Direito Tributário e Financeiro PDF
Cadernos Jurídicos
Ano 17 – Número 45 – Outubro-Dezembro/2016
Direito Tributário e Financeiro
Escola Paulista da Magistratura São Paulo, 2016
ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA
Diretor
DESEMBARGADOR ANTONIO CARLOS VILLEN
Vice-Diretor
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Conselho Consultivo e de Programas DESEMBARGADOR AFONSO CELSO NOGUEIRA BRAZ DESEMBARGADOR ANTONIO RIGOLIN
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Coordenadores da Biblioteca e Revistas
DESEMBARGADOR WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI JUIZ ALEXANDRE JORGE CARNEIRO DA CUNHA FILHO
Coordenador da edição
DESEMBARGADOR WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI
Cadernos Jurídicos
Direito Tributário e Financeiro
ISSN 1806-5449
Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 17, nº 45, p. 1-200, Outubro-Dezembro/2016
CADERNOS JURÍDICOS / Escola Paulista da Magistratura
- 1, nº 1 (2000) – São Paulo: Escola Paulista da Magistratura
Quadrimestral 2000, v. 1 (1 – 2)
2001, v. 2 (3 – 4 – 5 – 6)
2002, v. 3 (7 – 8 – 9 – 10 – 11 – 12)
2003, v. 4 (13 – 14 – 15 -16 – 17 – 18)
2004, v. 5 (19 – 20 – 21 – 22 – 23 – 24)
2005, v. 6 (25)
2006, v. 7 (26 – 27 – 28)
2007, v. 8 (29 – 30)
2008, v. 9 (31)
2009, v. 10 (32)
2011, v. 11 (33)
2012, v. 12 (34 – 35)
2013, v. 13 (36 – 37)
2014, v. 14 (38)
2015, v. 15 (39 – 40 – 41)
2016, v. 16 (42 – 43 – 44 – 45)
Direito CDU 34(05)
Jurisprudência CDU 35(05)
ISSN 1806-5449
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- Da harmonização entre normas de Direito Ambiental e Financeiro
Álvaro Augusto dos Passos…………………………………………… 9
- Reforma tributária e a carga burocrática
Ives Gandra da Silva Martins……………………………………….. 19
- Orçamento, planejamento e gestão: desafios e perspectivas
José Mauricio Conti…………………………………………………. 29
- Decadência e prescrição tributária à luz do direito positivo
Kiyoshi Harada………………………………………………………. 41
- Portais da transparência e o controle social das finanças públicas
Marcelo Guerra Martins……………………………………………. 55
- As mudanças das decisões do plenário do Supremo Tribunal Federal e o enfraquecimento do Estado de Direito
Maria Ednalva de Lima……………………………………………… 71
- Execução fiscal e a penhora de faturamento: um critério objetivo
do Imposto de Renda das empresas
Odmir Fernandes……………………………………………………. 77
- A base de cálculo do ISS e os descontos incondicionados
Paulo Ayres Barreto…………………………………………………. 99
- Impostos causa mortis e doação e as transmissões do exterior
Regina Celi Pedrotti Vespero Fernandes………………………….. 113
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Regis Fernandes de Oliveira……………………………………….. 127
- Orçamento público e dívida pública
Ricardo Cunha Chimenti…………………………………………… 157
- A tributação de incentivos fiscais de ICMS pelo PIS/COFINS.
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A não caracterização destes incentivos como receitas tributáveis
Susy Gomes Hoffmann……………………………………………… 165
- Apontamentos sobre o domicílio tributário
Wanderley José Federighi…………………………………………. 179
Apresentação
Houve, em determinada época (nem tão distante), quem considerasse o Direito Tributário um mero capítulo do Direito Financeiro.
Entretanto, já é mais do que sabido, atualmente, que os dois ramos do Direito (bas- tante interligados, não se nega) têm clara autonomia científica, sendo estudados à parte e tendo, cada qual, grande importância na vida nacional.
O Direito Tributário volta-se à obtenção de recursos financeiros para o Poder Pú- blico, sem os quais a Administração pouco pode fazer pela sociedade (que dela exige continuamente uma prestação mais eficaz dos serviços públicos); e, se a seriedade des- te tema não falasse por si própria, observe-se que devem ser corretamente fixados os limites da atuação do Poder Público na cobrança dos tributos (avultando, neste ponto, a importância do princípio da legalidade), ao mesmo tempo em que o contribuinte tem o direito de defender-se judicialmente de uma exação ilegal e indevida.
Por seu turno, o Direito Financeiro estuda a administração do capital pertencente ao Poder Público, com enfoque na receita, na despesa e no orçamento, impondo ao gestor das verbas públicas a mais séria das posturas, sob penalidades extremamente severas.
O Código Tributário Nacional (CTN) chegou ao seu cinquentenário no ano de 2016.
Alvo de muitas críticas, usualmente dirigidas à grande carga tributária que sabida- mente onera o contribuinte brasileiro, mesmo assim chega o referido Código a essa data (que se pode considerar como comemorativa) relativamente intocado em meio à voraz sanha reformista que parece ter se apoderado do legislador nacional, e que já nos legou, em tempos recentes, estatutos e códigos novos de qualidade no mínimo duvidosa, em especial se comparados a seus antecessores.
Inspirado no anteprojeto do notável jurista Rubens Gomes de Sousa, veio o mencio- nado codex sistematizar a legislação tributária, antes esparsa e fragmentária. Nos dias atuais, outrossim, questiona-se os seus termos, em especial em face da gravíssima crise econômica pela qual passa o País, crise esta com desdobramentos políticos e financeiros da maior seriedade.
Assim, já se fala, há algum tempo, na necessidade de uma reforma tributária, tema este que, aqui, vem a ser magistralmente desenvolvido pelo professor Ives Gandra da Silva Martins, nome que dispensa apresentações.
Outros nomes de escol juntam-se ao do notável jurista, como os dos professores Paulo Ayres Barreto (da Faculdade de Direito da USP), Suzy Gomes Hoffmann, Maria Ednalva de Lima e Kiyoshi Harada, já assaz conhecidos e respeitados, e que trazem sua visão sobre temas os mais diversos e complexos, ligados ao Direito Tributário.
De outra banda, também são analisadas, aqui, questões da máxima seriedade, li- gadas ao Direito Financeiro, ramo do Direito Público que vem tendo sua importância avultada e reconhecida pela comunidade jurídica.
Não é demais lembrar-se que o Brasil passou por um recente e traumático processo de impeachment de sua Presidente, no ano de 2016, em face de violações perpetradas por seu governo à Lei de Responsabilidade Fiscal e a outras leis do campo financeiro, o que mostra a enorme relevância da matéria.
Para tanto, a EPM contou com colaborações de juristas de reconhecido saber, como Régis Fernandes de Oliveira, Álvaro Augusto dos Passos e José Maurício Conti, autêntica “prata da casa”, todos professores de Direito Financeiro.
Espera-se, desta forma, que tenha a EPM dado contribuição para o estudo das ma- térias enfocadas neste número da revista Cadernos Jurídicos, todos na moderna pauta dos temas jurídicos de relevo, ensejando o vislumbre das respostas para as questões ingentes aqui tratadas.
Wanderley José Federighi
Desembargador coordenador da Biblioteca e Revistas da EPM
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Da harmonização entre normas de Direito Ambiental e Financeiro
Álvaro Augusto dos Passos1
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Sumário: 1. Introdução; 2. A Constituição de 1988 e a proteção ao meio ambiente;
- Atividade humana e a degradação ambiental; Gastos públicos e a Constituição; 5. Harmonizando as normas de Direito Ambiental e Financeiro; 6. Conclusão.
- Introdução
Em tempos de ativismo judicial, o Poder Judiciário tem sido chamado a interceder em conflitos de toda ordem, sejam patrimoniais, familiares, obrigacionais ou políticos. O número de processos cresce a cada ano. Já são mais de 20.000.000 (vinte milhões) no estado de São Paulo e algo em torno de 100.000.000 (cem milhões) no país. Em muitos casos, o que se vê é uma verdadeira terceirização da solução dos conflitos interpes- soais, nos quais as partes, ao invés de buscarem formas alternativas para a resolução de suas pendências, mais rápidas, eficazes e menos custosas, preferem a via judicial, na esperança de que o juiz lhes dê aquilo que acreditam lhes pertencer ou merecer. Porém, nem sempre o resultado é o esperado, gerando frustação e, pior, descrédito nas insti- tuições, culpando a justiça, as leis, os advogados e até mesmo o país, pelo insucesso da empreitada. Diante de derrota, quem nunca ouviu expressões ditas em tom de desabafo, indignação e desesperança, tais como: perdi a ação porque o juiz não leu o processo; as leis só para proteger os poderosos; meu advogado foi comprado pela outra parte; no Brasil é assim mesmo. A judicialização da vida em sociedade é uma realidade à qual todos estamos vinculados. E ela tem seu preço, que é pago por todos também.
Preocupa-nos, como magistrado, o descrédito nas instituições, em especial a estru- tura à qual denominamos Justiça, que envolve não só o Poder Judiciário, mas também o Ministério Público, advocacia, polícia, e todo arcabouço legislativo sob o qual a socieda- de se organiza e estabelece suas relações.
De tudo que poderíamos discorrer sobre este tema, um particularmente tem nos chamado atenção, justamente por envolver várias questões que, por vezes, não se coa- dunam umas com as outras, gerando considerável inoperância da própria decisão juris- dicional e, consequentemente, despertando o sentimento do injusto, seja para um lado ou por outro. Estamos nos referindo às ações de cunho ambiental, nas quais se visa à imposição de obrigação ao poder público para realizar determinada obra visando evitar
1 Desembargador da 2ª Câmara Reservada de Direito Ambiental e Professor de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da
Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP.
dano ambiental ou seu agravamento, sob pena de imposição de multa periódica até o seu cumprimento.
O que notamos nesses casos é a dificuldade em se ajustar institutos de natureza diversas, ou seja, de um lado as ações de cunho cominatório, típicas do direito pri- vado, em que, em tese, aquele contra quem se dirige a ação possui plena capacidade de decisão sobre suas ações e patrimônio e, de outro, as normais constitucionais e infraconstitucionais que disciplinam a gestão dos recursos públicos, seja na elaboração do orçamento ou na sua execução, e que constituem limites ao poder decisório dos agentes políticos.
É sobre isso que procuraremos tratar.
- A Constituição de 1988 e a proteção ao meio ambiente
Comecemos pelo mandamento primeiro:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equi- librado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
O constituinte de 1988 não deixou dúvidas. A proteção ambiental se constitui em imposição ao poder público, qualquer que seja a esfera de governo. Portanto, é dever do gestor definir, planejar e executar políticas públicas visando ao cumprimento da de- terminação constitucional. Não se trata de opção, mas, sim, de obrigação.
O Brasil atendeu, assim, aos princípios firmados na Declaração Sobre O Ambiente Humano de Estocolmo (1972), quando se consagrou ser o homem,
[…] a um tempo, resultado e artífice do meio que o circunda, o qual lhe dá o sustento material e o brinda com a oportunidade de de- senvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente. Na longa e tortuosa evolução da raça humana neste planeta chegou-se a uma etapa na qual, em virtude de uma rápida aceleração da ciência e da tecnologia, o homem adquiriu o poder de transformar, por inúmeras maneiras e numa escala sem precedentes, tudo quanto o rodeia. Os dois aspectos do meio humano, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do homem e para que ele goze de todos os direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida.
A proteção ambiental envolve, por assim dizer, tanto o meio natural, aquele que existe independente da intervenção humana (florestas, rios, mar, montanhas, etc.), quanto o artificial, resultado exatamente da ação do homem, na sua busca permanente em modificar o meio natural, dando-lhe contornos de sua idealização. É justamente no meio artificial que opera, primordialmente, o poder público, de modo a promover a recuperação do meio natural quando degradado, e a sua proteção quando ainda íntegro ou com baixo grau de intervenção. Não podemos nos esquecer de que toda ação humana
é invasiva ao meio natural, já que é dele que retiramos tudo de que precisamos para a nossa sobrevivência.
Ciente da importância em se buscar o equilíbrio entre o direito do ser humano a uma vida digna e a preservação do nosso ambiente natural e a melhoria e aperfeiçoa- mento do artificial, é que a Carta de Estocolmo declarou que:
O crescimento natural da população coloca continuamente problemas relativos à preservação do meio; porém, com a adoção de normas e medidas apropriadas, esses problemas podem ser resolvidos. De todas as coisas do mundo, os seres humanos são o que há de mais valioso. Eles promovem o progresso social, criam riquezas, desenvol- vem a ciência e a tecnologia e, com seu duro trabalho, transformam continuadamente o meio humano. Com o progresso social, o avanço da produção, da ciência e da tecnologia, a capacidade do homem para melhorar o meio aumenta a cada dia que passa.
Chegou-se a um momento da história em que devemos orientar nos- sos atos em todo o mundo atentando com maior solicitude para as conseqüências que eles possam trazer para o meio. Por ignorância ou indiferença podemos causar danos imensos e irreparáveis ao meio terráqueo, do qual dependem a nossa vida e o nosso bem-estar. Pelo contrário, com um conhecimento mais profundo e uma ação mais pru- dente podemos conseguir para nós e para nossa posteridade melhores condições de vida em um meio mais consentâneo com as necessidades do homem. As perspectivas de elevar a qualidade do meio e de criar uma vida satisfatória são grandes. O que se necessita é, a um tempo, entusiasmo e serenidade de ânimo; trabalho árduo, mas sistemático. Para chegar à plenitude de sua liberdade dentro da natureza, o ho- mem deve aplicar seus conhecimentos para forjar, em harmonia com ela, um meio melhor. A defesa e a melhoria do meio humano para as gerações presentes e futuras converteram-se em um objetivo impe- rioso para a humanidade e deverão ser perseguidas ao mesmo tempo em que o são as metas fundamentais já estabelecidas da paz e do desenvolvimento econômico e social em todo o mundo e em confor- midade com ambas.
Desde então, tem-se buscado mecanismos legais, políticos e jurídicos eficazes ob- jetivando tornar concretas as muitas declarações, tratados e protocolos internacionais, sem o que tudo que foi dito não passará de meras promessas divorciadas das realidades nacionais.
Tratando-se o Brasil de uma federação, as competências de cada ente que a com- põe (Municípios, Estados-Membros e Distrito Federal) estão definidas na Constituição da República, podendo ser privativas (art. 22); remanescente (art. 25, § 1º); reservada (art. 32, § 1º), exclusiva (art. 30, I); suplementar (art. 30, II), ou concorrentes (art. 24), como é o caso dos temas ambientais, conforme expresso no seu inciso VI:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
[…]
VI – florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e contro- le da poluição.
A par da atividade legislativa, compete ao poder público, nas três esferas do go- verno, adotar políticas públicas visando à preservação do meio ambiente, assim enten- dido como o conjunto de elementos que o compõem, exatamente como explicitados no referido inciso, dos quais merece especial destaque a defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição, sem o que os anteriores estarão irremediavelmente ameaçados.
Portanto, não basta a edição de normas ambientais protetivas se o próprio poder público não adota medidas visando a preservação do meio, afeto à sua área de atuação, tornando inócuo o mandamento constitucional e o esforço de todos na preservação do nosso ambiente e a sua entrega saudável e útil às gerações futuras.
- Atividade humana e a degradação ambiental
Praticamente toda atividade humana é agressiva ao meio ambiente, sobretudo após o advento da revolução industrial. Tudo que produzimos e consumimos é resultado de um processo de transformação de elementos extraídos do ambiente. O atendimento às demandas da sociedade com vistas à sua manutenção e expansão implica num per- manente processo de intervenção agressivo ao meio no qual vivemos. Diferentemente dos demais seres vivos, a nossa presença nos quatro cantos da Terra é resultado direto da capacidade humana de interferir e transformar o próprio meio. Com o domínio da técnica, desenvolvemos cada vez mais atividades para as quais nosso corpo não está adaptado. Conquistamos os mares sem sermos aquáticos, o ar sem possuirmos asas, as terras altas e baixas indistintamente. Desertos e florestas. Construímos nossas cidades e transformamos tudo à nossa volta para nos servir. As florestas e campos deram lugar a pastos e plantações, de onde tiramos o sustento para mais de seis bilhões de pessoas em todo o planeta. A expansão humana tem um custo ambiental, que não sabemos quando e quanto será cobrado. Embora o discurso internacional seja o da preservação ambiental para as gerações futuras, toda e qualquer medida que venha a ser adotada no presente momento, acarretará certa dose de renúncia dos benefícios e conforto conquistados por parcela considerável da população mundial. Retroceder nas conquistas humanas é o mesmo que tentar recolocar a pasta de dente de volta no tubo. Até pode ser que dê, porém exigirá muita criatividade e esforço.
Todos os elementos naturais dos quais nos apropriamos são relevantes para a pre- servação ambiental, porém um deles é fundamental: a água. Sem ela não existe a menor possibilidade de vida em nosso planeta.
No passado, de tão abundante em nosso país, nunca despertou o interesse geral por sua preservação. Cidades foram se formando às margens dos rios, que foram usados como meio de descarte de toda sorte de materiais indesejados. Do lixo doméstico a dejetos humanos e de animais. Com a industrialização, a degradação aumentou com a emissão de poluentes, inviabilizando o seu uso para consumo humano. Os rios urbanos, sobretudo, foram morrendo gradativamente, a exemplo do nosso sempre lembrado Tie- tê, no seu trecho metropolitano.
Com a escassez de água e o risco de desabastecimento, veio a conscientização pela preservação e recuperação dos mananciais de sorte a reverter o processo de degrada- ção. Políticas públicas passaram a ser exigidas pela sociedade civil para que a adminis- tração adotasse medidas de tratamento do esgoto doméstico e industrial como meio de recuperação dos mananciais. Se muito foi feito, muito mais há por fazer.
O tema água nos impõe uma reflexão de duas ordens: uma de caráter privado e individual; outra, público e coletivo. No primeiro, temos, sobretudo, a busca do desper- tar da conscientização e o compromisso de todos pelo não desperdício da água trata- da, fornecida em nossas casas, enquanto serviço público indispensável para os padrões atuais de comodidade da vida urbana. Embora ele repercuta no geral, para seu sucesso é fundamental que cada indivíduo faça sua parte, impondo a si mesmo certa dose de sacrifício em prol de todos. Se somente uma pequena parcela do todo adotar hábitos de consumo consciente, o consumo se manterá crescente, exigindo do poder público mais investimento para suprir a demanda ou, pior, a adoção de racionamento. O outro, mais complexo e duradouro, envolve a adoção de políticas públicas aptas a reverter o pro- cesso de degradação hídrica, recuperação e preservação de mananciais, sobretudo por meio do tratamento da água servida, para que ela seja devolvida aos rios sem matá-los, garantindo o abastecimento da população à sua volta.
Portanto, se temos direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, ca- bendo ao poder público a adoção de medidas capazes de viabilizar a sua fruição, há que haver, na mesma medida, instrumentos que propiciem sua eficácia, sob pena de se tornar letra morta, mera promessa que não se realizará, levando, como afirmado no início, à percepção do injusto, por inoperância do sistema jurídico quanto balizador da definição e implementação de políticas públicas.
- Gastos públicos e a Constituição
Os gastos públicos encontram-se disciplinados na Constituição Federal (art. 165,
- 5º), nas constituições estaduais e leis orgânicas dos municípios, atendem aos princípios
gerais e integram o objeto de regulação do Direito Financeiro.
A cada ano fiscal, o poder público deve elaborar o orçamento anual (LOA), com suas previsões de receita e despesas, observado o quanto disposto anteriormente na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e no Plano Plurianual (PPA). Temos assim dois princípios a serem observados: o da anualidade (para cada exercício fiscal um novo orçamento) e o da universalidade (toda receita e despesa devem estar contidas na lei orçamentária), O que vale dizer que a cada ano a administração reavalia e define suas políticas públicas, fazendo consignar na respectiva peça orçamentária sua previsão de gastos para cada atividade, respeitadas as obrigatórias impostas pela Constituição e observadas as dispo- sições anteriores contidas na LDO e PPA.
