no âmbito de uma História Social, podemos reconhecer nesse enunciado ras- tros das proposições de Veyne (1989, p. 13-16) sobre os invariantes, as possibi- lidades de uma história científica e o reconhecimento das diferenças, articula- das com contribuições do marxismo relativas às forças produtivas e relações de produção.17
A articulação do estudo das sociedades em diferentes temporalidades e espaços (o “aqui, agora” e o “não aqui, não agora” [PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 1988, p. 7]), desafio para a ruptura com a linearidade, repre- senta uma descontinuidade em relação à tradição da abordagem cronológica hegemônica no ensino de História no Brasil. Nas demais séries, o sequencia- mento cronológico é retomado de certa maneira (Colônia, Império e Repúbli- ca) na perspectiva integrada de abordagem (Brasil, América, Mundo), mas a relação com o presente que orienta a abordagem mantém a proposta de reno- vação. Essa orientação pode ser melhor compreendida a partir de algumas atividades propostas em unidade inserida nas sugestões metodológicas, como demonstrações, no melhor sentido da palavra, de suas possibilidades e do teci- do discursivo que possibilitou sua construção.
Na unidade dois, que integra as sugestões metodológicas, temos o se- guinte conteúdo: “Os grupos humanos e suas relações com a natureza”. Nela, os autores trabalharam as questões ambientais a partir de temas atuais daque- le contexto, mas que também chegam ao nosso tempo. Para a construção dos conceitos de “progresso, extrativismo ou economia coletora e nomadismo” (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 1988, p. 37), os autores valeram-se de outras cosmovisões e modos de viver, focalizando vivências de grupos “ori- ginários” do Brasil e de outras partes da América, usualmente denominados de “índios ou indígenas”18.
Aliás, ao longo de todo o documento, reconhecemos a preocupação com a problematização de outros modos de vida em contextos históricos variados, com destaque para as culturas “indígenas” e afro-brasileiras, antecipando-se mesmo à materialização das Leis 10.639-03 e 11.645-08. Isso demonstra, além da preocupação com a nossa pluralidade, a intencionalidade anteriormente
enunciada de romper com o eurocentrismo a partir da valorização de nossa História.
Nessa unidade, os autores propõem aos estudantes as seguintes situa- ções-problema:
- “Como é possível aumentar as indústrias do RJ sem prejudicar a na- tureza e o homem?” (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 1988, 36).
- “Como o índio vai poder sobreviver se as florestas e regiões de caça diminuem progressivamente com a expansão das frentes agrícolas do “bran- co”? (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 1988, 37).
Na expectativa de que os estudantes “aprendam fazendo”, a opção de abordagem por meio de situações-problemas coloca-os na posição ativa de sua aprendizagem em perspectiva crítica, o que se alinha com o pensamento pro- gressista no campo educacional da época.
Essa construção parte de uma práxis da vida, no sentido que o discurso pedagógico de Paulo Freire propõe: a solução dos problemas propostos, nos quais os estudantes precisam (re)conhecer e questionar o mundo que os cerca, ao mesmo tempo em que vão travando contato com outras possibilidades de existência por meio de textos e atividades orientadas, como exemplificam os trechos a seguir:
Atividade 1.
- Leitura do texto ou de trechos da carta do cacique Seattle ao presidente dos Estados Unidos: “Quem é o dono da pureza do ar e do esplendor da água”.
- Interpretação com os alunos, destacando:
- as colocações do indígena relativas à preservação da natureza
- a visão do índio integrando homem/natureza como partes inseparáveis
- a visão que o índio tem do homem branco, de sua vida e de suas cidades
- as previsões sobre o desequilíbrio ecológico […]
Constatar com casos concretos do século XX o que o indígena afirmou: o homem branco com sua tecnologia avançada agora pode mudar até os cur- sos dos rios. Exemplos disso na construção de barragens, represas, etc.
Debate sobre a poluição do ar e da água em nossos dias.
- Comparar a situação que enfrentamos com as previsões do índio na carta da atividade
- Pedir aos alunos que deem exemplos de casos concretos de poluição nos lugares em que moram ou onde
Os alunos trazem para a sala de aula recortes de revistas com cenas do tra- balho humano e avaliam os pontos positivos e negativos dessas atividades para a preservação da natureza (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 1988, p. 34 a 36).
É importante destacar que essas atividades foram desenhadas para estu- dantes entre onze e treze anos de idade dentro do processo de escolarização
em uma linguagem e em graus de dificuldade, portanto mais acessíveis para os mesmos. Essas atividades irão possibilitar a construção dos conceitos citados (isto é, progresso, extrativismo e nomadismo) e encaminhar a construção de outros conceitos, tais como agricultura, manufatura e indústria.
O trabalho como eixo conceitual orientou a abordagem de como os gru- pos focalizados organizavam suas formas de existência, isto é, como se dava a divisão do trabalho nos contextos variados. Mas a proposta não se encerrava no passado, como se percebe no trecho selecionado. Nele, encontram-se as questões do tempo presente, tendo a problemática ambiental como eixo para as discussões. Pressupostos da história social e do materialismo histórico con- tribuem para organizar a teia discursiva constituída.
A partir da análise das atividades, é possível afirmar que essa produção curricular buscava efetivamente desenvolver a reflexão dos estudantes, olhan- do para o passado, para outros povos em outros tempos e espaços, relacionan- do-os à contemporaneidade dos estudantes e suas questões, levando-os a refle- tir também sobre seus horizontes para o futuro e suas possibilidades de ação.
Considerações finais
Este trabalho focalizou um documento curricular como parte de exer- cícios teórico-metodológicos desenvolvidos em nosso grupo de pesquisas com vistas a analisar a teia discursiva constituída em texto curricular para a disci- plina escolar História no contexto do município do Rio de Janeiro (1985- 1988).
Assumir esse documento curricular como produção discursiva levou- nos em direção às interlocuções teóricas com o trabalho de Albuquerque Jr. (2007) em diálogo com Michel de Foucault (2000) e, a partir do desafio pro- posto, buscar compreender a teia discursiva que constituiu as orientações pro- postas para o ensino de uma História renovada e que articularam enunciados sobre concepções pedagógicas e sobre a História a ser ensinada.
Um texto não se encerra na fase de sua produção escrita; ao contrário, suas apropriações são abertas e ilimitadas. Nesse sentido, podemos concluir que essa produção discursiva curricular expressa marcas de diversas tempora- lidades: a temporalidade dos sujeitos no presente com suas visões de mundo e compreensões sobre os documentos curriculares que estudam; e as compreen- sões dos sujeitos, outrora, no passado, cujas significações desse passado eco- am de modo disperso nos textos curriculares lidos, produzidos e ressignifica- dos no presente. Assim, a análise documental ao longo deste trabalho exigiu rigor metodológico para reconhecer que as nossas inteligibilidades produzidas
a partir de uma ótica teórica pós-estruturalista são distintas da lógica de cons- trução de tais documentos curriculares e, assim, evitar anacronismos.
Além da análise dos textos de apresentação do documento, seleciona- mos uma unidade inserida nas sugestões metodológicas com vistas a compre- ender como os autores articularam por meio de proposições práticas as ques- tões teóricas que chegavam de modo disperso nesse documento, por meio do solo arqueológico que possibilitou a renovação historiográfica vivenciada na época e as contribuições do campo pedagógico. A unidade selecionada é ex- pressiva do papel de vanguarda e de constituição de um novo código discipli- nar desempenhado por esse documento com encaminhamentos para a supera- ção do eurocentrismo e de uma história linear, cronológica, e de efetivação de mudanças na docência por meio de orientações sobre a prática.
Destacamos a cultura dos povos originários do Brasil e da América para nossa análise, ainda que no documento outras culturas sejam focalizadas, en- tre essas as afro-brasileiras. Por meio de eixos conceituais a proposta curricu- lar buscou superar a linearidade temporal, problematizando as questões con- temporâneas aos estudantes. No trecho analisado, a questão ambiental foi objeto de atenção para provocar nos estudantes a reflexão sobre os “indíge- nas” no tempo presente, bem como sobre as expectativa de futuro que envol- vem todos, “indígenas” e “não indígenas”. Debates que envolvem tanto a ques- tão “indígena” como ambiental foram, assim, reavaliados, atualizados face às questões daquele presente.
Enunciados sobre a necessidade e importância da construção de uma sociedade participativa e democrática e de formação de cidadania crítica são afirmados na metodologia de ensino proposta. Ecoam contribuições de Vygotsky (1984), que relaciona aprendizagem e socialização, de Libâneo (1985) e a pedagogia crítico-social dos conteúdos, e de Paulo Freire, evidenciadas pelos termos: “vivência do aluno”, processo de “significação”, “sujeitos críti- cos” e suas “interações”.
Recuadas no tempo, mas não ausentes desses discursos, encontramos continuidades ao reconhecer as contribuições do movimento da Escola Nova e seu principal articulador, Anísio Teixeira, seja pela defesa da escola pública, laica, gratuita e de qualidade, seja pela defesa do estudante como sujeito ativo de seu próprio processo de aprendizagem, descontinuidade em relação a abordagens anteriores, na ênfase atribuída, nesse documento, à perspectiva crítica.
As ideias desses autores, mesmo quando não expressamente citados, dispersas nos discursos lidos a partir do documento, são “rastros” de um tem- po, integrantes de um “arquivo” (FOUCAULT, 2000, p. 149, 150), constituí-
do em tempos de redemocratização e oposição radical ao período do contexto autoritário vivenciado em nosso país entre 1964 e 1985. Os silenciamentos e as possibilidades de dizer, de trazer o novo não fazem parte apenas de um solo de saberes, que aqui tentamos recuperar nos entrecruzamentos de teias discur- sivas entre a História e a Pedagogia. Tais silenciamentos e possibilidades de dizer inserem-se nos jogos de poder, jogos estes expressos por meio de jogos de linguagem.
O desafio da abordagem discursiva para a análise de produções curricu- lares no ensino de História mostrou-se potente para a compreensão desse “lu- gar de fronteira”, no qual Pedagogia e História se articulam constituindo conhe- cimento escolar em um novo código disciplinar e que, nesse documento, aponta para a formação de sujeitos capazes de “situar-se e compreender-se como resul- tantes de tradições e agentes de transformações em toda essa história”.
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1 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUCRIO. Pro- fessora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista de Produtividade de pesqui- sa do CNPq. E-mail: [email protected].
2 Professora da rede municipal de Niterói (RJ). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE/UFRJ). Pesquisadora da Funda- ção Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ – pelo programa de bolsas “doutorado nota dez”. E-mail: pir[email protected].
3 “A História ensinada: saber escolar e saberes docentes em narrativas da história escolar” (2005- 2010); “Ensino de História e historiografia: narrativas, saberes e práticas” (2008-2011) com apoio FAPERJ; “Tempo presente no ensino de história: historiografia, cultura e didática em diferentes contextos curriculares” (2011-2016), com apoio CNPq; “Narrativas do Estado do Rio de Janeiro nas aulas de História: um estudo a partir de diferentes vozes” (2014-2016), com apoio FAPERJ. Essas pesquisas foram desenvolvidas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Ensino de História e Formação de Professores/GEHPROF, integrante do Laboratório de Estu- dos e Pesquisas em Ensino de História-LEPEH.
4 Sobre a questão da continuidade no código disciplinar da História no Brasil, ver ABUD, K. (2011).
5 Em algumas experiências realizadas, como por exemplo o ensino dos Estudos Sociais nos Co- légios Vocacionais em São Paulo, ocorreu de forma diferenciada, constituindo uma área nú- cleo e integrando conteúdos de disciplinas que se mantinham como campos autônomos. Ver LEME et al., 1986, p. 3.
6 A pesquisa “Currículo, docência e formação de professores de história: entre tradições e inova- ções 1985-2015” (2017 – Atual) é realizada com financiamento do CNPq por meio de bolsa de produtividade de pesquisa e de iniciação científica aos estudantes de graduação Luiz Henrique
Carvalho (2018/2019) e Lavínia Bárbara de Medeiros Nascimento (2019/2020) e de bolsa da UFRJ a Fernanda Gonçalves de Albuquerque Silva (2018/2020).
7 Sobre a política educacional durante o regime militar, a resistência e luta pelo retorno da disciplina História ao currículo do 1º Grau, ver FONSECA, S. G. Caminhos da História Ensina- da. Campinas: Papirus, 1993.
8 No município do Rio de Janeiro, o processo foi iniciado em 1983 na gestão da professora Maria Yedda Linhares, que criou grupos de trabalho para a reformulação dos currículos das escolas municipais da cidade do Rio de Janeiro, entre eles o de Estudos Sociais. Ver MELLO (1993).
9 No texto em pauta, Albuquerque Jr. realiza um exercício teórico ao contrastar a análise dis- cursiva baseada em Foucault com aquela realizada por Guinzburg (1987) com base em indícios na obra “O queijo e os vermes”.
10 FOUCAULT, M. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, meu irmão e minha irmã. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal,1982.
11 Para a elaboração deste artigo foi importante a participação de Camile Jantalia Barbosa, dou- toranda do PPGE e integrante do GEHPROF, para a pesquisa e articulação das referências pedagógicas no contexto educacional da segunda metade do século XX no Brasil.
12 Este documento que ficou conhecido como o “Livro Azul” pela cor predominante da capa; pode ser considerado um marco no que concerne à reestruturação do código disciplinar (CUESTA-FERNANDEZ, 2002) de História no Brasil constituído na cidade do Rio de Janei- ro. PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1988.
13 Essa defesa em favor da escola pública é constituída em um solo arqueológico anterior e um pouco mais profundo, que nos chega por entre camadas nessa conjuntura: são rastros de dis- cursos dos “pioneiros da Educação”, movimento liderado pelo educador brasileiro Anísio Teixeira desde os anos 1930.
14 Menção “ao obscurantismo intelectual imposto por duas décadas de ditadura”, presente no texto escrito por Moacyr de Góes, então Secretário Municipal de Educação, para apresentação do documento, posiciona politicamente essa proposta em relação aos tempos sombrios do regime inaugurado pelo golpe civil-militar de 1964. Esse posicionamento se expressava mais explici- tamente nos conteúdos propostos para a antiga 8ª série do 1º Grau (atual 9° ano do Ensino Fundamental): “transformações políticas: da ditadura à abertura; o funcionamento de um regime democrático representativo e a participação direta da população” (op. cit., p. 14), que orientam para a necessidade da abordagem desse tema da então história do tempo presente com destaque para a participação da população.
15 É importante destacar que o documento em análise foi produzido a partir de lógicas distintas
em relação aos nossos referenciais teóricos, que se aproximam do campo pós-estruturalista, o que acaba produzindo um paradoxo entre a teoria e a empiria. Para enfrentamento dessa problemática, operamos com as diversas camadas discursivas em suas condições históricas de enunciação, buscando evitar comparações entre essas experiências (resultantes da pesquisa e da produção do documento).
16 Esse pensamento de Vygotsky, que relaciona socialização e o processo de aprendizagem, foi muito relevante para a concepção da corrente pedagógica denominada sociointeracionismo ou sociocontrutivismo.
17 Esse autor não é mencionado na bibliografia deste livro, mas a teia discursiva criada para a explicação da metodologia ressoa ideias desse autor.
18 Utilizamos o termo “povos originários” para designar os agrupamentos humanos que já vivi- am aqui antes do encontro com os povos da Europa, entretanto os termos “índios e indígenas” foram mantidos quando esses fazem referência à obra analisada ou quando fazem parte de um discurso estabilizado, com indicação entre aspas.
Conhecimento escolar e currículo de História: apostas teóricas em tempos de negacionismos
Yara Cristina Alvim1 Diego Bruno Velasco2
Muitas pessoas têm me perguntado recentemente o que elas podem fazer em prol da equidade racial no país. (…) Então, perguntam: qual seria uma ação antirracista possível na minha realidade? O que posso fazer? Bom, há muito o que ser feito, mas neste texto gostaria de destacar o que é um ele- mento central na formação e constante atualização do sistema racista: a educação. A luta de movimentos negros pela transformação no sistema edu- cacional remonta às fundações deste país. (…) Em 2003, uma dessas grandes batalhas resultou na Lei 10.639. (…) O cumprimento da Lei 10.639 e a valo- rização da educação antirracista são uma medida de urgência histórica, cons- tante e que deve ser feita por toda a sociedade civil (…) que devem se preocu- par com a promoção do ensino histórico e político da luta da população negra brasileira, que segue resistindo neste país.3
O fragmento que abre o capítulo, de autoria da filósofa e feminista ne- gra Djamila Ribeiro, foi publicado no caldo dos movimentos antirracistas, de- sencadeados com a morte de George Floyd, cidadão afro-americano, assassi- nado por asfixia por um policial branco em maio do ano passado na cidade de Mineápolis nos EUA. O episódio, que desencadeou uma onda de protestos nacionais e que logo adquiriu repercussões internacionais, deu impulso a uma luta antirracista global, unificada pela bandeira “Black Lives Matter”.
À morte de George Floyd sucederam amplos debates em torno do racis- mo estrutural, que se reatualiza no cotidiano de países que viveram a experiên- cia histórica da escravidão negra, a exemplo do Brasil. O artigo de Djamila Ribeiro é expressivo desse processo. Ao buscar responder à pergunta “como constituir efetivas ações antirracistas?”, Djamila Ribeiro faz referência à lei 10.639, que desde 2003 tem implicado as escolas e os currículos escolares no sentido de afirmar o lugar da “cultura negra brasileira e [do] negro na forma- ção da sociedade nacional”4.
O artigo de Djamila Ribeiro é, portanto, evocativo de uma demanda histórica endereçada à escola e que se reatualiza diante das “feridas históri- cas” reabertas em nosso presente a partir da morte de George Floyd e de tantas
outras mortes violentas contra negros no Brasil contemporâneo. Sobre esse processo Arthur Avila afirma:
É nesta conjuntura que o problema das “feridas históricas” adquire urgên- cia. Segundo Chakrabarty (2007, p. 77-79), tais “historical wounds” podem ser pensadas como uma combinação da história e da memória de injúrias e violências passadas que, por sua vez, sustentam demandas públicas por jus- tiça e reconhecimento, especialmente por grupos submetidos a processos diversos de colonialismo externo e interno. Desta maneira, a própria ideia de uma “ferida histórica” confunde passado e presente, tornando o segundo habitado pelos espectros do primeiro. Dentre estas máculas pode-se mencio- nar todas aquelas desigualdades e injustiças resultantes de processos de co- lonização, de exclusão legal ou social e de subalternização que são imagina- dos como ainda operando na atualidade (AVILA, 2016, p. 199).
A aposta na instituição escolar enquanto gestora das “feridas históri- cas” é expressiva de um processo mais amplo de eclosão das chamadas “de- mandas da diferença” (GABRIEL, 2011b), voltadas para a escola. O avanço consistente das agendas que advogam um pluralismo e deslocamentos nas narrativas que se produzem no interior do currículo é um fenômeno perceptí- vel e que tem na lei 10.639/2003 (com posterior desdobramento na lei 11.645/ 2008) o seu marco institucional mais expressivo.
Além de colocar atores sociais, outrora marginalizados, em posições de protagonismo, tal legislação é importante para avaliarmos as dimensões das injustiças, discriminações e violências que foram/são cometidas contra sujei- tos africanos escravizados e contra os povos originários da América ao longo de diferenciados períodos históricos.
É nesse sentido que as discussões em torno das “feridas históricas” (AVI- LA, 2016) bem como dos “passados sensíveis” (ALBERTI, 2014; FALAIZE, 2014; GIL; EUGENIO, 2018) ou dos “passados vivos” (PEREIRA; SEFF- NER, 2018) mostram-se pertinentes para pensarmos o campo do ensino de História, visto que permitem vislumbrar as possibilidades de articulação entre as dimensões do passado escravista e seus resquícios prementes na atualidade, como o racismo.
Segundo Gil e Eugenio, o ensino de temas sensíveis marca uma “luta que reivindica lembrar, manter viva uma memória e reparar o silêncio e as simplificações na narrativa histórica” (GIL; EUGENIO, 2018, p. 143), posto que abarca as variadas mobilizações de diferentes grupos sociais em torno da legitimação de suas memórias e histórias. Por conseguinte os autores enten- dem que o ensino de tais temas nas aulas de História estimula as instituições de ensino a repensarem questões como os traumas, as injustiças, os preconcei- tos e os múltiplos tipos de sofrimentos produzidos historicamente.
Se, por um lado, observamos um crescimento de demandas mais de- mocráticas no seio escolar, voltadas para a inclusão de narrativas que se dis- tanciam dos paradigmas eurocêntricos, por outro lado, é digno de registro que estamos vivenciando um momento simultâneo de crescimento de discursos de ódio, intolerância e aversão às instituições democráticas. Não nos cabe aqui esmiuçar os rumos dessa discussão no contexto político brasileiro ao longo dos últimos anos.
Todavia é possível tecermos alguns comentários sobre os impactos que esses discursos, que buscam negar as violências, as injustiças e os apagamen- tos, exercem em nossa atuação enquanto profissionais da História, visto que muito dessa postura negacionista5 opõe-se diretamente às narrativas que ver- sam sobre o passado sensível da escravidão no país. Coleções de exemplos mais recentes não nos faltam, como, por exemplo, vem ocorrendo no espaço da Fundação Cultural Palmares6 no decorrer dos anos de 2019 e 2020.
Basta localizarmos as últimas polêmicas suscitadas pelo presidente da Fundação, Sérgio Camargo, no contexto de celebração dos 132 anos da aboli- ção da escravidão no Brasil em 13 de maio do ano passado. No contexto das mobilizações antirracistas, assistimos ao acirramento de posturas oficiais ra- dicais, que têm deslegitimado valores e conquistas democráticas consagradas pela Constituição, como a promoção da igualdade racial.
A data de 13 de maio posicionou, na perspectiva eurocêntrica, a figura histórica de Princesa Isabel como protagonista da abolição da escravidão no Brasil e criou uma data antagônica: o dia 20 de novembro, que alude ao ani- versário da morte de Zumbi dos Palmares e em que é celebrado o Dia da Cons- ciência Negra a partir de ressignificações lideradas pelos movimentos negros. Nas publicações do site oficial da Fundação, Zumbi dos Palmares passou a ser apresentado como um ícone criado pela “política esquerdizante”, que teria a função de usar “o povo negro como massa de manobra”7.
A polêmica estendeu-se para as redes sociais. No mesmo 13 de maio, Sérgio Camargo publicara uma mensagem institucional da Fundação, intitu- lada “Zumbi: herói da consciência negra escravizada pela esquerda”, que se seguia pelo comentário: “Herói da esquerda racista; não do povo brasileiro. Repudiamos Zumbi!”. A postagem e outras que se sucederam ao longo do dia provocaram uma onda de interações dos usuários, que iam desde o endossa- mento ao discurso oficial às críticas acirradas ao apagamento do protagonis- mo de Zumbi dos Palmares como liderança histórica representativa da memó- ria e das lutas dos negros no Brasil.
No meio das controvérsias despontavam discursos negacionistas, fron- talmente dirigidos contra o acúmulo das pesquisas históricas e dos consensos
historiográficos em torno da participação histórica de personagens como Prin- cesa Isabel e Zumbi dos Palmares no sistema escravista brasileiro. Tais discur- sos conservadores têm tensionado ainda as narrativas históricas escolares, co- locando em xeque o compromisso da escola com as demandas da diferença.
Os exemplos que ilustramos nas linhas acima, a partir das polêmicas suscitadas com as comemorações de 13 de maio e no caldo das intensas mobi- lizações antirracistas, convocam-nos a refletir sobre o currículo de História diante das pautas do tempo presente. Como pesquisadores da área do currícu- lo de História, apontamos para a centralidade do conhecimento escolar como espaço necessário para refletirmos sobre as variadas demandas direcionadas às instituições escolares, e é desse lugar que buscaremos pautar a reflexão so- bre o currículo de História enquanto espaço de afirmação do conhecimento e de enfrentamento às pautas negacionistas presentes em nossa sociedade.
Nas linhas que se seguem, procuraremos refletir sobre o tema a partir de perspectivas teóricas ancoradas em abordagens do campo do currículo, em articulação com o campo do ensino de História. Apostamos que tais aborda- gens possam contribuir para a reflexão sobre o currículo de História nesse contexto de tensionamento radical, que tem colocado em xeque as narrativas históricas escolares, fundadas e reafirmadas na íntima relação com a ciência e com valores democráticos e inclusivos.
Conhecimento escolar e narrativas históricas: apostas teóricas para pensar a pesquisa na área do Currículo de História
É interessante notar quanto interesse, quanta vigilância e quantas interven- ções o ensino de História suscita nos mais altos níveis. A História é certa- mente a única disciplina escolar que recebe intervenções diretas dos altos dirigentes e a consideração ativa dos parlamentos. Isso mostra quão impor- tante é ela para o poder (LAVILLE, 1999, p. 130).
Em artigo intitulado A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História (LAVILLE, 1999), o pesquisador canadense Christian Laville, localiza o currículo de História como objeto constante de disputas, que ocorrem através de embates entre versões de narrativas históricas. A partir da sugestiva expressão “guerra das narrativas”, o autor incita-nos a depreender que, longe da imagem de território neutro e pacífico, os currículos de História seriam um cam- po minado e a narrativa histórica a sua principal arma de guerra.
Laville ilustra seu argumento mobilizando exemplos de debates públi- cos e de reformas oficiais nos currículos de História ocorridos em diferentes países, desde o contexto de pós-Segunda Guerra até o final do século XX. A proximidade entre as diversas guerras das narrativas do século XX, travadas
dos Estados Unidos à Ucrânia, situar-se-iam naquilo que evocam e explici- tam: trata-se de disputas de poder em torno da fixação de sentidos da História escolar.
Passadas duas décadas e uma virada de século desde a publicação da- quele artigo, vemo-nos diante de um cenário paradoxal. Se é possível observar que os currículos de História contemporâneos também têm sido produzidos num contexto de acirramento das guerras das narrativas, por outro lado, é imperioso reconhecer que o quadro em que essa disputa se insere distancia-se daquele evocado por Laville.
Enquanto o autor situa as guerras das narrativas no tempo da moderni- dade, as disputas narrativas de nosso presente localizam-se em outros ares de tempos, nos “tempos pós”, como salienta Gabriel (2011a), em que dimensões caras ao pensamento moderno encontram-se tensionadas, como as noções de objetividade, verdade e racionalidade. Nesse caldo, a narrativa assumiu cen- tralidade no campo do pensamento intelectual, pluralizou os sentidos, poten- cializou as leituras do mundo e, no limite, as radicalizou.