Na prática, tem-se observado que realizados os gastos obrigatórios e vinculados, aqueles sobre os quais a administração tem estreito ou nenhum poder decisório entre gastar, não gastar ou quanto gastar, tais como folha de pagamento, saúde, educação, serviço da dívida pública, programas sociais consolidados, resta-lhe muito pouco para a realização de investimentos, categoria de despesa na qual se insere a realização de obras públicas para o tratamento de esgoto e despoluição de córregos e rios, destinados ou não ao abastecimento da população.
Não bastasse a escassez de recursos e capacidade de financiamento das atuais gestões, o lançamento de esgoto não tratado, doméstico ou industrial, em nossos rios, é prática secular. Provavelmente, diante da abundância de cursos d’água, alia- da à total falta de visão preservacionista, nossos mananciais foram sendo compro- metidos até o estágio atual em que muitos se encontram, nos quais a manutenção da vida se mostra inviável e o consumo de suas águas absolutamente impróprio. A situação que hoje encontramos, sobretudo nas grandes cidades, é fruto do descaso de muitos administradores públicos. Por isso mesmo que a solução não se dará como num passe de mágica, quando bastam que sejam pronunciadas as palavras certas e tudo estará resolvido.
É justamente neste cenário que se mostra preocupante, e arriscado, o uso indis- criminado de ações civis públicas tendentes a compelir, sobretudo as administrações municipais, mais vulneráveis do ponto de vista orçamentário, muitas vivendo quase que exclusivamente de repasses feitos pela União e Estado-Membros, a realizarem obras em tempo exíguo para fazer cessar a emissão de esgoto não tratado nos leitos dos rios e passar a tratá-lo, sob pena de multa diária pelo descumprimento da ordem judicial. Tal situação se apresenta ainda mais gravosa e insustentável, quando da concessão de tutela antecipatória, de cunho provisório e execução imediata.
Tomemos como exemplo a seguinte situação, ainda que hipotética, baseada em decisões costumeiramente proferidas: num dado município de pouco mais de 50.000 habitantes e de baixa arrecadação, sua rede de coleta de esgoto é lançada, sem tratamento, há décadas, no rio que cruza sua zona urbana, poluindo suas águas e tornando-as impróprias ao consumo ou exigindo tratamento por demais custoso. Não bastasse, a poluição lançada numa cidade é acrescida pela da outra rio a bai- xo, e assim por diante. Não havendo entre os objetivos da administração qualquer medida tendente a minimizar e reverter tal situação, por ausência de verba orça- mentária para tanto, seja por falta de recursos disponíveis; de sensibilidade e com- prometimento político, ou ambos, algum legitimado ingressa com ação civil pública tendente a obrigar, pela via judicial, o prefeito a tomar as medidas cabíveis para, no prazo de 90, 180, ou até menos 300 dias, suspender a emissão de esgoto não tra- tado nos rios da cidade, e em igual prazo iniciar seu tratamento. Apontando risco de agravamento da situação (perigo); descumprimento de preceito constitucional (evidência), pede a concessão de tutela antecipatória, no que é atendido, fixando o prazo de, digamos, 180 dias para seu efetivo cumprimento. Citado da ação e inti- mado da decisão, o administrador municipal terá diante de si duas opções: respon- der por crime de responsabilidade por descumprimento de ordem judicial (art. 1º, XIV, do Decreto-Lei 201/67) ou por improbidade administrativa (art. 10, inciso IX, da Lei 8429/92). Ainda que queira, não terá o gestor tempo e recursos para atender ao determinado. Além de se arriscar a perder o mandato, ainda onerará o município e munícipes com o pagamento da multa cominatória, destinando os parcos recursos orçamentários para o Fundo Nacional do Meio Ambiente agravando ainda mais a situação já caótica.
A hipótese acima é a síntese de inúmeras ações civis públicas que têm sido julgadas pelas Câmaras Reservadas de Meio Ambiente, colocando também o julgador diante do dilema de como atender a dois mandamentos jurídicos de igual hierarquia e harmonizá-
-los sem violar o sistema ou negar-lhe vigência.
- Harmonizando as normas de Direito Ambiental e Financeiro
Ao julgador é defeso deixar de decidir a pretexto de não encontrar no sistema normativo o fundamento para sua decisão. Quando houver omissão legislativa, “o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” (art. 4º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro). Da mesma maneira, não pode decidir fundado em preceito metajurídico, fora do sistema, portanto. Tudo deve se passar dentro do sistema. É nele que devemos encontrar o pressuposto de validade das nossas decisões, aplicando aqui a lição de Kelsen, sob pena de elas se tornarem expres- são do arbítrio, tendo por fundamento o desejo puro e simples daquele que decide de agir conforme sua concepção do justo. Isto, posto que inválido, provoca insegurança ju- rídica, por romper com o hipotético pacto celebrado entre os indivíduos que trocaram o uso da força pela submissão voluntária ao poder da lei, tal qual preconizado por Hobbes.
Um primeiro posicionamento, e que tem sido reiteradamente utilizado, é o de sobrepor a norma ambiental às normas disciplinadoras do direito financeiro, reconhe- cendo-as como pertencentes ao rol dos direitos fundamentais e, por serem cláusulas pétreas, estariam a reger as demais normas na interpretação e aplicação da Constitui- ção. Em que pese a robustez de tal entendimento, é possível sustentar que ele traz em si sua própria negação, quando de sua aplicação ao caso em comento, exatamente porque a separação entre os poderes também foi elevada à condição de cláusula pétrea pelo legislador constituinte, o que tornaria ambos dispositivos de igual hierarquia.
Em oposição temos o entendimento, sempre apresentado na defesa da Administra- ção, de que ao impor ao gestor público o direcionamento de seus recursos financeiros, estaria o Poder Judiciário penetrando em área de atuação discricionária, na qual os polí- ticos, legitimados pelo mandato popular, definem as políticas públicas a serem executa- das no âmbito de sua competência. Tal posicionamento, já dominante em outros tempos por nossas Cortes, a bem da verdade, já foi afastado pela moderna jurisprudência.
Sobre o tema leciona Regis Fernandes de Oliveira:
Interessante questão tem surgido a propósito de decisões judiciais que determinam a realização de alguma obra ou a prestação de al- gum serviço. Tem o Ministério Público utilizado a ação civil pública para exigir o cumprimento de obrigação da Administração Pública. Como fazer para cumprir as determinações judiciais?
Releva notar que não pode o Judiciário impor ou obrigar a Adminis- tração Pública a praticar atos físicos de administração. Decisão do Superior Tribunal de Justiça assim entendeu: “As atividades de reali- zação dos fatos concretos pela administração dependem de dotações orçamentárias prévias e do programa de prioridades estabelecidos pelos governos. Não cabe ao Poder Judiciário, portanto, determinar as obras que deve edificar”. A tese foi acolhida por decisão do Tribu- nal de Justiça de São Paulo.
[…]
Logo, descabe ao judiciário proferir decisão de tal quilate. No en- tanto, se o fizer, determinando, por exemplo, a construção de mo- radias, creches etc., e transitada em julgado a decisão, coisa não cabe ao Prefeito que cumprir a ordem. Para tanto, deverá incluir, no
orçamento do próximo exercício, a previsão financeira. Esclarecerá à autoridade judicial a impossibilidade de cumprimento imediato da decisão com trânsito em julgado, diante da falta de previsão orça- mentária, e obrigar-se-á a incluir na futura lei orçamentária recursos para o cumprimento da decisão.2
Diante de duas posições extremadas, parece-nos mais apropriada a inflexão de ambos, de sorte a se buscar um ponto de equilíbrio, harmonizando os dispositivos cons- titucionais e infraconstitucionais, sem negar vigência a qualquer deles.
Em recentes julgados sobre o tema, no âmbito da 2ª Câmara de Reservada ao Meio Ambiente, nas hipóteses de concessão de tutela antecipada, ainda sob a vigência do CPC de 1973, em sede de ação civil pública, impondo ao administrador o dever de realizar obras tendentes a fazer cessar atividade poluidora, tem-se optado por suspender tal or- dem, posto que, além da ausência do requisito de urgência, posto que em muitos destes casos se trata de situação consolidada, impor desde logo ao Poder Público a obrigação de executar obras dispendiosas em prazo exíguo é absolutamente inexequível, ante a legis- lação que rege a contratação e execução deste tipo de atividade, sem contar a ausência de verificação da existência de dotação orçamentária para fazer frente a tais obras.
Ação Civil Pública – Meio ambiente – Pedido que visa à imposição liminar, ao município e à sua autarquia, de abstenção de lançamen- to de esgoto na água do Córrego Colônia, coletando-se os efluentes
– Cabimento – Presença dos pressupostos legais – Dever de prote- ção do meio ambiente que pertence tanto à sociedade quanto aos entes públicos – Necessidade de inserção da despesa em orçamen- to municipal caso seja indispensável a efetiva realização de obra e não sejam suficientes outras condutas, o que inviabiliza o imediato cumprimento da medida, a qual, no entanto, não pode simplesmen- te ser afastada – Responsabilidade de criação de crédito adicional ou, em caso de impraticabilidade comprovada, inclusão do gasto na respectiva lei orçamentária, para posterior concretização da obra – Recurso parcialmente provido (Agravo de Instrumento nº 2037089- 72.2013.8.26.0000).
Por sua vez, quando o julgamento das ações, a decisão que se mostra harmonizada aos preceitos normativos citados, é a de determinar ao Poder Executivo a inclusão no orçamento para o exercício fiscal seguinte, ou no Plano Plurianual quando for o caso, de dotação orçamentária capaz de fazer frente à implementação das medidas deter- minadas, oficiando-se, desde logo, ao Poder Legislativo local para que exerça o devido controle quando da apreciação da proposta de lei orçamentária.
A título de exemplo temos:
Ação Civil Pública – Ajuizamento de ação com a pretensão de impor o dever, à municipalidade, de realizar obra de galeria complementar para regularização de captação de água na região indicada na inicial,
2 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 701.
inserindo a previsão dos respectivos gastos no Projeto de Lei Orça- mentária – Admissibilidade – Necessidade de execução das obras que é incontroversa – Dever de proteção do meio ambiente que pertence tanto à sociedade quanto aos entes públicos – Necessidade de in- serção da despesa em orçamento municipal – Danos ambientais que devem ser sanados e ter a sua continuidade impedida – Multa diária
– Acolhimento – Sanção pecuniária que busca impedir o descumpri- mento de ordem judicial imposta, cuja aplicação, em desfavor do Po- der Público, não possui qualquer vedação legal – Recurso improvido (Apelação Cível nº 0004246-59.2012.8.26.0506).
- Conclusão
Não resta dúvida que a proteção ambiental e a recuperação de áreas degradadas são compromissos do Estado brasileiro, em todos os níveis da administração pública, im- postos pela Constituição e assumidos perante a comunidade internacional por meio dos tratados dos quais somos signatários. A adoção de políticas públicas no âmbito do Direito Ambiental é dever do gestor público e direito de todos, desta e das gerações futuras. Portanto, o seu descumprimento enseja o manejo de ação judicial tendente a vencer eventuais resistências políticas, impondo de forma concreta sua observância. Porém, não se pode perder de vista as dificuldades financeiras e orçamentárias para que tudo se resolva a um só tempo. Daí a solução proposta, capaz de conferir harmonia ao sistema jurídico, sem negar efetividade das normas ambientais e as de direito financeiro e, mais, sem que um Poder invada a esfera de competência do outro.
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Reforma tributária e a carga burocrática
Ives Gandra da Silva Martins1
Professor
Sumário: 1. Introdução; 2. Do sistema atual; 3. Reforma tributária; 3.1. Da simpli- ficação legislativa; 3.2. Da guerra fiscal entre os estados; 3.3. Outras mudanças neces- sárias; 4. Conclusão.
- Introdução
Há cinco reformas necessárias para diminuir o custo do Brasil e voltar o país a ter competitividade, a saber: a trabalhista, a previdenciária, a do Judiciário, a política e a administrativa.
De rigor, uma reforma trabalhista viria para nivelar o país às economias mais com- petitivas do planeta, assim como a reforma previdenciária, para equalizar os cidadãos de 1ª categoria (aposentadorias integrais – servidores públicos) e de 2ª categoria (cida- dãos comuns – 10 salários mínimos, no máximo), em patamar que não viesse a implodir o sistema.
A reforma do Judiciário é outra medida que se impõe, a começar pela exigência de que todos os assessores de Ministros, que auxiliam na elaboração dos votos, sejam concursados para esta função, de preferência juízes. Não deveriam ser escolhidos livre- mente, algumas vezes sem a qualificação necessária ou sem independência, por perten- cerem à Procuradoria da Fazenda Nacional, Procuradorias das Fazendas Estaduais, o que compromete a imparcialidade, quando União ou estados são parte nos processos.
Quanto à reforma política, na Comissão da OAB-São Paulo que presido (constituída pelos seguintes juristas: Alberto Rollo, Alexandre de Moraes, Almino Affonso, André Ra- mos Tavares, Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, Cláudio Lembo, Dalmo Dallari, Dircêo Torrecillas, José Afonso da Silva, José Gregori, Maria Garcia, Nelson Jobim, Ney Prado, Paulo de Barros Carvalho e Samantha Meyer Pflug), estamos estudando questões como o voto distrital, financiamento de campanha, reeleição, número de partidos, coliga- ções, plebiscito ou referendo, bicameralismo ou unicameralismo, parlamentarismo ou presidencialismo.
1 Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região; Professor Honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia); Doutor Honoris Causa das Universidades de Craiova (Romênia) e da PUC-Paraná, e Catedrático da Universidade do Minho (Portugal); Presidente do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO – SP; Fundador e Presidente Honorário do Centro de Extensão Universitária – CEU/Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS).
A reforma administrativa, por sua vez, se mostra imperativa para reduzir o peso da adiposa e esclerosada máquina pública, a começar no âmbito federal. À falta de um projeto real de cortes de despesas, o Governo Federal tem, repetidas vezes, declarado que só lhe resta aumentar tributos.
Apesar de reconhecer que a carga tributária é elevada – quando era menor, o ex-Ministro Galvêas já a chamava de “indecente” –, pois superior – e muito – a dos Es- tados Unidos, China e Japão, as três maiores economias do mundo, assim como da Coreia do Sul, Suiça, México, todos abaixo de 30% do PIB, pretende elevá-la ainda mais sobre cidadãos de uma economia combalida, rebaixada de grau de investimento, com inflação elevada e desemprego crescente. A economia brasileira é um doente na UTI a quem, em vez de receitar-se transfusão de sangue, pretende-se dele tirar mais sangue.
As extensas benesses não cortadas do Poder Público, mordomias das quais não se encontra paralelo em outros países e vencimentos com aumentos permanentes acima da inflação, como se reinvidica e se tem obtido em pleno ano de falência administra- tiva e gerencial, as esclerosadas estruturas administrativas, os inadmissíveis, inchados e inúmeros ministérios, o infindável número de departamentos, projetos e programas paralisados ou em marcha lenta, quase não são tocados.
Neste estudo, portanto, focarei na análise na necessária reforma tributária (coro- lário da reforma administrativa) que, a meu ver, está umbilicalmente ligada ao peso da carga burocrática brasileira e engloba, entre outras questões, a eliminação da guerra fiscal de estados e municípios e, imprescindivelmente, a simplificação do sistema tribu- tário. Então vejamos.
- Do sistema atual
O Sistema Tributário Brasileiro encontra-se plasmado nos arts. 145 a 156 da Cons- tituição Federal.
O capítulo foi dividido em cinco partes, a primeira delas dedicada aos princípios gerais que, de rigor, são três: o princípio das espécies tributárias, conformadas em cinco tipos diferentes (impostos, taxas, contribuição de melhoria, contribuições sociais e em- préstimos compulsórios); o princípio da lei complementar e o princípio da capacidade contributiva.
Estes dois últimos objetivam proteger o contribuinte contra o Poder Público. O primeiro determina que as normas gerais, os conflitos de competência entre os poderes tributantes e as limitações constitucionais do poder de tributar sejam formatados por lei complementar, que passa a ter caráter de lei nacional. O artigo 146 da CF/88 foi acres- cido de novas disposições pela EC nº 42/03.
O princípio da capacidade contributiva exige que a imposição tributária respeite a capacidade econômica dos contribuintes, sendo, os impostos, pessoais ou reais (diretos ou indiretos). Veda o efeito de confisco bem como a tributação sobre os ganhos daqueles que apenas auferem o mínimo para sua sobrevivência e de seus familiares, não possuin- do capacidade econômica suficiente para arcar com a carga tributária.
A seção segunda do capítulo do sistema faz menção às limitações constitucionais ao poder de tributar, assegurando seis princípios básicos, a saber: da legalidade, da equivalência, da irretroatividade, da anterioridade, da não limitação de tráfego, da
não confiscatoriedade, das imunidades fiscais e a chamada substituição tributária para frente, cuja inclusão no tópico das limitações ao poder de tributar constitui flagrante impropriedade, já que, consistindo em antecipação do fato gerador ainda não ocorrido, não representa uma limitação, mas alargamento do poder impositivo.
Tais princípios já estão, em parte, explicitados pelo Código Tributário Nacional, que ainda vige, no que diz respeito às normas gerais.
As três últimas partes do capítulo são dedicadas aos impostos federais, estaduais e municipais.
Pelo texto original, passou, a União, a ter competência impositiva sobre sete im- postos (importação, exportação, renda, propriedade territorial rural, operações finan- ceiras, produtos industrializados e grandes fortunas).
Com a EC nº 3, foi acrescido o Imposto Provisório sobre Operações Financeiras (IPMF), de vida curta, pois, por força das ECs. nos 12, 21 e 42, logo foi substituído por uma Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), destinada à Assis- tência Social e à Previdência, mas extinta em 31/12/07.
A união voltou, portanto, a possuir competência para instituir e regular sete im- postos, lembrando, todavia, que repassa quase metade da arrecadação concernente ao IPI e ao Imposto de Renda para estados e municípios, jamais tendo chegado a instituir o imposto sobre grandes fortunas.
A Emenda nº 33/01 alterou, em parte, o perfil das contribuições, com notável des- figuração desta que é uma quinta espécie tributária, visto que os empréstimos compul- sórios precedem-na topograficamente no texto constitucional.
Os estados receberam, em 1988, competência para instituir e legislar sobre qua- tro impostos (transmissões imobiliárias não onerosas, operações relativas à circulação de mercadorias, adicional de imposto de renda e veículos automotores). A EC nº 3/93 retirou-lhes o adicional do imposto de renda, remanescendo, hoje, apenas três impostos e as transferências que recebe da União.
Aos municípios cabiam, originalmente, também, quatro impostos (sobre serviços, predial e territorial urbano, vendas a varejo e transmissões imobiliárias onerosas). A EC nº 3 retirou-lhes o imposto sobre vendas a varejo, estando, hoje, com três impostos, além das transferências de estados e União.
O sistema, entretanto, é caótico, principalmente à luz das sucessivas emendas constitucionais, que o maltrataram, com superposições de incidências e elevado nível de complexidade. Gera um custo fantástico de administração para contribuintes e para os diversos Erários, facilitando a sonegação dolosa e impondo, para muitos setores, a inadimplência sobrevivencial, como forma de evitar a falência.
Necessita, pois, urgentemente, ser mudado.
- Da reforma tributária
A primeira revolução tributária no Brasil deu-se com a edição da EC n. 18/65, do Código Tributário Nacional, em 1966, e da Constituição de 1967. Sistematizou-se o novo ramo do direito, com normas hierarquizadas. Assim é que à maior explicitação do siste- ma pela Constituição (E.C. 18/65, CF 67 e EC n. 1/69) correspondeu a criação de uma
lei – com eficácia de lei complementar – destinada a ordenar a legislação dos diversos entes federativos.
Em 1988, a Constituição federal, promulgada em 5 de outubro, conformou de vez uma ordem tributária – dividida em seis partes: cinco no sistema tributário propriamente dito (artigos 145 a 156) e uma na ordem social (artigo 195) – com princípios gerais (145 a 149), limitações constitucionais ao poder de tributar (artigos 150/152), impostos fede- rais (153 e 154), estaduais (155), municipais (156) e contribuições sociais (195).
Tão logo promulgada a lei suprema, já começaram as críticas, não à parte prin- cipiológica, mas à dos tributos em espécie, diversos projetos tendo sido apresentadas pelos governos Collor, Itamar, FHC e Lula, mas nenhum deles logrou êxito.
Atribuo esses fracassos ao fato de tais projetos trazerem conformações globais do sistema, gerando uma “cadeia de anticorpos”, no Parlamento, contrária à sua aprova- ção, visto que os grupos de parlamentares opositores se autoapoiavam e se revezavam no torpedeamento dessas reformas.
Os principais problemas então detectados, disseram respeito ao princípio da não cumulatividade, complexidade fiscal, guerra fiscal entre estados e municípios (ICMS e ISS), à superposição de incidências (IPI, ICMS, ISS, COFINS, PIS e CIDES), além de outros de menor magnitude.
A Emenda Constitucional nº 42/03 foi mais um remendo que a Constituição recebeu do Congresso Nacional, com poderes constituintes derivados, que hoje conformam per- manente “contribuição de pioria” ao texto aprovado em 1988.
Sua origem reside no PEC 41/03, que sofreu alterações profundas, desde sua apre- sentação e discussão na Câmara e no Senado, com algumas amputações necessárias (progressividade do imposto sobre operações não onerosas e imposto sobre transmissão imobiliária onerosa) e alterações de ocasião, tendo sido reduzido, de rigor, à prorroga- ção da CPMF e à desvinculação da receita da União, assim como transferência de parte da CIDE para estados e municípios, além da inserção de alguns dispositivos “explicitado- res” do que já existia no texto constitucional. Prorrogou-se, por outro lado, a discussão do grande desafio, que é equacionar os problemas provocados pelo ICMS.
Aliás, tenho para mim que o maior problema reside na guerra fiscal entre os es- tados. Um imposto de vocação nacional, como é o caso do ICMS, não poderia ter sido regionalizado, como foi, desde o antigo IVC, eis que, pelo princípio da não cumulativida- de, incentivos dados em um estado terminam refletindo, nas operações interestaduais, em outros. Em consequência, o estado que os concede oferta melhores condições de competitividade às empresas estabelecidas em seu território, em detrimento das que se encontram sediadas em outros estados.
Imagine-se uma empresa que não pague ICMS em sua unidade federativa, mas gere direito a crédito no outro. O ICMS incidente sobre o produto será apenas aquele do acréscimo cobrado pelo outro estado, com o que seus produtos ficarão mais baratos do que os produzidos na unidade não incentivada.
Propus, em audiência pública no Congresso Nacional, para terminar de vez com a guerra fiscal de ICMS, a introdução de apenas dois dispositivos: uma alíquota única para todo o Brasil, com o que se evitaria o “turismo de notas fiscais”; e a proibição absoluta de incentivos fiscais no âmbito do ICMS, o que eliminaria a descompetitividade empresa- rial, por força da concessão de incentivos em um estado, sem correspondência em outro. Como os estados não desejavam acabar com a guerra fiscal, a proposta foi rejeitada.
Outro problema é a acumulação de incidências. A União Europeia adota um único tributo circulatório sobre bens e serviços para todos os estados que a compõem, ou seja, o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA).
No Brasil, temos, sobre a circulação de bens e serviços, a incidência de variados tributos (IPI, ICMS, ISS, COFINS, PIS, CIDES) além dos impostos regulatórios de importa- ção e exportação.
Uma simplificação neste sentido seria interessante. Talvez a criação de um IVA na- cional pertencente à Federação, com a incorporação do IPI, ICMS e ISS – como propus ao tempo da revisão constitucional de 1993 – e partilhado entre União, estados e muni- cípios pudesse ser a solução.
Alemanha e Portugal têm no IVA, no Imposto de Renda e no tributo das corporações mais de 90% de sua receita. Nada justifica no Brasil tal complexidade, com 12 impostos, no sistema, com esferas de tributação autônomas (União, estados e municípios) e, mui- tas vezes, superposição de incidências, como no IPI, ICMS, COFINS, PIS, estes últimos tributos incidentes também sobre operações sujeitas ao ISS.
Desoneração da folha de pagamentos é, além disso, outro caminho relevante, visto que o Brasil, em encargos sociais, bate todos os emergentes e a maior parte dos países desenvolvidos.
Não é possível concorrer com a China, Rússia ou Índia, onde os encargos sociais e a carga tributária são quase a metade dos do Brasil, se considerarmos a média dos três países em conjunto (visto que é maior na Rússia e menor na China e na Índia).
Por fim, descomplicar a legislação e simplificar o sistema é fundamental, para que não se perca tanto tempo para cumprir obrigações tributárias.
- Da simplificação legislativa
A alteração da Constituição não deve ser feita nas duas primeiras seções da Lei Maior (artigos 145 a 152 – Normas gerais e limitações constitucionais ao poder de tribu- tar), por serem a melhor parte do sistema e que, em tese, visam garantir o pagador de tributos contra a voracidade fiscal de um Estado Mastodôntico.
A reforma deve ser feita nas outras três seções (artigos 153 a 156) e no capítulo das contribuições (artigo 195 e seguintes).
A primeira delas é simplificar o sistema. Em 1990, propus a adoção de um siste- ma simples: os impostos ficariam na competência da Federação, que partilharia entre União, estados, Distrito Federal e municípios, a receita dos impostos sobre a renda, pa- trimônio imobiliário, circulação de bens e serviços e sobre o comércio exterior. Haveria, por outro lado, uma única contribuição social.
Tal ideia, encampada pela Comissão Arioswaldo, no governo Collor, não chegou a ser levada ao Congresso.
A União Europeia, pela esmagadora maioria dos países que a compõem, conta com um único imposto sobre circulação de bens e serviços (Imposto sobre o Valor Agregado
– IVA). Nós temos, sobre esta circulação, o IPI (União), o ICMS (estados), o ISS (municí- pios), o PIS (União)-COFINS (União), CIDES (União). A irracionalidade é de tal ordem, que o contribuinte é obrigado a estudar em torno de seis legislações diversas para atender ao regime próprio de cada um, a fim de cumprir suas obrigações tributárias.
Não sem razão, em levantamento de alguns anos atrás, o Banco Mundial e a Coo- pers, analisando o número de horas que, em média, o empresariado de cada um de 175 países pesquisados dedicava ao cumprimento de suas obrigações tributárias por ano, verificou que o Brasil, de longe, era aquele que mais exigências burocráticas impunha, com uma média de 2.600 horas anuais contra aproximadamente 100 na Alemanha, pouco mais de 300 nos Estados Unidos e média pouco superior a 500 na América Latina.
Tal custo, que obriga as pessoas jurídicas a fazerem um trabalho burocrático não remunerado, que deveria ser da responsabilidade do Poder Público, demonstra, por si só, a irracionalidade do sistema brasileiro.
Uma simplificação de legislação ordinária para tais tributos impõe-se, mas, como a legislação pátria constitui uma colcha de retalhos, em função da gula permanente do “Molock burocrático” – que, tal qual um viciado em drogas, necessita cada vez de doses maiores de entorpecentes – todas as propostas neste sentido têm sido fulminadas. Ao contrário, a legislação tem sido adaptada a cada aumento do nível de impostos, com uma completa desfiguração do sistema e da própria natureza jurídica do tributo.
E, à evidência, quanto mais complicada for a legislação, mais gera sonegação e cor- rupção, ingredientes que vicejam em todos os sistemas complexos e irracionais, como é o brasileiro.
Uma reforma tributária simplificadora faz-se necessária, em nível de legislação or- dinária, para tornar intelegível o sistema, não necessitando de gênios de exegese fiscal para que possa ser aplicado com um mínimo de riscos para o sofrido pagador de tributos brasileiro.
- Da guerra fiscal entre os estados
Independentemente da simplificação, há necessidade de balizar definitivamente a legislação do ICMS e do ISS, geradora de guerra fiscal entre estados e municípios.
Todos os projetos de reforma tributária sempre estancaram na questão do ICMS, tributo de vocação nacional, regionalizado no Brasil, ao contrário do IVA adotado por outras Federações, com competência outorgada ao Poder Central.
A própria Comissão denominada dos Notáveis, criada pelo Senado – com a partici- pação de 12 especialistas, a saber: Nelson Jobim (presidente), Everardo Maciel (relator), Bernard Appy, Fernando Rezende, João Paulo dos Reis Velloso, Luís Roberto Barroso, Manoel Felipe Rêgo Brandão, Marco Aurélio Marrafon, Michal Gartenkraut, Paulo Barros Carvalho, Sergio Roberto Rios do Prado e minha, a qual apresentou, após 6 meses de trabalhos, àquela Casa Legislativa, 12 anteprojetos de Emendas Constitucionais, leis complementares, resoluções do Senado, leis ordinárias – teve todo o esforço “pro bono” arquivado, pois nenhuma das propostas foi levada à discussão, em qualquer de suas Co- missões ou no plenário.
A tentativa do governo, com a medida provisória 599 e um anteprojeto de lei com- plementar para regular incentivos regionais no ICMS, foi desfigurada, com esgotamento do prazo da MP, e paralisação do projeto de lei complementar, por proposta de substi- tuição – o pior projeto tributário que já li, nos meus 56 anos de advocacia tributária
- apresentada pelo Senador Dulcídio.
Tínhamos sugerido, em nossa proposta, alíquota única de 4% para as operações in- terestaduais, a ser alcançada em até 8 anos, com redução anual dos percentuais de 12% e 7% vigentes hoje, parte dela apresentada pelo governo federal, que, todavia, não foi aceita pelo Congresso.
Estamos, pois, na estaca zero da reforma tributária e da solução da guerra fiscal, restando ao Supremo Tribunal Federal discutir a proposta de súmula vinculante, elabo- rada pelo Ministro Gilmar Mendes, com a seguinte dicção:
PROPOSTA DE SÚMULA VINCULANTE Nº 69
Proposta de Verbete: Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquo- ta ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamen- to ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é inconsti- tucional.
Ora, o ICMS, convém repetir, é um imposto de vocação nacional entregue à compe- tência impositiva dos estados. É opção equivocada e rara, no mundo, para um tributo de circulação de mercadorias e serviços. Significa dizer que se trata de tributo que deveria ser, no Sistema Brasileiro, um tributo federal ou centralizado, como ocorre na esmaga- dora maioria dos países que adotam a técnica do valor agregado.
Quando um estado dá um incentivo fiscal de ICMS, seu produto, enviado para outro estado que não tem incentivo fiscal, fica mais competitivo. Daí a necessidade de os es- tados, por unanimidade, aprovarem tais estímulos, como determina a Lei Complementar nº 24/75.
A esmagadora maioria dos estados tem estuprado a Constituição, instituindo ilegal- mente incentivos fiscais, criando a denominada guerra fiscal, em que passam a prejudi- car as empresas de outros estados, pela agressão que fazem ao texto constitucional. O Supremo Tribunal Federal atalhou tal maculador procedimento dos governos, que não respeitam a lei maior, sem êxito, pois os estados que pisotearam a Lei Suprema continu- am a violentá-la, malgrado as decisões do Pretório Excelso.
Quando participei da “Comissão dos Notáveis” – a denominação sempre nos causou desconforto – composta de treze especialistas para repensar o pacto federativo, apre- sentamos solução para que os incentivos pudessem ser autorizados, a saber:
- não serem dados por mais de 8 anos;
- só estados que tivessem renda per capita média inferior à média da renda per capita nacional, poderiam outorgá-los;
- haveria sempre uma alíquota mínima de 4% na sua concessão;
- só poderia ser dado às indústrias desse
Infelizmente, o nosso projeto dorme, serenamente, numa das gavetas de algum gabinete no Senado Federal. O trabalho que realizamos “pro bono” foi também um tra- balho inútil, embora nenhum dos parlamentares tivesse a mesma qualificação técnica
- excetuando a minha pessoa – dos outros doze membros da Comissão.
É interessante observar que Rubens Gomes de Souza, idealizador na regionalização do ICMS, mediante a adoção do princípio da cumulatividade, estava convencido de que a incipiente guerra fiscal do Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC) – imposto que, apesar de cumulativo, não era imune à guerra entre os fiscos estaduais, mas em dimen- são incomensuravelmente menor que a atual – seria encerrada com a adoção do ICM, à semelhança do IVA europeu (Imposto sobre o Valor Agregado). Rubens era um fantástico humanista e um tributarista excepcionalmente dedicado. Mas, como se percebe, até os gênios erram.
- Outras mudanças necessárias
Outro problema a ser enfrentado é o da guerra fiscal entre os municípios. Quase todos os municípios cobram duas vezes o tributo das empresas, ou seja, cobram das que estão sediadas em seu território e daquelas que prestam serviços em seus burgos. Uma regulação clara faz-se necessária para evitar tal situação.
As contribuições sociais também precisam ser simplificadas, tanto aquelas no inte- resse das categorias como as de intervenção no domínio econômico, para que não sejam multiplicadas de acordo com as “desnecessidades” crescentes do Erário.
O imposto sobre a renda poderia tornar-se menos complexo com a incorporação de contribuição social sobre o lucro ao próprio imposto.
No “Movimento Bem Eficiente”, fundado por Carlos Schneider, Paulo Rabello de Castro e por mim, propusemos um modelo, que, se adotado, sem queda imediata da arrecadação, mas com notável simplificação do sistema, facilitaria a redução gradual da carga até chegar a 30% do PIB. A matéria, estudada exaustivamente por empresários, políticos e técnicos na área, ainda carece de parlamentares capazes de levá-la à discus- são no Congresso Nacional.
Por fim, a aprovação de um Código de Defesa do Contribuinte, como existe em diversos países, em nível nacional, facilitaria a eliminação dos crimes de concussão e as arbitrariedades constantes do Fisco contra o contribuinte, mais preocupado em arreca- dar, o legal e o ilegal, do que em orientar o cidadão.
- Conclusão
Definitivamente, a carga burocrática no Brasil condiciona a carga tributária, que é necessariamente injusta, confirmando minha tese de doutoramento, apresentada em 1982, de que a norma tributária é uma norma de rejeição social, conciliando as teses de Kelsen e Cóssio sobre as normas secundárias e de conduta. Nas normas de aceitação, é primária a norma de comportamento e secundária aquela sancionatória. Nas de rejeição social, como a tributária, é primária a norma sancionatória e secundária a de comporta- mento, pois sem sanção ninguém pagaria tributos. É o que acontece no Brasil, em que a carga tributária é particularmente injusta.
Ora, o alto peso dos tributos tem sido fruto da crise gerada por equivocada política governamental, com contração do PIB, aumento da inflação e desemprego, concessão de seguidas moratórias objetivando fazer caixa, pressão dos órgãos fazendários para obter receita com a lavratura de duvidosos autos de infração, retirada de incentivos setoriais, alargamento das despesas públicas de custeio, mesmo em ano de ajuste fiscal, lotea- mento de cargos públicos, além de outros subterfúgios.
À evidência, um dos fatores da descompetitividade nacional em relação a outros países desenvolvidos ou emergentes, é a irracionalidade desta política tributária, pois sua imposição encarece todos os nossos produtos no mercado internacional, sobre afetar a concorrência, no mercado interno.
Além de irracional, a carga tributária decorre de uma legislação malfeita, que exi- ge, nas três esferas de governo, um imenso custo operacional das empresas para atender às imensas exigências burocráticas do governo.
À nitidez, uma legislação complexa exige um quadro fiscalizatório enorme – entre fiscais, procuradores da Fazenda, auditores, membros do Ministério Público, a ser pago pelo contribuinte. Devemos considerar, ainda, os encargos trabalhistas e o nível de juros a que estão os empresários brasileiros sujeitos, ambos entre os mais onerosos do mundo.
Neste quadro de recessão do PIB, aumento da inflação, elevação do nível de de- semprego, pensar em elevar a carga tributária é, indiscutivelmente, retirar o pouco de competitividade que a sociedade empresarial brasileira ainda tem, pois se atinge os que podem gerar empregos e desenvolvimento, para inchar uma máquina burocrática escle- rosada, em que, nos três poderes, os ajustes de vencimentos este ano, vão muito além da inflação. Projetam-se aumentos, os mais variados.
Dizia o famoso jusfilósofo alemão, Konrad Hesse, “que a necessidade não conhece princípios” e creio que a necessidade dos detentores do poder de nele se manterem, está levando a esta louca tentativa de aumento de tributos, a qual afastará investimen- tos (grandes fortunas e transmissões), onerará os produtos e o custo do dinheiro (contri- buição social sobre o lucro para os bancos).
Não há, todavia, nenhum projeto efetivo de diminuição da máquina, senão uma agenda de propostas genéricas e não especificadas, num arrependimento tardio da Pre- sidente pelo descalabro econômico que gerou e uma luta dos que estão no poder para não o deixar.
Enquanto os nossos fracassados dirigentes pensarem em reproduzir as ultrapas- sadas fórmulas de um ajuste sobre a sociedade (aumento de tributos e juros) e não sobre o Governo (corte real de despesas), teremos de concordar com o saudoso amigo, Roberto Campos, que dizia: “com esta mentalidade, o Brasil não corre nenhum risco de melhorar”.
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Orçamento, planejamento e gestão: desafios e
perspectivas1
José Mauricio Conti2
Juiz de Direito no Estado de São Paulo
Introdução
O orçamento é “a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídi- co logo abaixo da Constituição”, nas bem lançadas palavras do Ministro Carlos Ayres Brito.3 Nela estão contempladas as decisões da sociedade sobre os recursos públicos, definindo no que o Estado os utilizará. Dentre as importantes funções da lei orçamen- tária, destacam-se as de planejamento, gestão e controle. Foi-se o tempo em que a lei orçamentária tinha funções de mera peça contábil, registrando ingressos e saídas de recursos.
Hoje, é instrumento fundamental para o planejamento, o que, no ordenamento jurídico brasileiro, a insere em um sistema mais amplo, que abrange também outras leis de natureza orçamentária: o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual – o orçamento propriamente dito.
Viabiliza o controle, ao especificar objetivamente os gastos, permitindo que se- jam transparentes aos olhos de todos e ao sistema de fiscalização, contendo informa- ções que devem ser cada vez mais claras e precisas, e, principalmente, úteis, a fim de que todos saibam o que se faz com o dinheiro público. E se inter-relaciona com os instrumentos de gestão pública, uma vez ser indissociável a administração dos recur- sos, que devem necessariamente estar contemplados nos orçamentos públicos, com as técnicas de gestão voltadas a obter melhores resultados nas ações governamentais.
Cada vez mais a preocupação com o bom uso dos recursos públicos se intensifica. Não somente em razão do cuidado e atenção para evitar desvios de toda ordem, mas também e principalmente pela aplicação eficiente dos recursos, sempre escassos. A disputa pelos recursos é cada vez maior, pois não se concebe mais aumento na arreca- dação que pressione a carga tributária, que já atingiu seu limite, nem crescimento da dívida pública, que também não tem mais espaço para se expandir.
Diante disso, é necessária a melhor aplicação dos recursos existentes, como único meio de atender às sempre crescentes necessidades públicas. Sabe-se que muito di- nheiro público é desperdiçado por falta de melhor gestão, tornando imprescindível que a administração pública seja mais eficiente, com técnicas mais modernas, associadas a mecanismos de contabilização orçamentária das despesas que favoreçam o gasto público voltado a atender às finalidades para a qual foi destinado.
1 Texto baseado em outras publicações do autor, conforme indicações bibliográficas ao final.
2 Professor de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP. Doutor e Livre-Docente em Direito Financeiro pela USP. Ba- charel em Direito e em Economia pela USP.