Nesse tempo de questionamentos da razão moderna, a escola encontra-se “sob suspeita” (GABRIEL, 2011a), particularmente o conhecimento escolar e sua relação com dimensões como a objetividade, a verdade e a racionalidade, o que, sem dúvida, tem acirrado as disputas de sentidos no currículo de Histó- ria. No bojo dessas disputas, a narrativa histórica – aqui compreendida como categoria de pensamento estruturante da ciência Histórica – tem sido desesta- bilizada de sua articulação com a História escolar. No limite, temos experi- mentado o tensionamento da narrativa histórica por outros sentidos de narra- tiva, assentados em lógicas discursivas fundadas na negação da objetividade e da cientificidade do conhecimento.
Acreditamos que é nesse paradoxo que se encontra o nó da reflexão acer- ca do currículo de História hoje e compreendemos que é a partir desse mesmo nó que podemos buscar enfrentar teoricamente o tema. Para tanto, apostamos na fertilidade teórica dos estudos pós-estruturais do currículo8 em articulação com o campo do ensino de História para a composição de uma reflexão acerca do currículo de História do/no tempo presente (MONTEIRO, 2011).
Para seguirmos a conversa, propomos manter-nos caminhando com a fecunda metáfora das “guerras das narrativas” para pensar o currículo de His- tória na medida em que ela aponta para dimensões epistemológicas e políticas que envolvem a configuração da História como conhecimento escolar e nos permite refletir sobre os desafios e apostas para o ensino dessa disciplina esco- lar neste tempo marcado pelo acirramento das guerras das narrativas.
Buscaremos, contudo, ressignificar o sentido da expressão “guerra das narrativas”, propondo olhar a “guerra” a partir da dimensão de poder9, inscri- ta nas abordagens curriculares de matriz pós-estrutural, e focalizar a “narrati- va” pelo conceito de narrativa histórica, cunhado pela teoria da História, em diálogo com as teorizações no campo do ensino de História.
Ancorados nas perspectivas abertas pelos estudos curriculares de matriz pós-estrutural, compreendemos o currículo como uma prática discursiva de atribuição de significados e de construção de sentidos, que se faz num jogo de interseção entre diferentes discursos sociais e culturais. Nesse jogo, sentidos são incessantemente disputados, mesclados, negados, fixados e universaliza- dos (LOPES; MACEDO, 2011).
A prática de atribuição de sentidos é vislumbrada como um ato de po- der, que se refere tanto ao poder de fixar sentidos, de hegemonizá-los e univer- salizá-los, como se refere às incessantes disputas entre discursos, que estão permanentemente abertos no jogo da produção curricular. Essa dimensão do poder é central na reflexão sobre o currículo na medida em que sublinha as fissuras desse jogo discursivo e a impossibilidade de fechamento total de senti- dos (MACEDO, 2006).
Nessa concepção, o currículo não seria um repertório de sentidos previa- mente produzidos, mas sim a própria produção de sentidos. Tampouco seria fruto de uma “guerra” ou disputa de poder localizada em instâncias externas (quer seja o Estado, a sociedade civil ou os grupos minoritários) e declarada em momentos de crise e de questionamento, como a leitura mais aligeirada das guerras das narrativas pode sugerir. Como sublinham Lopes e Macedo, “o currículo não é um produto de uma luta fora da escola para significar o conhe- cimento legítimo”, mas sim “a própria luta pela produção de significado, a própria luta pela legitimação” (2011, p. 92).
Nesse quadro, é possível retomar os sentidos de “narrativas” a partir do diálogo que propomos estabelecer com a chamada “guerra das narrativas” (LAVILLE, 1999). À história narrativa, que hegemonizou os currículos de História modernos, outros sentidos de narrativa têm entrado nesse jogo de negociação, sobretudo aqueles ancorados nas demandas da diferença. Nesse jogo de negociação, sentidos de conhecimento histórico têm sido mesclados e hibridizados no currículo escolar.
Por outro lado, no cenário mais recente, em que a escola se encontra sob suspeita, lógicas discursivas avessas às noções de objetividade e de verdade histórica têm tensionado as disputas pela fixação de sentidos de conhecimen- to histórico escolar. Nesse cenário, em que discursos que radicalizam dimen- sões como a objetividade e a verdade históricas buscam hegemonizar-se, con-
sideramos oportuno afirmar os limites do que entra no jogo da definição do que é considerado conhecimento histórico escolar e do que fica fora dessa cadeia de significação.
Compreendemos que fixar sentidos sobre os limites do que é considera- do conhecimento histórico escolar nesse tempo de escola sob suspeita é assu- mir uma postura teórica e política de afirmação da objetividade e da verdade histórica. Concordamos com Gabriel e Moraes quando afirmam:
Os fluxos de cientificidade não são percebidos, nessa definição, como fluxos de conhecimentos universais e neutros. Ciência é um termo em torno do qual se disputam sentidos de verdade. Assumir a centralidade do papel dos fluxos de cientificidade na definição de conhecimento escolar significa assu- mir o compromisso da escola com um regime de verdade (GABRIEL; MORAES, 2014, p. 101).
Compreendendo o discurso histórico como forma de configuração nar- rativa que estabelece sentido de orientação no tempo (RICOEUR, 2010), apos- tamos que a razão de ser do conhecimento histórico escolar está ligada à sua capacidade de oferecer um fio de inteligibilidade ao mundo. Nesse contexto de escola sob suspeita, consideramos que a afirmação do conhecimento histó- rico escolar permanece como tema incontornável nas pesquisas em ensino de História.
Essa nossa aposta teórica e epistêmica em torno do conhecimento esco- lar10 como elemento incontornável (GABRIEL; CASTRO, 2013) para pensar a área do currículo de História implica a necessidade de reafirmarmos nosso compromisso de desfazer algumas lógicas discursivas que insistem em se cris- talizar no cenário educacional e que, por conseguinte, tendem a inferiorizar o conhecimento que é produzido na/para a escola.
Problematizando noções de conteúdo e narrativas a partir do diálogo com o conhecimento histórico escolar
Quando mobilizamos o eixo conhecimento escolar como elemento pro- tagonista na discussão curricular, operamos a partir de um ponto de vista epis- temológico que não comunga das associações usuais entre os termos “conteú- dos” e “conteudismo” (GABRIEL, 2015). Pensar na importância dos conteú- dos escolares como um dos elementos constituidores do conhecimento esco- lar não significa retomar a agenda que concebia (e que ainda persiste em deter- minados segmentos) um “ensino de qualidade” a partir da mensuração da quantidade de matérias/conteúdos que uma unidade escolar era capaz de trans- mitir/passar a seus discentes ao longo dos anos letivos.
Concordamos, inclusive, que essas equivalências que foram construídas em torno dos termos “conteudismo” e “História” contribuíram para fomentar o aparecimento de estratégias didáticas que sustentaram durante muito tempo a fixação de certas concepções como “História é decoreba” ou “História é memorizar datas e feitos de determinados personagens”. Nossa apropriação do conceito “conteúdo” caminha em outra direção, pois se coaduna com as palavras de Gabriel e Moraes, entendendo-o como
(…) unidade diferencial que, quando incorporada na cadeia de equivalência que fixa o sentido de escolar, garante a recontextualização didática do conhe- cimento científico produzido e legitimado em função dos respectivos regimes de verdade das diferentes áreas disciplinares (GABRIEL; MORAES, 2014, p. 32).
Assim sendo, os conteúdos podem garantir, dentro da cadeia de equiva- lência do conhecimento escolar, fluxos de cientificidade que os legitimam pe- rante as demandas sociais de cada presente voltadas à instituição escolar (GA- BRIEL; CASTRO, 2013). Nesse sentido, a reorientação do olhar sobre como disputamos sentidos para significar os conteúdos históricos escolares propicia “condensar, na cadeia de significação de currículo escolar, múltiplos discursos historicamente hegemonizados – ‘ciência’, ‘razão’, ‘objetividade’, ‘verdade’ – no e pelo campo educacional” (GABRIEL, 2017, p. 519) e problematizá-los para além das definições hegemônicas que insistem em agrupá-los nos hori- zontes cartesianos de produção de conhecimento.
Defendemos, outrossim, a importância de resgatar a discussão sobre os conteúdos escolares dentro do campo do currículo, de modo a combater a chamada “conteudofobia”, em que, segundo Veiga-Neto (2012, p. 279), tudo se passa como se conteúdos curriculares pertencessem apenas ao âmbito das teorizações pedagógicas conteudistas, sendo exorcizados e apontados como elementos prejudiciais para a formação dos alunos.
As formas como esses conteúdos são significados no âmbito de inúme- ras redes de ensino da Educação Básica, em pleno contexto das primeiras dé- cadas do século XXI, precisam ser problematizadas. Afinal, não é razoável supor que apostilas padronizadas (com informações históricas extremamente enxutas) ou videoaulas disponíveis em plataformas digitais (que acabam por reproduzir o teor das narrativas presentes nos livros didáticos) possibilitarão reelaborações das dimensões do passado e do presente, totalmente diferencia- das e/ou, interagindo com bell hooks (2013), “transgressoras”.
Interagindo com a perspectiva de Laville (199) a respeito da “guerra das narrativas”, situamos nossa aposta na História escolar como um lugar de cria-
ção/recriação de narrativas curriculares que se articulam com as questões tem- porais que atravessam as vivências de professores e estudantes.
Além disso, falar de narrativas históricas e de escolas, enquanto pesqui- sadores voltados para as áreas do currículo e do ensino de História, coloca-nos a importância de destacar a dimensão de verdade que se interliga a esse tipo de saber. Tomamos como referência o que foi escrito por Forquin (2000, p. 50) quando concebe que “todo ensino se inscreve necessariamente em um hori- zonte de valor de verdade”.
Chamamos atenção para a ideia de “valor de verdade”, e não para “va- lor da verdade”, para pontuar que não estamos defendendo a acepção de ver- dades absolutas e definitivas, mas compreendendo esse “verdadeiro” como lugar de disputas por hegemonização contingentes de sentidos; afinal, subli- nhar o conhecimento escolar como uma construção socio-histórica não o isenta de sua condição de estar “no verdadeiro” (GABRIEL; MORAES, 2014).
Considerar a dimensão ontológica e conflitiva das disputas em torno do que se considera verdadeiro e legítimo de ser ensinado em cada tempo presen- te impulsiona-nos a investir nas aproximações e distanciamentos entre Histó- ria e Memória e suas reverberações no espaço escolar.
Sem querer resgatar as discussões acumuladas em torno das relações tênues entre esses conceitos, nossa discussão aqui reside em enfatizar o espaço do currículo de História como espaço produtor de novas narrativas e conheci- mentos em diálogo com sua missão de “fazer defeitos nas memórias”, segun- do Albuquerque Júnior (2012).
No entendimento desse autor, trata-se de fazer as memórias, principal- mente aquelas consideradas oficiais e cristalizadas, “errarem” (ALBUQUER- QUE JÚNIOR, 2012, p. 37). Isso significa repensar o espaço do currículo de História como espaço fecundo para produzir visões distanciadas daquelas ver- sões consagradas do passado, fazendo aparecer as “costuras malfeitas” e os “pontos de esgarçamento das tessituras do passado”.
Nossa aposta de análise consiste em protagonizar novas vozes que nar- ram e que são narradas. Do mesmo modo, trata-se de defender uma reflexão sobre o conhecimento histórico escolar em diálogo com as prerrogativas que privilegiem suas possibilidades de produzir marcas, afetos e empatias com su- jeitos que viveram/vivem nas mais distintas temporalidades através das narra- tivas que produzimos e selecionamos em nossas atividades docentes.
É nesse sentido que citamos novamente Albuquerque Júnior para rea- firmar a importância de reflexões em torno dos passados sensíveis, conside- rando que
O ensino da História seria, portanto, o trabalho de construção, antes de mais nada, das entidades históricas, a construção de um repertório de temas, de eventos, de acontecimentos, de personagens, de períodos, de problemas, que constituiriam o que chamamos de História. Em seguida à escolha desse re- pertório, viria a escolha das maneiras de significá-lo, de torná-lo legível, compreensível em sua singularidade e diferença como evento e temporalida- de, de articulá-lo narrativamente, de torná-lo relato. Mas o passo seguinte seria a escolha da maneira como esse relato sobre as entidades escolhidas produziria marcas em outrem, que estratégia narrativa deveria ser escolhida para que essas entidades, uma vez articuladas num relato, pudessem deixar marcas em outras pessoas (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2016, p. 36).
Retomamos, portanto, a importância de reafirmar o lugar da pesquisa sobre ensino e currículo de História em diálogo com as disputas narrativas em torno dos conteúdos escolares, uma vez que o passado sensível da escravidão bem como seus resquícios racistas presentes na atualidade são discussões ne- cessárias para pensarmos que conservadorismos e negacionismos são esses que circundam nossa constituição enquanto sociedade brasileira.
É dentro dessa perspectiva que vislumbramos a relevância no conheci- mento histórico escolar, posto que ele pode fornecer chaves de leituras para problematizarmos os casos de silenciamento/apagamento do protagonismo africano e afrodescendente, como temos presenciado, por exemplo, nas for- mulações narrativas mais recentes de espaços oficiais como a Fundação Cul- tural Palmares.
Finalizamos, portanto, esta seção salientando que um caminho pujante para pensar a pesquisa sobre o ensino de História é estimulando a produção de novos estudos que investiguem as formas como docentes e discentes da Edu- cação Básica vêm relacionando seus processos de ensino/aprendizagem com os chamados “passados sensíveis” dentro da lógica epistemológica própria dos conhecimentos e das narrativas escolares.
Considerações finais
Os desafios para quem pesquisa currículo e ensino de História são ilimi- tados. Um rápido exercício de contextualização indica-nos que vivemos um tempo de emergência e fortalecimento de discursos que afrontam a legitimida- de do conhecimento e do professor, bem como a sua liberdade de atuação profissional. A difusão de fake news e as deturpações sobre nosso passado his- tórico, que teimam em negar as feridas históricas que custam cicatrizar, en- grossam esses discursos.
Isso tudo basta para indicarmos que as querelas estão apenas em um ponto inicial, posto que o enfrentamento a essas pautas de caráter negacionis-
ta na área do currículo deve ser entendido como uma atividade incessante em nossos horizontes de expectativas. Nesse sentido, uma reflexão que aposte no conhecimento histórico escolar como elemento incontornável e necessário para pensar os embates e enfrentamentos do currículo de História, vivenciados ao longo dos últimos anos, inviabiliza o desenho de uma conclusão que esgote a discussão.
Nossa intenção é defender a continuidade do debate, ressaltando a pri- mazia do conhecimento escolar e das narrativas produzidas pelos docentes, o que implica colocá-los em outras perspectivas de estudo, visto que algumas ferramentas teóricas selecionadas nos possibilitam produzir determinadas ques- tões para reflexões, tais como: Como o currículo de História e seus pesquisa- dores dialogam com as demandas que defendem um ensino mais plural e, si- multaneamente, com posturas que intitulam de “doutrinação” toda discussão pedagógica que se oriente para além da mera transmissão de conteúdos? Quais são as contribuições/discussões que as pesquisas voltadas ao ensino de História podem oferecer no sentido de fomentar quando vozes oficiais se posicionam ancoradas em discursos negacionistas?
Não temos espaço para responder a todas essas indagações. Contudo reafirmamos a importância e a pertinência de produzirmos mais estudos na área com abordagens teóricas e metodológicas plurais, que versem sobre as articulações entre currículos, culturas e conhecimentos, de modo a pensar as variadas demandas e questionamentos endereçados às instituições escolares contemporâneas.
Para o momento, indicaremos algumas produções acadêmicas que mo- bilizam o conhecimento escolar em uma posição importante nos estudos cur- riculares. De imediato, sinalizamos para as reflexões construídas no âmbito do Núcleo de Estudos de Currículo11, sobretudo a partir das pesquisas desen- volvidas no terreno do ensino de História. Dentre elas destacamos as produ- ções desenvolvidas (em formato de artigos, dissertações e teses) pelo Grupo de Estudo Currículo, Conhecimento e Ensino de História (GECCEH), coorde- nado por Carmen Teresa Gabriel, e pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História (LEPEH), coordenado por Ana Maria Monteiro. Te- máticas como narrativas, currículos escolares, formação docente, conteúdos, conhecimentos e políticas curriculares são elaboradas em diálogo com muitas proposições aqui defendidas.
A partir da ancoragem no “conhecimento” como categoria teórica e polí- tica central, tais pesquisas têm buscado diálogos com vários referenciais de aná- lise, que se pautam na investigação das especificidades epistemológicas do co- nhecimento histórico escolar em diferentes espaços de disputa e formação.
Nesse sentido, indicamos a leitura das obras coletivas “Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de História” (GABRIEL; MONTEIRO; MARTINS, 2016) e “Pesquisa em Ensino de História: entre desafios epistemológicos e apos- tas políticas” (ARAÚJO; COSTA; GABRIEL; MONTEIRO, 2014), em que discussões sobre narrativas, currículos, conteúdos, conhecimentos e políticas cur- riculares são elaboradas em diálogo com muitas proposições aqui defendidas.
A produção individual mais recente dessas autoras também é um im- portante espaço reflexivo para nortear discussões acerca das relações entre cur- rículo e conhecimento. Nos artigos “Currículo de História como espaço auto- biográfico” (GABRIEL, 2016) e “Objetivação e subjetivação nos currículos de licenciaturas: revisitando a categoria saber docente” (GABRIEL, 2018), Ga- briel oferece uma abordagem pertinente de pensar a dimensão do conheci- mento escolar a partir de suas relações com os sujeitos que se formam na rela- ção com esse tipo de saber.
A proposta reside em compreender essa visão de sujeito não mais como propunham as concepções da razão iluminista, que entendiam a partir de um viés universal, mas sim como a de sujeitos singulares que se relacionam com o conhecimento em suas diferentes experiências/contextos de formação e pro- duzem suas próprias subjetividades políticas e demandas (GABRIEL, 2016). Das publicações de autoria de Ana Monteiro destacamos aquelas rela- cionadas a seus investimentos de pesquisa mais recentes, dedicados à reflexão sobre o professor de História a partir da articulação teórica com as categori- as “tempo presente” e “narrativas de si”. Monteiro tem dialogado com as pers- pectivas abertas pela abordagem (auto) biográfica, interagindo com as perspecti- vas de Delory e redimensionando sua agenda de pesquisa dedicada à relação do
professor de História com os saberes que ensinam no contexto curricular.
De suas produções indicamos o artigo “Aulas de História: questões do/ no tempo presente” (MONTEIRO, 2015), que busca elucidar as narrativas his- tóricas mobilizadas pelo professor a partir das articulações entre conhecimen- tos historiográficos, saberes docentes e dos alunos e as referências culturais do tempo presente. Indicamos ainda o artigo “Potencialidades das ‘narrativas de si’ em narrativas da História escolar” (AMORIM; MONTEIRO, 2016) e o capítulo “Entre o vivido e o narrado: sentidos de Rio de Janeiro em aulas de História” (MONTEIRO et al., 2016), que buscam investigar os sentidos de conhecimento histórico escolar produzidos pelos professores, tendo em vista as articulações estabelecidas entre suas referências da vida pessoal e a narrati- va histórica.
Convidamos também nossos leitores a se apropriar das dissertações de mestrado defendidas no âmbito do Programa de Mestrado Profissional em
Ensino de História (ProfHistória), um programa de pós-graduação (iniciado em 2014) voltado para a formação continuada de professores atuantes nas di- ferentes redes de ensino da Educação Básica. Existem vários materiais didáti- cos produzidos no universo dessas dissertações que se interligam com as refle- xões sobre o passado sensível escravista. É abundante a quantidade de ativida- des pedagógicas mobilizadas no intuito de estabelecer diálogos com os parâ- metros das leis 10.639/2003 e 11.645/2008.
Trata-se de estudos que procuram deslocar as narrativas que, durante muito tempo, predominaram no âmbito dos livros didáticos e em salas de aula, enfatizando as várias possibilidades de pensar a atuação dos sujeitos africa- nos (na condição de escravizados ou libertos) e de afro-brasileiros (no con- texto do século XX, pós-abolição da escravatura) no papel de protagonistas das histórias narradas. Podemos apontar sucintamente para uma grande va- riedade de estudos que procuram dialogar com o ensino de História com fontes biográficas/autobiográficas. Sugerimos, para quem tiver interesse, que pesquise esses materiais no Portal eduCAPES, mais especificamente no site
<educapes.capes.gov.br>.
Os caminhos, portanto, para analisar as imbricações entre currículo e conhecimento de História são plurais, marcados por amplo repertório de re- flexões teóricas e metodológicas. Visualizamos, igualmente, potência nessa abordagem, pois ela pode nos propiciar fundamentação para pensar conceitos importantes como “democracia”, “cidadania”, “tolerância, “pluralismo”, “al- teridade” em nossos universos de pesquisa, uma vez que consideramos pri- mordial deslocar os olhares sobre os conteúdos escolares. Afinal, em tempos de “Black Lives Matter”, o currículo de História pode proporcionar-nos inte- ressantes percursos investigativos bem como múltiplas questões de pesquisa para enfrentarmos as posturas negacionistas que circulam em nossos diferen- tes espaços públicos.
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1 Professora da Faculdade de Educação da UFJF e Doutora em Educação pelo PPGE/UFRJ.
2 Professor do Setor Curricular de História do CAp UFRJ e Doutor em Educação pelo PPGE/ UFRJ.
3 Fragmento do texto, “A escola de sua cidade aplica a Lei 10.639/03, uma consequência da luta negra?”, publicado no Portal Geledés em 23 de junho de 2020. O texto na íntegra pode ser acessado pelo link: <https://www.geledes.org.br/a-escola-de-sua-cidade-aplica-a-lei-10-639-03-uma-
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4 Trecho apresentado no texto da Lei 10.639/2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/2003/ l10.639.htm>. Acesso em: 28 jun. 2020.
5 Cabe destacar que chamamos de negacionistas os discursos que procuram negar as dimensões opressoras de períodos históricos como a Ditadura Civil-Militar e a Escravidão. Muito grupos, de orientação política mais conservadora, tendem a negar, a suavizar os impactos desses períodos e, até mesmo, a exaltar figuras relacionadas a tais contextos. Chamamos também atenção para a importância de saber diferenciar negacionismo de revisionismo, visto que esse último faz parte do processo de construção do conhecimento histórico, posto que marca a revisitação a abordagens historiográficas sobre determinados temas, considerando que a História se reescreve constantemente.
6 A Fundação Cultural Palmares foi criada pelo Governo Federal em 1988. Nas linhas que definem sua missão, destaca-se o seu compromisso com a promoção de uma política cultural igualitária e inclusiva, que contribua para a valorização da história e das manifestações culturais e artísticas negras brasileiras como patrimônios. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/>. Acesso em: 26 maio 2020.
7 Destacam-se os artigos “A Narrativa Mítica de Zumbi dos Palmares” e “Zumbi e a Consciência Negra – existem de verdade?”. Ambas as publicações foram retiradas do site da Fundação por determinação judicial da 9ª Vara Federal Cível da SJDF, publicada em 29/05/20, em decorrência de ação popular registrada em 14/05/20. No corpo do texto judicial, uma das apreciações que embasam a exclusão dos artigos afirma que “ambos os textos defendem explicitamente a desconsideração da raça, cultura e consciência negras”. Disponível em:
<https://jornalggn.com.br/sites/default/files/2020/05/justica-manda-fundacao-palmares- apagar-textos-em-repudio-a-zumbi-dos-palmares-decisao.pdf>. Acesso em: 26 maio 2020.
8 Os estudos pós-estruturais do currículo englobam abordagens teóricas diversificadas. A introdução dos estudos curriculares de matriz pós-estrutural no Brasil ocorre no início deste século a partir das obras e de traduções de Tomaz Tadeu Silva. Ver: COSTA, 2005.
9 A noção de poder tem recoberto o campo do currículo há, pelo menos, cinco décadas. Tributário da vasta e plural tradição curricular de matriz crítica, o poder emerge como categoria teórica central para pensar o conhecimento em sua dimensão de regulação e de emancipação. A ampliação e a diversificação dos estudos curriculares em finais do século XX redimensionaram a noção de poder no currículo, reafirmando sua articulação com a pauta política e teórica da diferença. Ver: LOPES; MACEDO, 2005; 2011.
10 Ancorados na discussão pós-fundacional do discurso de Laclau e Mouffe, compartilhamos da seguinte definição para conhecimentos escolares: “estabilidades provisórias de sentidos sobre fenômenos sociais e naturais, cuja objetivação se faz em meio às disputas entre processos de significação perpassados por diferentes fluxos de sentidos vindos de contextos discursivos, horizontes teóricos e campos disciplinares distintos que se articulam em uma cadeia de equivalência que fixa o sentido de escolar” (GABRIEL; MORAES, 2014, p. 31).
11 O Núcleo de Estudos de Currículo (NEC) vincula-se ao Programa de Pós-Graduação em Educação e à Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para ter acesso às teses de doutorado e às dissertações de mestrado, ver em: <https://ppge.educacao.ufrj.br/ ppge-teses.html> e <https://ppge.educacao.ufrj.br/ppge-dissertacoes.html>.
O jogo como fonte e objeto de pesquisa: possibilidades da pesquisa sobre
o uso de jogos no ensino de História
Marcello Paniz Giacomoni1
Lucas Victor Silva2
Nossa sociedade faria jus ao título da célebre obra de Johan Huizinga (2018), Homo Ludens, o homem que joga. O ato de jogar percorre nosso cotidia- no: do futebol aos mais variados aplicativos em celulares. Jogamos porque gostamos, pois no ato de jogar a tensão e a alegria proporcionam uma suspen- são da vida cotidiana. E encontramo-nos no que Huizinga chama de “círculo mágico”, um espaço em que nos entregamos a outra narrativa. Mas não se trata (apenas) de brincar: a perspectiva teórica em que nos situamos defende que os jogos são espaços privilegiados para a construção de conhecimentos e conceitos, especialmente devido a seu caráter imersivo e vivencial.
Entende-se como premissa que o jogo, na medida em que é emulado pelos jogadores em ato concreto e imaginativo ao mesmo tempo, dá origem a uma narrativa, potencialmente viva, dinâmica e imprevisível, que tem a dura- ção do ato de jogar, quando não extrapola a ação virando memória e história (todos certamente lembramos de grandes jogos, nossos ou de outrem, como partidas de futebol ou rodadas de um jogo de tabuleiro). A condição de exis- tência dessa narrativa é uma mecânica de jogo que articula em suas possibili- dades e limites as possibilidades e limites do recorte histórico que se deseja ensinar. Seu funcionamento, a partir de suas regras e da ação dos jogadores, marca que tipo de narrativa aflorará em cada partida jogada. E daqui emanam dois elementos centrais: a agência e a indeterminação.
A narrativa histórica acadêmica e escolar habitualmente opera de for- ma retrospectiva. Ou seja, olhamos para o passado sempre sob a perspectiva de um presente onisciente que conhece os desfechos dos processos. Sabemos, por exemplo, quais foram as consequências de César ao adentrar o senado em 15 de março de 44 a.C. O prosseguir do livro de História nos informa. Mas nós que vivemos no presente não conhecemos os desfechos de nossos processos, não sabemos qual será nosso próximo governante ou quando acontecerá a próxima crise econômica. Temos, no máximo, previsões seguras, nunca cer- tas. Vivemos na indeterminação do desfecho de nossa própria narrativa. E
assim é o jogo (ou ao menos o bom jogo): a narrativa está aberta à nossa agên- cia e seu desfecho indeterminado, o que garante a tensão necessária para um bom jogo.