3 STF, ADI-MC 4048-1/DF, j. 14.5.2008, p. 92 dos autos.
Este artigo retoma o tema, já anteriormente desenvolvido em outros textos, da disciplina jurídica do planejamento do setor público e das relações entre os instru- mentos de orçamentação e planejamento com o aperfeiçoamento da gestão do Poder Judiciário. No primeiro tópico, será exposta a estrutura jurídica do planejamento or- çamentário no Brasil, com seus principais instrumentos e particular atenção para a dis- ciplina constitucional das leis orçamentárias e das normas gerais de direito financeiro. Assim, as funções do Plano Plurianual (PPA), da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA), bem como das leis complementares 4.320/64 e 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal). Em seguida, se tratará das principais ca- racterísticas do planejamento do Poder Judiciário em vista de seu enquadramento jurídico na estrutura orçamentária e nas diretrizes indicadas pelo Conselho Nacional de Justiça para levar a cabo aquelas estratégias.
- O planejamento orçamentário no direito financeiro brasileiro
O sistema de fiscalização financeira e orçamentária, nos termos previstos em nossa Constituição Federal, artigo 70, preconiza a fiscalização da legitimidade e eco- nomicidade do dinheiro público, e o texto constitucional, no art. 37, caput, erige a eficiência à condição de princípio que rege a administração pública, que já está há muito tempo desenvolvendo técnicas voltadas a uma fiscalização da qualidade do gas- to público.
No mesmo sentido, está a preocupação em adequar os orçamentos públicos a esta nova situação, tornando-os coerentes e compatíveis com a modernização da gestão pública, como se vê dos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional voltados a substituir a Lei 4320, de 1964, já alcunhados de “Lei de Qualidade Fiscal” e “Lei de Responsabilidade Orçamentária”. Pretendem tornar as regras sobre os orçamentos públicos mais modernas, contendo novos dispositivos que aperfeiçoam o sistema orça- mentário brasileiro, consolidando técnicas voltadas a favorecer a qualidade do gasto público, permitindo mais investimentos públicos e despesas na área social.
Modificações na contabilização orçamentária, com o aperfeiçoamento dos progra- mas, construídos de forma que sejam voltados a resultados claros e mensuráveis por indicadores precisos e confiáveis, contextualizados em um sistema de planejamento da ação governamental que permita aos atores públicos e privados terem uma visão segura do que se espera do poder público, são algumas das medidas que integram esse necessário avanço na legislação vigente. Tornar definitivas regras de elaboração e exe- cução orçamentárias, por norma aplicável de maneira uniforme a todos os entes da fe- deração, garantindo maior segurança jurídica a regras que são atualmente veiculadas por leis de diretrizes orçamentárias (individualizadas para cada unidade federada e de caráter temporário), são também medidas importantes da nova legislação.
São necessárias normas voltadas a uniformizar e estabelecer limites para a exe- cução orçamentária, especialmente nos restos a pagar, evitando que os pagamentos se prorroguem para o exercício seguinte e prejudiquem o planejamento, controle e transparência dos gastos. Ainda na execução orçamentária, há que se definir com mais clareza e precisão o grau de impositividade dos nossos orçamentos, criando meca- nismos para tornar o orçamento executado o mais próximo possível daquele que foi aprovado, como será explicitado mais adiante.
Definir e padronizar a contabilização das receitas e despesas, seguindo padrões internacionais e estabelecendo limites e regras claras, de modo a dificultar ao máximo manobras de “contabilidade criativa”, que contornem a legislação por caminhos tortu- osos, é outra medida que se impõe.
Outra questão que exige atenção se relaciona à adaptação de nosso sistema or- çamentário ao federalismo fiscal cooperativo, especialmente por se constatar que as principais políticas públicas exigem a participação dos vários entes da federação. Nes- se ponto, é importante a criação, aperfeiçoamento e sistematização de mecanismos de cooperação intergovernamental, cada vez mais necessários à execução de políticas públicas que dependem da ação conjunta de vários entes da federação, tanto no finan- ciamento quanto na operacionalização, evitando que o interesse público fique sujeito às alternâncias de governos, muitas vezes de partidos e ideologias diferentes, que são transitórios, e cujos atritos possam impedir, dificultar e atrasar a implementação de políticas públicas voltadas a atender às necessidades fundamentais da população.
Aperfeiçoar a qualidade do gasto público é fazer mais com menos, ou seja, pro- duzir mais benefícios públicos com menos recursos, o que exige, entre outras medidas, além das já mencionadas, a modernização da gestão, aumento da participação popular nas decisões sobre o gasto público, maior transparência e controle. São inúmeras as providências a serem tomadas nesse sentido, que exigem não somente uma nova le- gislação, adaptada aos novos tempos e técnicas, mas também, e principalmente, uma mudança de cultura na administração pública.
Todas essas medidas dependem, em um primeiro momento, de um planejamento adequado, sendo a função de planejamento, juntamente com a de gestão e controle, fundamental para um sistema financeiro governamental bem estruturado.
O planejamento governamental no Brasil é constituído por um sistema comple- xo, e tem no PPA seu principal instrumento jurídico. Não é o único, uma vez que as demais leis orçamentárias, como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a própria Lei Orçamentária Anual (LOA) compõem esse sistema. As leis orçamentárias articulam-
-se para formar um sistema de “planejamento deslizante”, em que integra o rol das modernas técnicas de planejamento orçamentário por meio do qual se prevê uma atualização periódica (em geral anual) dos planos de médio ou longo prazos, de modo a suavizar e tornar previsíveis as necessárias atualizações e ajustes no planejamento, conferindo maior previsibilidade e segurança jurídica ao sistema. Está contemplado em nossa legislação por meio dos anexos de metas e riscos fiscais das leis de diretrizes orçamentárias. Há, ainda, muitas outras leis importantes, especialmente aquelas des- tinadas a setores específicos da ação governamental, como é o caso do Plano Nacional de Educação.
Embora não se possa conceber atualmente a gestão de administrações públicas complexas, como é o caso dos entes que compõem nossa federação – União, Estados, Distrito Federal e municípios –, e de órgãos e instituições públicas que os integram, como o Poder Judiciário, Ministério Público, Universidades Públicas e tantos outros, sem um sistema de planejamento governamental bem elaborado e executado, parece que esta cultura ainda não está plenamente consolidada entre nós.
Vê-se que técnicas de planejamento e orçamento que começaram a surgir há um século, voltadas a buscar maior eficiência na administração pública, com orçamentos elaborados por programas, contabilizando-se as despesas de forma a buscar resultados,
medindo e avaliando desempenho, incorporaram-se à administração pública apenas for- malmente. Definições de estratégias, materializando-as nos instrumentos de planeja- mento governamental, com o estabelecimento de objetivos e metas de curto, médio e por vezes até longo prazo, parecem ficar apenas no papel e na boa intenção daqueles que elaboram os documentos, pois, na prática, nem sempre são executados, nem fiscalizados com o devido rigor, mitigando a credibilidade que deveriam merecer.
Planos plurianuais municipais, especialmente de municípios menores, são elabo- rados com base em modelos que se repetem ano a ano, sem uma efetiva preocupação dos prefeitos de nele incorporarem as previsões para o que se vai fazer no decorrer do mandato. Mudam-se os prefeitos, alternando-se o partido e a ideologia de quem governa, com o povo esperançoso de mudanças, mas da leitura do PPA pouco ou nada se consegue constatar, deixando transparecer que nada vai se alterar.
Nota-se descaso com a cooperação federativa no planejamento, como se pode verificar na área de educação, em que o próprio governo federal demorou quatro anos para aprovar o Plano Nacional de Educação (Lei 13.005, de 2014), depois de cessada a vigência do anterior (Lei 10.172, de 2001), para o período 2001-2010. E muitos Estados e Municípios, que deveriam elaborar os respectivos Planos Estaduais e Municipais de Educação, para completar sistema de planejamento neste setor fundamental para o desenvolvimento econômico e social do país, permanecem inertes, apesar de decorri- do o prazo de um ano que dispunham para aprová-los.
Um bom planejamento, dotado de clareza e transparência, é imprescindível para uma gestão eficiente e uso proveitoso dos recursos públicos. Planejar é escolher prio- ridades, ainda que estas escolhas sejam difíceis, e importem em deixar de lado muitas ações importantes – afinal, é para isto que os governantes são eleitos, este é segu- ramente o maior ônus que pesa sobre seus ombros. Mas essa clareza e transparência nem sempre interessa aos que estão no alto comando da administração pública, que hesitam em desagradar a quem quer que seja, preferindo a opção política de, ainda que aparentemente, atender a todos, sem deixar claras as prioridades, até para não tornar transparente o que e quem não foi contemplado.
Daí porque muitas vezes nos deparamos com planos plurianuais genéricos, exces- sivamente abrangentes, incluindo praticamente tudo e para todos, deixando para a fase de execução, de forma opaca, a efetiva escolha do que vai ou não ser feito, tor- nando inúteis os instrumentos de planejamento para os fins a que se destinam. Muitas vezes elaborados sem estudos e análises prévias sobre a realidade do município e seus problemas, transformam-se em documentos que não apontam as soluções adequadas e os meios para resolvê-los. Mais do que isso, deixam a critério do governante decidir ao sabor dos acontecimentos, tomando decisões aleatoriamente, para resolver proble- mas imediatos, de forma descoordenada e sem critérios, o que só tende a agravar as distorções da administração pública no médio e longo prazos.
Ainda no âmbito do planejamento, é fundamental destacar o papel da lei de di- retrizes orçamentárias, que tem exercido funções cada vez mais relevantes na organi- zação das finanças públicas, especialmente após a Lei de Responsabilidade Fiscal, que lhe acrescentou atribuições.
A Lei de Diretrizes Orçamentárias – a LDO – foi uma inovação da legislação bra- sileira, cujo desenho surgiu durante os trabalhos da Assembleia Constituinte, sendo introduzida em nosso ordenamento jurídico pela Constituição de 1988.
Prevista no art. 165, parágrafo 2º da Constituição Federal, tem por função estabe- lecer anualmente as metas e prioridades da administração pública para as despesas de capital (essencialmente investimentos públicos) e programas de duração continuada. Trata-se de verdadeiro “elo de ligação” entre o plano plurianual, com previsão para quatro anos, e a lei orçamentária, que fixa as receitas e despesas de cada ano. Cum- pre função relevante no sistema de planejamento da ação governamental, pois obriga os administradores públicos a definir, a cada ano, quais programas previstos no plano plurianual serão contemplados, e quanto se pretende realizar. Evita-se, com isso, o irresistível hábito de “deixar para a última hora”, de modo a postergar o cumprimento dos programas para o final do plano plurianual, o que, no mais das vezes, inviabiliza alcançar as metas fixadas, até porque, no último ano do PPA, em regra quem está no exercício do mandato é outro governante.
Desde a promulgação da Constituição, passando pela Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, até os dias atuais, a lei de diretrizes orçamentárias foi tendo suas atribuições ampliadas, representando um papel cada vez mais importante na orga- nização das finanças públicas, exercendo hoje funções bem maiores do que aquelas inicialmente estabelecidas, de orientação da lei orçamentária e fixação das diretrizes e metas da administração pública.
Já no próprio texto original da Constituição de 1988, vê-se, no artigo 99, § 1º, que compete à LDO, em ação conjunta dos Poderes, estipular os limites financeiros para a apresentação das propostas orçamentárias dos Tribunais. Trata-se de um dos mais, se não o mais, relevante instrumento para a plena eficácia da autonomia financeira do Poder Judiciário, pois retira do Poder Executivo a possibilidade de interferir no orça- mento do Poder Judiciário, uma vez que, ao elaborar sua proposta dentro dos limites da LDO, aprovada pelo Poder Legislativo, não podem ter os valores reduzidos ou mo- dificados por ato do Poder Executivo; o mesmo vale para o Ministério Público (CF, art. 127, § 3º). Com a Emenda Constitucional 45, de 2009, essa função da LDO se estendeu também à Defensoria Pública (CF, art. 134, § 2º).
O artigo 165, § 9º, da Constituição Federal, previu a edição de lei complementar para dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a orga- nização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual, além de estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administra- ção direta e indireta, bem como as condições para instituição e funcionamento de fundos. Tal lei complementar ainda não foi publicada, não obstante os vários projetos em andamento, como já se referiu anteriormente, deixando muitas lacunas, pois estes assuntos ainda estão sendo regulados pela Lei 4320, de 1964. Suprir essas lacunas tem sido uma função inúmeras vezes cumprida pelas leis de diretrizes orçamentárias, como se tem notado ao longo dos últimos anos.
Além disso, em 2000, com a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 5 de maio), que estabeleceu normas de finanças públicas voltadas à responsa- bilidade na gestão fiscal, a LDO passou a ser importante instrumento de viabilização de normas que pudessem regular e limitar os gastos públicos, o que ampliou sobremaneira seu papel no ordenamento jurídico das finanças públicas.
Entre eles, várias merecem destaque.
Regulamentar e estabelecer critérios e forma de limitação de empenho (LRF, art. 4º, I, b), por exemplo, permite que se organize, estabelecendo regras e limites, ao
contingenciamento, evitando que o Poder Executivo, no exercício de sua função de co- mando na execução orçamentária, venha a descumprir a lei orçamentária, desviando-a de seu curso, e frustrando a aplicação da lei que havia sido legitimamente aprovada. Coloca, assim, freios aos abusos de há muito observados em matéria orçamentária, em que o Poder Executivo, fazendo uso do contingenciamento, superpõe-se indevida e não democraticamente aos demais Poderes e entes da federação, subjugando-os pela não liberação dos recursos previstos no orçamento.
Estabelecer normas para controle de custos e avaliação dos resultados dos pro- gramas orçamentários (LFR, art. 4º, I, c) é fundamental para que se consolide um sistema eficaz de planejamento e orçamento preocupado com o bom desempenho da administração pública, pois permite que se estabeleçam regras claras para avaliação do cumprimento das metas, asfixiando os desvios ilegítimos de recursos públicos pela sua destinação a programas de difícil mensuração, o que sempre facilitou a malversa- ção de dinheiro público.
Fixar condições e exigências para transferências de recursos a entidades públicas e privadas (LRF, art. 4º, I, d) é outro papel da maior relevância, pois a entrega de re- cursos orçamentários a terceiros, a fim de que atendam às finalidades públicas, é ato que se tem intensificado cada vez mais, da mesma maneira que as fraudes que a ele se associam. Nada mais relevante que estabelecer e aperfeiçoar as normas que coíbam esses desvios, no que as LDO têm representado importante papel.
O Anexo de Metas Fiscais (LRF, art. 4º, § 1º), com a fixação de metas para o exercício em curso e os dois subsequentes, a cada ano, é um avanço da legislação em matéria de planejamento, institucionalizando o já citado sistema de “planejamento deslizante” da ação governamental, em que as necessárias alterações e adaptações dessas normas passam a ser feitas de forma gradual e formal, mantendo a segurança jurídica e confiabilidade do sistema. Com a avaliação e acompanhamento das metas estabelecidas, por métodos precisos e transparentes, os gestores ficam impedidos de fazer delas números voltados apenas a cumprir formalidades burocráticas.
O Anexo de Riscos Fiscais (LRF, art. 4º, § 3º) obriga também os administradores públicos a pensar nos problemas futuros, exigindo que se preparem antecipadamente a eles e antecipem as medidas a serem tomadas caso venham a se concretizar, evitando as sempre presentes ações imediatas e improvisadas, resolvendo problemas ocorridos e que só tenderão a aumentar, fato mais que conhecido em toda a burocracia estatal.
A exigência de que se divulguem os objetivos das políticas monetária, creditícia e cambial e as metas de inflação (LRF, art. 4º, § 4º) tem-se mostrado fundamental para a transparência que se espera da administração pública, deixando claro, para o setor público, privado e a sociedade em geral, dos rumos que se pretende dar à ação governamental, o que é fundamental para que todos possam se orientar de forma co- ordenada e planejada.
No que tange à lei orçamentária anual, que também exerce um papel relevante em matéria de planejamento, sendo o documento responsável pelo planejamento de curto prazo, há alguns pontos que merecem maior atenção.
É o caso, por exemplo, da adaptação de uma lei cuja vigência é anual, pelo prin- cípio da anualidade orçamentária, às novas situações com as quais se depara a admi- nistração pública, cujas atividades se realizam continuamente e, no mais das vezes, de forma que não se compatibiliza com a rigidez do exercício financeiro.
A anualidade orçamentária, erigida à condição de princípio pelos doutrinadores, é, de um lado, uma necessidade, uma vez que os orçamentos públicos, como já men- cionado, exercem as funções de controle, gestão e planejamento, e para isso se torna imprescindível que se estabeleça um período determinado para que sejam previstas e autorizadas as receitas e despesas, a fim de que possam ser controladas.
Por outro lado, a existência de um prazo fixo para a vigência da lei orçamentária causa alguns problemas e distorções, dadas as características e particularidades da atividade financeira do setor público.
Daí porque a necessidade de mecanismos que permitam adaptar a necessária temporariedade da lei orçamentária com a diversidade de situações que decorrem da atividade financeira ininterrupta do setor público.
É o caso, por exemplo, dos “restos a pagar”, instrumentos que permitem a pos- tergação de pagamentos para o exercício financeiro subsequente, mas que se nota haver uso abusivo, generalizando-se a inscrição de valores em restos a pagar, fazendo com que o ano se inicie com expressivos valores já empenhados, criando-se um ver- dadeiro “orçamento paralelo”, que dificulta o planejamento e a gestão e torna menos transparentes os gastos públicos.
Intensifica-se ainda a disputa pela liberação desses recursos no exercício seguin- te, em um jogo sujeito a interferências políticas e de toda ordem, com regras pouco claras e transparentes.
Trata-se de aspecto que merece maior atenção e regulamentação, a fim de que sejam corrigidos os atuais problemas. Não obstante as várias limitações hoje impostas para a inscrição em restos a pagar, com vedações voltadas a evitar abusos e descontro- le das contas públicas, além da previsão de relatórios que procuram dar maior trans- parência, não se tem logrado os resultados esperados.
É necessário um aperfeiçoamento da legislação que contemple a revisão da ideia de anualidade orçamentária, a fim de tornar nossas leis orçamentárias mais coerentes com a modernização da administração pública.
Note-se que muitas obras da maior relevância, como as voltadas a favorecer a mobilidade urbana, problema crescente nas grandes metrópoles, exigem altos investi- mentos em transportes coletivos de massa, como o metroviário, vias rápidas e outros; obras voltadas à produção de energia, como usinas hidrelétricas, são fundamentais para o país, e sua implantação ultrapassa em muito o período do exercício financeiro. Os contratos com o Estado cada vez menos se esgotam no curto prazo, e é necessário assegurar o seu cumprimento pelo poder público. Nosso sistema jurídico precisa estar preparado e adequado para dar segurança jurídica, em todos os aspectos, especial- mente financeiros, para esses investimentos que ultrapassam a vigência da lei orça- mentária.
A lei orçamentária, como se pode constatar, insere-se no contexto de um sistema orçamentário, coordenando-se com as outras leis que abrangem períodos mais amplos da atividade financeira do Estado, como a lei de diretrizes orçamentárias, o plano plurianual, plano nacional de educação e outras, que vêm exercendo funções cada vez mais relevantes. A ideia de plurianualidade está cada vez mais presente em matéria de gestão pública, e o sistema orçamentário deve ser compatível com esta nova realida- de, criando instrumentos jurídicos que a ele se adaptem e deem a segurança jurídica que dele se espera.
- A lei orçamentária e sua relevância como instrumento de gestão
Ainda no que tange à lei orçamentária, já reconhecida com a lei mais importante depois da Constituição, como mencionado no início deste texto, há que se dar maior ênfase à sua execução, de modo a torná-la um instrumento que dê segurança jurídica a todos, propiciando-lhe a merecida credibilidade, e espancando a tese de que se trata de uma peça de ficção.
Para isso, é importante que a lei executada seja a mais próxima possível da lei aprovada. A fase de execução orçamentária torna-se, assim, da maior relevância.
A eficácia, credibilidade e respeito à lei orçamentária exige que, uma vez aprova- da, sua execução deva pautar-se pela busca do fiel cumprimento de seus dispositivos.
O papel do processo de execução do orçamento é cumprir, com a maior fidelidade possível, o orçamento aprovado, de modo que se façam apenas os ajustes necessários, no montante imprescindível para adequar a aplicação das receitas arrecadadas no atendimento às necessidades públicas. Os instrumentos de flexibilidade, necessários em face das peculiaridades da lei orçamentária, devem ser utilizados de modo a cum- prir o que foi nela estabelecido, sem descaracterizá-la.
Créditos adicionais, margem de remanejamento e contingenciamento são instru- mentos úteis e necessários para o processo de execução orçamentária, mas devem ser utilizados com parcimônia, sem desviar a execução da lei orçamentária de seu curso, levando o orçamento executado a diferir substancialmente do que foi aprovado – e tornando-o, portanto, uma lei com pouco ou nenhum conteúdo material, incapaz de produzir os efeitos que lhe são próprios, como o de dar segurança jurídica ao sistema de planejamento governamental e gestão pública.
Não é o que se tem observado, dada a frequência com a qual os Poderes Executi- vos de todas as esferas de governo abusam desses instrumentos, contingenciando dota- ções de modo a impedir que sejam executadas antes de findo o exercício, realocando recursos com base em margens de remanejamento pré-aprovadas e de forma exces- siva, e utilizando-se de outras tantas manobras orçamentárias que descaracterizam a lei orçamentária aprovada.
Daí porque são necessárias medidas voltadas a fazer com que a lei orçamentária venha a cumprir efetivamente seu papel constitucional, de condutora da atividade financeira do Estado, como é o caso da recente aprovação da “PEC do orçamento impo- sitivo”, que resultou na Emenda Constitucional 86, de 2015, tornou obrigatória a exe- cução orçamentária, mas restringiu-se a pequena parte do conteúdo da lei orçamentá- ria, limitando-se aos valores nela inseridos pelas emendas parlamentares individuais.
Um avanço, sem dúvida, mas muito menor do que poderia, uma vez que nas propostas originais previa-se a inclusão de dispositivo que considerava a programação constante da lei orçamentária de execução obrigatória, exigindo autorização prévia e expressa do Congresso Nacional para eventual cancelamento ou contingenciamento, parcial ou total, da dotação, não se restringindo às emendas parlamentares.
Reduziu, mas muito pouco, a excessiva discricionariedade do Poder Executivo no uso desses instrumentos de flexibilidade orçamentária, que passariam a ser submeti- dos à aprovação pelo Poder Legislativo, a quem caberia decidir sobre aspectos impor- tantes do processo de execução do orçamento público. O orçamento, se aprovada a
versão inicial das propostas de emenda voltadas a instituir o “orçamento impositivo”, tornar-se-ia mais previsível e capaz de conferir maior segurança jurídica à administra- ção pública e a todos que dela dependem e com ela se relacionam.
Ainda estamos longe do ideal, que seria da máxima “impositividade” do orçamen- to, o que contribuiria sobremaneira para o respeito à democracia, à vontade popular expressa por ocasião da aprovação da lei orçamentária, à independência e autonomia dos poderes e ao planejamento e gestão eficiente da administração pública, elementos essenciais para o desenvolvimento econômico e social. Vê-se que há muito que fazer em matéria de aperfeiçoamento da legislação orçamentária, e a importância cada vez maior dos orçamentos públicos torna urgentes as várias medidas sobre as quais se fez referência, exigindo de todos maior atenção a esta lei tão importante para a sociedade.
- O planejamento estratégico do Poder Judiciário
Há, entretanto, um conjunto de instrumentos de planejamento à disposição para integrar os numerosos elementos do processo orçamentário a uma gestão mais eficiente dos recursos, mais apta a atingir resultados, e que são aplicáveis ao Poder Judiciário. Convencionou-se chamar de “planejamento estratégico” a essa prática administrativa que, como bem define o Ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski,
[…] consiste em antecipar racionalmente as ações visando a atingir determinados objetivos do modo mais econômico possível. Significa, em suma, prever os distintos cenários que o futuro pode materiali- zar, identificando, em tempo hábil, eventuais ameaças ou possíveis oportunidades; […]
significa
[…] conceber um objetivo e coordenar todas as ações para atingi-lo, integrando-as em um conjunto único. As ações singulares, interme- diárias, periféricas e circunstanciais, enfim, todas as ações, quais- quer que sejam elas, devem subordinar-se a um fim último colimado, evitando-se a dispersão de esforços.4
Em termos formais, o planejamento estratégico do Poder Judiciário é expresso em documento no qual se definem a missão, a visão de futuro e os valores da institui- ção, fixando-se os objetivos estratégicos, com as respectivas metas, indicadores e as ações com as quais se pretende atingi-los.
Em 2009, foi publicada a Resolução do Conselho Nacional de Justiça n. 70, se- gundo a qual todos os Tribunais do Poder Judiciário devem elaborar os respectivos planejamentos estratégicos, com abrangência mínima de cinco anos. Essa norma é a mais relevante para a modernização na gestão dos Tribunais e insere-se no contexto de uma evolução pela qual vem passando a administração pública desde a década de
4 Planejamento estratégico do Poder Judiciário. Justiça & Cidadania, p. 17-18, nov. 2011.
- Representou “o início de uma nova e importante fase no planejamento da ação governamental, que é a transposição das técnicas de planejamento orçamentário, fi- nanceiro e administrativo para órgãos da administração pública”, compatíveis com uma sociedade moderna que se torna cada vez mais dinâmica, e exige uma adminis- tração competente, com ações eficientes, eficazes e efetivas.
Elaborar um planejamento estratégico é tarefa complexa, pois exige pesquisas, estudos e análises minuciosos, discussões com os interessados, ouvindo-se todos aque- les que integram o órgão e também os cidadãos, que são os beneficiários finais de sua atividade, para que sejam estabelecidas democraticamente as prioridades que melhor reflitam o interesse público. Sopesar todas essas informações, à luz das mais modernas técnicas de administração pública, para elaborar um documento que represente fiel e efetivamente as diretrizes a serem seguidas, e que seja dotado de legitimidade e credibilidade, de modo a engajar todos os seus integrantes na busca dos resultados almejados, requer tempo, trabalho e dedicação.
O Poder Judiciário merece destaque por ser a principal instituição na adminis- tração da Justiça. Decisões e ações do Poder Judiciário afetam e conduzem os demais órgãos, pessoas e instituições essenciais à Justiça. É por iniciativa do Poder Judiciário que se define a instalação de novos fóruns e comarcas, é ele quem conduz os proces- sos, e, mais recentemente, implanta sistemas de processo eletrônico, aos quais terão de se adaptar o Ministério Público, a Defensoria, a Advocacia, auxiliares da Justiça e os cidadãos. Torna-se relevante, portanto, o planejamento de seu futuro e suas ações, tornando-os transparentes e previsíveis, a fim de que todos que dele dependam e com ele se relacionam possam também se planejar.
Vários dos Tribunais que integram o Poder Judiciário de todo o país têm dimensões que superam muitos Estados da Federação e a maior parte dos Municípios. É possível obter uma noção mais exata com alguns dados. Assim, o Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior do país, teve, no ano de 2014, orçamento da ordem de 8,4 bilhões de reais, praticamente equivalente aos Estados de Alagoas e Sergipe (8,3 bilhões e 8,2 bilhões, respectivamente), maior do que os Estados do Acre, Amapá, Roraima e Ron- dônia, e de cidades como Curitiba, Fortaleza e Salvador, além de superar órgãos como o Senado Federal, a Câmara dos Deputados e o Ministério Público da União.5 Não é razoável que todos os entes da federação sejam obrigados a ter um planejamento de médio prazo, como o plano plurianual previsto no art. 165, I, da Constituição, e não se exigir o mesmo para os Tribunais. São eles, atualmente, órgãos da administração pública cujo tamanho e complexidade tornam imprescindível, ainda que integrando um ente federado, seguir as mesmas exigências a que somente estes últimos estavam formalmente sujeitos.
Criado em 18 de março de 2009 pela já mencionada Resolução 70 do CNJ, nem todos os primeiros planejamentos estratégicos vigentes puderam ser construídos com a perfeição desejável, não só pela exiguidade do prazo – menos de um ano –, como também, e principalmente, pelo pioneirismo da experiência, inovadora na quase totalidade dos Tribunais. Em 2014, com a experiência adquirida, dados coletados, todos tiveram a oportunidade de aperfeiçoá-lo, superando as dificuldades do anterior
5 Todos os dados em valores aproximados, em bilhões de reais, referentes ao orçamento de 2014: Acre – 5,3; Amapá – 5,1; Roraima – 2,9; Rondônia – 6,9; Curitiba – 7,6; Fortaleza – 6,4; Salvador – 6,4; Senado Federal – 3,8; Câmara dos Deputa- dos – 4,9; e Ministério Público da União – 4,7.
e produzindo um documento que é fundamental para uma gestão que se pretenda moderna e eficiente.
Assim é que os Tribunais, com o apoio dos respectivos Núcleos de Gestão Estra- tégica (Res. CNJ 70/2009, art. 3º), elaboraram e devem implementar este novo pla- nejamento estratégico, com a participação efetiva de serventuários e magistrados de primeiro e segundo graus, assegurando alinhamento com os respectivos orçamentos, de forma a garantir os recursos necessários à execução, já nos termos da nova norma que cuidou do tema, a Resolução CNJ 198, de 1º de julho de 2014. Além de assegurar os recursos orçamentários, há que se compatibilizar o planejamento estratégico com o plano plurianual do respectivo ente da federação que integram, evitando incongru- ências e inconsistências que mitiguem sua credibilidade e prejudiquem a execução, controle e fiscalização.
No Poder Judiciário, o planejamento, ao menos de médio prazo, tem relevância maior do que em outros órgãos da administração. Isto se deve, especialmente, ao curto mandato de seus presidentes, fixados em dois anos pela Lei Orgânica da Magistratura Na- cional, insuficiente para que tomem adequado conhecimento da máquina administrativa e possam, neste espaço de tempo, elaborar, implementar e gerir projetos novos. Essa frequente alternância dos gestores pela exiguidade no tempo do mandato torna ainda mais importante um planejamento dotado de segurança jurídica, dada a necessidade de continuidade administrativa,6 e de um sistema eficiente de gerenciamento de projetos.
Acrescente-se que, nos Tribunais, o cargo de cúpula cabe a um magistrado, do qual não se exige formação nem prática em administração pública, como também ocorre com os entes federados de forma geral. Estes últimos, no entanto, contam, no mais das vezes, com quadros técnicos permanentes especializados em gestão pública, e seus mandatários exercem o cargo por quatro anos, facultada a reeleição, o que não ocorre nos Tribunais.
Não se deve esquecer ainda que podem ser aproveitadas as experiências dos de- mais Tribunais com os projetos bem-sucedidos do banco de boas práticas de gestão do Poder Judiciário do Conselho Nacional de Justiça,7 e com ele colaborar, inserindo os projetos exitosos para que sejam também utilizados pelos outros Tribunais.
Considerações finais
Diante dos novos desafios levados ao Poder Judiciário, sua maior interação com os processos de gestão da administração pública é cada vez mais necessária. Não apenas em razão do imenso número de casos levados à sua apreciação, que requer o desenvolvimento de métodos aperfeiçoados de gestão de seus sistemas de prestação de serviços jurisdicionais, mas também porque é um poder que se apresenta cada vez mais como um participante do processo de gestão de recursos públicos destinados a atender às necessidades da sociedade.
Desse modo, o Poder Judiciário hoje está cada vez menos isolado, interage com os demais, interfere no orçamento público impulsionando políticas públicas em um ativismo judicial que é crescente, e participa de forma intensa nas áreas da saúde,
6 Vide os “considerandos” da Resolução 70/2009.
7 Res. CNJ 70/2009, idem, art. 4o. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/estrategia/index.php/boaspraticas/>.
educação, proteção à criança e adolescente, idosos e deficientes, em programas que envolvem todos os entes da federação, transformando-se no “grande protagonista da cena estatal neste início do século 21”, como bem observou o Desembargador Renato Nalini, Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, em artigo recente8.
Vê-se que não será fácil. Coordenar tudo isso é uma tarefa complexa, não tenham dúvidas. Mas o Poder Judiciário exerce hoje papel fundamental para que o país atinja os objetivos expressos no art. 3º da Constituição, agindo em harmonia com os demais poderes, nos termos do art. 2º. E planejar é o primeiro e principal passo nessa missão, que precisa ser cumprida, ainda que pareça à primeira vista muito difícil.
Referências bibliográficas
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- questões Florianópolis: Conceito Editorial: IBDF, 2010. p. 39-56.
CONTI, José Mauricio. Não falta dinheiro à administração pública brasileira, falta ges- tão. Revista Consultor Jurídico, 31 jul. 2012.
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CONTI, José Mauricio. Poder Judiciário: 2014 é o ano do planejamento estratégico.
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CONTI, José Mauricio; PINTO, Élida G. Lei dos orçamentos públicos completa 50 anos de vigência. Revista Consultor Jurídico, 17 mar. 2014.
CONTI, José Mauricio. O direito financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 começou
mal. Revista Consultor Jurídico, 10 fev. 2015.
CONTI, José Mauricio. Aprovação do orçamento impositivo não da credibilidade à lei orçamentária. Revista Consultor Jurídico, 10 mar. 2015.
8 O que esperar da Justiça? O Estado de São Paulo, São Paulo, p. A2, 2 jan. 2014.
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Decadência e prescrição tributária à luz do direito positivo
Kiyoshi Harada1
Advogado
Sumário: 1. Introdução. 2. Conceitos de decadência e de prescrição. 3. Divergên- cias nos campos da decadência e da prescrição. 3.1. Da decadência. 3.2. Da prescrição.
- Decadência e prescrição conforme prescrições do CTN. 5. Necessidade de melhor explicitar o sentido do art. 145 do CTN para cessar as divergências intermináveis. 6. Conclusões.
- Introdução
Decadência e prescrição são dois institutos jurídicos regulados de forma bem clara pela Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, hoje, Código Tributário Nacional, um dos melhores textos normativos produzidos no País, tanto é que nesse interregno de quase meio século de vigência não teve um único dispositivo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Contudo, algumas das categorias jurídicas disciplinadas pelo CTN continuam, ain- da, suscitando dúvidas e controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais. É o caso da deca- dência e da prescrição, como procuraremos demonstrar neste estudo, com ênfase para o termo inicial da prescrição, em que as posições divergentes são mais acentuadas. Para tanto, partiremos do conceito desses dois institutos para, em seguida, examinarmos as correntes doutrinárias e jurisprudenciais e, ao final, externar nosso posicionamento mediante exame sistemático dos textos normativos dentro da ordem jurídica como um todo, apresentando, ao final, as nossas conclusões.
- Conceitos de decadência e de prescrição
De conformidade com a conceituação clássica, decadência é o perecimento do direito por não ter sido exercitado dentro de um prazo determinado. Ela não comporta suspensão, nem interrupção, sendo irrenunciável e devendo ser pronunciada do ofício. Prescrição é a perda do direito de ação pelo decurso de determinado prazo. Ela compor- ta suspensão e interrupção, sendo renunciável e devendo ser arguida pelo interessado.
1 Jurista, com 31 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Diretor de Relações Institu- cionais da Rede Internacional de Excelência Jurídica. Sócio-fundador do escritório Harada Advogados Associados. Parecerista em matéria de direito público. Ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
Ambos os institutos repousam no princípio do dormientibus non succurrit jus, pois, se o titular do direito não o exercita dentro de um prazo determinado, passa a ser do interes- se público que o devedor não mais seja perturbado pelo seu credor, a fim de preservar a estabilidade das relações jurídicas.
Modernamente tem-se entendido que tanto a decadência, como a prescrição atin- gem a pretensão que, no dizer de Carnelutti, citado por Frederico Marques, nada mais é do que a exigência de subordinar o interesse alheio ao interesse próprio2. Se hou- ver resistência a essa pretensão surge a lide, caso contrário, o conflito de interesses compor-se-á sem necessidade de intervenção do Judiciário. Por isso, Agnelo Amorim Filho sustenta que somente os direitos que envolvem prestação ensejam a prescrição, porque somente elas são passíveis de violação, dando nascimento à pretensão. E como a satisfação da pretensão do credor só pode ser obtida por meio de ação condenatória, somente ela se sujeita aos efeitos da prescrição. Direito sem pretensão, como os direi- tos potestativos não dão origem à prescrição porque insusceptíveis de violação. Como a tutela dos direitos potestativos ocorre por meio de ação constitutiva, esta sofre efeitos da decadência sempre que fixado um prazo especial para o exercício do direito3.
Na seara do Direito Tributário a questão é bem simples: tanto a decadência como a prescrição extinguem a obrigação principal, ou seja, o crédito tributário. Por isso, quem paga um tributo atingido pela prescrição faz jus à sua repetição. De fato, prescreve o art. 156, V do CTN:
Art. 156 – Extinguem o crédito tributário: […]
V – a prescrição e a decadência.
E mais, a prescrição poderá ser decretada de ofício pelo juiz, conforme Súmula nº 409 do STJ e o § 4º, do art. 40 da Lei de Execução Fiscal, acrescido pela Lei nº 11.051, de 29-12-2004.
- Divergências nos campos da decadência e da prescrição
Examinemos em rápidas pinceladas as divergências existentes, analisando separa- damente cada uma dessas categorias jurídicas.
- Da decadência
Sobre a questão prescreve o art. 173 do CTN:
Art. 173 – O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tribu- tário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:
2 Manual de direito processual. São Paulo: Saraiva 1974. v. 1, p. 126.
3 Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista de Direito Processual Civil, São Paulo, v.3, p.109.
- – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado;
- – da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anula- do, por vício formal, o lançamento anteriormente
Parágrafo único. O direito a que se refere este artigo extingue-se definitivamente com o decurso do prazo nele previsto, contado da data em que tenha sido iniciada a constituição do crédito tributário pela notificação, ao sujeito passivo, de qualquer medida preparatória indispensável ao lançamento.
De conformidade com os textos retrotranscritos, o prazo para constituir o crédito tributário extingue-se após cinco anos contados:
- da data em que tenha sido iniciada a constituição do crédito tributário pela notificação ao sujeito passivo, de qualquer medida preparatória indispensável ao lança- mento;
- do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado;
- da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício
formal, o lançamento anteriormente efetuado.4
São três os marcos que assinalam o início do prazo decadencial, os quais guardam harmonia com a disposição do art. 142 do CTN que atribui ao procedimento administra- tivo do lançamento a eficácia constitutiva do crédito tributário.
A faculdade que tem o sujeito ativo da obrigação tributária de torná-la líquida e certa corresponde ao direito potestativo de a Fazenda Pública efetuar o lançamento, dentro do prazo previamente assinalado na lei.
Importante advertir desde logo que a regra da letra “b” retromencionada não tem aplicação para a hipótese de lançamento por homologação, cujo prazo decadencial é regulado pelo § 4º, do art. 150, que assinala o prazo de cinco anos a contar da ocor- rência do fato gerador. Expirado esse prazo sem que a Fazenda tenha se pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo.