Jogar na educação e jogar no ensino de História já não são (mais) ações impensáveis em nossas salas de aula. Cada vez mais, professores ensaiam a criação ou utilização de jogos3 ou mesmo gamificam suas práticas, já existin- do variadas ações pedagógicas (de longa data, inclusive) que envolvem os jo- gos no ensino de História e que, para além de uma defesa, cabe agora tomar essas ações como objetos de pesquisas em amplos sentidos.4
Entre tantas possibilidades de pesquisar o lúdico no ensino de História, o presente capítulo irá explorar quatro possíveis caminhos de pesquisa. Nosso intento não é realizar um estudo do tipo de estado da arte, mas convidar novos pesquisadores a trilhar o caminho da investigação sobre os jogos no ensino de História através da discussão sobre os percursos e possibilidades abertas por essas pesquisas que aqui apresentamos. As duas primeiras constituem investi- gações em andamento, enquanto as duas seguintes estão concluídas. A pri- meira explora uma proposta de avaliação da eficácia das aprendizagens histó- ricas de estudantes com ou sem a utilização de jogos de tabuleiro construídos especialmente para o ensino de História. O segundo caminho apresenta breve- mente o processo de criação do jogo “As Viagens do Tambor” com seus desdo- bramentos teóricos e práticos, dando origem a um projeto de pesquisa e exten- são que pretende mapear mecânicas e dinâmicas existentes em jogos de tabulei- ro, criando um banco de dados (e também uma comunidade de jogadores) que possibilite a criação de jogos que associam processos históricos a mecânicas de jogos, com especial ênfase no diálogo com a Educação para as Relações Étnico- Raciais. O terceiro caminho destaca a investigação sobre a prática de um docen- te que cria, planeja e utiliza jogos como recursos didáticos e estratégia de avali- ação das aprendizagens em escola pública. O último caminho aqui discutido esquadrinha as possibilidades dos usos educativos dos jogos digitais ou games de simulação histórica e suas relações com a aprendizagem dos conteúdos histó- ricos, partindo da investigação sobre jovens que jogam. Vencidas as considera- ções iniciais, vamos às novas etapas do nosso jogo.
Aprende-se História jogando? A investigação sobre as aprendizagens históricas entre turmas que jogam e turmas que não jogam
Encampado pelo pesquisador Marcello Paniz Giacomoni, o projeto de pesquisa “Jogos, conceitos e aprendizagens históricas”, iniciado em 2018 e ainda em execução no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), propõe a aplicação e a observação de jogos em salas de aula do componente curricular de História. Ao longo do projeto foram conduzidas sequências didáticas, oferecidas em turmas pares de 6º e 7º anos do Ensino Fundamental, sempre de forma alternada: enquanto uma turma desenvolve os estudos de determinadas temáticas através de aulas expositivas ou leitura de textos (práticas que chamamos de habituais ou tradicionais), a outra faz uso também de um jogo didático especialmente produzido para o ensino de História. Na próxima temática, a proposta é alternada: a turma que utilizou o jogo inicia com a sequência didática expositiva ou através de leitu- ras, e vice-versa. A metodologia da pesquisa pressupõe a aplicação de sete jogos segundo esse formato com as turmas de 6º ano em 2019 e os mesmos estudantes no 7º ano em 2020.
A disposição dos conteúdos foi associada diretamente ao sistema de avaliação das turmas, baseando-se em objetivos de aprendizagem, evitando notas ou conceitos gerais, sendo os jogos escolhidos em função da relação direta com tais objetivos. A aplicação alternada dos jogos entre as turmas pre- tende identificar se a aplicação do jogo produziu uma construção conceitual ou aprendizagens variadas de forma mais densa, mapeadas através de avalia- ções formais e grupos focais e, posteriormente, efetuando uma comparação entre as turmas.
Dois jogos foram aplicados em 2019 e outros cinco em 2020: um jogo de tabuleiro (“Revolução Neolítica”) no início de 2019 e um jogo de cartas (“Mithistória”) no final do mesmo ano para turmas de 6º ano. Vamos ater-nos à primeira experiência.5
Dentro do conteúdo habitualmente denominado como “Pré-História”, no componente curricular de História do 6º ano, previam-se quatro objetivos de aprendizagem: “compreender o conceito de ‘domesticação’”; “compreen- der o conceito de ‘nomadismo’”; compreender o conceito de ‘sedentarização’” e “relacionar os conceitos de ‘domesticação’, ‘nomadismo’ e ‘sedentarização’”. No jogo “Revolução Neolítica”, os estudantes são dispostos em um ta- buleiro com casas hexagonais que simula uma paisagem genérica com áreas de florestas, campos, pedregosas, desérticas, férteis e água. Em cada uma des- sas categorias, existe uma quantidade de alimentos pré-definidos (por exem- plo, nas áreas desérticas não há alimentos, e nas áreas de florestas há duas peças de animais e duas de frutas). O jogo simula a chegada de grupos huma- nos a esse espaço em algum momento no final do período Paleolítico, buscan- do coletar os alimentos existentes para sua sobrevivência. Com 20 rodadas ao total, em momentos específicos são inseridas modificações na mecânica de jogo. Na quinta rodada, abre-se a possibilidade para que os jogadores desen-
volvam tecnologias do Paleolítico e ganhem vantagens (por exemplo, a tecno- logia “navegação” permite que um grupo humano de homens entre em um hexágono de água e pesque um alimento por rodada, continuamente, sem que haja exaustão). Na décima rodada, apresenta-se a descoberta da agricultura e da pecuária via domesticação e, dispondo de dois animais ou dois cereais (co- letados anteriormente), os jogadores podem construir um curral ou uma plan- tação em que produzem um alimento quando ocupados por um grupo huma- no. Na rodada 15, abrem-se novas tecnologias, dessa vez do Neolítico, como a domesticação de cavalos ou a irrigação, que em geral aumentam a produtivi- dade. O jogo finda na vigésima rodada, vencendo quem possuir mais pontos (cada grupo humano, cada curral ou plantação e cada tecnologia valem um ponto cada).
A mecânica conduz o jogo de forma que, nas primeiras dez rodadas, haja um desenvolvimento lento. A maioria dos recursos coletados serve ape- nas para a subsistência do grupo. Quando os recursos terminam, os grupos humanos devem movimentar-se pelo tabuleiro, levando a própria aldeia nesse deslocamento. Isso muda com a domesticação e o desenvolvimento da pecuá- ria e agricultura. Currais e plantações só produzem se estiverem contínuos à aldeia, estimulando que os estudantes não as desloquem mais. As tecnologias possuem um impacto transformador nas ações do jogo e, consequentemente, na ação humana: é apenas a partir da sedentarização dos currais e das planta- ções, além das tecnologias que aumentam a produtividade que os jogadores conseguirão acumular alimentos para o crescimento da população. Por fim, todas essas etapas assemelham-se a um processo histórico, evidenciando trans- formações no tempo, mesmo que em um tempo fabulado na duração do jogo.
O jogo foi inserido em uma sequência didática de uma das turmas de 6º ano: iniciou com uma aula expositiva, que finalizou com a leitura de um texto produzido pelo professor, e atividades para serem feitas em casa; na aula se- guinte, houve a aplicação do jogo; na próxima semana, o texto e as atividades foram retomadas, articulando-as ao jogo. Na mesma semana, os estudantes foram convidados para um grupo focal no contraturno, de livre adesão, para jogar novamente, sendo que sete alunos participaram. O processo foi finaliza- do com uma avaliação individual, dissertativa e sem consulta, relacionada aos quatro objetivos de aprendizagem anteriormente expostos. A outra turma de 6º ano, que não teve contato com o jogo, teve sua aula através da leitura do texto produzido pelo professor e resolução das atividades em aula; na semana seguin- te, uma aula expositiva a partir de slides. Na última semana, a mesma avaliação individual foi realizada pela outra turma. Ou seja, nessa turma utilizaram-se apenas estratégias habituais envolvendo aula expositiva e projeção de slides.
Dada essa experiência primeira, alguns cuidados6, limites e possibilida- des apresentaram-se no processo de docência e pesquisa. Em relação aos limi- tes, foi identificada, em muitos estudantes que participaram da pesquisa, pou- ca habituação em mecânicas de jogos de tabuleiro. Diversos deles nunca ha- viam jogado dominó ou jogos que envolviam dados. Dessa forma, na aplica- ção do jogo para a turma, dos quatro tabuleiros simultâneos identificamos que em um deles o jogo não funcionou, pois os estudantes, mesmo após interven- ções do professor e da monitora, não conseguiam compreender o jogo. Os outros tabuleiros operaram, mas identificamos estudantes que não conseguiam se apropriar do que acontecia: mesmo com o auxílio dos colegas, não conse- guiam compreender o funcionamento do jogo e acabaram por dispersar-se. Há uma conclusão primeira que evidencia o cuidado para que o jogo tenha um nível de complexidade adequado para a faixa etária. E entendemos tam- bém que, juntamente com um processo de utilização dos jogos para o ensino de História, há possibilidades (e por vezes a necessidade) de um letramento na linguagem dos jogos: jogar significa compreender um conjunto de mecânicas e compreender como se relacionar com aqueles que dividem a brincadeira co- nosco, tanto como colaboradores quanto como oponentes. Um aprendizado que não é natural e pode ser situado em um processo que utilize mais jogos em ordem crescente de complexidade. Também deve haver, por parte dos profes- sores, um cuidado na escolha das mecânicas, mediando sempre na relação com os grupos de estudantes para os quais os jogos são destinados.
Mesmo com esses cuidados e limites, os dados das avaliações das turmas evidenciaram um cenário promissor. Mesmo que de forma circunstancial, foi possível perceber um maior rendimento da turma que jogou na avaliação for- mal, que foi a mesma para as duas turmas. Em relação aos três objetivos de aprendizagem considerados mais simples, de identificação de determinadas características condensadas em um conceito, foi requisitado que os estudantes compreendessem os conceitos de “domesticação”, “nomadismo” e “sedenta- rização”. Os resultados apontam que, na turma que jogou, 17 estudantes com- preenderam de forma satisfatória ou muito satisfatória o conceito de “domes- ticação”; 17 estudantes, o conceito de “nomadismo” e 23 estudantes, o con- ceito de “sedentarização”. Na turma que não utilizou o jogo, o resultado foi 17, 12 e 13 estudantes, respectivamente. Nesse mesmo caminho, ao conside- rarmos a quantidade de estudantes que compreendeu de forma satisfatória ou muito satisfatória o objetivo de aprendizagem mais complexo (“relacionar os conceitos de ‘domesticação’, ‘nomadismo’ e ‘sedentarização’”), teremos 15 estudantes “jogadores” ante nove membros da turma que não jogou. Soma-se
a isso o fato de que, nas aulas subsequentes ao jogo e à avaliação, foram iden- tificadas pelo menos quatro falas de estudantes em momentos variados das aulas que faziam eco ao jogo. Aparentemente, o jogo auxiliou na criação de um ponto de ancoragem de elementos que eram desenvolvidos nas aulas. Além disso, a dinâmica de jogo mostrou-se muito mais fluida e aprofundada no gru- po focal que envolveu sete alunos, sendo que todos os sete conseguiram com- preender as mecânicas e participar efetivamente do jogo. Esses são resultados preliminares que apontam uma maior apropriação conceitual dos estudantes que manusearam o jogo, por um lado, e para o cuidado necessário na escolha das mecânicas, por outro.
A criação de jogos e suas mecânicas como objeto de pesquisa
Uma segunda proposta de pesquisa dialoga diretamente com a constru- ção de jogos para a sala de aula a partir da experiência de criação do jogo “As Viagens do Tambor”7. Associados ao Laboratório de Ensino de História e Educação da UFRGS (Lhiste)8, entre 2016 e 2018 uma equipe interdisciplinar, coordenada pelo professor Nilton Mullet Pereira, da Faculdade de Educação da UFRGS, propôs a criação de um jogo de tabuleiro que pudesse tratar do percurso dos Territórios Negros de Porto Alegre, uma linha de ônibus turística e educativa que visitava os principais locais de presença negra na cidade, com o intuito de evidenciar as presenças e visibilidades da população negra porto-alegrense em seus espaços, suas práticas culturais e seus indivíduos. Nesse desafio dialogaram inúmeros atores: pesquisadores especializados em jogos pedagógicos, professores do Ensino Básico, professores da UFRGS, bolsistas, membros de movimentos sociais, pessoas ligadas às instituições e personagens referidos no jogo, designers gráficos, entre outros.
Partindo de uma mecânica de descoberta de pistas, similar ao jogo “De- tetive”, a narrativa desenvolve-se no entorno do Tambor da Praça Brigadeiro Sampaio (escultura localizada no centro de Porto Alegre), uma obra de arte de mais de 2 metros de altura, marco inicial do Museu do Percurso do Negro de Porto Alegre, escolhido como articulador por tratar-se de um objeto de grande valor simbólico para as culturas africanas e afro-brasileiras e presente em ma- nifestações culturais e religiosas. Fabula-se no jogo que o Tambor um dia can- sou-se de ser apenas visitado e decidiu sair pela cidade. Nessa viagem, três grupos de elementos entrecruzam-se para constituir narrativas: onde o Tam- bor foi? (dentre 11 territórios de presença negra); quem ele encontrou? (dentre 11 personagens da cultura negra); e o que ele está fazendo? (dentre seis práti- cas culturais da população negra). Fazendo uso da ludicidade e da brincadei-
ra, o jogo objetiva produzir encontros, diálogos entre pessoas que acessam uma temporalidade e uma territorialidade muitas vezes diversas das habituais.
Disposto na forma de um círculo com territórios que não se relacionam à geografia e à temporalidade “reais” da cidade, o tabuleiro possibilita que os alunos interajam em roda, evidenciando o valor da circularidade. Personagens de variadas épocas percorrem espaços também de variadas épocas. Por exem- plo, Príncipe Custódio, falecido no início do século XX, pode interagir com a Professora Petronilha, uma das responsáveis pela redação das Diretrizes Cur- riculares decorrentes da lei 10.639/2003. Podem também circular no Rubem Berta, bairro da periferia de Porto Alegre, e passar pela Ilhota, área de presen- ça da população negra, cuja urbanização da cidade suprimiu em meados do século XX. Podem praticar a ancestral capoeira e também localizar o Sopapo Poético. Encontros, por fim, que promovem aprendizagens, desfazendo me- mórias cristalizadas sobre a cidade, ao mesmo tempo em que se abrem novas histórias.
O processo de criação foi permeado por grandes debates, e o jogo, em sua própria narrativa e mecânicas, é a evidência de intencionalidades pedagó- gicas. Por exemplo, quais personagens colocar? Ou quais espaços da presença da população negra? Também qual a narrativa? De pronto percebemos que uma narrativa que envolvesse assassinato (como no jogo “Detetive”, que ser- viu de inspiração), ou mesmo roubo, seria outra reificação da marca da violên- cia na população negra. E o objetivo do jogo, para além de evidenciar presen- ças, era sim positivar essas presenças.
Sendo um jogo que dialoga com a pauta teórica e política da Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), situamos tal debate em uma defesa do ponto de vista teórico: entendemos que o processo narrativo é a operação capital na formulação de uma experiência sobre o passado, oferecendo inteli- gibilidade ao vivido ao articular a experiência no tempo de forma lógica, tor- nando-a humana. Paul Ricouer (2010, p. 2) ensina-nos sobre a “intriga” de uma narrativa que “‘toma juntamente’ e integra em uma história inteira e com- pleta os acontecimentos múltiplos e dispersos e, assim, esquematiza a signifi- cação inteligível vinculada à narrativa tomada como um todo”. Um processo amplo, já tomado como uma operação por Michel de Certeau (2008), que cria a História a partir de narrações que articulam coerentemente representações históricas, figuras e argumentos retóricos e enunciados científicos, encadea- dos por processos que mobilizam a imaginação histórica.
A esta reflexão associamos o jogar, entendendo que o jogo dá origem a uma narrativa em potência (a partir da disposição de mecânicas) que se efetiva no ato de emulação dos jogadores. Narrativa que, como apontamos anterior-
mente, possui um desfecho com graus de abertura e incerteza, o que garante a tensão necessária para o jogo.
A partir dessas duas potências do jogo, situamos o diálogo a ser proble- matizado e transposto para os jogos que dialogam com a ERER, bem como as narrativas que deles emanam. Desejamos afastar-nos de um dispositivo racista que relegou a presença das populações negras e indígenas à invisibilidade (não sendo representadas em muitos tempos e espaços dentro dos currículos), à generalização (tomando grupos variados sem levar em conta especificidades), ao contraste (situando os grupos sempre em comparação a outros considera- dos mais civilizados, desenvolvidos, etc.), à negatividade (tomando as ações desses grupos como nefastas, gerando juízos de valor) e à passividade (sendo os grupos, mesmo que na condição de vítimas, sempre incapazes de exercer agência histórica). Frente a esse dispositivo, propomos a criação de jogos com suas respectivas narrativas que prezem pela visibilidade (situando as popula- ções negras e indígenas em tempos e espaços que nos habituamos a considerar apenas brancos), pelas especificidades (abrindo espaço para a pluralidade das populações negras e indígenas), pela positividade (que foquem em situações de criação, solidariedade, sucesso, etc.) e pela agência (indivíduos e grupos que, mesmo em situações adversas, fazem história).
Tal reflexão teórica e política, além de características do jogo “As Via- gens do Tambor” e de seu processo criativo estão presentes em um projeto de pesquisa ainda em fase inicial. Também desenvolvido no Colégio de Aplica- ção da UFRGS e pelo mesmo pesquisador anteriormente citado, o projeto “Ludoteca do Lhiste: análise e construção de jogos com fins didáticos para o Ensino de História e Educação das Relações Étnico-Raciais” apresenta um conjunto de caminhos: primeiramente, propõe a constituição de um espaço de pesquisa, criação de material didático lúdico e extensão, voltado para mapear jogos de tabuleiro comerciais ou com fins didáticos, compreendendo seus fun- cionamentos, mecânicas, dinâmicas e estéticas. Pretende-se jogar e compreen- der como variados jogos de tabuleiro, especialmente os com temática históri- ca, funcionam e como tal funcionamento pode ser associado à explicação de temas, conceitos e processos históricos. Esses funcionamentos, especificando suas mecânicas, dinâmicas, componentes e superfícies, serão mapeados e ca- talogados de forma a criar uma base de dados que venha a servir para a cons- trução de jogos voltados para o ensino de História.
Nesse sentido, a criação de novos jogos e atividades gamificadas é o segundo caminho do projeto, com foco específico para jogos voltados à Edu- cação para as Relações Étnico-Raciais, seguindo a experiência bem-sucedida de “As viagens do Tambor”, tendo em vista a potência dos jogos em proble-
matizar a criação de conceitos e permitir, através de seu processo de imersão e simulação, um diálogo intercultural. Há ainda um terceiro caminho. Uma vez constituído um espaço que congregue jogos e conhecimentos relacionados o seu uso na educação (fazendo jus ao próprio título do projeto: “Ludoteca”), a proposta é que esse atue para a formação de estudantes (tanto da escola básica como de licenciaturas) e a formação continuada de professores, aberto ao pú- blico tanto no processo de manuseio dos jogos comerciais e pedagógicos como nos processos de construção dos jogos pedagógicos e publicização dos resulta- dos em eventos e publicações variadas. Em fase inicial, ainda não é possível apresentar os resultados da proposta de pesquisa, mas nos parecem promisso- res caminhos de pesquisa e criação que congregam grupos diversos com pes- quisadores, professores, licenciandos e estudantes da Educação Básica.
A investigação das práticas docentes lúdicas no chão da escola: o foco no professor que brinca
O tipo de investigação que agora apresentamos desloca nosso olhar em direção à prática docente com recursos didáticos lúdicos, àquilo que o profes- sor planeja, faz e avalia, à criatividade docente, suas invenções e adaptações, àquilo que é pura experimentação, mas que também pode ser erro, ameaça ou limite para as aprendizagens. O pesquisador Cláudio Rodrigo Vasconcelos Silva (2016) trilhou esse caminho na dissertação de mestrado defendida na Univer- sidade Federal de Pernambuco em 2016, intitulada Alea Jacta Est: a prática do- cente do professor de História que faz uso do Roleplaying Game na sala de aula, construí- da mediante um estudo de caso de tipo etnográfico. Vasconcelos Silva reali- zou observação participante de sete turmas de primeiro ano do Ensino Médio de uma escola da rede pública estadual de Pernambuco participante do pro- grama de escolas de tempo integral e localizada na zona norte da cidade do Recife. O foco da investigação foi um projeto didático inspirado nas intera- ções sociais, nas interpretações de papéis, na criação de personagens e situa- ções ficcionais, no narrar, nas relações entre o mestre (que pré-estabelece os enredos) e os outros jogadores (que ampliam tais enredos) e nos demais aspec- tos presentes nos jogos de Roleplaying Game (RPG). E sobre esse projeto, pre- tendeu questionar os seus limites e possibilidades educativas, os requerimen- tos postos pelo RPG à prática educativa, as possibilidades de construção do conhecimento histórico e as mudanças na relação entre professor e estudantes articulados e mobilizados pelo jogo na situação escolar.9
A investigação pautou-se pela abordagem qualitativa de estudo de caso
do tipo etnográfico, focado no sujeito docente e suas práticas, procurando ar-
ticulá-los ao contexto escolar e às práticas e concepções discentes. Aqui, o pesquisador buscou incorporar o ethos do etnógrafo à procura do que na sala de aula lhe causou entranhamentos.O pesquisador realizou ainda entrevistas semiestruturadas com o professor, a coordenadora pedagógica e 25 alunos, bem como analisou o material documental (mapas e bandeiras) produzido pelos alu- nos. No que diz respeito à análise dos dados, praticou-se a análise de conteúdo do tipo temática ou categorial sob a inspiração de Laurence Bardin (2002).
O professor sujeito da pesquisa nomeou seu projeto didático de Alea Jacta Est ou, em uma tradução livre, “a sorte está lançada”, uma expressão atribuída ao imperador romano Júlio César (SILVA, 2016). A atividade surgiu como oportunidade para o desenvolvimento da leitura nas turmas que demons- travam dificuldades significativas nessa competência mesmo após atravessar todo o Ensino Fundamental. Nesse sentido, “os diversos elementos do jogo (batalhas, bandeiras e mapas) estão voltados para o desenvolvimento da práti- ca da leitura pelos alunos” (SILVA, 2016, p. 147), uma vez que os estudantes são demandados a ler o livro didático de História e construir perguntas.
A sala foi dividida em grupos que representaram oito civilizações anti- gas que foram estudadas ao longo do bimestre: Babilônia, China, Egito, Fení- cios, Hebreus, Índia, Kush e Persas. O jogo alterna turnos de ataque e contra- ataque, feitos a partir de perguntas que a civilização atacante elabora sobre sua própria história para outra civilização. Responder com precisão traz um ponto de vitória. Ao longo das partidas-aula, como o “mestre” presente nas partidas de RPG, o professor assume o papel de juiz e resolve os embaraços que ocor- rem durante as aulas. A vitória nas batalhas é premiada com o “espólio de guerra”: o grupo vencedor escolhe um membro do reino perdedor para fazer parte da equipe.
Logo, o que temos no interior do Alea Jacta Est é uma representação dos conflitos existentes entre os povos na Antiguidade, só que na aula com o jogo, as flechas e lanças são brilhantemente trocadas pela competência em formular e responder perguntas, segundo a história dos povos e reinos desta- cados na sala de aula (SILVA, 2016, p. 138-139).
Enfim, a dissertação revela-se rica em descobertas e abre perspectivas relevantes para a pesquisa no ensino de História. Um fato ilustra, por exem- plo, as mudanças nas relações sociais em sala de aula: os indivíduos reconhe- cidos como “alunos-problema” fazendo-os participar ativamente das aulas e ainda estabelecer “uma espécie de relação fraternal e de respeito para com os seus líderes” de cada grupo (SILVA, 2016, p. 136).
Há também outras considerações a fazer sobre aspectos disciplinares. O uso do RPG (e isso podemos estender ao uso de outros recursos lúdicos tam-
bém, como já tratado anteriormente) pode não atender as expectativas de to- dos os estudantes, ou melhor, a adesão pode não ser voluntária imediatamen- te. Nesse sentido, o docente deve negociar com aqueles que demonstram resis- tência oferecendo o retorno às aulas tradicionais ou outros papéis dentro do jogo, mudando a configuração dos grupos ao transferir estudantes. De um modo geral, a conversa docente conseguiu estimulá-los a participar. Nesse sen- tido, no que diz respeito às relações professor-aluno, percebeu-se “um esforço de construção de disciplina intelectual negociada e vivida”, em que autorida- de e liberdade não se anulavam (SILVA, 2016, p. 171). O pesquisador ressalta ainda que o jogo na sala de aula permitiu inclusive a desconstrução do “mode- lo tradicional de aula que prioriza a ordem, o silêncio e atenção absoluta dos alunos para a fala do professor” (SILVA, 2016, p. 137).
O pesquisador avalia também que o projeto escolar contribuiu para a criação do hábito da leitura e para o desenvolvimento da competência leitora, do trabalho cooperativo em equipe, da participação em competição mediante respeito às regras, respeito e convivência com as diferenças e diferentes ritmos de aprendizagem. A elaboração das perguntas e respostas das batalhas durante as aulas permitiam a construção da capacidade interpretativa e analítico-com- parativa dos alunos demandados também ao comparar as respostas dadas por seu grupo e pelo grupo desafiado.
A investigação das aprendizagens de conteúdos históricos através do uso de jogos digitais
A última experiência de pesquisa discutida neste texto versa sobre um dos mais importantes temas emergentes no campo do ensino de História: os usos dos jogos digitais ou games e suas relações com a aprendizagem dos con- teúdos históricos. Trataremos da tese de doutoramento de Eucidio Pimenta Ar- ruda, defendida em 2009 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Uni- versidade Federal de Minas Geras e intitulada Jogos digitais e aprendizagens: o jogo Age of Empires III desenvolve ideias e raciocínios históricos de jovens jogadores?
O estudo buscou analisar as possíveis aprendizagens de conteúdos pro- cedimentais (raciocínios) e conteúdos conceituais (ideias históricas) viabiliza- das em jogadores de um game de simulação de acontecimentos históricos. O pesquisador também aqui construiu uma abordagem etnográfica. Ao invés de observar, descrever e pensar fatos educativos na escola, Arruda mergulhou durante dois anos no ambiente on-line do jogo Age of Empires III.