As decisões judiciais do STJ que consideram o prazo de dez anos para a consumação do prazo decadencial, somando o prazo do § 4º do art. 150 do CTN com aquele referido no inciso I do art. 173, implicam inovação da legislação positiva, negando vigência ao citado § 4º que, com lapidar clareza, indicou como marco inicial do prazo decadencial de cinco anos a data da ocorrência do fato gerador. Aliás, conforme já escrevemos “a soma dos prazos das duas modalidades de lançamento, levada em conta por alguns jul- gados, conduzindo à tese do prazo decenal, contém erro aritmético”5. De fato, a soma
4 Muitos autores se insurgem contra essa disposição sustentando que a decadência não comporta interrupção nem suspensão. A lei, por certo, não está presa à doutrina. O § 4º, do art. 240 do CPC vigente, por exemplo, estabeleceu um caso de interrupção do prazo decadencial com efeito retroativo aplicável aos demais prazos extintivos previstos em lei. Contudo, não há negar que esse termo inicial para a decadência é ilógico por se reportar à data da decisão anulatória do lançamento, que nada tem a ver com a data da ocorrência do fato gerador, a qual dá nascimento à obrigação tributária. Essa regra deve ser interpretada com intensa restrição, no sentido de tornar juridicamente irrelevante qualquer decisão que venha a anular o lançamento após decorrido o prazo quinquenal, sob pena de deixar aberto um caminho para a Fazenda aniquilar o instituto de decadência.
5 Cf. nosso Direito financeiro e tributário. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 630.
desses dois prazos perfaz 11 anos porque o prazo de cinco anos somente passa a fluir a partir do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado. Felizmente, o STJ alterou seu entendimento a partir do julgamento dos Embargos de Divergência no Resp nº 101.407/SP, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ de 8-5-2005 adequando-se ao direito legislado. Em seu novo posicionamento o STJ editou a Súmula nº 436 do seguinte teor: “A entrega de declaração pelo contribuinte, reconhecendo o débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do Fisco”.
Na realidade, somente a homologação expressa pelo fisco ou o decurso do pra- zo de cinco anos constitui definitivamente o crédito tributário, do contrário impos- sibilitará o exercício da denúncia espontânea de que cuida o art. 136 do CTN, para rerratificar informações eventualmente prestadas de forma incorreta em prejuízo da Fazenda.
No lançamento por homologação, impropriamente denominado autolançamento, por alguns autores, a homologação da atividade exercida pelo sujeito passivo de for- ma expressa ou tácita constitui o crédito tributário e ao mesmo tempo o extingue em razão de seu pagamento antecipado. Eventual diferença que vier a ser constatada pelo fisco deverá ser objeto de lançamento de ofício, porém, sempre no prazo do § 4º, do art. 150 do CTN. A fixação da modalidade de lançamento está sob reserva de lei, descabendo à autoridade administrativa convolar uma modalidade em outra, qualquer que seja a razão.
- Da prescrição
Dispõe o art. 174 do CTN:
Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em
cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.
Parágrafo único. A prescrição se interrompe:
- – pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal;
- – pelo protesto judicial;
- – por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
- – por qualquer ato inequívoco ainda que extrajudicial, que impor-
te em reconhecimento do débito pelo devedor.
Aqui as discussões nos campos doutrinário e jurisprudencial são intermináveis quan- to ao início da contagem do prazo prescricional, não reconhecendo o instituto do lan- çamento como o marco divisor entre a decadência e a prescrição que sucede aquela no tempo de forma imediata sem qualquer hiato.
Autores de renome nacional sustentam que o procedimento administrativo do lan- çamento só se encerra no caso de impugnação do sujeito passivo com a final manifestá- vel da Administração, quando se opera a coisa julgada administrativa, constituindo-se, definitivamente, o crédito tributário. Nesse sentido, escreve Hugo de Brito Machado, para quem o prazo da prescrição “é contado da constituição definitiva do crédito, isto é, da data em que não mais admita a Fazenda Pública discutir a seu respeito, em
procedimento administrativo”6. Impugnado o lançamento, há suspensão da exigibilidade do crédito nos termos do inciso III, do art. 151 do CTN, pelo que a execução fiscal não poderia ser ajuizada. E se a Fazenda está impedida de cobrar o crédito, não poderia es- tar fluindo contra ela o prazo prejudicial a essa cobrança. É o posicionamento externado pelo renomado Hugo de Brito Machado em outra passagem de seu livro:
[…] Como o exercício do direito de ação para cobrar o crédito tri- butário depende da exigibilidade deste, são causas de suspensão da prescrição, todas aquelas que suspendem a exigibilidade do crédito tributário, das quais tratamos nos comentários ao art. 151.7
Outros autores seguem na mesma linha de raciocínio. Na verdade, há uma con- fusão entre o procedimento administrativo do lançamento e o processo administrativo tributário, e, entre a suspensão da exigibilidade do crédito tributário e a suspensão da prescrição, como veremos mais adiante.
Ademais, os autores que sustentam a tese da interrupção ou da suspensão do prazo prescricional alegam que enquanto não houver esgotamento dos recursos previstos em lei, sempre haverá possibilidade de modificação parcial ou total do crédito tributário apurado (constituído) pelo lançamento, pelo que não se pode ter por constituído defini- tivamente o crédito tributário de sorte a deflagrar o início do prazo prescricional.
Parecem impressionantes à primeira vista a tese da fluência do prazo prescricional apenas após conclusão final do processo administrativo tributário, aparentemente aga- salhada pela Súmula Vinculante nº 24 do STF para efeitos penais: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo8 do tributo”.
Antes dessa Súmula Vinculante, a jurisprudência do STF já consagrava a tese de que o prazo de caducidade (prazo decadencial) se inicia com a ocorrência do fato gerador, ao passo que o de prescrição se inicia com o lançamento que constitui o crédito tributário. Contudo, assinalava que pendente a discussão administrativa, não tem início a fluência do prazo prescricional.9
Na jurisprudência do STJ, a matéria também não está pacificada. Existem decisões conflitantes até a final uniformização da sua dúbia e espantosa evolução jurisprudencial, como se verificam das ementas abaixo:
EXECUÇÃO FISCAL – AUTO DE INFRAÇÃO – INÍCIO DO PRAZO PRES- CRICIONAL – TÉRMINO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO – É pacífico
no âmbito desta Corte Superior que a interposição de recurso ad- ministrativo tem o efeito de suspender a exigibilidade do crédito tributário, obstando o início do prazo da prescrição, o qual passa a fluir somente após o respectivo julgamento. Precedentes. Agravo Regimental improvido. (AgRg no Resp 108811-SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJE 24-3-2009).
6 Curso de direito tributário. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 223.
7 Comentários ao código tributário nacional. São Paulo: Atlas, 2005. v. III, p. 568.
8 Veremos mais adiante que o CTN não prevê a figura do lançamento provisório.
9 RE nº 91019/SP, Rel. Min. Moreira Alves; Ag 113.044/RJ – Rel. Min. Aldir Passarinho.
Acolheu-se a tese da suspensão concomitante da exigibilidade do crédito tributário e da suspensão do prazo da prescrição. Esse aspecto fica bem claro com a transcrição do seguinte trecho do v. Acórdão:
[…] Tampouco ocorreu a prescrição, pois entre a notificação da infra- ção (31.10.1983) e o resultado final do processo administrativo em, 11.7.1995, o prazo prescricional estava suspenso, por força do art. 151, III, do Código Tributário Nacional. Sendo certo que a empresa foi citada no dia 16.4.1997 e o sócio em 29.7.1997, razão pela qual o débito não está prescrito (sic, fls. 5 do v. Acórdão).
Ora, se o prazo da prescrição ficou suspenso por força da suspensão da exigibilida- de do crédito, como afirmado no v. Acórdão, é imperativo lógico que esse prazo estava fluindo até então. Proclamou-se, portanto, a tese da suspensão do prazo da prescrição.
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. DIES A QUO DO PRAZO PRESCRICIONAL. DECISÃO FINAL NA ESFERA ADMINISTRATIVA. CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. OCORRÊNCIA DE ERRO MATERIAL. IRRELEVÂNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. INO- CORRÊNCIA.
- Consoante o cânone do art. 174 do CTN, o prazo prescricional começa a ser contado da data definitiva da constituição do crédito tributário. A existência de discussão administrativa a respeito do crédito tributário obsta sua constituição definitiva, interrompendo a contagem do prazo prescricional, que tão somente reinicia-se com a manifestação defini- tiva da autoridade administrativa. (Precedentes: REsp 396.699 – RS, Relator Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, 4ª Turma, DJ 15 de abril de 2002; Resp 190.092 – SP, Relator Ministro FRANCIULLI NETTO, Segunda Turma, DJ de 1º de julho de 2002)” (Resp nº 751132/RS, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJ de 15-10-2007, p.229).
Neste segundo julgado, o STJ, baseado em outros precedentes, sustenta que o prazo prescricional é interrompido com a apresentação da impugnação administrativa, somente reiniciando o seu curso com a final manifestação da autoridade administrativa, porque a existência de discussão administrativa acerca do crédito tributário obsta sua constituição definitiva. Proclamou-se aqui a tese da interrupção da prescrição que difere da suspensão.
Existem, ainda, outros julgados que misturam a decadência com a prescrição, es- tabelecendo uma contradição inafastável, como é o caso da ementa abaixo transcrita:
TRIBUTÁRIO – DECADÊNCIA E PRESCRIÇÃO.
- A antiga forma de contagem do prazo prescricional, expressa na Súmula 153 do extinto TFR, tem sido hoje ampliada pelo STJ, que adotou a posição do
- Atualmente, enquanto há pendência de recurso administrativo, não se fala em suspensão do crédito tributário, mas sim em um hiato que
vai do início do lançamento, quando desaparece o prazo decadencial,
até o julgamento do recurso administrativo ou a revisão ex-officio.
- Somente a partir da data em que o contribuinte é notificado do resultado do recurso ou da sua revisão, tem início a contagem do prazo
- Prescrição intercorrente não ocorrida, porque efetuada a citação
antes de cinco anos da data da propositura da execução fiscal.
- Recurso especial (REsp 435.896/SP, Rel. Ministra Eliana
Calmon, DJ 20-10-2003).
Ora, não cabe equiparar a decisão administrativa final, com a revisão ex-officio do lançamento, hipótese em que se reabre o prazo de impugnação ou recurso, suspendendo ou interrompendo o curso da prescrição segundo a jurisprudência da Corte Especial. Re- visão de ofício, que é feita pela autoridade administrativa fiscal, não se confunde com a revisão do lançamento decorrente de impugnação ou recurso do sujeito passivo. Outros- sim, afirmar que “não se fala em suspensão da exigibilidade do crédito” na pendência de recurso administrativo é revogar o disposto no inciso III, do art. 151 do CTN. Finalmente, é incorreto afirmar que “desaparece o prazo decadencial, até o julgamento do recurso administrativo ou a revisão ex-officio”, pois, efetuado o lançamento no quinquídio legal não mais se cogita de prazo decadencial. A revisão de ofício, a seu turno, só pode ser efetuada dentro do prazo decadencial de cinco anos. E mais, embora afirmado no v. Acórdão, certamente não é esse o posicionamento adotado pela Suprema Corte do País.
Por fim, o STJ uniformizou a sua jurisprudência no julgamento levado a efeito sob o rito do art. 543-C do CPC (art. 1.036 do CPC/2015) no sentido de que o prazo prescri- cional começa a fluir somente a partir da notificação do resultado do recurso ou da sua revisão, conforme ementa seguinte:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. IMPUGNAÇÃO DE DÉBITO TRIBUTÁRIO NA VIA ADMINIS- TRATIVA. SUSPENSÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 151, III, E 174 DO CTN. ACÓRDÃO RECORRIDO. REVISÃO DE EN- TENDIMENTO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA 7/STJ. INOBSER- VÂNCIA DAS NORMAS LEGAIS. AFRONTA À BOA-FÉ OBJETIVA. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. EXAME PREJUDICADO.
- Não se configura ofensa ao 535, II, do Código de Processo Civil, uma vez que o Tribunal de origem julgou integralmente a lide e so- lucionou a controvérsia, tal como lhe foi apresentada. Não é o órgão julgador obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazi- dos pelas partes em defesa da tese que apresentaram. Deve apenas enfrentar a demanda, observando as questões relevantes e impres- cindíveis à sua resolução. Nesse sentido: REsp 927.216/RS, Segunda Turma, Relatora Ministra Eliana Calmon, DJ de 13/8/2007; e REsp 855.073/SC, Primeira Turma, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, DJ de 28/6/2007.
- A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 113.959/RJ, submetido ao rito do art. 543-C do CPC, firmou o entendimento de que “o recurso administrativo
suspende a exigibilidade do crédito tributário, enquanto perdurar o contencioso administrativo, nos termos do art. 151, III do CTN, desde o lançamento (efetuado concomitantemente com auto de infração), momento em que não se cogita do prazo decadencial, até seu julga- mento ou a revisão ex officio, sendo certo que somente a partir da notificação do resultado do recurso ou da sua revisão, tem início a contagem do prazo prescricional, afastando-se a incidência da pres- crição intercorrente em sede de processo administrativo fiscal, pela ausência de previsão normativa específica” (REsp 1.113.959/RJ, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe de 11/03/2010).
- A intempestividade do recurso administrativo não perfaz contexto fático juridicamente relevante para afastar o entendimento firmado no STJ acerca do Precedentes: AgRg no AgRg no REsp 1.478.651/ SP, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 13/3/2015; RCD no AREsp 623.936/RO, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Tur- ma, DJe 19/2/2015; AgRg no Ag 1.094.144/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 4/6/2009).
- O acórdão recorrido examinou todos os pontos relevantes para a solução da controvérsia, indicando com clareza a data de peticiona- mento administrativo e os termos considerados para a contagem do lustro Para infirmar a conclusão a que chegou a instân- cia ordinária, faz-se necessário o reexame do conjunto fático-proba- tório, medida que encontra óbice na Súmula 7 do STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”
- A inobservância das normas legais para ver-se livre do pagamento de tributo afronta a boa-fé objetiva, nos termos do brocardo venire contra factum
- Fica prejudicada a análise da divergência jurisprudencial quando a tese sustentada já foi afastada no exame do Recurso Especial pela alínea “a” do permissivo
- Agravo Regimental não (AgRg no AREsp 705.069/RJ, Rel.
Ministro HERMAN BENJAMIN, DJe 04/02/2016).
Esse derradeiro julgado, sob o rito de recurso repetitivo, continua equiparando de- cisão final que termina o contencioso administrativo com a revisão de ofício de que trata o inciso III, do art. 145 do CTN, uma das causas da alteração do crédito tributário cons- tituído pelo lançamento. Nessa hipótese, o prazo de impugnação ou recurso é devolvido ao sujeito passivo. O certo é que a Fazenda ficou com o prazo de 5 (cinco) anos somente para inscrever o crédito tributário na Dívida Ativa e ajuizar a execução fiscal, ambas as medidas procedidas de forma eletrônica, o que pode ser feito em questão de horas.
Pela jurisprudência do STJ não corre o prazo de decadência, nem de prescrição na pendência de recurso administrativo, conduzindo a uma ideia de crédito tributário provisório que conflita abertamente com a noção de tributo, que é um conceito certo e determinado. Não pode existir exigência de tributo que não seja de valor certo e de- terminado.
O cerne da discussão situa-se em torno do aspecto temporal da constituição defini- tiva do crédito tributário pelo lançamento que nada tem a ver com a sua inalterabilidade para efeito de contagem do prazo prescricional, como veremos no tópico seguinte.
- Decadência e prescrição tributária conforme prescrições do CTN
O CTN separa nitidamente o prazo decadencial de cinco anos para constituição do crédito tributário, do prazo prescricional de cinco anos para cobrança deste crédito.
Antes do lançamento tributário, o prazo é de decadência. Depois do lançamento, o prazo é de prescrição, não havendo hiato entre o termo final de uma e o termo inicial da outra: a prescrição sucede imediatamente no tempo a decadência, conforme veremos.
Quanto ao lançamento como marco divisor dos dois institutos jurídicos não há di- vergência doutrinária ou jurisprudencial. A discussão situa-se na questão de saber se há ou não um hiato entre a decadência e a prescrição.
Procuraremos demonstrar, com base na interpretação sistemática do CTN, que as dúvidas podem ser sanadas com relativa simplicidade definindo-se o momento exato da constituição do crédito tributário, tal como prescrito no direito positivo. Prescreve o art. 142 do CTN:
Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa cons- tituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o proce- dimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato ge- rador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vincula- da e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.
Consoante escrevemos,
[…] o lançamento é um procedimento administrativo no sentido de que um agente capaz procede à averiguação da subsunção do fato concreto à hipótese legal (ocorrência do fato gerador), a determina- ção da matéria tributável mediante a valoração dos elementos que integram aquele fato concreto (base de cálculo), a aplicação da alí- quota prevista na lei para a apuração do montante do tributo devido, a identificação do sujeito passivo, e, sendo o caso, a propositura de penalidade cabível. Esta série de atos pode ser praticada, inclusive, em diferentes dias, mas no final da verificação dos requisitos previs- tos no art. 142 do CTN haverá sempre um documento exteriorizador daqueles atos, que é o lançamento eficiente para a constituição defi- nitiva do crédito tributário.10
O procedimento administrativo do lançamento, que é obrigatório e vinculado, tem-
-se por definitivamente encerrado com a notificação do seu resultado (do lançamento) ao sujeito passivo, quando, então, opera-se a constituição definitiva do crédito tribu- tário, nos termos do art. 145 do CTN acarretando, ipso facto, a incidência do art. 174, caput, do CTN.
10 Cf. KIYOSHI Harada; HARADA, Marcelo Kiyoshi. Código tributário nacional comentado. 2. ed. São Paulo: Rideel, 2016. p.220.
Prescreve o art. 145 do CTN:
Art. 145. O lançamento regularmente notificado ao sujeito só pode
ser alterado em virtude de:
I – impugnação do sujeito passivo; II – recurso de ofício;
III – iniciativa de ofício da autoridade administrativa, nos casos pre- vistos no artigo 149.
Esse art. 145 fixa a inalterabilidade do crédito tributário pelo lançamento com a ressalva das três hipóteses retromencionadas em perfeita consonância com o disposto no art. 141 do CTN, in verbis:
Art. 141. O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispen- sadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei, à sua efetivação ou as respectivas garantias.
Os arts. 141 e 142 do CTN estão afirmando que o crédito tributário constituído pelo lançamento é definitivo, porque do contrário não caberia falar em sua modificação ou al- teração. Não se modifica ou se altera o que ainda está em vias de constituição definitiva. Enquanto não ultimado o procedimento do lançamento tributário com a notificação de seu resultado ao sujeito passivo, é aquele lançamento passível de alteração ou modifica- ção pelo agente administrativo lançador (auditor fiscal, inspetor fiscal, agente de rendas etc.), para corrigir eventual erro de enquadramento legal ou erro aritmético. Depois da notificação, só é possível a alteração do crédito tributário constituído nas hipóteses do art. 145 do CTN.
O art. 141 do CTN está a dizer, de forma didática, que o crédito tributário consti- tuído pelo lançamento somente:
- se modifica nos casos do 145 do CTN;
- só se extingue nos casos do 156, do CTN, entre os quais a prescrição;
- só tem a sua exigibilidade suspensa nos casos de 151 do CTN;
- só pode ser excluído nas hipóteses do 175 do CTN.11
Fora dessas quatro hipóteses, diz o parágrafo único desse art. 141, o crédito tribu- tário constituído pelo lançamento notificado ao contribuinte não pode ter sua efetivação ou as respectivas garantias dispensadas sob pena de responsabilidade funcional do agen- te administrativo competente.
A tese do início ou do reinício da fluência do prazo prescricional com a ultimação do processo administrativo, em que se discute o crédito tributário, incorre em dois equívocos:
11 No caso de isenção depende de a lei conferir ou não efeito retroativo, o que equivale a uma remissão.
- A confusão entre procedimento administrativo do lançamento, que termina com a notificação do lançamento ao sujeito passivo, e o processo administrativo tributário, que se instaura com a apresentação de impugnação pelo sujeito passivo como meio de solução administrativa da
Se o sujeito passivo notificado paga o crédito tributário constituído, este se extin- gue de forma definitiva não dando margem ao relançamento relativamente ao período fiscalizado e apurado, sob o pretexto de que aquele crédito extinto pelo pagamento era provisório. Se impugnado, instaura-se o processo administrativo tributário para dirimir a controvérsia tal qual acontece em um processo judicial.
- A confusão entre definitividade do crédito tributário constituído pelo lançamen- to, e a inalterabilidade do crédito tributário que são coisas
Exatamente porque definitiva a constituição do crédito tributário pelo lançamento é que o CTN possibilita sua alteração parcial ou total por via de impugnação administra- tiva, recurso ordinário e eventual recurso especial perante o órgão de cúpula do CARF ou dos TITs estaduais, ou órgãos equivalentes.
Ainda que finalizada a discussão administrativa do crédito tributário, este poderá vir a ser alterado parcial ou totalmente por decisão judicial. No caso, dever-se-ia aguar- dar o prazo de prescrição da ação anulatória para iniciar-se a contagem do prazo pres- cricional da ação de cobrança do crédito tributário? Dever-se-ia aguardar, igualmente, o término de eventual prazo de ação rescisória? Não há no CTN qualquer dispositivo que autorize interpretar que o prazo prescricional começa afluir a partir da inalterabilidade do crédito tributário, pelo contrário, manda contar a partir de sua constituição defini- tiva, que se opera com a notificação do sujeito passivo. Depois de notificado o sujeito passivo da obrigação tributária, não há mais lugar para a atuação da autoridade admi- nistrativa lançadora (auditor fiscal, agente fiscal de rendas ou inspetor fiscal), entrando em ação os agentes públicos ligados aos órgãos julgadores da Administração Tributária, lembrando-se que nos órgãos colegiados de segunda instância há participação de repre- sentantes dos contribuintes.
Ora, a Fazenda tem o prazo elástico de cinco anos para ultimar o processo administrativo tributário, dos quais o sujeito passivo só se utiliza de 75 dias no má- ximo: 30 dias para impugnar; 30 dias para recurso ordinário, e 15 dias para eventual recurso especial, quando cabível. Na verdade, tanto os prazos de decadência como o de prescrição deveriam sofrer redução, tendo em vista a nova realidade trazida pelo avanço de recursos da informática, que dispensam os morosos procedimentos manuais de fiscalização, de lançamento e de julgamento dos processos administra- tivos, hoje, digitalizados.
Outrossim, a tese de que não pode estar fluindo o prazo prescricional para a co- brança do crédito tributário se a Fazenda estiver impedida de ajuizar a cobranças, por causa da suspensão da sua exigibilidade (art. 151, III do CTN) não pode prosperar, não só ante os argumentos retro, como também porque a morosidade ou a rapidez na ultima- ção do processo administrativo depende apenas da Fazenda. Igualmente, se a Fazenda se omitir no ato de inscrição na dívida ativa, ela estará impedida de ajuizar a execução fiscal que reclama a junção da CDA na petição inaugural.
Na eventualidade de a Fazenda, em caso excepcional, não conseguir terminar o processo administrativo apesar de seus esforços, deverá ajuizar o protesto judicial pre- visto no inciso II, do parágrafo único, do art. 174 do CTN, única hipótese de aplicação
deste procedimento judicial, pois se a exigibilidade não estiver suspensa cabe à Fazenda cobrar o crédito, e não protestar.
Nesse sentido é a lição preciosa do saudoso mestre Ruy Barbosa Nogueira, para quem a revisão do lançamento decorrente da impugnação do sujeito passivo
[…] tem que estar concluída dentro do prazo de prescrição que, pre- cisamente para possibilitar o trabalho procedimental de reexame, suspende a exigibilidade por tempo considerado pela vontade obje- tiva da lei, não só como suficiente para terminá-lo (cinco anos), mas ainda com a flexibilidade de sua interrupção judicial, se necessária, para ser terminado nesse trabalho.12
- Necessidade de melhor explicitar o sentido do art. 145 do CTN para cessar as divergências intermináveis
A tese da constituição definitiva do crédito tributário, que deflagra a contagem do prazo prescricional apenas com a decisão definitiva no processo administrativo, está arraigada de tal forma que a maioria dos doutrinadores e dos aplicadores da lei não se dispõe a repensar a matéria. Sustentar o contrário só servirá para consolidar mais e mais a tese oposta já considerada como verdade incontestável, tanto é que decidida pelo STJ em caráter de recursos repetitivo. Na verdade, esse posicionamento inova a lei vigente e esbarra nos seguintes argumentos incontestáveis, ofendendo a ordem jurídica global:
1º – confusão entre finalização do procedimento administrativo do lançamento e o
término do processo administrativo tributário, que são coisas diversas, como já vimos;
2º – o reconhecimento da existência de um crédito tributário provisório, contra- riando o raro conceito determinado em Direito, como é o caso de tributo. Ninguém é obrigado a pagar um valor aproximado a título de crédito tributário; quem o exige deve apontar o exato valor envolvendo quantia líquida e certa, computando-se os centavos se for o caso, vedado o seu arredondamento para mais ou para menos;
3º – implica conferir à Fazenda eficácia jurídica a seu ato potestativo, o que pode conduzir ao arrastamento do processo administrativo por 10, 15 ou 20 anos sem sua ultimação, a menos que o CTN venha a prever a figura da prescrição intercorrente, re- conhecida por alguns julgados;
4º – torna inócuo o disposto no inciso II, do parágrafo único, do art. 174 do CTN,
que fica absolutamente sem qualquer utilidade, contrariando as regras da hermenêutica;
5º – contraria os expressos termos do art. 142 do CTN, combinado com o inciso XXII, do art. 37 da CF no sentido de que o ato de lançamento tributário só pode ser pra- ticado por servidor efetivo, integrante de carreira específica. Não há como pretender que o CARF, um colegiado, no qual há representantes de contribuintes, promova a cons- tituição definitiva do crédito tributário. A função de constituir o crédito tributário pelo lançamento é absolutamente incompatível com a função de julgar;
12 Curso de direito tributário. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 298.
6º – implica afronta ao inciso IX, do art. 156 do CTN que prescreve a extinção do crédito tributário pela decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa favorável ao sujeito passivo. Ora, só se pode extinguir algo se ele já estiver definitivamente constituído desde o lançamento, descabendo falar-se em extinção de crédito tributário inexistente. O que se poderia cogitar é de extinção do procedimento administrativo tendente à constituição do crédito tributário em virtude, por exemplo, da concessão de segurança no mandamus impetrado contra a autoridade fiscal. De igual modo, quando o inciso X, do art. 156 do CTN prescreve que extingue o crédito tributário a decisão judicial passada em julgado, evidentemente, trata-se de de- cisão favorável ao contribuinte. Cabe ao tribunal administrativo ou ao Poder Judiciário desconstituir o crédito tributário, nunca constituir, porque isto é atribuição privativa da autoridade administrativa competente (pessoa física), agente capaz na definição do art. 142 do CTN;
7º – por fim, a tese sob crítica conspira contra o princípio da segurança jurídica que fundamenta a decadência e a prescrição ao manter a espada de Dâmocles sobre a cabeça do contribuinte por tempo indefinido: não corre o prazo decadencial porque o lançamento já foi efetuado, nem flui o prazo prescricional porque a prescrição foi sus- pensa ou interrompida pela impugnação apresentada pelo sujeito passivo da obrigação tributária e o processo administrativo ainda não foi finalizado.
Em que pesem todos esses argumentos, a discussão somente se encerrará com me- lhor explicitação do art. 145 do CTN que deveria ser alterado para os seguintes termos:
[…] O lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo cons- titui definitivamente o crédito tributário e só pode ser alterado em virtude de:
I – impugnação do sujeito passivo; […].
Enquanto não ocorrer a alteração legislativa nos termos retropropostos, a jurispru- dência continuará barrando a fluência do prazo prescricional na pendência da discussão administrativa do crédito tributário constituído pelo lançamento, conferindo à Fazenda o prazo de 5 (cinco) anos só para proceder a inscrição do crédito tributário na Dívida Ativa e aparelhar a execução fiscal por meios eletrônicos. Não é um prazo em demasia? Não é um estímulo ao ócio dos servidores da Administração Tributária? É compatível esse prazo com o princípio da razoabilidade, um limite imposto à ação do próprio legislador?
- Conclusões
- O lançamento é o marco divisor entre a decadência e a prescrição: antes dela o prazo é de decadência para constituir o crédito tributário, depois dela o prazo é de prescrição para cobrança do crédito tributário constituído. Não há hiato entre a deca- dência e a prescrição.
- O prazo de prescrição se inicia a partir da data da constituição definitiva do
crédito tributário (art. 174 caput do CTN).
- A constituição definitiva do crédito tributário ocorre com a notificação do lan- çamento ao sujeito passivo (arts. 141 e 145 do CTN).
- A prescrição só pode ser interrompida pelo protesto judicial (inciso II, do pa- rágrafo único, do 174 do CTN).
- Cabe aos agentes integrantes dos órgãos de fiscalização da Administração Tri- butária constituir o crédito tributário pelo lançamento e cabe aos agentes integrantes dos órgãos de julgamento dessa Administração julgar os processos administrativos tribu- tários. São duas funções distintas, pelo que eventual agente fiscal comissionado no cargo de juiz do CARF deve guardar independência e
- A divergência doutrinária e jurisprudencial acerca do termo inicial do prazo prescricional somente poderá ser superada com a melhor explicitação do sentido do 145 do CTN, conforme redação proposta no corpo deste estudo.
Bibliografia
HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
HARADA, Kiyoshi; HARADA, Marcelo Kiyoshi. Código Tributário Nacional comentado. 2. ed. São Paulo: Rideel, 2016.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
. Código Tributário Nacional comentado. São Paulo: Atlas, 2005. v. III. NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1987.
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Portais da transparência e o controle social das
finanças públicas
Marcelo Guerra Martins1
Juiz federal no Estado de São Paulo
Resumo: o texto discorre acerca do princípio constitucional da transparência es- tatal, bem como identifica os tipos de controle das finanças públicas previstos na Cons- tituição, com destaque para o inovador controle social, ferramenta que aperfeiçoa a dinâmica democrática e o exercício da cidadania ao induzir governantes a adotarem posturas cada vez mais impessoais e republicanas. Essa conjuntura é enfocada sob a égide da chamada era da Sociedade da Informação, com destaque para a crescente fa- cilidade de obtenção de dados por meio dos Portais da Transparência, acessíveis através da internet, o que robustece a eficácia do controle social.
- Introdução
O primeiro e mais basilar pressuposto dos economistas é o de que os bens e recursos em geral são escassos.2 Sendo assim, visto que não há como atender a todas as necessi- dades e desejos das pessoas, as sociedades devem necessariamente decidir o que será produzido, por quais mecanismos isto se fará e, o mais importante, como será repartida a produção entre os indivíduos.
É preciso decidir também como serão suportadas as despesas comuns, ou seja, aquelas que a todos beneficiam, tais como defesa e segurança, construção de estradas, avenidas, ruas, praças, escolas e hospitais, iluminação pública, preservação do meio ambiente, etc., cujo financiamento normalmente se faz de modo obrigatório por meio da tributação.
Evidentemente, tanto a arrecadação tributária quanto os demais componentes das finanças públicas (receitas advindas de outras fontes) são recursos igualmente escassos. Portanto, o fato de “pertencerem a todos” torna imperiosa a existência de mecanismos que permitam aos cidadãos-contribuintes controlar os gastos públicos, ou seja, saber como e onde estão sendo aplicados os recursos que entregaram em prol da sociedade.
Aliás, a preocupação com o retorno do que foi arrecadado não é nova. Nos idos de 1762, no Contrato social, Jean Jacques Rosseau3 já asseverava que: “Não é pela
1 Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo – USP. Professor do Curso de Mestrado em Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU. Juiz Federal titular da 17ª Vara de São Paulo. Convocado no Supremo Tribunal Federal como Juiz Auxiliar e Instrutor no Gabinete do Ministro Ricardo Lewandowski (2009-2012).
2 Segundo N. Gregory Mankiw, “Escassez significa que a sociedade tem recursos limitados e, portanto, não pode produzir todos os bens e serviços que as pessoas desejam ter (Introdução à economia. Tradução de Allan Vidigal Hastings. São Paulo: Thom- son, 2007. p. 4). No mesmo sentido, José Paschoal Rossetti (Introdução à economia. 12. ed. São Paulo: Atlas, 1987. p. 115).
3 Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 100. (Os Pensadores, v. XXIV).
quantidade de tributos que se deve medir o ônus, mas sim pelo caminho que têm de fazer para voltar às mãos de que saíram”. Nada mais republicano, é preciso concordar.
Qualquer controle mais efetivo nessa seara somente é possível através de prévia (e periódica) prestação de contas por parte de governantes e administradores públicos. Com isso se privilegia a cidadania e faz despertar o interesse de muitos por fiscalizar mais de perto o trato das finanças públicas.
Aliás, essa situação foi percebida pelos franceses já no século XVIII. Tanto que fize- ram constar expressamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1798 que: “Art. 15 A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração”4.
Atualmente, ainda mais considerando o advento da era da Sociedade da Informa- ção, não se pode admitir Estado de Direito ou Estado Democrático de Direito que res- trinja informações aos cidadãos acerca de como são geridas as finanças públicas. É certo também que não é suficiente informar, mas é indispensável que os dados fornecidos sejam confiáveis e compreensíveis.
Portanto, não basta que os governos atuem da forma mais republicana, impessoal e democrática possível. É preciso que demonstrem estarem agindo dessa maneira, ou seja, é necessário que exista absoluta transparência por parte da Administração Pública em relação às questões fiscais e tributárias. Nesse contexto, é fato que as redes ele- trônicas, com destaque para a internet, ganham cada vez mais espaço nessa missão de informar o cidadão.
Aqui se insere a questão tratada no presente texto, ou seja, o controle social das fi- nanças públicas, assim chamado porque exercido por indivíduos e entidades organizadas da sociedade civil, e o papel desempenhado pelos chamados Portais da Transparência, pioneiramente previstos na Lei 9.755/98.
É o que passamos a discorrer, ficando advertido, desde logo, que não pretende- mos esgotar ou encerrar o tema, ao contrário, críticas e contribuições são sempre bem-vindas.
- O princípio constitucional da transparência
Um dos mais relevantes pressupostos da democracia é a transparência governa- mental em todos os aspectos. É que a transparência permite que os cidadãos percebam com maior acuidade as condições econômicas e sociais do país em que habitam, bem como derrama luz sobre a situação das finanças públicas e respectiva gestão. Com isso, ao menos em tese, ficam os indivíduos melhor aparelhados para fazerem escolhas mais racionais por ocasião das eleições.
Assim, em suma, aprimorara-se o exercício da cidadania que se liga ao sentimento de pertença a certo grupamento humano, fenômeno já presente na antiguidade, confor- me retratado por Fustel de Coulanges5. Daí que a falta de transparência governamental é incompatível com a dinâmica da democracia.
4 Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da–
-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html>.
5 A cidade antiga. 8. ed. Lisboa: Livraria Clássica, 1954. v. 2, p. 295-296.
Entra em cena, aqui, portanto, o princípio da transparência que, na lição de Tainah Simões Sales6, é materializado “no dever, a ser observado pela Administração Pública, de divulgar e prestar contas de forma clara, objetiva e atualizada, a fim de que o cidadão possa se apropriar das informações, discutir e exigir o que entender de direito”.
O princípio da transparência, ainda que não expressamente previsto, encontra-se efetivamente implícito na Constituição Federal de 1988. Pode ele ser deduzido, segundo indica Fabrício Motta7, “pelos subprincípios da publicidade, da motivação e da participa- ção popular na gestão administrativa”. Em sentido análogo, Têmis Limberger8 entende a transparência como “uma interação do princípio da publicidade conjugado com o direito à informação (art. 5º, XXXIII) e o princípio democrático”.
Também é possível enfocar o princípio da transparência como uma versão do prin- cipio da moralidade administrativa, segundo a lição de Maria Cristina Cesar de Olivei- ra e Octávio Cascaes Dourado Júnior9. Em resumo, segundo informa Ramiro Gonçalves Sales10, a transparência é uma tendência do direito administrativo contemporâneo.
Como uma especificidade do princípio da transparência, é possível vislumbrar, na Constituição de 1988, também de maneira implícita, o princípio da transparência fiscal, em decorrência dos princípios republicano e democrático. É o que acentua Fabrício Motta.11
De fato, no que tange às finanças públicas, ao lado dos princípios da publicidade e da moralidade administrativa, ambos expressos no caput do art. 37 da Constituição de 1988, a transparência fiscal encontra guarida em outros preceitos, como, por exemplo, o art. 162, in verbis:
Art. 162. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios di- vulgarão, até o último dia do mês subseqüente ao da arrecadação, os montantes de cada um dos tributos arrecadados, os recursos re- cebidos, os valores de origem tributária entregues e a entregar e a expressão numérica dos critérios de rateio.
Parágrafo único. Os dados divulgados pela União serão discriminados por Estado e por Município; os dos Estados, por Município.
Merece também realce a previsão do § 3º do art. 165 da Carta Maior, cuja redação determina que “O Poder Executivo publicará, até trinta dias após o encerramento de cada bimestre, relatório resumido da execução orçamentária”.
6 Acesso à informação, controle social das finanças públicas e democracia: análise dos portais da transparência dos estados brasileiros antes e após o advento da Lei n. 12.527/2011. Direito Público, n. 48, p. 29, nov.-dez. 2012.
7 Publicidade e transparência nos 10 anos da lei de responsabilidade fiscal. In: CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de (Coord.). Lei de responsabilidade fiscal – ensaios em comemoração aos 10 anos da Lei Complementar nº 101/00. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 106.
8 Transparência administrativa e as novas tecnologias: o dever de publicidade, o direito de ser informado e o princípio demo- crático. Interesse Público, n. 39, p. 70, 2006.
9 O direito de acesso à informação e a lei de responsabilidade fiscal. In: SCAFF, Fernando Facury; CONTI, José Maurício (Coord.). Lei de responsabilidade fiscal 10 anos de vigência: questões atuais. Campinas: Conceito, 2010. p. 130.
10 O direito de acesso à informação pública administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 78.
11 Op. cit., p. 107.
Aliás, antes mesmo de 1988, a divulgação periódica de dados relativos às finanças públicas já havia sido prevista no art. 111, da Lei 4.320, de 17 de março de 1964, nos seguintes termos:
Art. 111. O Conselho Técnico de Economia e Finanças do Ministério da Fazenda, além de outras apurações, para fins estatísticos, de interês- se nacional, organizará e publicará o balanço consolidado das contas da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, suas autarquias e outras entidades, bem como um quadro estruturalmente idêntico, baseado em dados orçamentários.
No entanto, é certo que não basta aos governos divulgarem dados e informações. É preciso que esses elementos sejam confiáveis e, mais do que isto, compreensíveis aos cidadãos comuns,12 sob pena de prejudicar a formação de uma consciência fiscal nos indivíduos.
- Transparência fiscal versus ilusão fiscal
Dentro do contexto até agora desenvolvido, é de se intuir que governantes mal-
-intencionados procuram obscurecer a consciência fiscal dos cidadãos, com isso dificul- tando a averiguação de haver (ou não) uma correspondência razoável entre o que se entrega ao erário e o que o é ofertado de volta pelo Estado a título de serviços públicos e comodidades diversas.
Tais governantes, portanto, não possuem interesse em promover a transparência fiscal, pois, segundo explica Têmis Limberger13, o “fato da informação estar mais dispo- nível faz com que haja um maior cuidado com o trato do dinheiro público”.
O oposto da consciência fiscal é a chamada ilusão fiscal, que foi estudada pioneira- mente por Amilcare Puviani14, já no início do século XX. Segundo o autor, a ilusão fiscal implica numa compreensão errada a respeito do montante dos tributos pagos ou a serem pagos ao governo ou acerca da aplicação destes recursos. No mesmo sentido, em texto bem mais recente, para Roberto Dell´Anno e Paulo Mourão,15 “Ilusão fiscal ocorre toda vez que um contribuinte não percebe quanto paga ao Estado ou quanto dele recebe de volta”.