Arruda escolheu o jogo Age of Empires III e, como jogadores, jovens entre 14 e 18 anos de idade. A pesquisa foi iniciada com o que chamou de “tatea-
mentos iniciais”: levantamento de informações preliminares em LAN Houses de Belo Horizonte e aplicação de questionários a jovens estudantes oriundos de escolas públicas. Seguiu-se a fase de imersão, que implicou a incursão no ambiente virtual do jogo e busca pela recepção do autor em comunidades de discussão primeiramente internacionais e depois nacionais. O investigador precisou tornar-se jogador e ser reconhecido pelas comunidades de jogadores que serviram de espaços de coleta de dados.
A abordagem etnográfica obrigou a sua inserção longa e intensa como jogador ou observador participante dos jogadores e em diversos espaços de contato e vivência, como fóruns, bate-papos, softwares de comunicação em grupo, comunidades no Orkut, entre outras possibilidades. Segundo Arruda (2009, p. 31), “o sujeito observado e entrevistado não possuía meios objetivos para me dizer o quanto aprendeu com o jogo, entretanto, ele podia me dizer por meio de suas ações cotidianas no ambiente do jogo (e fora dele)”. O pes- quisador também fez uso do correio eletrônico (e-mail), entrevista on-line (por meio de chat e formulário eletrônico) para a troca de informações sobre o jogo e o dia a dia das partidas e das formas de interação dentro e fora do jogo. Arruda também analisou partidas gravadas do game.
Ao longo da tese, Eucidio Arruda contextualizou descobertas relevan- tes sobre a aprendizagem de conteúdos históricos através dos jogos digitais. Aqui não há a pretensão de realizar um comentário exaustivo sobre todas as suas conclusões. Destacamos algumas descobertas pertinentes ao objetivo deste capítulo. Segundo Arruda (2009), os jovens que acessam as mídias digitais estabelecem novas relações com os saberes, novas formas de interpretação do mundo, de aprendizagem e de construção do conhecimento histórico. Ao con- trário da passividade exigida pela escola e pelas mídias tradicionais, a abertura das hipermídias permite aos jovens produzirem, aprenderem, ensinarem, troca- rem saberes, consumirem e fabricarem conteúdos. A validação das informações é legitimada pelos pares de jogadores que consideram tempo de experiência, qualidade e novidade das informações do jogador. Nesse sentido, a validação das informações não depende das hierarquias e da verticalidade da escola tradi- cional. As trocas acontecem nas formas mais horizontais em que os jogadores testam, autonomamente, a eficácia e autenticidade das informações trocadas.
O autor propõe uma analogia entre essa “aprendizagem hacker” e o modelo de ensino presencial para defender uma dobra na identidade docente contemporânea e no paradigma educacional vigente. Segundo Arruda (2009,
- 114), “o papel do professor, como figura central do processo de ensino e aprendizagem (que está posto até na organização técnica e pedagógica de uma sala de aula), deixou de existir”. A instituição escolar deve reconhecer que
perdeu a centralidade nos processos de formação dos indivíduos e, assim, re- considerar sua relação com a sociedade.
Em síntese, a aprendizagem hacker, ao privilegiar a liberdade e o interesse do sujeito pelo objeto de aprendizagem, não desconstrói nossas estruturas de poder, mas levam-na para patamares ainda desconhecidos no paradoxo da equidade da regulação e da autorregulação (ARRUDA, 2009, p. 114).
Por fim, destacamos a análise sobre as relações entre os jogos de simula- ção de acontecimentos históricos e a produção do conhecimento histórico. O pesquisador defende a perspectiva de que tais jogos digitais utilizam narrati- vas, conceitos e formas de pensar históricos que constituem sua verossimi- lhança, apesar de também lançar mão de narrativas próprias abertas. Essa ar- ticulação entre narrativas históricas e narrativas ficcionais abertas presentes nos jogos digitais permite que os jogadores experimentem de modo não linear a construção de uma outra história “à maneira dos historiadores”. Não se trata de construir uma verdade histórica mediante análise de fontes, mas re- construir o passado baseado em uma ação simulada no software. E sua pró- pria interpretação dos acontecimentos, em contraste com outras interpreta- ções históricas, pode ser visualizada na tela de seu equipamento (ARRUDA, 2009, p. 121).
A imaginação do jogador relaciona-se com a construção do saber histórico, ao permitir que ele, literalmente, se coloque no lugar do outro, analise as características de uma sociedade, determine ações e determine meios de obter vitória em embates históricos (ARRUDA, 2009, p. 173).
Se no trabalho do historiador a imaginação se mistura com a análise documental na operação de construção do texto histórico sobre o passado, as narrativas construídas no jogo são produtos da imaginação combinada à in- terpretação de “documentos” produzidos no próprio artefato lúdico em sua virtualidade.
A obtenção de todas essas habilidades e a construção de uma civilização eficaz no embate com as demais demandam do jogador conhecer as estrutu- ras cognitivas específicas de cada grupo conquistador. Elementos como: di- ferenças econômicas, religiosas, poderio do exército, condições geográficas de territórios, conhecimento de suas tecnologias, entre outros, necessitam ser compreendidos para o pleno desenvolvimento de uma estratégia de bata- lha vitoriosa. Como pode ser percebido, não se trata de uma análise mera- mente bélica, mas que envolve diversos elementos da ordem cultural, políti- ca e econômica e, sobretudo, imaginativa (ARRUDA, 2009, p. 173).
É justamente na proposição de diálogos entre esses diferentes espaços de produção de saberes e subjetividades (de um lado, o mundo digital dos
games, de outro, a escola e onde, em ambos os casos, os jovens agem criativa- mente) que o trabalho de Arruda apresenta relevância ainda maior na defesa da construção de “estratégias sistematizadas de aprendizagem que dialoguem com as dimensões cognitivas características dos jovens atuais” (ARRUDA, 2009, p. 42).
Considerações finais
Defendemos que os jogos podem constituir um caminho potente na educação e, especialmente, no ensino de História. Suas potências são muitas: existem uma ou mais narrativas; no final de cada jogo, há sempre um feedback dos resultados alcançados; a tensão está presente, seja de forma competitiva, seja de forma cooperativa; objetivos e regras claras abrem a possibilidade da ação, da tomada de decisões em meio a uma mecânica e a parceiros de jogo; extrapolam-se os pedaços de papel ou os pixels que formam o jogo em um “círculo mágico” repleto de imaginação constitutiva; por fim, claro, há a di- versão, requisito básico para um bom jogo.
Todavia a proposta deste texto foi um convite à ampliação de uma defe- sa para ações de pesquisa que identifiquem as aprendizagens de jogos, tanto de tabuleiro como digitais, que mapeiem o funcionamento de jogos, que com- preendam quais são as práticas lúdicas de professores e estudantes. Caminhos que percorrem três dimensões do ato lúdico: o “jogo” (o material propriamen- te dito, físico ou virtual), o “jogo jogado” (as propostas que situam o jogo na interação com professores e estudantes) e o “jogado aprendido” (que pretende compreender os efeitos de aprendizagem do jogar no ensino de História). Nes- sas considerações finais, chamaremos a atenção para outros caminhos de pes- quisa possíveis que não abordamos no curto espaço deste texto.
Podemos pensar na dimensão histórica e investigar os jogos como arte- fatos culturais e/ou pedagógicos no país. Podemos propor uma história dos jogos, brinquedos e brincadeiras nos termos propostos por Huizinga (2018) e Walter Benjamin (2009), uma história da infância brincada em suas relações com o mundo social, com a escola, com a família, com os mercados de bens culturais, com as mídias. Ou ainda, no campo da Teoria e da História da Edu- cação no Brasil, teríamos uma história das brincadeiras na escola, dos usos pedagógicos dos materiais e das dinâmicas lúdicas, do reconhecimento da di- mensão formativa pela experiência lúdica (BROUGERE, 2003) e da apropria- ção do jogo pela filosofia da educação (FORTUNA, 2013; LUCKESI, 2002). No campo da pesquisa em formação docente, se acreditarmos na perti- nência do uso de jogos na aula de História, deve-se investigar que saberes o
professor deve dominar para usar e/ou para construir seus jogos com fins edu- cativos. Que espaço tais saberes específicos devem ocupar na formação inicial ou continuada entre tantos outros saberes plurais e diversificados já mapeados (TARDIF, 2002)?
Se investigarmos as práticas docentes, outras questões se impõem, con- forme indicou nosso diálogo com Vasconcelos Silva (2016). O que jogam os docentes de História dentro e fora de suas salas de aula? Como planejam e executam as atividades lúdicas utilizadas no ambiente escolar? E como ques- tionamos, quais os critérios para a escolha das mecânicas, brinquedos, dinâ- micas e estéticas usados nas turmas? Como avaliam a sua eficácia na promo- ção das aprendizagens? Quais as especificidades da prática docente brincan- te e quais as dobras nas interações e relações entre professores e estudantes e os próprios aprendizes-brincantes entre si? Como se manifesta a (in)disciplina em uma aula jogada? E, ainda, qual o perfil dos professores que jogam com suas turmas?
Um pesquisador das aprendizagens, em outro caminho, vai se debruçar sobre o lugar dos jogos, dos brinquedos, das brincadeiras e, sobretudo atual- mente, dos games na vida dos estudantes. Jogando mesmo fora da escola – apesar da desconfiança de pais e professores no que diz respeito à influência dos jogos no comportamento infanto-juvenil –, o que e como aprendem com games, cartas, tabuleiros, meeples, livros e sistemas de RPG? Como se apropriam das narrativas sobre o passado que emergem nesses objetos ou telas? Uma investigação desse tipo poderia contribuir para subsidiar novas práticas docen- tes, novas apropriações escolares.
Enfim, ressaltamos que a criação e a prática docente lúdica deve consi- derar o contexto escolar e as dificuldades e especificidades das turmas no que diz respeito às aprendizagens dos conteúdos históricos, nível de conhecimen- tos prévios e inconstâncias próprias do ambiente. Os jogos de tabuleiro, jo- gos digitais ou RPGs (e outros tantos recursos lúdicos) não responderão ne- cessariamente às necessidades das turmas se não considerarmos as diversi- dades discentes. Nesse sentido, o docente deve considerar o planejamento es- colar no sentido da diversificação de linguagens e procedimentos de ensino para além do jogo (SILVA, 2016), recusando o entendimento dos artefatos lúdicos como remédios infalíveis para quaisquer problemas nas aprendizagens. Nada será capaz de substituí-lo como mestre e mediador nos jogos da aprendi- zagem humana.
Referências
ARRUDA, Eucidio Pimenta. Jogos digitais e aprendizagens: o jogo Age of Empires III desenvolve ideias e raciocínios históricos de jovens jogadores? Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2009.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002. BROUGÈRE, Gilles. Jogo e educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 2003.
CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Petrópolis: Vozes, 2017. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
FORTUNA, T. R. Brincar é aprender. In: GIACOMONI, Marcello Paniz; PEREIRA, Nilton Mullet (org.). Jogos e Ensino de História. Porto Alegre: Evangraf, 2013.
GIACOMONI, M. P.; PEREIRA, Nilton Mullet. Jogos e ensino de história. Porto Ale- gre: Evangraf, 2013.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento de cultura. São Paulo: Pers- pectiva, 2018.
LUCKESI, C. Ludicidade e atividades lúdicas: uma abordagem a partir da experiên- cia interna. In: PORTO, Bernadete (org.). Educação e Ludicidade (Ensaios 02): Ludici- dade: o que é isso?. Salvador: GEPEL/FACED/UFBA, 2002. p. 22-60. Disponível em: <https://luckesi002.blogspot.com/>. Acesso em: abr. 2020.
PEREIRA, Nilton M.; FRAGA, Gabriel Torelly. O Jogo e o conceito: sobre o ato criativo na aula de História. Opsis, v. 15, p. 88-100, 2015. Disponível em: <https:// www.revistas.ufg.br/Opsis/article/view/34727>. Acesso em: 10 nov. 2019.
RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa – 1: A intriga e a narrativa histórica. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
SILVA, Cláudio Rodrigo Vasconcelos. Alea Jact Est: a prática docente do professor de História que faz uso de roleplaying game na sala de aula. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2016.
SILVA, Cláudio Rodrigo Vasconcelos. Usos (e Abusos) do Role Playing Game no Ensino de História: um estudo sobre as possibilidades de sistemas de RPG na sala de aula. 2013. 100f. Monografia (Graduação). Licenciatura Plena em História, UFRPE, Recife, 2013. TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.
1 Doutor em Educação. Professor do Colégio de Aplicação da UFRGS. E-mail: [email protected] .
2 Doutor em História. Professor da UFRPE. E-mail: lucasvictor.ufr[email protected].
3 Compreendemos jogo como, segundo Huizinga (2002), atividade ou ocupação voluntária, exer- cida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço (“círculo mágico”), segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mes- mo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser dife- rente da “vida quotidiana” e de embarcar no “faz de conta”. O jogo possui uma funcionalidade
semelhante à do discurso pedagógico, uma vez que as qualidades do jogador são testadas na direção do que podemos chamar de compartilhamento do conhecimento e compromisso pela vida.
4 Há um número crescente de teses, dissertações, monografias e artigos científicos sobre jogos no ensino de História no campo do Ensino de História no Brasil. Aqui, para não fugir dos objetivos deste texto, chamaremos a atenção apenas para a quantidade de pesquisas de professores da Educação Básica egressos dos Mestrados Profissionais em Ensino de História: entre 2016 e 2019 ocorreram 17 defesas de dissertações sobre jogos de tabuleiro ou digitais.
5 Os jogos foram construídos em 2019 por Marcello Paniz Giacomoni (o Mithistória contou também com a participação de Samuel Gomes de Oliveira e Eduarda Dortzbacher Schena), relacionados diretamente com os objetivos de aprendizagem da passagem do Paleolítico para o Neolítico e das diferenças entre narrativas míticas e narrativas históricas, respectivamente. A descrição completa desses dois jogos, juntamente com materiais em pdf, encontra-se no link:
<https://sites.google.com/view/ludotecalhiste>.
6 Um desses cuidados são as considerações éticas. Em 2016, o Conselho Nacional de Saúde (que normatiza os processos de ética em pesquisa) publicou sua Resolução nº 510 <http:// www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/22917581>, que pauta os procedimentos éticos em pesquisas nas ciências sociais, abarcando o campo da Educação. Resumidamente, todas as pesquisas que envolvam seres humanos devem ser submetidas ao Conselho de Ética de cada instituição de pesquisa através da Plataforma Brasil. São avaliados os riscos da pesquisa, as garantias de anonimato e as necessidades de consentimento dos participantes. No caso de menores de idade, como em pesquisas efetuadas em escolas, são necessários o consentimento dos responsáveis e o assentimento dos menores, ambos por escrito. Esse cuidado rapidamente se transforma em uma dificuldade: a realização das pesquisas e a consequente utilização dos dados demandam que os participantes e seus responsáveis aceitem participar. Mais do que isso, demandou que adolescentes de 11 a 12 anos levassem documentos para os responsáveis e retornassem com os mesmos assinados à escola. De 58 estudantes das duas turmas de 6º ano de 2019, 55 retornaram com os documentos após um longo processo semanal de retomada da importância do consentimento. Como o uso dos jogos fazia e faz parte das aulas regulares do componente curricular de História, todos os alunos participaram das atividades. Mas foram utilizados os dados e permitida a participação nos grupos focais apenas daqueles estudantes em que houve consentimento e assentimento.
7 O jogo está integralmente disponibilizado no seguinte link: <https://www.ufrgs.br/lhiste/
category/acervo/jogos-acervo/>.
8 O Lhiste congrega atualmente pesquisadores da Faculdade de Educação, Colégio de Aplicação e Departamento de História, atuando em diversas frentes: organização de eventos, criação de materiais didáticos, criação de jogos, publicação de livros paradidáticos, formação de grupos de pesquisa, disponibilização de planos de aula, entre outros. A página virtual do Lhiste pode ser visitada a partir do seguinte link: <https://www.ufrgs.br/lhiste/>.
9 O levantamento das descobertas mais relevantes sobre a temática permitiu a Vasconcelos Silva encontrar a lacuna que justificaria seu estudo pioneiro: “o nosso trabalho busca preencher esta lacuna ao olhar para a prática docente do professor de História que utiliza o RPG na sala de aula, sem perder a dimensão relacional entre os sujeitos da sala de aula e o jogo” (2016, p. 38).
A música como fonte e objeto de pesquisa para o campo do ensino de História
Edilson Aparecido Chaves1
Algumas das reflexões contidas neste artigo fazem parte de um conjun- to de preocupações apontadas na investigação de Mestrado em Educação2, em que se discutiram a presença e a ausência da música caipira nos livros didáti- cos de História. Naquele momento, pude analisar 21 coleções dos livros de História para o Ensino Fundamental aprovados no Programa Nacional do Livro Didático do ano de 2005. O estudo empírico realizado com jovens estu- dantes do Ensino Médio de uma das maiores escolas do Estado do Paraná traduziu-se em uma experiência educativa que permitiu desenvolver novas ex- periências didáticas com o uso da música em aulas de História, não apenas com temas do mundo rural/campo, mas sobretudo em relação às aulas de História e como novas temáticas poderiam ser tomadas como pistas para o estudo da História na sala de aula e o quanto esse pode ser melhorado com o uso dessas fontes, oferecendo estímulos para que os alunos possam construir novos significados sobre o passado e o presente, propondo novas perguntas históricas.
O trabalho com a música na sala de aula no Brasil não é recente. As experiências com o uso de canções temáticas no ensino de História existem desde os anos 1960. Em 1975, João Alfredo Libânio Guedes já destacava, em seu livro “Curso de Didática da História” no capítulo intitulado “Motivação musical” o quanto a canção e a música proporcionam aos professores de His- tória conhecimento e enriquecimento sobre povos e culturas.
Para Guedes, cabia ao Ministério da Educação e Cultura e aos Estados “dotar as nossas Escolas Secundárias de coleções de discos relacionados com os episódios da História da pátria” (GUEDES, 1975, p. 321). Para o autor, as músicas inspiradas em temas históricos e folclóricos seriam indispensáveis na discoteca da escola, assim como as denominadas por ele como ‘músicas pro- priamente históricas’, como hinos e canções do passado.
O autor avalia ainda que “nem toda aula de História exige esse recurso pedagógico” (p. 321) e, ao sugerir uma organização temática para a formação de uma discoteca escolar, oferece uma rica e diversificada, nos limites de seu tempo, fonte de estudos para as aulas de História, como por exemplo as canti- gas ameríndias, que, segundo o autor, poderiam ser encontradas no registro do
Museu Nacional, cantos religiosos dos negros, vistos pelo autor como folclo- re, e óperas como a Ave Maria da Primeira Missa no Brasil, gravação da Rádio Ministério da Educação e Cultura. Dessa forma, é possível perceber que o autor já se destacava não apenas por apontar caminhos para o trabalho com a música nas aulas de História, como também mapeando os tipos de temas que poderiam ser trabalhados em aulas.
Não se tratava de trabalhar a música nas aulas de História, como a con- cebemos hoje, mas já destacava o valor do uso da música para explorar o cur- rículo nacional do período.
O conceito de perspectiva histórica no trabalho com as músicas
A música tem sido, ao longo dos anos, objeto de estudo e de análise, tornando-se um dos elementos que identifica a cultura de um povo. A música está presente no cotidiano da maioria das pessoas, e alguns autores de manu- ais didáticos, conscientes da importância dela na vida dos jovens, passaram a incorporá-la também em suas coleções como parte do conteúdo de História, o que abre possibilidades aos professores para o desenvolvimento de um traba- lho simbólico de interpretação não apenas das letras, como também com gê- neros, ritmos, estruturas (CHAVES, 2006).
Muitas músicas vêm carregadas de materiais simbólicos que auxiliam na compreensão de uma dada realidade, uma vez que permitem a construção de novas leituras. Uma canção pode auxiliar os ouvintes mais atentos a se situar dentro de um contexto histórico, construindo novos significados. Do ponto de vista do ensino de História, a música pode servir como veículo de interpretação de um tempo, criando argumentos que ajudam a “desvendar” novas imagens sobre o povo brasileiro, sua vida, sua cultura (CHAVES, 2006). O uso da música nas aulas de História serve de apoio para análises textuais diversas e permite aos estudantes irem ao passado a partir de perguntas histó- ricas instigantes.
Para Kátia Abud, o uso de canções oportuniza aos professores possibi- lidades de trabalho com os conteúdos da História, chamando a atenção para o fato de que as letras podem ser tomadas como evidências para a compreensão de determinados acontecimentos:
Os diferentes temas tratados na canção (trabalho, disciplina do trabalho, mentalidade, cotidiano, moda, comportamentos, entre outros) podem suge- rir ao professor novos roteiros de organização dos conteúdos a serem desen- volvidos, desviando-se de propostas guiadas exclusivamente pela cronolo- gia, predominante nos manuais didáticos, mesmo naqueles que se apresen- tam como portadores da história integrada (ABUD, 2005, p. 315-316).
As letras de músicas constituem-se em evidências, registros de aconte- cimentos, e nesse sentido é possível, através das músicas, entender as confi- gurações culturais que moldaram a vida e as ações de alguns povos no passa- do e que hoje continuam afetando atitudes e crenças. Um exemplo é a músi- ca Rivers of Babylon, lançada em 1978, cuja letra é inspirada no Salmo 1373, retirado do Antigo Testamento. A música foi composta por Brent Dowe e Trevor McNaughton em 1969, mas faria sucesso com outra banda em 1978: Boney M.
A música trata de um tema muito recorrente em livros didáticos de His- tória, quando se estuda o conteúdo sobre os babilônicos. Ao trabalhar a músi- ca, o professor pode optar por não fornecer o contexto histórico antes da audi- ção da música ou fazer o inverso e, após explicação, realizar a audição da música.
A letra da música, retirada em parte do Salmo 137, pode ser usada como uma fonte primária a partir da relação com fragmentos do Salmo, pois a letra permite entender a emoção da vida das pessoas que passaram pelo chamado Cativeiro da Babilônia. Portanto a música descreve a dor dos exilados que foram retirados de Jerusalém após conquistada pelo rei Nabucodonosor II em 586 a.C.
A música é uma oportunidade para discutir o sentido de localização geográfica ao dizer que os rios da Babilônia, a que se refere a música, são Tigre e Eufrates. Tal questão pode desenvolver no aluno a curiosidade de bus- car evidências e compreender o contexto histórico não apenas pelo uso da Bíblia, mas buscando respostas em outras fontes para perguntar questões como: ‘por que os hebreus cantavam essas canções?’ (Salmos) ou ‘quando essa histó- ria aconteceu?’; ‘por que os hebreus escreveram esse Salmo?’; ‘por que uma banda formada por quatro integrantes negros fez tanto sucesso com a músi- ca?’; ‘por que eles regravaram essa música?’; ‘existe alguma relação entre o cativeiro da Babilônia e a situação do lugar de onde eles falam?’.
Há na internet vários vídeos com essa música, muitas delas com a pre- sença da Banda Boney M. O professor pode, se tiver recurso, usar o clipe da música com o recurso de legenda. Isso permitirá aos alunos conhecerem não apenas a banda como também acompanhar a letra.
O professor, ao trabalhar com temas relacionados à Mesopotâmia, po- derá perguntar como a música ajuda a entender os eventos significativos sobre o período estudado e levar a considerações mais amplas sobre perseguições religiosas na era contemporânea.
O conceito e o significado histórico no trabalho com as músicas
No início de minha carreira, década de 1990, eu utilizava muitas músi- cas do rock nacional para estimular os alunos a discutir a política brasileira pós-período da ditadura civil-militar. As bandas Legião Urbana, Plebe Rude, Paralamas do Sucesso, O Rappa, entre outras, faziam parte das aulas de His- tória e eram as favoritas dos alunos. Canções como “Geração Coca-Cola”, “Que país é este”, “Até quando esperar”, “Luiz Inácio – 300 picaretas” e “Mi- séria S/A” eram certamente as mais tocadas em minhas aulas. Essas e muitas outras músicas tinham a capacidade de transportar os alunos para um passado próximo, mas diferente do que estavam vivendo. Cabia a mim, em parceria com os alunos, reunir as evidências e atribuir-lhes um sentido.
Outras músicas também estão relacionadas a temas da História e, em geral, davam oportunidade de explorar o conceito de significação histórica, como por exemplo “Os Argonautas”, de Caetano Veloso, e “Índios”, da ban- da Legião Urbana, essas incluídas nos livros didáticos quando apresentavam conteúdos relacionados às navegações portuguesas e à conquista do Brasil. Ainda, para discutir outros olhares sobre a ditadura civil-militar brasileira, as músicas “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, de Roberto Carlos, e “Para não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, eram trabalhadas como fontes primárias enquanto as outras eram trabalhadas como interpretação his- tórica. Temas relacionados à História de outros países também eram trabalha- dos, como “Invaders”, da banda Iron Maiden, relacionada com o tema das invasões vikings na Inglaterra.
Nesse sentido, Abud aponta que
Tal metodologia de ensino auxilia os alunos a elaborar conceitos e a dar significados a fatos históricos. As letras de música se constituem em evidên- cias, registros de acontecimentos a serem compreendidos pelos alunos em sua abrangência mais ampla, ou seja, em sua compreensão cronológica, na elaboração e ressignificação de conceitos próprios da disciplina. Mais ain- da, a utilização de tais registros colabora na formação dos conceitos espon- tâneos dos alunos e na aproximação entre eles e os conceitos científicos (ABUD, 2005, p. 315-316).
Para Katia Abud, as letras de música constituem-se em evidências, re- gistros de acontecimentos. Nesse sentido, outra música com temática de regis- tro de um evento significativo na História do Brasil é “Leilão”. A música, composta por Heckel Tavares e Joracy Camargo, mostra uma narrativa histó- rica sobre a chegada dos povos africanos ao Brasil. Ela desperta um fascínio no estudante por trazer fragmentos do passado ainda muito presentes no coti- diano dos brasileiros. A música, considerada aqui um documento histórico
por trazer elementos históricos significativos de protesto em palavras e música contra não apenas o racismo, mas também a temática da violência praticada contra famílias inteiras de africanos que foram “dissolvidas” com a chegada ao Brasil.
A canção ficou conhecida na voz da cantora/pesquisadora Inezita Bar- roso4, que ao longo de sua carreira frequentemente cantava em seus shows essa música. Isso revela a duradoura significação dessa temática como um marco na luta contra a violência praticada contra os africanos ao longo da história do Brasil.
Sobre a importância da música caipira para ensinar História, em artigo publicado na revista Carta Capital: Educação, apontei que
A exemplo dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, que no século XIX viaja- ram pelo interior da Alemanha recolhendo depoimentos sobre histórias cam- ponesas, nas décadas de 50 e 60 do século XX, a cantora (Inezita Barroso) e pesquisadora viajou pelo Brasil pesquisando, apanhando relatos presenciais em documentos antigos e registrando contos populares. Dessa forma, tor- nou possível a preservação da memória da canção brasileira de raiz, com seus ritmos, melodias e letras, construindo um valioso mapa da música cai- pira e do folclore brasileiro5.
(…)
Inezita, por quase quatro décadas, esteve à frente de um dos programas de maior audiência da tevê brasileira: o Viola, Minha Viola. Esse sucesso pode ser tomado como evidência do espaço que a cultura caipira e, em especial, a música de raiz ocupam na cultura brasileira contemporânea. Deve-se desta- car que o programa, além de sua função de entretenimento, tornou-se uma das maiores fontes para pesquisadores do gênero por apresentar antigas e novas gerações de compositores e intérpretes que contribuíram e contribuem com a preservação da autêntica música caipira.
A música “Leilão” possibilita o entendimento dos alunos sobre crenças dos afrodescendentes e suas relações com crenças cristãs católicas. No excerto a seguir, é possível discutir a significação histórica da temática levantada pela música. Questões como Princesa Isabel redentora aparece ao lado de Santa Isabel6, o que permite várias leituras sobre o cotejamento das duas persona- gens, inclusive a crítica quanto à formação de certos estereótipos, como a com- preensão de que a liberdade foi uma dádiva da princesa Isabel.
[…]
“E quando veio de Isabé as alforria Percurei mais quinze dias
Mas a vista me fartô
Só peço agora que me leve Sá Isabé Quero ver se tá no céu
Minha véia, meu amô”
Em outro momento, a letra da música apresenta a possível localização geográfica das personagens da canção quando aponta que sua esposa “foi inté mãe do terreiro da família dos Cambinda”. Historicamente, Cabinda era uma região controlada pelo Reino do Manicongo (como era chamado o mandatá- rio do Reino do Congo). Hoje, Cabinda é uma das 18 províncias de Angola. O Brasil foi, portanto, o destino desses grupos provenientes da África. A relação de mãe de terreiro pode ser explorada como a relação de poder das mulheres na África negra, pois essas mães de santo ocupavam o mais alto cargo da hie- rarquia religiosa em seus lugares de origem; no Brasil colonial, no entanto, essas tradições não foram respeitadas.7
O artigo “Atravessando Fronteiras: um estudo sobre mães-de-santo e a ‘África imaginada’ nos terreiros de candomblé do Rio de Janeiro”, de Maria Inácia D’Ávila Neto e Claudio de São Thiago Cavas, explora o percurso des- sas mães de santo ao longo da História do Brasil. Para os autores, “nessa mi- gração forçada, os negros aqui dispersos perderam seus nomes, seus pares, suas famílias e foram proibidos de cultuar suas divindades8”.
Consequentemente, “Leilão” pode ser usada como uma fonte impor- tante que tanto influenciou como refletiu seu tempo. Ao utilizar uma canção como “Leilão” em uma aula de História, é possível adequá-la perfeitamente a uma consideração de temas de significação histórica e avaliação de fontes. Essa é uma oportunidade perfeita para exigir a compreensão de texto da músi- ca acerca de questões como: ‘onde você pensa que isso pode ter acontecido?’, ‘por que será que isso aconteceu?’, ‘quando isso pode ter acontecido?’; ‘com que frequência isso acontecia?’; ‘quem é a cantora?’; ‘quando será que a músi- ca foi escrita?’ e ‘por que será que ela foi escrita?’.
Uma investigação inicial da música em si levará naturalmente à consi- deração de maiores questões, desde o tratamento dado aos escravizados no Brasil até as relações de violência ao longo da História do Brasil contra os afrodescendentes.
Interpretações históricas e o contexto social
Ao realizar análise de músicas, é importante ressaltar o aspecto do contexto social, pois a leitura das letras que tratam de eventos históricos revela grupos sociais com referências culturais diversas. Portanto é necessá- rio pesquisa, juntamente com os alunos, para a construção de críticas robus- tas; para tanto, professores e alunos devem lançar mão de empregos de links com variadas fontes documentais para validar um argumento histórico coe- rente.
Arthur Chapman, a despeito da interpretação histórica, aponta que “a interpretação histórica disciplinar está no negócio de ‘explicar a evidência’ ou vestígios do passado que permanecem no presente” (CHAPMAN, 2018, p. 123). Para tanto, segundo argumento do autor, deve-se lançar mão de questões como: ‘as interpretações se referem com precisão aos vestígios arquivísticos a serem explicados?’. Ou para nosso caso no trabalho com a música: ‘até que ponto uma interpretação abre novas possibilidades, por exemplo levanta novas ques- tões?’ (CHAPMAN, 2018, p. 123).
Dioguinho e a construção de uma lenda
Uma história assustadora, cantada em moda de viola, percorreu todo o estado de São Paulo entre meados do século XIX e início do XX; trata de um bandido famoso que ficou conhecido como Dioguinho.
“Diogo da Silva Rocha”, “Diogo da Rocha Figueira” ou até mesmo “Diogo da Rocha Faria” são os nomes relacionados ao bandido. Nas palavras de Moacir Bernando, pesquisador, não acadêmico, da vida do personagem, “Dioguinho, que se salientou no banditismo no interior paulista, foi produto do meio e da época em que viveu. Tempo em que ‘coronel’ dominava a políti- ca do vasto território bandeirante e fomentava as lutas pelos domínios da ad- ministração municipal. Época em que os políticos filiados ao mesmo partido se tornavam inimigos ferrenhos de morte nas competições eleitorais das várias zonas onde disputavam as rédeas do mando” (BERNARDO, p. 8).
O autor cita ainda um conjunto de documentos sobre a vida de Diogui- nho, entre eles uma dissertação de mestrado em Sociologia da pesquisadora Selma Siqueira de Carvalho9 e uma poesia retirada de um livro didático de 1971 intitulado “Estudo Dirigido de Português”, de Reinaldo Mathias Ferrei- ra, que coloca nas páginas do livro uma poesia de Menotti Del Picchia de 1917, que cita o personagem Dioguinho, chamada de “Juca Mulato”, como segue o excerto:
[…]
– Sei que rezas com que venço a qualquer mau-olhado; breves para deixar todo corpo fechado.
Não há faca que o vare e nem ponta de espinho; fica o corpo tal qual o corpo do Dioguinho… Mas de onde vem o mal que tanto te abateu? […]
Ainda sobre outras fontes10 que tratam do tema, a pesquisadora Nilce Camila de Carvalho11 aponta que “Sobre a vida, crimes e aventuras de Diogui- nho há cinco narrativas, escritas por delegados, jornalistas e folcloristas; algu-
mas mesclam relatos orais e documentos escritos, atribuindo certo enfoque local às descrições”. Completa dizendo que fontes diversas foram produzidas sobre o personagem, como “filmes, cordéis, canções, entre outras produções. Uma das primeiras obras que representa Dioguinho foi escrita por Antônio de Godói, delegado encarregado pela perseguição ao bandido em 1897. Diogui- nho foi dado como morto nesse ano, porém seu corpo nunca foi encontrado”. No caso das canções, trago para este artigo duas de grande relevância,
não apenas pela narrativa, mas sobretudo pelo compositor e cantor Antenor Serra, o Serrinha (1917-1978), que compôs as músicas sobre Dioguinho nas letras de Ado Benatti e Anacleto Rosas. As músicas “Os crimes do Diogui- nho” e “A morte de Dioguinho” foram gravadas em 1948. Ao pesquisar o passado de Antenor Serra, os alunos descobrirão que o cantor provavelmente teve influência das histórias orais durante sua vida, pois nasceu em Botucatu, uma das regiões por onde transitou o personagem Dioguinho.
À primeira vista, as músicas parecem relatar uma série de crimes, per- meada de bandoleiros, coronéis e fazendeiros. No entanto uma análise mais apurada das canções revela-nos um Brasil violento e em constante transforma- ção. Trata-se de fins do século XIX, interior de São Paulo; o governador do Estado de São Paulo, Manuel Ferraz de Campos Sales, empreendeu uma for- ça-tarefa para capturar Diogo da Rocha Figueira, conhecido como “Diogui- nho”, fugitivo da justiça, acusado de praticar vários assassinatos.
Mas quem era Dioguinho? Por que um governador empreenderia uma força-tarefa para capturar um bandido e seu bando?
Para buscar entender não apenas a letra, como também o contexto, os alunos podem buscar outras fontes em outros formatos, como informações biográficas sobre os compositores, para saber por que, mesmo após a passa- gem de várias décadas, ainda se tem interesse sobre o tema. Uma das respostas pode ser explicada a partir da significação histórica para os povos do passado e como interpretavam aquele momento e sua relevância atual para compreen- der a política do presente.
Dioguinho não era um bandido qualquer. Visto por alguns como vio- lento, para outros, era um justiceiro injustiçado, era fruto do meio de sua épo- ca – o coronelismo. Dioguinho era, nesses termos, um protegido de homens influentes, todos ligados ao movimento republicano, aos grandes coronéis e empresas, como a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. Naquele mo- mento, a Mogiana lutava pelo direito de prestar serviços ao governo paulista na construção de uma via férrea que serviria para escoar produtos da região, sendo o principal deles o café. Do outro lado estava a Companhia Melhora-
mentos, na época a grande detentora dos direitos de transporte fluvial, ilumi- nação pública, etc. Nesse contexto está Dioguinho, que, ora envolto pela reali- dade, ora pela ficção, revela um mundo a interrogar.
Ensinando História com músicas
As músicas oferecem ricas e variadas evidências para professores de História discutirem conceitos de significado histórico, perspectiva histórica e contexto histórico, mas para além desses conceitos o professor/pesquisador do ensino de História deve considerar outros elementos para a aprendizagem; um deles são o livro didático e suas fontes. Esses livros costumam apresentar, especialmente nas orientações destinadas ao professor, metodologias diversas, que podem ser exploradas juntamente com os alunos.
Utilizar as músicas simplesmente como ilustração de um tema é em- pobrecer o processo de ensino de História. Nesse caso, o uso da música pode produzir no pensamento do aluno a imagem de perda de tempo. Ao invés disso, o professor/pesquisador pode trazer sólidas discussões para se com- preender o assunto a partir da música ou através dela. Assim, o aluno se sentirá desafiado a compreender aspectos importantes do conteúdo históri- co, mas utilizando o conteúdo do ensino associado ao método de investiga- ção do historiador. É claro que a maioria dos estudantes não se tornará his- toriador, mas praticar o ofício do historiador faz parte das aulas e do traba- lho do professor.
Referências
ABUD, K. M. Registro e representação do cotidiano: a música popular na aula de História. Cadernos do CEDES (UNICAMP), Campinas/SP, v. 67, p. 309-317, 2005.
BERNARDO, Moacir. A vida bandida de Dioguinho. Botucatu: Gráfica e Editora Santa- na, 2000.
CHAPMAN, Arthur. Desenvolvimento do pensamento histórico: abordagens conceituais e estratégias didáticas. Curitiba: W. A. Editores, 2018.
CHAVES, Edilson Aparecido. A música caipira em aulas de História: questões e possibili- dades. 2006. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, NPPD/PPGE-UFPR. Curitiba, 2006.
GUEDES, João Alfredo Libânio. Curso de Didática de História. 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1975.
Sugestões de leitura
Há bons livros para leitura e aperfeiçoamento sobre o uso da música em aula.
Minha primeira indicação é para conhecimento sobre a música brasileira. Trata-se do livro: Brasil Século XX: ao pé da letra da canção popular. Curitiba: Nova Didática, 2002. O livro, nas palavras dos autores Luciana Worms e Wellington Costa, é um apanhado de episódios da História do Brasil. Sem dúvida, uma obra de referência.
Outra excelente fonte de pesquisa é o livro do pesquisador Paulo Cesar de Araújo: Eu não sou cachorro, não: Música popular cafona e ditadura militar12. Nelson Motta, jornalista, compositor, escritor e produtor musical, resume o que o livro representa na história da música brasileira. “O livro Eu não sou cachorro, não tá colocando ordem e fazendo justi- ça na música brasileira. Ele resgata e explica a importância desses artistas que eram execrados pela crítica, mas adorados pelo povão, porque faziam música que falava da vida e dos sentimentos dos brasileiros de uma forma que todos entendiam” (MOTTA, 2010).
Uma boa fonte para pesquisa sobre o personagem (Dioguinho) citado neste artigo é o livro de João Garcia, intitulado Dioguinho: o matador de punhos de renda13. Trata-se de um romance histórico de uma personagem verídica, Diogo da Rocha Figueira, o Dio- guinho, um dos mais notáveis bandidos caipiras do interior de São Paulo, que viveu em fins do século XIX no contexto da transição da Monarquia para a República e revela parte das discussões políticas sobre o período.
Para quem busca trabalhar com temas sobre gênero e música, o livro Dossiê: As Galvão
– as soberanas 70 anos de estrada14, do autor Maikel Monteiro, pode ajudar bastante. Tra- ta-se da única dupla feminina de música caipira a atingir setenta anos de carreira. Em um universo dominado por duplas masculinas, as Galvão fizeram história por superar o machismo predominante no meio artístico sertanejo.
Procedimentos de pesquisa
BUTLER, Simon. What´s that stuff you´re listening to, sir? Rock and pop music as rich source for historical enquiry. Teaching History, 111, 2003.
Nesse artigo, o autor aponta formas metodológicas de explorar as letras em diferentes níveis.
O artigo, em inglês, pode ser encontrado a partir do site: <http://eprints.glos.ac.uk/ 7782/1/Butler%20%282003%29%20What%27s%20that%20stuff%20you%27re%20 listening%20to%20Sir.pdf>. Acesso em: 12 set. 2020.
Sobre procedimentos de pesquisa acerca do uso da música, Circe Bittencourt também aponta orientações em seu livro Ensino de História: procedimentos e métodos15. A autora reserva um capítulo para sugerir atividades com a música e o ensino de História.
Finalmente, uma obra que é resultado de investigações desenvolvidas por professores/ pesquisadores com grande experiência em sala de aula e no uso da música e quadri-
nhos em aulas de História. O livro Ensinar e aprender História: histórias em quadrinhos e canções16. O livro é organizado e sistematizado em capítulos que apresentam reflexões metodológicas sobre o ensino e aprendizagem em História e apresenta metodologias que vão desde a preparação de uma aula usando quadrinhos e canções à sua execução.
Fontes
Rivers of Babylon. Compositores: Brent Dowe e Trevor McNaughton da banda The Melodians. Intérprete: Boney M. São Paulo: RCA, 1978. 1 disco vinil.
Leilão. Compositores: Heckel Tavares e Joracy Camargo. Intérprete: Inezita Barroso. São Paulo: Trama, 2003, CD: Hoje lembrando – (2’35 minutos).
Os crimes do Dioguinho. Compositores: Ado Benatti/Anacleto Rosas/Serrinha. Intér- prete: Serrinha. São Paulo: Continental, 1950.
A Morte do Dioguinho. Compositores: Ado Benatti/Anacleto Rosas/Serrinha. Intérpre- te: Serrinha. São Paulo: Continental, 1950.
FERREIRA, Breno. Cão. Graphic novel. São Paulo: Editora Mino, 2017.
Filmes
Dioguinho. Direção: Carlos Coimbra. Produção: Michel Lebedka, Konstantin Tkaczenko. Brasil: BG Filmes Ltda; Sinofilmes Ltda, 1957.
A trajetória de Diogo da Rocha Figueira, famoso assassino do interior de São Paulo: suas cruel- dades, o início de sua carreira criminal, as tocaias contra os coronéis, o caso amoroso com uma amante, a perseguição do tenente França Pinto e a grande luta final.17
1 Professor de História do Instituto Federal do Paraná – Campus Curitiba – (IFPR). Núcleo de Pesquisa em Publicações Didáticas (NPPD/UFPR). <https://orcid.org/0000-0002-4909-8059>. E-mail: [email protected].
2 CHAVES, Edilson Aparecido. A música caipira em aulas de História: questões e possibilidades. Curitiba, 2006. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Paraná.
3 Segundo a enciclopédia livre, baseada na web e escrita de forma colaborativa, Wikipedia, na música Rivers of Babylon, a Babilônia “assume, no contexto da canção, o sentido de opressão, falta de liberdade, seja ela de cunho político, cultural ou espiritual, e como tal empregado nos movimentos anti-racistas e anticoloniais, caso desta canção caribenha”.
Na cultura estadunidense, onde a canção causou grande impacto, esse Salmo possui uma tradição de uso político, figurando no primeiro livro publicado naquele país, numa canção patriótica de William Billings quando da Independência, passando por discurso do abolicionista Frederick Douglass até ressurgir na canção de 1969 de The Melodians e então em muitas outras, em vários estilos (gospel, disco, country, etc.).
O filme que revelou a canção foi ainda o primeiro longa-metragem realizado na Jamaica, e o sucesso da obra projetou seu diretor, Perry Henzell. Por sua composição ainda na década de 1960, é considerada como “proto-reggae”. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/ Rivers_of_Babylon>. Acesso em: 03 abr. 2020.
4 Inezita Barrosos é o nome artístico de Ignez Magdalena Aranha de Lima.
5 CHAVES, Edilson. O caipira revisitado: o universo da música caipira. Carta Capital, Carta na Escola, 21 de maio de 2015. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/educacao/o- caipira-revisitado/>. Acesso em: 31 mar. 2020.
6 Isabel de Aragão, rainha de Portugal. Conhecida como protetora dos pobres. Seu processo de canonização foi realizado pelo Papa Urbano VIII em 1625. É reverenciada também nos Açores com as Festas de Espírito Santo.
7 D’ÁVILA NETO, Maria Inácia; CAVAS, Claudio de São Thiago. Atravessando Fronteiras: um estudo sobre mães-de-santo e a ‘África imaginada’ nos terreiros de candomblé do Rio de Janeiro. Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p. 52 -70, ago./ dez. 2015.
8 CARVALHO, Selma Siqueira. Dioguinho: estudo de caso de um bandido paulista. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 1988.
9 Em 2017 foi lançado uma Graphic novel, que mescla relatos populares com registros históricos, chamada “Cão”, do autor Breno Ferreira, publicada pela Editora Mino.
10 CARVALHO, Nilce Camila de. Dioguinho nas narrativas policiais: um facínora de “corpo fechado”. Disponível em: <http://www.cih.uem.br/anais/2017/trabalhos/3940.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2020.
11 ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar.
- Rio de Janeiro: Record, 2010. 458p.
12 GARCIA, João. Dioguinho, o matador de punhos de renda. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2002.
13 MONTEIRO, Maikel. Dossiê As Galvão: As soberanas – 70 anos de estrada. Curitiba: Editora InVerso, 2017.
14 BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de História, fundamentos e métodos. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2018.
15 SOBANSKI, Adriane de Quadros…[et al.]. Curitiba: Base Editorial, 2010.
16 Disponível em: <http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/ iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p&nextAction=lnk&exprSearch=ID=014042& format=detailed.pft>. Acesso em: 03 abr. 2020.
Cinema e audiovisual no ensino de História: questionamentos, abordagens
e possibilidades de investigação
Eder Cristiano de Souza1
Registrar imagens em movimento foi uma conquista que impactou a humanidade no final do século XIX, quando os irmãos Lumière apresenta- ram ao mundo o cinematógrafo. Desde então, as tecnologias de captura das imagens para reprodução em telas desenvolveram-se grandemente, dando for- ma e conteúdo à indústria cinematográfica e à mídia televisiva, que se torna- ram os grandes meios de produção e circulação de informações, ideologias e sentimentos do século XX.
Hoje, vivemos em um mundo de imagens em movimento. O monopólio do cinema e da televisão na difusão de conteúdos audiovisuais agora compete com a profusão de imagens produzidas por pequenos grupos ou mesmo por indivíduos, que utilizam plataformas digitais para entrar nesse mercado e aju- dam a construir o incomensurável acervo de memórias imagéticas do mundo contemporâneo.
Nesse mundo, crianças, jovens, adultos e idosos ocupam várias horas de seu dia conectados à internet, via smartphones, smart TVs e computadores, con- sumindo muitas dessas imagens de forma mais ou menos aleatória, conduzi- dos por algoritmos que vão criando nichos de gostos e vontades não só no consumo de produtos culturais, mas também na formação dos valores políti- cos e dos referenciais de mundo desses sujeitos. A História é, na atualidade, conteúdo presente e relevante nesse universo cultural, e lidar com isso nas salas de aula é um desafio de proporções ainda pouco delineadas.
Abordaremos neste texto a temática do uso de filmes e outras produ- ções audiovisuais no ensino de História. Não se trata de uma temática nova, pois o uso de filmes e outras produções audiovisuais em aulas de História é tema antigo e recorrente. As reflexões de Jhonatas Serrano (SERRANO, 1935) sobre o bom uso educativo das imagens em movimento para ensinar melhor, assim como a criação do INCE2 em 1936, evidenciam como a busca por retra- tar a História na tela e converter o audiovisual num recurso educativo é uma preocupação de longa data.
Nos anos 1990, com o alargamento do ensino de História como campo investigativo, as proposições e reflexões acadêmicas sobre esses recursos nas aulas de História ganharam maior destaque. No âmbito dessas investigações, ganhou destaque a ideia de que utilizar filmes e outras produções audiovisuais em aulas de História é algo que pode contribuir de forma significativa para qualificar o ensino.
Alguns dos argumentos formulados por esses trabalhos ainda hoje são recorrentes: considerar o uso desses recursos uma estratégia metodológica mais dinâmica por se tratar de linguagens mais atraentes para crianças e adolescen- tes do que textos ou aulas expositivas; utilizar filmes e outras produções como fontes para analisar seu conteúdo técnico e artístico; observar a relação entre o conteúdo dessas produções e a sociedade na qual foram produzidas; analisar e criticar as formas de apropriação que essas obras fazem do conhecimento his- tórico.
Essas perspectivas são relevantes, uma vez que revelam a preocupação com a qualidade do ensino e buscam definir princípios e procedimentos di- dáticos para professores. Entretanto essas não são as únicas possibilidades de pensar a presença do cinema e do audiovisual nas aulas de História, ha- vendo outras vertentes de estudos ainda pouco exploradas, assim como ou- tras possibilidades de reflexão teórica e metodológica tanto na investigação como na proposição desses recursos para o ensino. Com o intuito de apresen- tar essas vertentes, o presente texto está subdivido em três tópicos temáticos.
No primeiro tópico, apresentamos algumas reflexões sobre as possibi- lidades de abordar filmes e produções audiovisuais como fontes para a pes- quisa e para o ensino de História. Na sequência, discutimos a relevância dessas obras no âmbito da cultura histórica, ou seja, da produção e difusão de visões históricas que se tornam socialmente influentes. Por fim, nosso último tópico, apresenta as possibilidades de investigar e refletir sobre a apren- dizagem histórica a partir do uso do cinema e audiovisual nas aulas de His- tória. Com esse percurso esperamos contribuir para que professores pesqui- sadores se aprofundem na temática e possam agregar novos elementos às discussões aqui apresentadas.
Filmes e produções audiovisuais como fontes para a pesquisa histórica e para o ensino
Nos anos 1970, no contexto do surgimento da chamada Nova História, que trazia uma série de discussões sobre novos temas, abordagens e objetos para a pesquisa histórica, Marc Ferro destacou-se por propor uma série de
reflexões sobre o cinema como fonte de pesquisa histórica. Para Ferro, todos os filmes relacionam-se com o conhecimento histórico, pois são produtos culturais inseridos em uma sociedade e em uma época específicas, podendo ser tomados como objetos de investigação no âmbito do que o historiador francês chamou de uma “contra-análise da sociedade” (FERRO, 1976). Os filmes passaram a ser entendidos, portanto, como uma rica fonte para anali- sar temas e questões da época em que foram produzidos, pois trariam refleti- das essas preocupações em seus enredos e na construção de suas histórias.
Obviamente, o cinema, como uma indústria cultural específica e po- derosa, hegemônica à época, ganhou essa relevância no trabalho de Ferro. Mas, aos poucos, o historiador francês também direcionou seu olhar para a televisão, sendo que seus estudos não se atentaram somente ao fenômeno cultural representado por essas mídias, mas também às técnicas específicas que os constituem e às possibilidades de análise que se abrem ao serem des- cortinadas (1992).
As produções cinematográficas e audiovisuais são, então, fontes histó- ricas ricas e complexas. A partir delas é possível realizar variados estudos his- tóricos, entre os quais enumeramos os seguintes:
- Analisar como um filme ou produção audiovisual em determinada época aborda e reflete questões pertinentes à realidade daquele período, como disputas políticas, transformações culturais, conflitos sociais, eventos específi- cos, entre
- Investigar como as obras que realizam recuos históricos, como os chamados “filmes históricos” ou as “novelas de época”, por exemplo, recons- troem cenários, personagens e sentimentos de outras épocas.
- Analisar se essas obras dialogam com as possibilidades efetivas de representar o passado de forma mais verossímil ou se cometem equívocos ou arbitrariedades, como anacronismos, erros conceituais, construção de estereó- tipos, entre
Para realizar esses estudos, é preciso levar em conta que produções au- diovisuais, em especial o cinema, são dotadas de técnicas e recursos específi- cos, possuindo duas características essenciais: 1. são linguagens artísticas ba- seadas na reprodução da realidade; 2. possuem capacidade de reconstruir a realidade de modo inteiramente original.
Um filme, por exemplo, é formulado a partir de um caráter orgânico, ou seja, é apresentado como um todo homogêneo que articula vários enqua- dramentos e sequências, construindo temporalidade própria, colocada em movimento a partir de artifícios específicos. Moscarielo (1985) defende que no cinema o verossímil é preferível ao verdadeiro, pois o importante não
seria fazer ver as coisas, mas dar uma ideia de como elas ocorrem. É o que ele chama de conotação sugestionante do enquadramento, definido como um con- junto de procedimentos e técnicas que direcionam o significado da ação, que só pode ser completado pelo espectador ao assimilar e interpretar esses si- nais e mensagens.
Um conjunto vasto de procedimentos técnicos e artísticos qualifica as mensagens transmitidas por uma obra: movimentos de câmera e enquadra- mentos; montagem dos quadros filmados; criação de efeitos de espaço e tem- po díspares; desparecimento gradual ou repentino de uma imagem, sua distor- ção ou seu desfocamento; tomada panorâmica ou aproximada; ambiente ex- terno ou interno; aproximação ou distanciamento de uma personagem; acele- ração ou prolongamento de uma ação.
Sensações, sentimentos, deslocamentos temporais, ideias, sonhos, dese- jos podem ser transmitidos por essas produções. Efeitos sonoros também são criados em proveito da expressividade da linguagem. Vozes em off podem tra- zer significados que amplificam a discursividade do que se propõe transmitir; a fusão entre imagem e som pode gerar o significado preciso de uma cena; ruídos ou sons repetitivos podem também compor uma cena, dando-lhe um potencial de expressão e significância.
O trabalho com as cores, o cenário ou a paisagem onde a cena deve ser filmada também compõem a organicidade da produção. A cenografia, natural ou artificial, transforma o mundo em discurso, servindo-se do próprio mundo, sem utilizar um substituto. Segundo Moscarielo:
[…] os códigos devem interactuar entre si para que produzam o sentido ori- ginal que deveria constituir o objectivo de qualquer prática artística digna deste nome. Portanto, a banda sonora deverá tornar “mais complexa” a banda visual; a cor deverá conotar a imagem em sentido psicológico ou crítico; a cenografia deverá transformar-se ela própria em “personagem” da narrati- va. Em suma, os códigos deverão preocupar-se em ter na tela um resultado funcional e não meramente belo (1985, p. 46-47).
Os recursos destacados são apenas parte do que se pode extrair de uma análise dessas linguagens, evidenciando a complexidade de produção de uma obra. Obviamente, nem todas utilizam todos os recursos disponí- veis, mas é fundamental conhecê-los minimamente para que se compreen- dam dois aspectos fundamentais: 1. que mensagens a obra transmite e que sentidos produz a partir da forma como conta suas histórias; 2. quais efeitos elas geram sobre o espectador, ou seja, qual a interação possível entre quem assiste e o conteúdo assistido.
Os estudos que tomam como foco a preocupação com o uso de produ- ções audiovisuais no ensino de História, especialmente as cinematográficas, convergem para uma preocupação principal, qual seja, preparar os professores para lidar com as dimensões acima elencadas. Segundo Almeida:
[…] é possível, mesmo o professor não se tornando um crítico cinematográ- fico altamente especializado, incorporar o cinema na sala de aula e em pro- jetos escolares, de forma a ir muito além do “conteúdo” representado pelo filme. O significado de um texto/filme é o todo, amálgama desse conjunto de pequenas partes, em que cada uma não é suficiente para explicá-lo, po- rém todas são necessárias e cada uma só tem a significação plena em rela- ção a todas as outras (2001, p. 29).
O primeiro aporte para as pesquisas sobre o ensino de História consiste, portanto, na possibilidade de tomar esses artefatos culturais – filmes, vídeos, produções televisivas – como fontes para o ensino de História. É possível in- vestigar como isso tem sido feito, quais as potencialidades e dificuldades para utilizar esses recursos, se há um aproveitamento ou não dessas possibilidades, se os professores compreendem essas dimensões complexas que devem balizar o olhar sobre uma obra, se estão atentos às artimanhas e estratégias de análise desses materiais, de modo a extrair o máximo de possibilidades analíticas, visando qualificar o ensino.
É importante entender também que uma obra cinematográfica ou au- diovisual, produzida em qualquer época ou espaço, é passível de ser utiliza- da como fonte de reflexão histórica, isso porque se configura como artefato cultural complexo. Cada produção envolve uma ampla gama de processos constitutivos, que perpassam escolhas e possibilidades técnicas, financeiras, culturais e políticas. Esse emaranhado de questões condiciona uma obra, seja industrial ou artesanalmente, e interfere no resultado do trabalho que será observado pelo espectador.
As produções com temáticas fixadas em torno de temas históricos re- sultam de determinadas leituras, olhares sobre o passado, que trazem esse passado e o tornam presente a partir das escolhas presentes sobre o passado que se quer representar. Os filmes relacionam-se com a história através de produções que remetem ao passado ou então de filmes produzidos em ou- tras épocas, e todas podem ser utilizadas como objetos de investigação histó- rica.
Um filme que constrói sua versão de uma história carrega em si a tensão entre a inventividade de seus autores/produtores e as limitações impostas pelas normas e convenções – com a diferença básica de que os discursos históricos transmitidos na tela não têm qualquer compromisso
teórico-metodológico com a História enquanto ciência academicamente instituída. Rosenstone (1997) aponta duas formas tradicionalmente utili- zadas pelos historiadores para analisar os filmes históricos. Na chamada aproximação formal, considera-se que os filmes são reflexo do momento no qual foram feitos. Já na aproximação implícita, podem ser avaliados com livros traduzidos, sujeitos às normas de verificabilidade, documenta- ção, estrutura e lógica que regem os livros de História. Porém o mesmo autor afirma:
[…] la ‘literalidad’ fílmica no existe. Por supuesto que una película puede mostrarnos el aspecto superficial del pasado pero nunca podrá mostrarnos exactamente los hechos que sucedieron en él. Nunca podrá mostrarnos una réplica milimétrica de lo que sucedió (si es que alguna vez llegamos a saberlo). Claro que la reconstrucción debe basarse en lo que sucedió, pero la reconstrucción nunca será literal. Ni en la pantalla, ni en el libro (RO- SENSTONE, 1997, p. 59).
Contudo há a possibilidade de se pensar nessas produções como trans- missoras de um determinado saber histórico, que atinge as pessoas e as infor- ma sobre o passado. Produções que não se ancoram na preocupação científica com a racionalidade histórica, uma vez que geralmente se configuram como mercadorias da cultura de massa, e o que se destaca em seu relevo, na maior parte dos casos, é o potencial de difusão e rentabilidade da obra, não seus critérios de cientificidade.
São variadas as formas através das quais a produção cinematográfica e audiovisual pode ser considerada como fonte para o ensino. Essa comple- xidade deve ser fator potencializador, não inibidor, da pesquisa e análise desses variados produtos da indústria cultural. Para entender essa potencia- lidade, é preciso ir além de visões tradicionais sobre o uso de filmes e outras produções audiovisuais no ensino. Como aquela que entende que o filme é somente um facilitador do ensino por ser uma linguagem mais atraente que permitirá aos alunos visualizarem a História na tela. Ou então abordar essas produções simplesmente como objeto de análise em sentido restrito, apenas para fazer comparações com outros documentos, analisar sua veracidade.
Para além desses olhares, um ingênuo e outro crítico, sobre as produ- ções, há a possiblidade de pensar outros aspectos. Primeiramente, tais obras, especialmente aquelas de grande difusão na indústria cultural, como filmes históricos e novelas de época, dialogam com o imaginários social, constro- em narrativas e discursos sobre a História que são socialmente partilhados, chegando à escola por intermédio das curiosidades e dos conhecimentos de alunos e professores. Por outro, há o próprio potencial dessas obras para
dialogar com essas referências e possibilitar relações mais complexas de apren- dizagem.
Cultura histórica: usos públicos e narrativas socialmente difundidas
Pensar olhares históricos construídos pela sociedade inspirada nos arte- fatos da indústria cultural é um campo de reflexões importante. Saliba (1993) afirma que os recursos técnicos e dramáticos das linguagens midiáticas cons- troem os acontecimentos e tendem a homogeneizar o imaginário social, pois os acontecimentos são sempre produtos de uma construção que não compro- mete apenas a validade das verdades históricas, mas o próprio sentido que a sociedade constitui sobre tais acontecimentos.
Além de construir significações históricas difusas, a produção cinema- tográfica e televisiva também pode ser considerada produtora de novas abor- dagens, indutora de outros olhares não pensados ou testados pela própria histo- riografia. Pensando nas peculiaridades do cinema e da televisão, em especial a produção comercial com grande potencial de difusão, é possível observar como essas obras têm produzido, de maneira intensa e bem-sucedida, narrati- vas que podem conformar olhares históricos pelo viés das emoções e do fascí- nio estético. Tais obras são transmissoras de um saber histórico que atinge as pessoas e as informa sobre a sociedade e o tempo e, independentemente da preocupação com a exatidão histórica, causa no espectador uma sensação de fidedignidade.
Entre as questões colocadas quanto aos “filmes históricos”, por exem- plo, destacam-se: o que ocorre com a História quando transformamos as pala- vras em sequências fílmicas?; o que ocorre se as imagens forem além da infor- mação fornecida pelos textos?; por que sempre julgamos um filme em função de sua exatidão e respeito em relação à História livresca?; uma sucessão de fotogramas pode transmitir ideias e informações que não podem ser expressas mediante palavras? (ROSENSTONE, 1997).
Os problemas levantados circunscrevem-se basicamente às linguagens fílmica e televisiva como meios para expressar um conhecimento histórico de uma forma nova, que vai além das possibilidades da linguagem escrita. Mas, além disso, existem estudos que apontam para a ideia de que seria possível constituir uma filmografia histórica, que se tornaria independente em relação à história escrita, como um novo campo de conhecimento. Segundo Rosensto- ne (1997), o cinema pode ser uma via legítima para reconstruir o passado, e não se deve propor apenas críticas, mas avaliar as possibilidades dos ‘filmes
históricos, redefinindo o próprio conceito de História ao pensar no cinema como um mecanismo de reconstrução da História.
Ao exercer influência sobre os olhares do público a respeito da História, o cinema e a televisão têm se tornado agentes que produzem uma forma parti- cular de conhecimento histórico. Segundo Nova:
[…] não é absurdo considerar que o cineasta, ao realizar um ‘filme históri- co’, assume a posição de historiador, mesmo que não carregue consigo o rigor metodológico do trabalho historiográfico. […] O grande público, hoje, tem mais acesso à História através das telas do que pela via da leitura e do ensino nas escolas secundárias. Essa é uma verdade incontestável no mundo contemporâneo, no qual, de mais a mais, a imagem domina as esferas do cotidiano do indivíduo urbano. E, em grande medida, esse fato se deve à existência e à popularização dos filmes ditos históricos (1996, p. 06).
Nesse caso, é o poder de influência sobre o público que torna um filme histórico. Segundo Saliba:
A construção da História na ficção fílmica é mais do que uma interpretação da história, pois o ato de engendrar significados para o presente lança o realizador (ou realizadores) da ficção cinematográfica em possíveis ideoló- gicos que ele não domina em sua totalidade. Portanto, construir a História na narrativa fílmica pode implicar, inclusive, destruir significados estáveis, desmontar sentidos estabelecidos, desmistificar ilusões ou mitos já cristali- zados – seja pela tradição, seja pela própria historiografia (1993, p. 103).
É notório que filmes e outras obras audiovisuais, como documentários, novelas, vídeos educativos, apresentam-se como uma forma recorrente de acesso à História para as pessoas em geral e também para os historiadores. Seja pela sensação de deslocamento temporal provocada ou pela aparência de relato ou retrato do passado, o fato é que a História se torna pública por meio da indús- tria cinematográfica e da televisão há várias décadas.
A captação do real para a construção das mensagens na tela leva o es- pectador ao constante processo de se colocar em presença da História narrada, de ser um participante oculto e por isso receber as mensagens com uma carga muito forte de realismo. Mesmo com a fragmentação do mundo espacial que se apresenta na tela, a mente humana restitui-os integralmente, assim como o tempo, que não é linear, mas é conformado sob a percepção de linearidade.
A relação que o espectador estabelece com o que os filmes transmitem vincula-se com a memória, os valores e as ideias que mobilizam em relação à História narrada. Daniel Dayan apresenta alguns fatores de análise centrais quando se pensa em abordar os processos de recepção; ele resume as concep- ções gerais em seis pontos:
- O sentido de um texto não faz parte integrante do A recepção não é absorção passiva de significações pré-construídas, mas o lugar de uma produção de sentidos. A ambição da análise textual – deduzir a leitura (e o leitor) do texto – está, portanto, rejeitada; 2. Esta rejeição passa pelo aban- dono de todo modelo de interpretação que privilegie o saber do analista. Uma vez que a pesquisa a respeito da recepção se reivindica de uma abor- dagem empírica, é preciso reconhecer que as estruturas do texto não são senão virtuais tanto como leitores ou espectadores não ativá-las. O saber de um texto, por sofisticado que seja, não permite predizer a interpretação do que ele receberá; 3. Em ruptura com uma concepção linear da comuni- cação, o princípio que requer que os códigos que presidem a produção das mensagens sejam necessariamente aqueles aplicados ao momento da re- cepção está igualmente rejeitado. Uma vez que reconheçamos a diversida- de dos contextos onde a recepção se efetua e a pluralidade dos códigos em circulação no interior de um mesmo conjunto linguístico e cultura, não há mais razão para que uma mensagem seja automaticamente decodificada como foi codificada. A coincidência da decodificação e da codificação pode ser sociologicamente dominante, mas teoricamente não é mais do que um caso de figura possível; 4. Os estudos de recepção remetem a uma imagem ativa do espectador. O espectador não pode somente retirar do texto satisfações incompreendidas pelo analista, mas pode também resistir à pressão ideológica exercida pelo texto, rejeitar ou subverter as significa- ções que o texto lhe propõe. A latitude interpretativa deixada para o espec- tador está ligada à relativa polissemia dos textos difundidos, polissemia que os torna dificilmente redutíveis à simples presença de uma mensagem;
- Passamos assim de um receptor passivo e mudo a um receptor não so- mente ativo, mas fortemente socializado. A recepção se constrói num con- texto caracterizado pela existência de comunidades de interpretação. Atra- vés do funcionamento destas comunidades, a inscrição social dos especta- dores resulta determinante. Ela se traduz pela existência de recursos cultu- rais partilhados cuja natureza determinará a da leitura; 6. A recepção é o momento onde as significações de um texto são constituídas pelos mem- bros de um público. São estas significações, e não as do texto em si, e ainda menos as intenções dos autores, que servem de ponto de partida para as cadeias causais conduzindo às diferentes espécies de efeitos atribuí- dos à televisão. O que pode ser dotado de efeitos não é o texto concebido, ou o texto produzido, ou o texto difundido, mas o texto efetivamente rece- bido (DAYAN, 2009, p. 65-66).
É possível absorver algumas dessas contribuições para a presente re- flexão, como, por exemplo, a questão do significado das produções não estar totalmente realizado na própria obra, mas depender de uma relação com o espectador para se completar e tal significação necessitar de um trabalho empírico para ser percebida. Também é importante absorver a ideia do es- pectador ativo, que pode resistir a pressões ideológicas, rejeitando ou subver- tendo significações propostas pelo texto. Fatores de significação atribuídos pelos espectadores dependem do que Dayan chama de recursos culturais.
Nesse sentido, um horizonte de pesquisas importante situa-se na investi-
gação do contexto escolar de relações com os filmes e outras produções audio- visuais a partir da disciplina de História. Observar como professores e alunos mobilizam ideias históricas, como essas ideais são influenciadas pela indús- tria cinematográfica e pela mídia televisiva, assim também como investigar e analisar procedimentos e abordagens mobilizadas para tratar do conhecimen- to histórico apropriado e divulgado pela mídia cinematográfica em sala de aula são problemáticas de investigação a serem desenvolvidas, que consistem em uma contribuição relevante para a área.
Aprendizagem histórica: apropriações e potencialidades do uso de filmes e vídeos
Mesmo com a já referida longa tradição da presença dos filmes como formas de ‘reconstituição’ e narração de feitos históricos, pode-se afirmar que a tradição livresca das aulas de História permanece hegemônica, sendo a ques- tão do uso de filmes no ensino ainda hoje tratada como eterna novidade. Num levantamento sobre o conjunto das publicações que tratam do uso de filmes no ensino de História (SOUZA, 2012), identificamos três formas de aborda- gens predominantes, que consistem nas seguintes: 1. abordagens prescritivas que propõem os filmes como forma de dinamizar as aulas de História, pois acreditam no potencial da linguagem fílmica de captar o interesse dos estu- dantes e promover aprendizagens diversificadas; 2. abordagens prescritivo-pro- positivas, que defendem os filmes como fonte para análise em sala de aula num exercício de desvelamento da forma como a História é construída pelas produções cinematográficas; 3. abordagens prescritivas que centralizam suas preocupações na presença da indústria cinematográfica como elemento trans- missor de ideologias e propõem que sejam utilizadas aulas de História e filmes para realizar exercícios de alfabetização midiática.
A primeira e a terceira abordagens foram definidas como prescritivas, pois partem de uma visão otimista das contribuições dos filmes para a apren- dizagem, sem propor efetivamente nenhum aprofundamento sobre encami- nhamentos metodológicos necessários para atingir tais objetivos. Já a segunda abordagem, apesar de prescritiva, é também propositiva, porque apresenta cer- tas expectativas otimistas sobre as influências do uso de filmes para a aprendi- zagem histórica, porém com propostas de encaminhamentos metodológicos específicos a partir da ideia de utilizar os filmes como fontes para ensino.
Entretanto, quando o ensino é tratado como prescrição ou proposição metodológica, corre-se o risco de criar certezas prévias que não se efetivam na prática. Por isso a investigação da aprendizagem torna-se relevante nesse con-
texto, pois tem o potencial de revelar como certas práticas efetivamente po- dem ou não atingir os resultados esperados. Contudo as investigações sobre aprendizagem histórica a partir de filmes e outras produções audiovisuais são raras, sendo que os trabalhos mais relevantes que encontramos nesse sentido foram publicados por pesquisas vinculadas ao INRP3 da França.
Poitier (1992) utiliza métodos da análise do discurso e conceitos de es- tudos da linguagem e semiótica para refletir sobre a linguagem fílmica e suas implicações no ensino de História e entende que filmes não devem ser tratados como espelhos, que representam uma realidade “concreta” e sensível do pas- sado, isso porque:
[…] a percepção direta do real, de um lado, e a percepção de sua representa- ção imagética, de outro, são portadores de informações de natureza radical- mente diferente, tanto quanto são diferentes os processos cognitivos coloca- dos em jogo em um e no outro caso. […] De fato, toda narração fílmica de um conteúdo histórico também pode ser suspeita de manipulação, que pode ser não somente considerado como simples instrumento de apresentação, mas funciona em parte como ficção (POITIER, 1993, p. 105, tradução nossa).
A natureza das representações e as implicações no processo de recep- ção de suas mensagens configuram a base teórica do trabalho com filmes e produções audiovisuais para ensinar História. Levar em conta que tais re- presentações são constituídas por processos de elaboração, que envolvem um autor/diretor e toda uma equipe de produtores, atores, técnicos e outros profissionais, teria como intuito superar a noção de que a obra retrata a rea- lidade.
O que se destaca, nesses estudos, é a noção de colocar o aluno como sujeito do conhecimento e preocupar-se com suas ideias prévias, concepções e imaginário num processo de relação com a produção audiovisual assistida. Contudo, quando recorrem ao tratamento da cognição mobilizada na ativida- de com filmes, busca amparo teórico em um campo distinto da epistemologia da História.
O “tratamento cognitivo dos textos” é, segundo Poitier (1992: 106), um campo relativamente recente da Psicologia, que objetiva estudar estruturas e atividades mentais de conhecimento mobilizadas na recepção de textos, que se subdivide em duas grandes categorias analíticas: 1. percepção, memoriza- ção e compreensão de um texto; 2. aquisição de conhecimento proporcionada pela relação. Tais estudos têm origem na análise das relações de aprendizagem com textos escritos contudo, uma renovação de interesses favoreceu a exten- são da pesquisa para os “textos icônicos”.
Considera-se que, quando um sujeito olha um filme, ele o utiliza como
uma série de indícios ou de indicações para construir uma representação men- tal da significação que o texto tem para ele. Um processo complexo no curso do qual o sujeito identifica e constrói “miniunidades” de significação gradual- mente à medida que encontra estímulos nos signos e na exploração progressi- va do texto, mobilizando suas “estruturas de conteúdo mais globais”, que o conduzem a ativar seus conhecimentos previamente adquiridos.
Assim, a imagem não é mais considerada uma “cópia inerte das expe- riências anteriores”, mas uma construção ativa operada pelo indivíduo. Exis- tem diferentes formas de assimilação do conteúdo histórico por estudantes através das produções audiovisuais, que passam pelo acréscimo de conheci- mentos exatos, mas também podem consistir no desaparecimento desses. Tam- bém se identificam processos como a construção de duas noções diferentes a partir de um mesmo tema, ou seja, algo que se pensava antes é totalmente substituído por aquilo que a obra informou. E há ainda a possibilidade de integração entre o que que pensava antes e o que se passou a pensar após assistir aos filmes, formando-se então uma visão integradora.
Conceitos como “esquemas cognitivos”, “reações imediatas”, “pontos de referência cronológicos”, “atitudes”, “aquisição de conteúdos” e “elemen- tos memorizados” são a base desses estudos sobre aprendizagem a partir da recepção fílmica no INRP, explicitando o direcionamento teórico-metodoló- gico dado à pesquisa. Mas em nossos estudos (SOUZA, 2014), focados na concepção de aprendizagem histórica situada, utilizamos outros referenciais para pensar nas formas de aprendizagem a partir da recepção fílmica.
Entendemos que a análise da aprendizagem histórica não se pode limi- tar somente a compreender a assimilação de informações históricas nem ape- nas que tipos de esquemas mentais se articulam. Seu intuito deve ser observar de que forma são mobilizadas operações mentais que se relacionam à racionali- dade do pensamento histórico e como as compreensões históricas se articulam aos princípios epistemológicos organizadores do pensamento histórico. Isso porque a aprendizagem não é pensada como acúmulo e organização de infor- mações históricas, mas como relacionamento mais complexo e elaborado com esse conhecimento, a partir do qual os sujeitos mobilizam suas ideias históricas.
É importante repensar a ideia de aprendizagem no sentido de propor novas relações com o conhecimento, fazendo com que estudantes incorporem tal aprendizado à sua visão de mundo e que tal conhecimento lhes proporcio- ne autodeterminação como agentes históricos. A Educação Histórica foca suas pesquisas na aprendizagem histórica e não somente nos métodos de ensino e caracteriza-se por defender uma ideia nova do relacionamento com o conheci-
mento histórico na escola e vida dos indivíduos, na qual seja possível que os sujeitos se orientem no tempo, constituindo racionalmente suas identidades e o agir sociocultural e político que vivenciam.
Nessa discussão, é possível inferir que a produção de uma condição de aprendizagem histórica específica a partir da linguagem fílmica, num espaço e com sujeitos pré-definidos, e a análise dos fatores que se fazem presentes nesse procedimento podem contribuir para o desenvolvimento do conheci- mento a partir do exame de processos reais de aprendizagem histórica, ma- nifestando-se em diferentes condições, e da análise de suas formas e resulta- dos.
Os sujeitos em sociedade operam ideias históricas, e tais ideias funda- mentam sua compreensão, sintetizando-as numa consciência histórica que os leva a construir identidades e exercer sua práxis em relação às experiências ou narrativas históricas, presentes na cultura histórica com a qual se relacio- nam. Portanto estudar a cognição histórica na investigação da mobilização do conhecimento histórico a partir dos filmes e outras obras audiovisuais consiste em ir além de se preocupar com processos gerais de aprendizagem, como desenvolvimento de competências cognitivas para análise fílmica ou de processos de aquisição de conhecimento informativo por meio da lingua- gem audiovisual.
Em nossa tese de doutorado (SOUZA, 2014), ao assistirem aos filmes que tratavam do nazismo sob perspectivas divergentes, os jovens sujeitos da pesquisa foram desafiados a elaborar reflexões a partir das quais tentaram ra- cionalizar as experiências sensoriais provocadas pela grande carga de infor- mações e sentidos transmitidos pelas obras cinematográficas. Diante desse desafio revelaram raciocínios e argumentos que dizem muito sobre o potencial da experiência fílmica como processo de aprendizagem histórica, mas tam- bém revelaram suas limitações e alguns desafios.
O estudo iniciou com a preocupação em verificar que potenciais os fil- mes poderiam trazer para a aprendizagem dos estudantes e direcionou-se no sentido de compreender como essa questão tem sido abordada por estudiosos em diversas publicações acadêmicas. Nesse contexto, a opção pelo referencial teórico-metodológico da Educação Histórica trouxe subsídios para um traba- lho que permitiu mobilizar a aprendizagem histórica dos jovens e compreen- dê-la a partir de categorias de análise fundamentadas na epistemologia do co- nhecimento histórico.
Tal percurso investigativo trouxe resultados que permitem refletir so- bre a complexidade do pensamento histórico dos jovens, que é influenciado por fatores diversos e que não se processa somente no sentido de um aumen-
to de informações sobre o passado. Os estímulos audiovisuais dos filmes possibilitaram ganhos cognitivos, mas em sentidos diversos, que vão desde a ruptura com um padrão pré-concebido de filmes como janelas abertas ao passado e também a compreensão da História como um campo em disputa, no qual perspectivas divergentes são possíveis e devem ser levadas em consi- deração.
Contudo esse mesmo pensamento histórico, que se abriu a novas pos- sibilidades de compreensão das variadas dimensões do conhecimento, tam- bém esbarrou em limitações. Essas limitações, especialmente o enquadra- mento da narrativa histórica a partir de uma noção de bipolaridade que limi- ta a compreensão da noção de multiperspectividade, impõem-se como desa- fios para repensar a abordagem do trabalho com os filmes. Uma vez que esse esquematismo, a partir do qual a noção de dualidade direciona o narrar, é um padrão recorrente na cinematografia e influencia a forma como os jo- vens entendem a História.
Em síntese, o poder de comunicação e expressão que as linguagens fíl- mica e audiovisual possuem mobiliza não apenas o interesse pela História, mas também ideias complexas que se referem à relação entre o que os filmes retratam e como os espectadores assimilam as diversas mensagens transmiti- das. Nesse sentido, a aprendizagem mobilizada não diz respeito somente à relação entre os conteúdos expressos na tela e a recepção dessas mensagens pelos alunos/espectadores, mas têm relação direta com a cultura histórica e com repertórios, práticas e valores próprios de outros universos culturais nos quais esses sujeitos estão imersos.
É preciso levar em consideração, portanto, que os estudantes são sujei- tos participantes da cultura ou de estratos diversificados de cultura, nos quais vivenciam experiências e formulam ideais e visões de mundo, estreitamente relacionadas às experiências históricas próprias da sociedade e da cultura nas quais estão inseridos, o que gera um repertório de valores, ideias e entendi- mentos que é primordial ser conhecido e compreendido quando se quer ensi- nar História.
Considerações
Entender a relação que o espectador estabelece com o que os filmes transmitem é importante justamente porque a relação com a memória, os va- lores e as ideias históricas que eles mobilizam é um desafio em aberto nas investigações da área. Mas não se pode perder de vista que a linguagem em questão interpõe questões que tornam mais complexa essa relação. Mais do
que ver essa experiência por meio das carências de compreensão dos jovens ou então da alienação que os discursos ocultos na narrativa proporcionam, é impor- tante observar os universos de significação produzidos e como se relacionam com a aprendizagem dos sujeitos envolvidos.
Assim, a complexidade da experiência de assistir a filmes e outras pro- duções audiovisuais que têm relação com a História situa-se no fato de que, em se tratando de obras que abordam acontecimentos “reais” e/ou obras que tomam uma ambientação realista como forma de construir suas histórias, não é de se estranhar que espectadores se envolvam de forma plena nessas narrativas.
A investigação sobre essa relação é altamente relevante para pensar a forma como as pessoas se apropriam do passado para constituir seus referen- ciais de identidade e ação no mundo; ao mesmo tempo ela contribui para repensar os objetivos do ensino no sentido de promover uma complexifica- ção dessa relação. Entretanto essa relação com a História não é simples e rasa; há diversas camadas de análise, dependendo das formas com as quais se acede ao conhecimento das interpretações sobre o passado. O caso dos filmes e outras produções audiovisuais é exemplo dessa complexidade, e é preciso avançar teórica e metodologicamente no sentido de apreender e com- preender esses artefatos e sua apropriação para promover a aprendizagem histórica.
Referências
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FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (orgs.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
MOSCARIELO, Angelo. Como ver um filme. Traduzido por Conceição Jardim e Eduar- do Nogueira. Lisboa: Editorial Presença, 1985.
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POITIER, Brigitte. Texte filmique et aprendissage en histoire: Le Rebelle, Le chagrin et la
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ROSENSTONE, Robert. A. El pasado en imágenes: El desafío Del cine a nuestra idea de la historia. Barcelona: Ariel, 1997.
RÜSEN, Jörn. História Viva. Teoria da História III: tormas e funções do conhecimento histórico. Tradução de Estevão Rezende Martins. Brasília: Editora da UNB, 2007.
SALIBA, Elias T. “A produção do conhecimento histórico e suas relações com a narra- tiva fílmica”. In: FALCÃO, A. R.; BRUZZO, C. (orgs.). Lições com cinema. São Paulo: FDE, 1993. p. 87-108.
SERRANO, Jonatas. Como se ensina a história. São Paulo: Melhoramentos, 1935.
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SOUZA, Eder C. O uso do cinema no ensino de história: propostas recorrentes, dimen- sões teóricas e perspectivas da educação histórica. Revista Escrita, v. 4. Palmas, UFT, 2012.
SOUZA DA ROSA, Cristina. O Ensino de história do Brasil através dos filmes educa- tivos durante o Ince e o estado novo”. Anais do XII Encontro Regional de História. Anpuh, Rio de Janeiro, 2006.
Sugestões de Leitura
Livros:
BERNARDET, Jean-Claude; RAMOS, Alcides Freire. Cinema e história no Brasil. 3. ed. São Paulo: Contexto, 1994.
MOSCARIELO, Angelo. Como ver um filme. Traduzido por: JARDIM, Conceição; NOGUEIRA, Eduardo. Lisboa: Editorial Presença, 1985.
NAPOLITANO, Marcos; MORETTIN, Eduardo; SALIBA, Elias Thomé; CAPELA- TO, Maria H. História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Ala- meda/História Social/USP, 2007.
ROSENSTONE, Robert. A. El pasado en imágenes: El desafío del cine a nuestra idea de la historia. Barcelona: Ariel, 1997.
Artigos:
NOVA, Cristiane. O cinema e o conhecimento da história. O Olho da História, n. 3, Salvador, 1996.
RAMOS, Alcides Freire; PATRIOTA, Rosangela. Linguagens artísticas (cinema e tea- tro) e o ensino de história: caminhos de investigação. FENIX: Revista de Estudos Cultu- rais, v. IV, ano IV, n. 4, out./dez. 2007.
SOUZA, Éder C. O uso do cinema no ensino de história: propostas recorrentes, di-
mensões teóricas e perspectivas da educação histórica. Revista Escrita, v. 4, Palmas, UFT, 2012.
SOUZA, Éder C. Cinema, Cultura Histórica e Didática da História: repensar a relação entre filmes e conhecimento histórico. Revista de Teoria da História, v. 12, n. 2 (2014).
1 Graduado e Mestre em História e Doutor em Educação. Professor do Curso e História da UNILA – Universidade Federal da Integração Latino-Americana em Foz do Iguaçu – PR, Brasil. E-mail: eder[email protected]
2 Instituto Nacional do Cinema Educativo. O INCE foi organizado em 1936 por Gustavo Capanema, então ministro da Educação, e sua missão era “produzir e divulgar filmes educacionais”, assim como “ fazer dos filmes um instrumento educacional” (SOUZA DA ROSA, 2006).
3 Institut National de Recherche Pédagogique.
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Parte 4
Novos temas e antigos problemas de pesquisa
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Cultura digital e ensino de História: diferentes abordagens e metodologias
Aléxia Pádua Franco1 Marcella Albaine Farias da Costa2
Para começarmos nossas reflexões, precisamos, como professoras de His- tória e historiadoras que somos, demarcar o ano de 2020 em suas contradições no que se refere à tecnologia digital em ações educativas no contexto da pan- demia da COVID-19. Antigos problemas – como a desigualdade de acesso, a falta de infraestrutura em grande parte das escolas e universidades do país, etc.
– vieram à tona, sinalizando a urgência do debate.
Entre os vários recortes possíveis para discutir essas e outras questões que envolvem a reflexão sobre a cultura digital no contexto escolar, optamos por voltar um pouco no tempo e narrar nossa experiência compartilhada à frente da coordenação do GRD “História Digital e Formação Histórica em espaços educacionais escolares e não escolares”, durante o X ENCONTRO NACIONAL PERSPECTIVAS DO ENSINO DE HISTÓRIA e XXIII JOR-
NADA DE ENSINO DE HISTÓRIA E EDUCAÇÃO, que aconteceu em Porto Alegre, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em julho de 2018. Além de reiterar sua atualidade e potência como lócus epistê- mico, acrescentamos às reflexões desenvolvidas no GRD outras com que fo- mos tendo contato em nossas andanças acadêmicas como membros de ban- cas (TCC, especialização, mestrado, doutorado) e participantes de eventos científicos.
Inicialmente, discorreremos sobre a proposta e a dinâmica do GRD e seu significado entre as reflexões sobre o ensino de História realizadas nos últimos anos em eventos de pesquisadores do campo. Em seguida, discutiremos concei- tos, questões e metodologias de pesquisa que permearam os trabalhos inscritos e discutidos no GRD: os desafios da inclusão digital; a história pública; as narra- tivas que circulam na internet e a formação histórica; a cultura digital e as mu- danças nos materiais didáticos de História; a aprendizagem histórica por meio de ferramentas e linguagens digitais; a produção de objetos de aprendizagem digitais e a memória histórica. Para finalizar, faremos considerações sobre a possibilidade de uma historiografia escolar digital (COSTA, 2019), contemplan-
do, ao longo do texto, sugestões de leitura, fontes, procedimentos de pesquisa e questões mais comuns a essa temática.
GRD “História Digital e Formação Histórica em espaços educacionais escolares e não escolares”: seu significado entre as reflexões sobre a pesquisa no ensino de História
A 10ª edição do Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História, que ocorreu na UFRGS em 2018, foi organizada em Painéis, Oficinas, Ativi- dades Culturais, Saídas a Campo, Lançamentos de Livros e 17 Grupos de Reflexão Docente – GRDs, que consistem em sessões de discussão de traba- lhos previamente enviados pelos/as participantes, professores/as e pesquisa- dores/as a partir de um tema central e de questões propostas pelos/as coorde- nadores/as de cada grupo. Esses GRDs “contemplaram diferentes temáticas, abordagens e questionamentos, tais como currículo e formação de professo- res/as de História; educação democrática; práticas interculturais; memória e patrimônio; educação étnico-racial e as leis 10.639/03 e 11.645/08; história e memória de professores/as de História; história digital; fontes, avaliação e di- ferentes metodologias no ensino de História” (ENCONTRO NACIONAL PERSPECTIVAS DO ENSINO DE HISTÓRIA, 2018, p. 27). Neles foram
propostos vinte trabalhos envolvendo a questão da tecnologia. Desses, onze foram inscritos no GRD “História Digital e Formação Histórica em espaços educacionais escolares e não escolares” por nós coordenado, o que mostra a sua presença estratégica como espaço aglutinador do debate sobre o ensino de História, a cultura digital e suas tecnologias.
Como parte de nossa justificativa para a proposição do GRD, pontua- mos, conforme dados analisados por Franco (2014), que grande parte dos jo- vens estudantes consome e se interessa, em primeiro lugar, por artefatos cultu- rais digitais, em seguida os audiovisuais e, por último, os escritos. Paradoxal- mente, no espaço escolar onde eles estudam, os livros são os mais acessados, quando comparados aos meios audiovisuais e digitais. Por outro lado, obser- vamos que a presença das tecnologias digitais de informação e comunicação – TDICs nas aulas de História não significa, necessariamente, a mudança na relação entre aluno, professor e conhecimento histórico em que predomina um ensino de História que apresenta o conteúdo retirado de livros didáticos ou sites de internet como uma verdade absoluta, despersonalizada, distancia- da das experiências dos alunos, a ser apenas apreendido e reproduzido.
Assim, nosso GRD objetivava propiciar a socialização de experiências e pesquisas que buscassem refletir sobre práticas pedagógicas que se preocupas-
sem em estabelecer relações entre a inserção das TDICs em espaços educati- vos escolares e não escolares, as produções que circulam por meio delas e os conteúdos, objetivos e estratégias didáticas para desenvolver um processo de aprendizagem em História diferente daquele que se restringe a reproduzir in- formações sobre um passado distante e fragmentado. Visávamos discutir: quais processos de ensino e aprendizagem têm sido construídos para possibilitar a exploração do potencial de comunicação interativa e horizontal da internet no acesso e na apropriação crítica de informações e na produção de conhecimen- to histórico?; como professores e estudantes têm utilizado as TDICs no traba- lho com múltiplas narrativas históricas que circulam em diversos artefatos cul- turais contemporâneos?; as TDICs têm sido inseridas na escola apenas como ferramenta ou também como artefato cultural que pode contribuir para a cons- trução de processos de ensino e aprendizagem interativos, dialógicos, que co- nectem culturas escolares e culturas digitais?; como se tem pensado e experi- mentado a inter-relação entre diferentes fontes de saber no processo de forma- ção histórica em espaços escolares e não escolares? Essas perguntas continuam atuais e permeiam diversas pesquisas preocupadas com a presença da cultura digital no processo de ensino e aprendizagem em História.
A dinâmica de debate desses trabalhos inscritos no GRD procurou ex- plorar as linguagens e potencialidades da cultura digital (hipertextos, hipermí- dias, produção colaborativa), visando à produção coletiva de um texto multili- near e reticular que foi construído por meio do Prezi – um software que utiliza conceitos de mapa mental, partindo de uma tela inicial que registra a apresen- tação como um todo para outras que detalham os vários conceitos e temas apresentados no momento inicial.
Para conseguirmos chegar à produção final3, todos os participantes do GRD, tanto os que inscreveram trabalho como os ouvintes, foram convidados a produzir “pílulas de conhecimento” com duração de um a três minutos, uti- lizando linguagens diversas para representar a pesquisa desenvolvida ou as inquietações que os levaram a participar do GRD. Foram elaborados, sociali- zados e discutidos selfie videos, memes, vídeos, esquemas na lousa branca. No final, a articulação entre as várias pesquisas e questões apresentadas foi feita por meio da montagem coletiva da apresentação em Prezi, que possibilitou o aprofundamento do debate e das reflexões.
A seguir, vamos apresentar e analisar esses debates e reflexões, utilizan- do como guia os resumos dos trabalhos inscritos4, mesmo que não apresenta- dos, pois a inscrição dos mesmos demonstra uma identificação dos pesquisa- dores com o tema do grupo. Evidentemente, as referidas produções represen-
tam um recorte possível, servindo de amostra dos caminhos de pesquisa que articulam Ensino de História e História Digital para além do próprio GRD. Ao nos debruçarmos sobre os resumos dos trabalhos, interessa-nos pensar so- bre os objetivos de cada um, os conceitos e autores mobilizados, além das estratégias metodológicas utilizadas.
Os desafios da inclusão digital: um pouco de História
Para iniciar a reflexão da formação histórica em tempos de cultura digi- tal, é importante problematizar a inclusão digital dos cidadãos no Brasil – tema abordado por Cristiane Tavares Fonseca de Moraes Nunes no trabalho “História e Memória da Inclusão Digital em Sergipe”. Ela pesquisou a histó- ria da filial de Sergipe (1998-2011) do Comitê para a Democratização da In- formática (CDI), uma organização não governamental (ONG) carioca de atu- ação internacional, preocupada com a promoção da cidadania por meio da inclusão digital.
Por meio de entrevistas com diferentes personagens que participaram dessa história (idealizadores, funcionários, voluntários e alunos) e de pesquisa documental, Nunes (2019) escreveu sobre um processo marcado pelas dificul- dades de manter equipamentos modernos e em bom funcionamento e uma equipe de profissionais que garantisse aprendizagem qualificada sobre o uso da tecnologia digital. Uma trajetória que mostra como as organizações não governamentais atuaram para suprir a ausência de políticas públicas para in- clusão digital em um período em que o acesso à internet acontecia majorita- riamente via computadores de mesa, diferente de hoje, em que a conexão se dá por meio de dispositivos móveis, especialmente os smartphones.
Cristiane Nunes, ao produzir a história desse centro, faz-nos compreen- der como os desafios da inclusão digital vão mudando no decorrer dos anos – se, no final dos anos 1990, a inclusão era projeto de ONGS com computado- res de mesa, dez anos depois, ela estava sendo realizada por meio de políticas públicas que utilizavam dispositivos móveis como os netbooks do Programa Um Computador por Aluno – PROUCA. Programas e políticas que não acom- panham a velocidade da transformação tecnológica que torna equipamentos obsoletos em pouco tempo e que, portanto, dificultam a inclusão digital de todos os cidadãos. Hoje, é possível observar que essa inclusão também envol- ve a capacidade dos processadores e memória dos dispositivos móveis, bem como a qualidade de conexão da internet.
Para além dessa dimensão tecnológica, a inclusão digital também en- volve a dimensão informacional e comunicacional, ou seja, a compreensão
crítica da dinâmica de produção, compartilhamento e circulação de dados pela rede mundial de computadores, que participa da constituição de relações sociais, da formação cultural dos cidadãos, na qual se inclui a formação histó- rica abordada nos trabalhos discutidos a seguir.
Narrativas digitais e formação histórica para além dos muros da escola
Agrupamos aqui os trabalhos de Ester Correa e Lylian Cordeiro, que pesquisam sobre narrativas digitais e formação histórica e contribuem para avançarmos nos debates sobre o ensino de História, a história digital e a histó- ria pública, pensando-os de forma articulada.
A primeira autora tem por objetivo compreender como o canal LGBT do YouTube “Põe na Roda” (2016) produz narrativa histórica, dando enfoque à categoria gênero, bem como analisar a recepção e a interação discursiva da/ os aluna/os do Ensino Médio com as narrativas das experiências de vida con- tidas nos vídeos do canal, observando questões relacionadas à construção da identidade e à formação da consciência histórica. Apoia-se em Joan Scott e Judith Butler para compreender a categoria de gênero e na teoria narrativista desenvolvida por Jorn Rüsen, justificando que o autor permite pensar a exis- tência da narrativa da experiência vivida e compreender como se configura um aprendizado a partir dela no decorrer do tempo, seja do narrador, seja do receptor, constituindo, dessa forma, a História. Para analisar a narrativa digi- tal, insere-a no âmbito da indústria cultural e baseia-se em Douglas Kellner, que propõe que os produtos midiáticos são produções complexas que envol- vem os conflitos de uma época, reiterando formas de poder, mas também de resistência.
No intuito de investigar a recepção dessas narrativas por estudantes do Ensino Médio, a autora utilizou a técnica do grupo focal (CÔRREA, 2018, p. 64) e selecionou, para discussão com os jovens, vídeos do canal que fizessem referência às mulheres, pois os mesmos, segundo ela, abrangem tanto a ques- tão da orientação sexual homossexual como a de gênero, colocando em xeque as diferenças entre travestis, transexuais, transgêneros e mulheres. Em síntese: problematizam o universo feminino e são produzidos por sujeitos que se iden- tificam com o sexo masculino, contendo um olhar diferenciado.
Segundo Ester Côrrea, o desenvolvimento de sua pesquisa gerou a com- preensão de que os vídeos do canal “Põe na Roda” implicam:
uma narrativa histórica, na medida em que na narração da história dos pro- tagonistas, na história da sua sexualidade, no entendimento do seu gênero, sua experiência ganha um significado no presente e ajuda a entender o pre-
sente desse mesmo sujeito ou de seus espectadores, portanto um passado atualizado na medida em que se torna presente para a necessidade do outro, ou para a sua própria, de forma prática, ao compreender o que aconteceu e isso lhe dar perspectiva para atuar no futuro5.
Lylian Cordeiro (2019) observa o ambiente digital como espaço de bus- ca de conhecimento histórico extraescolar, pontuando que, na percepção da Didática da História, ocorre o que ela chama de quebra de paradigmas de como a História se constrói. Isto é, desprende-se de um conceito de racionali- dade histórica que leva em consideração somente os recortes temporais de representações do passado, passando a considerar o olhar do presente no gesto e nos questionamentos do historiador, além das implicações desse movimento nas percepções do futuro. A autora afirma que isso ocorre ao mesmo tempo em que se investiga a razão, o conhecimento histórico e a consciência históri- ca do presente, pontuando sobre o contexto conflituoso vivenciado no Brasil em termos políticos, econômicos e éticos e sobre a veiculação de argumentos históricos em discursos políticos sociais e culturais no Facebook:
A dificuldade de estabelecer um distanciamento científico dos temas e situa- ções é um desafio, porém sem deixar de me compreender parte do processo, inclusive dos questionamentos. Compreender que tudo está envolto em estru- turas de sentimentos presentes e não do passado. Mas que todo este movimen- to é composto de representações históricas construídas no passado, utilizadas para ressignificar percepções do presente. Contudo, para se analisar fontes novas, produzidas, também foi necessário aplicar uma metodologia que acom- panhasse a intenção e tecnologia desta proposta, também nova6.
Com isso o trabalho discorre sobre a etnografia como um método de investigação oriundo da Antropologia, que reúne procedimentos que munem o pesquisador para o trabalho de observação a partir da inserção em comuni- dades, onde o pesquisador entra em contato intrasubjetivo com o objeto de estudo, no caso apresentado a netnografia, por se tratar de um ambiente vir- tual. Ressalta a necessidade de levar em consideração a dinâmica que se aplica à rede social e principalmente o protagonismo de quem interage nessa dinâmi- ca através da comunicação mediada pelo computador.
Segundo a autora, a necessidade de ocuparmos cientificamente esses espaços e pensar historicamente as redes sociais tem relevância para compre- ender melhor o contexto histórico e as práticas pertencentes a esse. Ao partir do pressuposto de que não se aprende História somente no ambiente escolar, pesquisar onde os jovens estão aprendendo, buscando informações, construin- do conhecimento e incorporando práticas em seu cotidiano e ambiente social é visto como fundamental para pesquisadores da área do ensino de História.
Essa preocupação de Lylian e Ester de entender narrativas que circulam na internet e as suas representações históricas de gênero ou de política dialoga com a preocupação que permeia as pesquisas da Didática da História. Desde o final dos anos 1980, pesquisadores como Bergmann (1989/90) enfatizam a importância de examinar não só as representações históricas que constituem o currículo escolar, mas também as de produções que circulam socialmente no rádio, na televisão, na imprensa, no cinema e, no século XXI, na internet, que aglutina e acelera a divulgação de todas essas mídias e suas produções. Suge- rem que isso deve ser feito para compreender como a consciência histórica se forma nesse contexto multimidiático que extrapola a escola, seu significado para a práxis social e, a partir daí, propor alternativas para a construção de um conhecimento histórico escolar que proporciona a análise crítica de nossos modos de viver, pensar e contribui para um agir social ético e responsável. Nesse sentido, a coleta e a análise de dados para as investigações no campo da Didática da História, conforme Cardoso (2008, p. 162), podem ocorrer no “cotidiano das aulas de História ou de qualquer espaço de expressão da cultu- ra ou da consciência histórica”. Quando abordamos esses outros espaços – seja o Youtube ou o Facebook, como nos exemplos acima – ou as diversas outras plataformas acessadas por nossos alunos, somos lembrados, ainda que pareça óbvio, que a produção histórica transcende os muros da escola.
Materiais didáticos em tempos de cultura digital
Uma problemática que esteve presente em três trabalhos inscritos no GRD relaciona-se com os significados, os limites e as possibilidades de incor- poração da linguagem digital e das produções que circulam na internet nos materiais didáticos e nas aulas de História.
Em “Clio em cliques: ensino de História e Internet nos livros didáti- cos”, Dilton Cândido Santos Maynard analisa a inserção de sítios eletrônicos nas obras didáticas de História, aprovadas no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2014 – Anos finais do Ensino Fundamental. Aborda dados quantitativos – número de sites indicados nas coleções –, bem como aspectos qualitativos referentes à acessibilidade, tipo de linguagem, interatividade, apre- sentação de referências nas imagens e fontes utilizadas nos endereços eletrôni- cos indicados, visando compreender a produção, a conservação e o acesso de fontes históricas por meio da internet.
Para desenvolver essas análises, Dilton Maynard baseia-se nos seguin- tes referenciais teóricos e questões:
Com a internet, segundo observa Roy Rosenzweig (2011), em lugar de uma cultura da escassez, o historiador precisa aprender a lidar com a cultura da abundância. E, de acordo com Daniel Cohen, tamanha fertilidade das fon- tes históricas, em uma era digital, exigiu uma transformação em táticas de preservação e do acesso aos vestígios do passado. Ao disponibilizar docu- mentos e a sua troca, ao facilitar o tráfego de registros em formato digital e, ao mesmo tempo, produzir mais registros ainda, a internet promoveu uma quebra de hierarquia (COHEN, 2008). Mas como tais transformações são aproveitadas pelo livro didático de História? Isto é, como as diversas opções de uso oferecidas pela internet foram incorporadas (ou não) nas coleções de História que têm chegado às mãos de alunos e professores de todo o Brasil? Há algum tipo de definição tipológica dos sites indicados? O Manual do Pro- fessor foi organizado de modo a orientar quanto ao uso desses ambientes virtuais? Quais os critérios anunciados para as indicações e usos dos sites?7
O pesquisador justifica a importância de sua pesquisa pelo fato de, con- forme dados do Comitê Gestor da Internet (CETIC.br, 2017, p. 109) no Brasil, aproximadamente 83% dos navegantes entre 10 e 15 anos utilizaram a internet para realizar pesquisas escolares. Pesquisas semelhantes a essa inscrita no GRD foram realizadas em relação às coleções didáticas de História para o Ensino Médio aprovadas no PNLD 2012 (MAYNARD; DELGADO, 2015) e no PNLD 2015 (MAYNARD; MOURA, 2016).
Marisa Massone (2018), no trabalho “Leer para enseñar historia: entre libros de texto, documentales, páginas web y Wikipedia”, assim como Dilton, preocupa-se com a presença das fontes digitais na sala de aula, mas as investi- ga não por meio de sua presença nos livros didáticos impressos e sim pelas seleções feitas por professores e estudantes de História. Para isso, ela apresen- tou o desenvolvimento de uma pesquisa feita na cidade de Buenos Aires – Argentina sobre mudanças e permanências nos modos de ler e escrever de jovens estudantes e professores da escola pública de Ensino Médio e como isso reverbera no processo de ensino de História.
A pesquisadora argentina afirma que, apesar dos livros didáticos im- pressos ou trechos deles fotocopiados ainda serem majoritariamente utiliza- dos nas aulas de História, cresce o uso de fontes digitais de sites, enciclopédias colaborativas na web, como a Wikipédia, documentários audiovisuais disponi- bilizados, por exemplo, no canal público de documentários: Canal Encuentro8. Segundo Massone, a “internet se constituye en una biblioteca virtual, un com- plemento de la cultura letrada”9.
A partir desse dado, ela se preocupa em analisar como professores de História mesclam esses diferentes materiais no planejamento e desenvolvimento de suas aulas, qual o lugar do saber historiográfico no bojo dessa multiplicida- de de fontes e quais leituras incentivam entre os estudantes tanto nas ativida-
des realizadas em sala de aula como extraclasse. Marisa Massone problemati- za o uso dessas fontes digitais, muitas vezes lidas como fontes objetivas e cien- tíficas do real, analisando as decisões político-pedagógicas que delineiam as escolhas docentes sobre quais desses materiais usar e como explorá-los nas aulas de História e como as negociam com os estudantes que, por meio da internet, têm acesso a fontes diversas. Para compreender esse contexto, a pes- quisadora elaborou as seguintes questões:
¿qué documentales se proponen ver con mayor frecuencia? ¿cómo fueron seleccionados? ¿a qué temas refieren? ¿qué tratamiento de los mismos pro- ponen? ¿de qué modo se utilizan? ¿se combina con la lectura de otros mate- riales? ¿se leen documentales en clase o se dan a leer como tarea? ¿se ofrece el documental completo o un/os fragmento/s? ¿cómo se propone su lectu- ra? ¿se enseña a ver documentales? […] ¿qué sitios son los más recomenda- dos por los profesores de historia? ¿cuáles, no? ¿por qué motivos?¿qué sabe- res se ponen en juego en su selección? ¿en qué medida se discuten / consen- suan esas indicaciones con los estudiantes? ¿y con otros profesores? ¿se com- parten las mismas orientaciones para imágenes, videos y textos?10
Em “Materiales escolares digitales para la enseñanza de la historia. Una investigación para la formación docente”, Gisela Fabiana Andrade e María Gabriela Carnevale compartilharam questionamentos e reflexões desenvolvi- dos no Proyecto UBACyT “El orden del saber histórico en los materiales edu- cativos digitales”, coordenado pela Profa Dra. Silvia Finocchio (2014-2016). Nessa pesquisa, elas procuraram compreender como a cultura digital tenciona a cultura escolar, gerando novos saberes e práticas docentes e discentes por meio de diversos materiais escolares digitais que circulavam, nos anos 2010, nas aulas de História, especificamente aqueles sobre imigração, peronismo, a ditadura militar de 1976, a formação do Estado nacional argentino. Assim elas justificam a seleção dos materiais investigados:
seleccionamos un conjunto de materiales factibles de ser comparados con el objeto de que los futuros profesores reconozcan los diálogos, las relaciones y las distancias entre la producción académica, los problemas historiográficos presentes, la divulgación histórica y el saber escolar.11
Por meio da análise dos códigos verbais, icônicos fixos ou em movimen- to e sons que se combinam nesses materiais, Andrade e Carnevale (2016) abor- daram o saber historiográfico que os constitui (temáticas, recortes temporais e espaciais, seleção de fontes de pesquisa, sujeitos históricos visibilizados, for- mas de construção da narrativa histórica e da temporalidade, perspectivas e correntes historiográficas), a articulação entre a História e a Pedagogia nesses materiais didáticos digitais (relação com a história escolar, com outros materiais utilizados na escola, com os professores e estudantes), a autoria desses ma-
teriais (autores referenciados, licenças de uso, sites em que são postados e seus objetivos sociais, políticos, culturais e educativos) e o seu formato (organiza- ção dos sites em que são postados, protocolos de leitura e escrita que estabele- cem, interações que promovem, alcance da participação dos usuários).
Vale destacar como essas três pesquisas nos mostram diferentes possibili- dades de analisar a presença dos artefatos culturais digitais nas aulas de Histó- ria: por meio da análise dos próprios materiais (livros didáticos impressos que incorporam sites da internet ou dos próprios sites) ou da compreensão de como os mesmos são usados, apropriados por professores e estudantes. A análise dos artefatos em si envolve pesquisas documentais que geram dados quantitativos e qualitativos sobre perspectivas historiográficas, autorias e protocolos de leitura e escrita. O estudo dos usos desses artefatos acontece por meio de estudos de caso do tipo etnográfico (ANDRÉ, 2001), que requer o cruzamento de saberes e fa- zeres de professoras e estudantes coletados por meio de questionários, entrevis- tas, observação de aulas e de cadernos escolares com a análise do contexto so- cio-histórico e cultural. Em ambos os casos, os textos escritos, audiovisuais ou imagéticos que circulam digitalmente são compreendidos como construções his- tóricas que não veiculam uma verdade histórica absoluta e única, mas represen- tações históricas datadas e vinculadas a diferentes grupos e práticas sociais, cujo sentido não existe por si só, mas são constituídos em uma teia complexa de relações (CHARTIER, 1999) que, em tempos de culturas digitais, envolvem au- tores, editores, provedores de internet, poderes públicos, leitores, internautas.
Ferramentas e linguagens digitais na aprendizagem histórica
Dando sequência às nossas reflexões, pontuamos outros três trabalhos que indicam como as ferramentas e as linguagens digitais foram utilizadas no sentido de promover a aprendizagem histórica.
Cristina Meneguello, em “Olimpíadas Científicas como fusão entre o Ensino Formal e o Ensino Não Formal: o caso da Olimpíada Nacional em História do Brasil (2008-2018)”, reflete sobre o uso das tecnologias na apren- dizagem histórica por meio das Olimpíadas Nacionais de História do Brasil, realizadas pela Unicamp há mais de dez anos, e sua contribuição não apenas para o compartilhamento de informações, mas também para a construção de uma “educação cidadã” baseada em “modelos interativos, democráticos e par- ticipativos” de produção de conhecimento histórico.
Analisou dados qualitativos e quantitativos coletados ao longo de nove anos das Olimpíadas e trabalhos apresentados em eventos científicos e defen- didos em programas de pós-graduação para compreender os limites e possibi-
lidades de um programa nacional que abrange professores e estudantes de di- ferentes contextos escolares (públicos, privados, de diferentes regiões do Bra- sil) para desenvolver a aprendizagem histórica por meio da leitura, do con- fronto e da interpretação de diferentes documentos históricos imagéticos, escri- tos, cartográficos. Esse processo valoriza o trabalho em equipe, estendido ao longo do tempo, e utiliza as tecnologias digitais para o desenvolvimento de várias etapas da Olimpíada que ocorre, em sua maior parte, a distância. Para isso foram criadas uma plataforma e um sistema interativo que, “além de propor- cionar a inclusão digital, possibilitaram atividades como a utilização de um acer- vo digitalizado de documentos históricos, o que leva os participantes a ter contato direto com o arcabouço metodológico do historiador” (MENEGUELO, 2011).
Para atualizar e exemplificar a discussão proposta pela autora, não po- demos deixar de mencionar o uso da tecnologia digital na Pré-ONHB, realiza- da em 2020 durante o período de pandemia. Aberta a qualquer pessoa interes- sada, a organização trouxe como possibilidade de inscrição, além da modali- dade individual e por domicílio, a modalidade “zap zap”, caracterizada pela junção de participantes que não habitassem a mesma residência, mas que ti- vessem a chance de realizar as discussões, prova e tarefa por meio de encon- tros ou troca de informações e mensagens em ambientes virtuais. A tecnologia é utilizada não apenas como meio de proporcionar a colaboração, mas tam- bém como fonte de pesquisa mediante a indicação de portais on-line, remeten- do a informações relativas aos diferentes documentos trazidos na sequência de questões. Podemos citar ainda a Tarefa Diário da Pandemia, pensada como forma de registro dos relatos dos participantes em relação às alterações em seu dia a dia provocadas pela pandemia, incluindo a esfera do trabalho, do lazer, da alimentação e da higiene. Formou-se um grande acervo digital, composto pela narrativa de pessoas comuns, que poderá ser utilizado como fonte histórica futuramente. Segundo as informações contidas na área dos inscritos da fase 4:
[…] optamos por centrar nos gestos e vivências cotidianos as perguntas do diário, pois eles revelam as percepções dos indivíduos sobre o mundo a seu redor e suas transformações. Conforme nossa Pré-Olimpíada foi ocorrendo, ficamos sabendo de outras iniciativas semelhantes, como a Journal of the Plague Year: An Archive of Covid-19, feita por historiadores e artistas norte-ame- ricanos, e a iniciativa da Universidade de Luxemburgo, History in the Making: #covidmemory, que traz, para o espaço da história digital, também uma inici- ativa de narrativas sobre a pandemia12.
Em “Metodologias ativas nas aulas de História: por que investir na ga- mificação?”, Marcella Albaine Farias da Costa ressalta que seu trabalho busca enfatizar o lugar da docência, da pesquisa e da autoria por meio da reflexão
sobre práticas pedagógicas que utilizam a lógica dos games para construir ex- periências concretas de aprendizagem no âmbito dos estudos de História, a qual resultou na composição do livro “Ensino de História e games: dimensões práticas em sala de aula” (2017).
Baseada nos estudos das metodologias ativas, a autora discorre sobre uma atividade desenvolvida em 2015 no 6º ano de uma instituição escolar, situada em região próxima às comunidades Pavão-Pavãozinho e Cantagalo na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, portanto uma comunidade que possui graves problemas de cunho social, tais como pobreza, violência e drogas, e visa defender o reconhecimento desses espaços também como lócus de atuação de professores compromissados com as transformações sociais. Em relação à metodologia, a autora apresenta a elaboração de roteiros de jogos construídos por “cabeças pensantes”, posicionadas enquanto estudantes da Educação Bá- sica, evidenciando o quão enriquecedores são a escuta e o diálogo para a im- plantação de novas metodologias em sala de aula.
O interessante é que, ao sugerir a construção de roteiros de jogos como proposta pedagógica, usam-se caneta e papel, demonstrando que podemos remeter ao universo dos games com recursos simples e que já fazem parte do dia a dia da escola, sem precisar, necessariamente, trazer os jogos em si para a sala de aula. Esse ponto ajuda-nos a avançar no sentido de pensar ações com o uso da lógica do digital quando estamos inseridos em contextos em que não temos a infraestrutura tecnológica à disposição.
Charleston José de Sousa Assis, em “Aquele que mais fala é o que mais aprende: experiências de estudantes em mídias digitais no Colégio Universitá- rio Geraldo Reis (Coluni-UFF)”, relatou sua experiência educativa em que mobilizou seus alunos e alunas do Ensino Médio para construir um blog, uma página do Facebook e um canal no YouTube, intitulados “Histude História”13. Essa experiência visou proporcionar condições para que os estudantes crias- sem conteúdos que refletissem sobre processos históricos e socializassem suas aprendizagens. Para alimentar as mídias digitais criadas de forma colaborati- va por estudantes do Ensino Médio e pelo professor, foram planejados, produ- zidos e gravados debates, aulas, esquetes lúdicos relacionados a temáticas his- tóricas. Segundo Charleston:
O “Histude História” pretendeu deslocar a palavra do docente para o estu- dante, compreendendo que o professor, em parte, sabe mais porque a ele, tradicionalmente, cabe o papel de ensinar – é ele quem fala. Ao colocar-se o estudante no papel daquele que ensina […] percebe-se a eficácia do método, na medida em que o envolvimento com a disciplina e os bons resultados cresceram durante o período em que atuaram como protagonistas de sua própria aprendizagem14.
O professor pesquisador respalda seu fazer pedagógico nas aulas de His- tória em concepções piagetianas de um processo de ensino e aprendizagem baseado na cooperação, o qual é sintetizado por Caimi (2006):
… é pela cooperação que o sujeito consegue pensar em função de uma reali- dade comum, deslocar-se de um ponto de vista próprio para reconhecer ou- tras perspectivas, constituir regras para o próprio pensamento, permanecer fiel às afirmações já feitas, manter a coerência, flagrar contradições, etc. Pelo princípio da cooperação, num trabalho coletivo, os alunos encontram espaço para expor seus argumentos, para refutar ou acolher os dos outros, para examinar e confrontar posições, enfim, considerar, negar ou afirmar outros pontos de vista que não só os próprios… (CAIMI, 2006, p. 26).
Observamos que essa mesma concepção se encontra implícita na dinâ- mica da Olimpíada Nacional em História do Brasil, analisada por Cristina Meneguello, e na metodologia ativa ancorada na gamificação, desenvolvida e analisada por Marcella Albaine Farias da Costa. Cooperação que era um dos princípios da cultura digital, quando essa começou a se conformar nos anos 1980-1990 com a perspectiva de uma produção colaborativa e compartilhada nos movimentos do software livre e do código aberto. A “ética hacker” delineou a criação dos primeiros computadores portáteis e expandiu as redes de computa- dores por meio de ações coletivas e abertas em que jovens desenvolviam pro- jetos e os compartilhavam com outros em busca de solução de problemas que não conseguiam resolver sozinhos e para ser objeto de crítica que proporciona- ria novos desenvolvimentos tecnológicos (PRETTO, 2010, p. 311-312).
A apropriação da internet para produzir, preservar e fazer circular uma pluralidade de saberes também esteve presente nos trabalhos de Anita Nativi- dade Carneiro e Eliane de Freitas Silva, inscritos no GRD “História Digital e Formação Histórica em espaços educacionais escolares e não escolares”.
Objetos digitais de aprendizagem e memórias históricas
Outro viés das pesquisas que relacionam conhecimento histórico e tec- nologias digitais diz respeito à produção de objetos digitais de aprendizagem com o objetivo de preservar e socializar memórias históricas que podem ser transformadas em documentos históricos, explorados em aulas de História que conectam a história local com a história nacional. No GRD, um trabalho apresentou a elaboração de um mapa digital com memórias da ditadura mili- tar em Porto Alegre – RS, e outro registrou a criação de cartas com códigos QR sobre pinturas de cenas históricas do município de Itumbiara-GO.
Anita Natividade Carneiro, em “Caminhos da Ditadura em Porto Ale- gre: Ensino de História através da tecnologia digital”, apresentou a pesquisa
que envolveu a criação, com o uso do aplicativo MyMaps do Google, de “um mapa para divulgação de lugares de memória em Porto Alegre vinculados à repressão, à memória da repressão, a locais de resistência e à memória da re- sistência”15, a partir de estudos sobre a ditadura civil-militar em Porto Alegre.
Por meio da pesquisa historiográfica em teses, reportagens e cartografia local, a pesquisadora selecionou os lugares da memória que comporiam o mapa digital16, elaborou e produziu textos para cada um deles, narrando seu significa- do entre as práticas de repressão e resistência nos anos 1970-1980, acompanha- do de indicações de leituras (teses, dissertações, artigos, reportagens), de blogs, sites, documentários, filmes e fotografias sobre a temática. Ele foi configurado de forma interativa, possibilitando a autonomia do internauta para escolher por quais lugares caminhar e convidando o mesmo a sugerir mudanças no texto sobre algum lugar, inclusão de novos pontos, sugestões de outras fontes que aprofundem a compreensão dos lugares que compõem o mapa digital.
Esse objeto digital de aprendizagem conecta história pública, historio- grafia e saber histórico escolar ao contribuir para a divulgação do conheci- mento histórico para a comunidade em geral e para o processo de ensino e aprendizagem da temática da ditadura civil-militar brasileira entre os anos de 1964-1985, abordando sujeitos, fatos e lugares da cidade de Porto Alegre/RS na perspectiva da resistência além do eixo Rio de Janeiro e São Paulo, articu- lando passado e presente, ciberespaço e espaço urbano:
o mapa tem como objetivo imaginar a cidade de Porto Alegre no contexto da ditadura civil-militar brasileira, aproximando esse tema do cotidiano dos/as estudantes, que por vezes transitam pela capital sem saber das diver- sas histórias que perpassam este espaço urbano. Portanto é fundamental co- nhecer a nossa cidade para imaginá-la nesse período histórico e no presente, nas marcas e locais de disputa e ressignificações que podem ser vistos nas ruas, prédios e monumentos. O mapa se constitui, ainda, em um recurso importante no auxílio aos professores e professoras para tratar de um tema sensível, bem como para o conhecimento dos/as estudantes sobre o patri- mônio, a história e a memória da cidade de Porto Alegre (CARNEIRO, 2018, p. 12).
Com objetivos semelhantes, Eliane de Freitas Silva, no trabalho intitu- lado “O uso de tecnologias em instrumentos de aprendizagem em pinturas para estudo da história de Itumbiara-Go”, discutiu as possibilidades de explo- rar plataformas digitais e realidade aumentada para criar objetos de aprendi- zagem que contribuam com a pesquisa e o ensino da história local. Segundo a autora, esse objeto de aprendizagem é
constituído pela reprodução das pinturas do Sr. Guigui em cards que conte- nham QR CODE e que a decodificação de tais códigos, com o uso de
smartphones, tablets ou outro aparelho, possam direcionar o usuário a uma página de internet onde se encontram dados e informações sobre a história do pintor e da cidade e que complementem a atividade de pesquisa, desen- volvendo dessa forma a socialização das memórias locais17.
O site “História de Itumbiara em Telas”18 contextualiza a produção das pinturas de Sr. Guigui, artista desse município do estado de Goiás, guardadas no museu local, e as memórias de cenas cotidianas, lugares e pessoas que elas representam. Convida o internauta a colaborar com a construção do site e a ampliação de fontes de estudo da história de Itumbiara, registrando comentá- rios com impressões, memórias e reflexões desencadeadas pelas pinturas de Sr. Guigui, mobilizando todos a ser sujeitos da memória, assim como foi o Sr. Gui- gui ao pintar suas telas. Também incentiva professoras e professores a sociali- zar suas experiências didáticas ao utilizar os cards (SILVA, 2019, p. 113-121), que direcionam, por meio dos códigos QR, para abas do site compostas de hi- pertextos que descrevem e analisam cada uma das 13 pinturas de Sr. Guigui selecionadas para compor o objeto de aprendizagem, e propõem questões para o internauta relacionar passado e presente, observar mudanças e permanências. Nesses dois trabalhos, observa-se a preocupação das professoras pesqui- sadoras em se apropriar das tecnologias digitais, suas potencialidades interati- vas, de produção colaborativa e hipermidiática, a partir de pressupostos de uma História que valoriza a articulação entre passado e presente, as relações entre múltiplos sujeitos históricos, a pesquisa e o confronto de fontes históricas e pa- trimônios culturais compreendidos como construções sociais e não meras ilus- trações de um fato. Por meio do cibridismo (SANTAELLA, p. 220-221), ou seja, da intersecção entre os mundos on– e off-line, possibilitam a ressignificação
de lugares por onde crianças, jovens e adultos transitam cotidianamente.
Considerações finais
Nosso texto abordou inúmeras possibilidades de interface entre a cultu- ra digital e o ensino de História, valorizando diferentes abordagens e metodo- logias possíveis a partir das contribuições de professores(as) e pesquisadores(as), estando nós mesmas inseridas nesse duplo fazer. Sabemos que, no final dessa caminhada, muitos pontos de interrogação permanecem. São eles que mobili- zam novas pesquisas e convidam outros interlocutores a se debruçar sobre a vastidão de possibilidades investigativas.
Queremos ressaltar que a exploração da cultura digital na formação his- tórica escolar e não escolar tem sido uma preocupação nossa, tanto em pes- quisas como nos processos de ensino e aprendizagem que desenvolvemos em
sala de aula ou em nossa atuação nos eventos acadêmicos. A dinâmica do GRD, ora escolhido para análise, pautou-se em produções digitais individuais e coletivas, sendo um exemplo que corrobora a afirmativa anterior. O texto coletivo elaborado no GRD por meio da apresentação em Prezi sintetizou como a cultura digital tem impactado o conhecimento histórico e o saber histórico escolar, ocasionando mudanças em materiais e processos didáticos, que bus- cam o protagonismo docente e discente, o cibridismo em regime colaborativo. Um questionamento que fazemos é o quanto disso representa, ou não, inova- ção, sabendo que o digital, cuja potência pretendemos usar a favor de ações criativas, também pode ser utilizado para reproduzir práticas educativas base- adas na mera transmissão e reprodução de informações.
Outro aspecto que merece atenção é que as pesquisas que articulam nar- rativas digitais e formação histórica são interdisciplinares, entrecruzam concei- tos de diferentes áreas do conhecimento como historiografia, ensino de Histó- ria, pedagogia, filosofia, comunicação, ciências da informação, etc., o que nos demanda uma capacidade de dialogar com diferentes campos. Os estudos apre- sentados não focam na tecnologia digital em si, mas nas práticas culturais por ela mediadas, no conhecimento histórico produzido, registrado e compartilha- do por meio delas, ampliando nosso olhar sobre suas possibilidades didáticas. Fizemos questão de destacar a relação com a Didática da História, pontuando que a formação histórica não se dá apenas na escola e que essa instituição preci- sa dialogar com os outros espaços de formação histórica permitidos pela rede.
Ao fazer uso de procedimentos caros às pesquisas históricas e/ou às metodologias de pesquisa em educação, o corpus empírico apresentado foi di- verso em suas estratégias, seja por meio de oficinas pedagógicas, de grupos focais, de pesquisa documental, de estudos de caso do tipo etnográfico ou netnografia, o que nos mostra como os caminhos para trabalhar com o digital podem ser muitos.
Para finalizar, destacamos que qualquer um dos caminhos escolhidos não pode dispensar o conhecimento dos limites da inclusão digital no Brasil, escancarada no período de pandemia, e de toda sorte de dificuldades advindas do ensino remoto.
Sugestão de leituras e fontes
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1 Doutora em Educação. Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia.
2 Pós-doutoranda em Educação pela UFRGS.
3 Disponível em: <https://prezi.com/p/yyfkiablx-it/grd-10/>. Acesso em: 03 maio 2020.
4 Para inscrição no GRD, os participantes enviaram apenas o resumo do trabalho e tinham a opção de enviar ou não texto completo para publicação nos Anais do evento. Os resumos não estão mais disponíveis, já que o site do evento se encontra fora do ar. Os trechos dos resumos citados neste capítulo fazem parte do acervo pessoal das propositoras do GRD que avaliaram os trabalhos inscritos para aprová-los ou não.
5 Arquivo pessoal das coordenadoras do GRD, composto pelo resumo dos trabalhos.
6 Idem.
7 Idem.
8 Disponível em http://encuentro.gob.ar/acercade. Acesso em 30 mai. 2020.
9 Arquivo pessoal das coordenadoras do GRD, composto pelo resumo dos trabalhos.
10 Idem
11 Idem.
12 Disponível em: <https://prova.olimpiadadehistoria.com.br/prova/pre_onhb2020/fases/ fase_4/questao/q22>. Acesso em: 01 jun. 2020.
13 Disponível em: <http://histudehistoria.wixsite.com/home>. Acesso em: 30 maio 2020.
14 Arquivo pessoal das coordenadoras do GRD, composto pelo resumo dos trabalhos.
15 Arquivo pessoal das coordenadoras do GRD, composto pelo resumo dos trabalhos.
16 Disponível em: <https://www.ufrgs.br/caminhosdaditaduraemportoalegre/>. Acesso em: 15 maio 2020.
17 Arquivo pessoal das coordenadoras do GRD, composto pelo resumo dos trabalhos.
18 Disponível em: <https://www.historiadeitumbiaraemtelas.org/>. Acesso em: 10 maio 2020.
Toda a História em cinco minutos!
História pública e ensino – considerações sobre o passado ensinado no Youtube
Francisco Egberto de Melo1
Sônia Meneses2
Hoje estou fazendo um vídeo que foi muito, muito, muito pedido, mais um vídeo de minha série 50 minutos em 5, onde eu resumo grandes assuntos da História em no máximo cinco minutos, e hoje eu tô (sic) vendo que eu vou sofrer bastante porque o assunto de hoje é Revolução Francesa (ALADIM, 29 de jun. de 2018).
Se alguém tiver a curiosidade de fazer uma busca rápida no Google so- bre o tema “Revolução Francesa”, facilmente encontrará aproximadamente quinze milhões e seiscentos mil sites disponíveis em português. Se a busca for por Révolution française, sobe para aproximadamente sessenta e um milhões e seiscentos mil, se preferir french Revolution, vai para trezentos e setenta mi- lhões. Se a preferência for por vídeos, muito comum entre os estudantes da Educação Básica, principalmente às vésperas das avaliações, teremos, respec- tivamente, conforme o idioma: cento e quarenta mil; novecentos e um mil; oito milhões, seiscentos e vinte mil. Se o filtro for feito no Google Acadêmico, pouco usado pelos estudantes da Educação Básica, mas muito comum entre os alunos dos cursos de graduação e pós-graduação, teremos, respectivamen- te: duzentos e vinte nove mil; quinhentos e quarenta e cinco mil; dois milhões, novecentos e dez mil.
Já não é mais novidade que não se aprende História somente na escola. Se antes se aprendia também com o rádio, jornais impressos e televisão, agora a rede mundial de computadores deixa-nos evidente que muito do que se faz na sala de aula da Educação Básica os estudantes encontram com alguns cli- ques sem precisar sair de casa. Podemos dizer que há uma história carregada nas mãos dos estudantes que se infiltra na sala de aula e, em boa medida, se sobrepõe ao trabalho do professor. Nos vídeos do Youtube, podemos encon- trar vários canais cuja promessa principal é que você vai “aprender rápido a História” com os resumos de “cinquenta minutos em cinco” ou no canal “des- complica” com mais de três milhões e cem mil inscritos, com vários vídeos sobre diversos assuntos em todas as disciplinas, entre elas a História, geral- mente na forma de “resumão”.
Entre os “resumões”, o mais acessado é “Revolução Francesa: resumo/ História/Quer que eu desenhe?3” no canal do “Descomplica”4, postado em 22 de dezembro de 2019, com uma duração de oito minutos e três segundos. O vídeo, narrado por uma voz em off, que, segundo um dos comentadores, “da- ria uma boa dublagem de desenho animado”, tem quase 1 milhão e cem mil visualizações; entre elas, setenta e sete mil deram like contra seiscentos e trinta e cinco deslikes.
São significativos os comentários feitos pelos que acessam o vídeo: Amigo, eu tô no 8 ano (sic), e essa é minha matéria de História!! Esse resumão vai me ajudar muito na hora de estudar para a prova !! Vlw C .” Seiscentos e oitenta e um deram like ao comentário, demonstrando concordarem com ele; ninguém se opôs com deslike. Mais um afirma: Esse cara sempre salva minha pele!!!!, com duzentos e sessenta e cinco concordâncias em forma de like, ninguém contra, com direito, ainda, a um emoji em forma de coração.
Outro vídeo que faz o maior sucesso é “Revolução Francesa: tudo o que você precisa saber! Resumo de História”, de Débora Aladim5, graduada em His- tória na Universidade Federal de Minas Gerais. O vídeo já foi visualizado por mais de 1 milhão6 de pessoas e se propõe, segundo a autora, a ser “um resumo da Revolução Francesa!! Depois de muitos pedidos, finalmente fiz um vídeo com TUDO o que você precisa saber sobre o assunto para o Enem e provas”.
Grande parte das gravações do canal de Débora Aladim é ambientada no quarto de dormir, uma prática muito comum nessas produções, uma vez que a grande maioria começa em formato amador, o que também aproxima o produ- tor de sua audiência. No quarto, motivos que remetem aos heróis da DC Co- mics, como o Superman e o Batman, sendo o último o mote para a criação da logomarca do canal, as asas abertas do morcego, com o nome da youtuber, ser- vem para gerar empatia com seus telespectadores/interagentes. O canal de Dé- bora já tem sete anos no ar e mais de 2 milhões e 500 mil inscritos, o que repre- senta uma considerável longevidade no universo virtual. Progressivamente, seus vídeos foram ganhando uma edição mais elaborada, recortes mais precisos nos conteúdos e até mesmo uma série sobre a História do Brasil, na qual a youtuber viaja para locais históricos do país para de lá “contar a História”, o que já de- monstra que o canal ganhou autonomia inclusive financeira para projetos mais ousados.
O vídeo tomado como exemplo foi postado em 10 de junho de 2018 e tem pouco mais de 50 minutos de duração. Sua narrativa começa com a pergunta: “O que foi a Revolução Francesa?”, para ser respondida na sequência: “Foi um movimento revolucionário que eles dizem que começou em 1789” (…); “o con- teúdo é fácil, mas cheio de picuinhas”. E por aí seguimos acompanhado a narra-
tiva, marcada por cortes para enxugar a fala da autora com a inserção recorrente de algumas animações para ilustrar algumas de suas passagens.
O resultado é que, no acesso de 15 de abril de 2020, o vídeo já possuía seis mil likes contra setecentos e cinquenta e oito deslikes.7 Os comentários talvez incomodem alguns professores, como: “APRENDI MAIS AQUI DO QUE NA ESCOLA”8 (caixa alta do autor), com a concordância de três mil e duzentos likes, ou mesmo de uma pessoa que se identifica como professor ao afirmar que indica o vídeo para os seus alunos. Pelos comentários, constata- mos que vários estudantes assistiram ao vídeo, assim como um segundo pos- tado no canal sobre o mesmo tema, que abordaremos mais na frente para falar da problemática do tempo nessas produções, que é o “Cinquenta minutos em cinco”. Aliás, uma rápida passada pelo canal demonstra o sucesso entre os seguidores:
Eu tive prova de Revolução Francesa ontem, e sim eu vi seu vídeo de 50 minutos todinho! Valeu muito a pena, muito obrigadaaaaaa acho que consegui um 8 na minha prova (detalhe, eu não sou de humanas, eu sou 100% exatas, portanto História não entra na minha cabeça, mas você expli- ca de um modo tão simples de entender que eu consegui!!!).
Se considerarmos as narrativas da História ensinada na cena pública como práticas discursivas que envolvem uma rede de relações de poder que se movimentam entre produtores e receptores, tendo por base Michel Foucault, será possível inferir que as falas exemplares aqui apresentadas fazem parte de uma rede de relações e discursos que envolvem os currículos oficiais, a produ- ção de livros didáticos, as práticas de professores em sala de aula, os movi- mentos de pressão, vigilância e tentativas de disciplinamento sobre o ensino de História.
Ao nos depararmos com a produção de História em vídeos no Youtube, estamos diante do ensino público da História, uma experiência que, embora dialogue com todos os arquétipos a que estamos habituados no cotidiano es- colar (conteúdos, prescrições, conformações disciplinares, etc.), também rom- pe com eles na medida em que estabelece ritmos próprios de apresentação, construção e apropriação. Nesse sentido, gostaríamos de acrescentar três ca- racterísticas importantes nesse formato de história pública. O primeiro deles diz respeito ao caráter leigo da maioria