Assim, em resumo, a ilusão fiscal é uma questão ligada à percepção distorcida dos indivíduos de quanto efetivamente custa o Estado, destacando-se que este equívoco de avaliação pode ser dar tanto na questão da entrada dos recursos (a carga tributária) quanto na esfera da saída, ou seja, da aplicação das quantias arrecadadas.
12 É o que enfatizam Adauto Viccari Júnior e outros (In: CRUZ, Flávio (Coord.). Lei de responsabilidade fiscal comentada. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 183).
13 Op. cit., p. 71.
14 Teoria della iluzione finanziaria. Milano: Remo Sandron, 1903. p. 8. É fato, contudo, que a ilusão fiscal já havia sido per- cebida anteriormente no século XIX, mais precisamente em 1848 por John Stuart Mill, em relação aos chamados tributos indiretos. Em suas palavras: “Perhaps […] the money which [the taxpayer] is required to pay directly out of his pocket is the only taxation which he is quite sure that he pays at all. […] If all taxes were direct, taxation would be much more perceived than at present; and there would be a security which now there is not, for economy in the public expenditure” (apud Rupert Sausgruber e Jean Robert Tyran. Testing the Mill hypothesis of fiscal illusion).
15 Fiscal illusion around the world. Public Finance Review. n. 40, p. 271, fev. 2012. No original: “Fiscal illusion occurs every time a taxpayer does not realize how much he pays to the state or how much he receives from the state”.
Na ilusão fiscal da entrada, os contribuintes encontram-se submetidos a uma carga tributária maior do que percebem. Sentem estar pagando X, mas, na realidade, estão entregando ao governo X + Y. Noutro lado, a ilusão de saída é gerada pela dificuldade de as pessoas perceberem claramente o quanto e em que áreas estão sendo aplicados os recursos públicos. Trata-se, sem sombra de dúvida, de uma deficiência na transparência com o trato das finanças públicas.
Por conseguinte, a neutralização da ilusão fiscal, tanto de entrada quanto de saída, é fundamental para robustecer nos indivíduos o sentimento de também serem responsá- veis pelo financiamento do Estado, e, por isso, sentirem-se mais encorajados a exigir dos governantes posturas sempre impessoais e republicanas. Daí a importância da promoção do controle social, que será enfocado logo adiante.
Para finalizar, há um argumento de cunho pragmático que demonstra a necessidade de os governos serem transparentes em termos financeiros. Trata-se da relação existente entre o nível de ilusão fiscal presente em certo país e o seu estágio de desenvolvimento.
O trabalho de Paulo Mourão16 é pioneiro na proposta de criação de um índice de aferimento da ilusão fiscal. Referido índice é o resultado da combinação de quatro com- ponentes, cada um composto de uma série de dados relativos ao período entre 1960 e 2006, obtidos perante 68 países tidos como democráticos.
Segundo o autor,17 cada componente do índice é subdividido em diversos fatores, cada um com valores próprios, tais como: abertura da economia, porcentagem de votos inválidos, grau de confiança no governo e seu tamanho, criação de moeda, razão entre a tributação direta e indireta, tributação do lucro das empresas, porcentagem da dívida pública frente ao PIB, razão entre despesas correntes e de capital no orçamento18, por- centagem de transferências de capital nas despesas de capital19, etc. Como principais resultados, o trabalho apresenta:20
- tanto países desenvolvidos quanto em desenvolvimento reduziram o nível de ilusão fiscal entre 1960 e 2006;
- os países que apresentam os menores índices de ilusão fiscal são: Austrália, Lu- xemburgo, Holanda e Nova Zelândia. Noutra ponta, os maiores índices pertencem a: El Salvador, Guatemala, Honduras, Índia, Madagascar, Mali, Paquistão, Rússia e Sri Lanka;
- no período analisado (1960-2006), Bélgica, Itália, Portugal e Espanha reduziram a ilusão fiscal em mais de 50%;
- em 2006, em média, os países em desenvolvimento possuíam índices semelhan- tes de ilusão fiscal àqueles dos países desenvolvidos em
16 Towards a Puviani’s Fiscal Illusion Index. Hacienda Pública Española/Revista de Economía Pública, n. 187, abr. 2008.
17 Idem, p. 63-64.
18 As despesas correntes, em regra, visam manter o governo funcionando, por isso consideradas operacionais. São gastos que geralmente não tendem a proporcionar um aumento na capacidade produtora do país (v.g., remuneração dos funcionários públicos, pagamentos de juros, manutenção de prédios, material de consumo). Já as despesas de capital, de um modo geral, tendem a levar um aumento na capacidade produtora do país (v.g., construção de estradas, portos, aeroportos, escolas, usinas, linhas de transmissão, etc.).
19 As transferências de capital são remessas financeiras feitas em benefício de outras pessoas jurídicas (de direito público ou privado), independentemente de contraprestação direta em bens ou serviços. São auxílios ou contribuições para que os entes beneficiários os empreguem em suas despesas de capital.
20 Op.cit., p. 66 e seg.
Outro estudo que merece ser mencionado é o realizado conjuntamente por Roberto Dell´Anno e Paulo Mourão21 que, de modo semelhante ao anteriormente citado, trabalha com o tema da ilusão fiscal. As conclusões são muito semelhantes, ou seja, o nível de ilusão fiscal ordinariamente acompanha o estágio de desenvolvimento dos países.
No caso, segundo os autores, o patamar de ilusão fiscal máximo considerado equivale a 1,0 e o mínimo a 0,0. Verifica-se claramente a relação entre a ilusão fiscal e o nível de desenvolvimento dos países. Quanto menor a primeira, maior o segundo e vice versa.
Assim, por exemplo, enquanto em países como Noruega (NOR), França (FRA), Luxem- burgo (LUX) e Dinamarca (DNK) o índice de ilusão fiscal é menor do que 0,1, na República Dominicana (DOM), Bolívia (BOL), Paquistão (PAK) e Honduras (HND) ele se aproxima de 1,0. O Brasil (BRA) possui um índice de quase 0,7, conforme ilustra a figura abaixo:
O trabalho em referência ainda aponta:22
- altos níveis de ilusão fiscal estão efetivamente relacionados com o tamanho do déficit público (existência de orçamentos deficitários) e com a prevalência da tributação indireta sobre a direta (ou pessoal);
- a complexidade do sistema tributário também contribui para a ilusão fiscal;
- empresários e trabalhadores autônomos (self-employment) costumam possuir maior capacidade de avaliar os custos da tributação do que os empregados. Em última instância, isso pode influir no nível de ilusão fiscal do país, dependendo da razão entre esses dois tipos de trabalhadores;
- por outro lado, não há evidências suficientes para concluir que os níveis de ilusão fiscal se relacionam com índices de liberdade de imprensa ou a quantidade de pessoas portadoras de diploma de nível superior;
21 Fiscal illusion around the world. Public Finance Review, n. 40, fev. 2012.
22 Idem, p. 291.
- melhores práticas administrativas precisam ser implantadas pelos gover- nos, como, por exemplo, aumento da transparência nos relatórios e prestações de contas, além da criação de incentivos para maior participação popular nas decisões
Em complemento, segundo relata Têmis Limberger23, “A experiência de direito comparado aponta no sentido de que os países com informação mais transparente são os que apresentam menores índices de corrupção”, o que é bastante sugestivo consideran- do o atual momento atravessado pelo Brasil, no qual repetidos escândalos por corrupção de autoridades públicas são noticiados corriqueiramente na imprensa.
- Os tipos de controle sobre as finanças públicas
Como visto, a transparência governamental é essencial ao regime democrático. Mas apenas a transparência, por meio da divulgação de dados confiáveis e acessíveis ao pú- blico, não é suficiente. É indispensável também a existência de ferramentas de controle sobre a gestão financeira. Isso foi objeto de preocupação do constituinte de 1988 que previu três tipos de controle: o interno, o externo e o social, a seguir vistos.
O controle interno é exercido por meio de órgãos, secretarias, departamentos, etc., específicos de cada um dos Três Poderes e tem por objetivo, a teor do art. 74 da CF/88: (i) avaliar o cumprimento das metas previstas no Plano Plurianual (PPA), a execução dos programas de governo e dos orçamentos; (ii) comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração, bem como da aplicação de recur- sos públicos por entidades de direito privado; (iii) exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres do ente público; (iv) apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional.
Conforme estabelece o art. 77 da Lei 4.320/64, o controle interno pode ser: (i) prévio (ultimado antes da execução da despesa – v.g., no momento da liquidação ao analisar-se a regularidade do direito credor); (ii) concomitante (durante a execução da despesa – v.g., nos casos de contratos de duração continuada em que os pagamentos são feitos periodicamente); (iii) posterior (após a respectiva finalização – v.g., verifica- da ilegalidade em certo pagamento, é possível à Administração anular o respectivo ato para fins de ressarcimento).
Mesmo que determinada autarquia ou fundação pública não possua órgão espe- cificamente dirigido ao controle interno, é possível o seu exercício pelo Ministério ao qual estejam vinculadas, com fulcro nos arts. 19 e 25 do Decreto-Lei 200/67 (v.g.: Mi- nistério da Educação sobre as Universidades Federais, conforme decidiu o Supremo Tri- bunal Federal, no Agravo Regimental no Recurso em Mandado de Segurança 22.047, j. 22/02/2006, DJ 31/03/2006, Rel. Min. Eros Grau).
Nos termos do § 1º do art. 74 da CF/88, aqueles agentes que tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas, sob pena de responsabilidade solidária. Trata-se de uma obrigação e não mera faculdade.
23 Op. cit., p. 66.
A Constituição de 1988 também previu um controle externo a ser exercido pelo Poder Legislativo de cada unidade federativa, com o auxílio do respectivo Tribunal de Contas, órgão que, segundo assevera José Maurício Conti24, “exerce funções da maior relevância para o Estado Democrático de Direito, especialmente no que toca as questões de Direito Financeiro, sendo dotado de autonomia para exercer sua missão”.
Nos termos do art. 71 da Constituição Federal de 1988, compete ao Tribunal de Contas da União:
- apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, median- te parecer favorável ou contrário à respectiva aprovação, cabendo ao Poder Legislativo dar a palavra final (art. 49, IX da CF/88);25
- julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e socieda- des instituídas e mantidas pelo Poder Público, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;26
- apreciar a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias poste- riores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;
- realizar inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Execu- tivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II do 70 da CF/88;
- fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo;
- fiscalizar a aplicação de recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município;
- prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;
- aplicar as sanções previstas em lei, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcio- nal ao dano causado ao erário (CF, art. 71, VIII). As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo (CF, 71 § 3º);
- assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;
24 CONTI, José Maurício. Julgamento do TCU que reprovou contas do governo entrou para a história do Direito. Consultor Jurídico.
25 A atuação do Legislativo, nesse aspecto, é de cunho mais político do que propriamente técnico, nada impedindo que venha a contrariar o parecer da Corte de Contas. Como justificativa dessa escolha constitucional, tem-se a circunstância de não ser o Chefe do Executivo, ao menos no âmbito federal e estadual, ordenador de despesas, tarefa adstrita às diversas autoridades de escalões inferiores que exaram as ordens de pagamento nos casos concretos. Todavia, no caso de contas prestadas por Prefeito Municipal, a rejeição do parecer do Tribunal de Contas somente será válida por decisão de 2/3 dos membros da Câmara Municipal (art. 31, § 2º da CF/88). Aqui, nota-se que a liberdade do Legislativo é mais restrita.
26 Aqui não há participação a posteriori do Poder Legislativo. O Tribunal de Contas dá a palavra final (sempre ressalvada a pos- sibilidade de a questão ser discutida perante o Poder Judiciário, com base no art. 5º, XXXVI da CF/88). Logo, não entram em cena critérios políticos próprios do Legislativo, conforme acontece em relação à análise das contas do Chefe do Executivo.
- sustar a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos De- putados e ao Senado Federal, caso as providências determinadas ao exato cumprimento da lei não sejam adotadas.
Nessa hipótese, caso o ato impugnado seja um contrato, a sustação será adotada diretamente pelo Congresso Nacional, que solicitará de imediato ao Poder Executivo as medidas cabíveis (CF, art. 71, § 1º). Porém, se o Congresso Nacional ou o Poder Execu- tivo, no prazo de 90 dias, não efetivar as medidas retro previstas, o Tribunal decidirá a respeito (CF, art. 71 § 2º);
- representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados (CF, 71, XI);
- encaminhar relatório de suas atividades ao Congresso Nacional, trimestral e
Também é competência dos Tribunais de Contas, segundo previsto no § 2º do art. 59 da Lei Complementar 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, a verificação dos cálculos dos limites da despesa total com pessoal de cada Poder e órgão referido no art. 20 da LRF.
Com fulcro no disposto do art. 75 da CF/88, nota-se que as mesmas competências são desempenhadas pelos Tribunais de Contas dos Estados, Distrito Federal e dos muni- cípios de São Paulo e Rio de Janeiro.27
O § 2º do art. 74 da CF/88 trouxe notável inovação no que se refere ao controle externo. Trata-se do denominado controle social. Nos termos do citado dispositivo cons- titucional: “qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidade ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União”.
O art. 73-A da LC 101 complementa esse mandamento ao conferir aos mesmos le- gitimados a possibilidade de denunciarem ao respectivo Tribunal de Contas e ao órgão competente do Ministério Público o descumprimento das prescrições estabelecidas na Lei de Responsabilidade Fiscal.
Sem dúvida alguma, o controle social mostra-se como uma inovação louvável da atual Constituição Federal, sendo certo que mecanismo semelhante não existia nos or- denamentos anteriores. Deve, efetivamente, ser utilizado sempre que necessário, de- vendo o Tribunal de Contas (ou o Ministério Público para os casos de desrespeito às normas da LC 101/2000) conferir a devida atenção às denúncias que lá chegarem, em defesa do interesse público e do princípio republicano.
- Os portais da transparência: o controle social na era da
Sociedade da Informação
A humanidade vive o que vem se convencionando chamar de era da Sociedade da Informação.28 Trata-se de um período em que a criação, processamento, armazenamento
27 Somente os municípios de São Paulo e Rio de Janeiro possuem Tribunais de Contas Municipais, sendo que a CF/8888 vedou a criação de outros (§ 4º do art. 31). Todos os demais municípios brasileiros, destarte, remetem suas contas aos Tribunais de Contas dos Estados onde estejam localizados.
28 O termo Sociedade da Informação surgiu, segundo noticia Paulo Hamilton Siqueira Júnior, “pela voz do então Presidente da Comissão Européia, Jacques Delors, por ocasião do Conselho Europeu (1993), ao lançar pela primeira vez a idéia das infra-estruturas da informação” (Habeas data: remédio jurídico da sociedade da informação. In: PAESANI, Liliana Minardi (Coord.). O direito na sociedade da informação. São Paulo: Atlas, 2007. p. 252.).
e a difusão de informações e conhecimento passam a ter papel da maior relevância nos arranjos socioeconômicos dos diversos povos.
Nessa nova era social, o valor dos bens imateriais chega a suplantar o dos materiais. Assim ocorre porque, segundo pontua Paulo Hamilton Siqueira Júnior,29 “Na era agrícola, a terra se configurava como o fator primordial da geração de riquezas. Na era industrial a riqueza surge da máquina a vapor e da eletricidade. Na era do conhecimento, a infor- mação e o conhecimento são os atores centrais da produção econômica”.
Evidentemente, os bens materiais continuam importantes, pois todos os seres hu- manos necessitam de comida, roupas, objetos, remédios, material de higiene, eletrodo- mésticos, automóveis, casas e edifícios, etc., para sobreviverem dignamente.
Todavia, a informação, o conhecimento, os segredos e as técnicas para a produção de tais bens, terminam por valer mais do que o conjunto dos utensílios produzidos. Com efeito, segundo bem diagnostica Alvin Toffler,30 “a informação tornou-se talvez o negócio mais importante e o que mais cresce no mundo”31. Tanto é assim que, segundo informa Paula Andrea Forgioni,32 “a propriedade intelectual é o maior produto de exportação dos Estados Unidos”.
Nessa conjuntura, é inegável que o conhecimento e a informação passaram a pro- tagonizar os mais variados arranjos socioeconômicos dos diversos povos. Vive-se, sem sombra de dúvida, a época da Sociedade da Informação.
Também marca a era da Sociedade da Informação o impressionante desenvolvi- mento dos computadores e equipamentos de informática, além dos softwares cada vez mais funcionais e acessíveis. Tais circunstâncias facilitaram a criação e a posterior integração das redes eletrônicas, o que, por conseguinte, permitiu que conhecimento, dados e informações circulassem, em tempo real, por todo o planeta a custos bastante reduzidos.
A história da comunicação humana, na narração de Têmis Limberger33, passa por quatro fases: 1ª) comunicação oral dos povos primitivos; 2ª) a escrita (ou alfabeto), que permitiu a transmissão do conhecimento entre gerações; 3ª) a imprensa, que facilitou a difusão da informação a um grande número de pessoas e 4ª) os meios de comunicação em massa, como o rádio, o cinema, a televisão e os computadores.
No que tange aos computadores, conforme Irineu Francisco Barreto Júnior,34 é possível falar numa verdadeira revolução digital (ou cibernética) que induz a disso- lução das “fronteiras entre telecomunicações, meios de comunicação de massa e informática”. É fato que até pouco tempo atrás os aparelhos eletrônicos usualmente desempenhavam apenas uma função (ou eram rádio, ou televisão, ou telefone, ou computador simples, etc.). Atualmente, a mistura de várias funcionalidades num único equipamento é realidade.
29 Idem, p. 255.
30 A terceira onda. 18. ed. São Paulo: Record. 1980. p. 162.
31 Segundo o autor (op. cit., p. 182), a humanidade começa a viver a denominada Terceira Onda, cuja civilização “terá à sua disposição mais informação – e informação mais minuciosamente organizada a respeito de si mesma do que se podia imagi- nar ainda há apenas um quarto de século”.
32 Fundamentos do antitruste. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 313.
33 Op. cit., p. 57-58.
34 Atualidade do conceito de sociedade da informação para a pesquisa jurídica. In: PAESANI, Liliana Minardi (Coord.). O direito na sociedade da informação. São Paulo: Atlas, 2007. p. 62.
Tudo isso não seria possível sem a internet, rede mundial que certamente repre- sentou uma mudança de paradigma na forma de os seres humanos se comunicarem uns com outros. Na visão de Manuel Castells,35 a internet se mostra como “um meio de co- municação que permite, pela primeira vez, a comunicação de muitos com muitos, num momento escolhido, em escala global”.
A estrutura de redes interligadas e não hierarquizadas que constituem a internet proporcionou a criação de um ambiente virtual de ampla liberdade na criação e circu- lação dos mais variados conteúdos e propósitos, o que, inclusive, já contribuiu para a derrubada de governos (v.g., a denominada Primavera Árabe), além de estar colocando em xeque a estabilidade de tantos outros.
Portanto, não obstante o uso indevido da grande rede (v.g., cometimento de frau- des, extorsões, difusão de racismo, pornografia infantil e outros crimes), é certo que os países e seus governantes nunca estiveram tão passíveis de serem observados e critica- dos pelos cidadãos em geral como nos dias atuais.
As novas tecnologias surgidas nas últimas décadas permitem que a transparên- cia pública seja vista sob uma nova concepção. Dessa maneira, segundo Tainah Simões Sales,36 para que um governo seja considerado transparente, é preciso a “disponibiliza- ção on line, de forma atualizada, de todos os gastos e despesas, bem como das despesas públicas”.
Fato inegável é que a transparência governamental foi extremamente beneficiada com a disseminação de redes como a internet, sendo certo que cada vez mais pessoas se interessam por acompanhar on line a situação financeira dos vários governos, por meio de consultas a sites especializados no assunto, cujas informações costumam ser bastante didáticas e acessíveis aos leigos.
A primeira norma federal que tratou da necessidade da divulgação de dados finan- ceiros governamentais na internet foi a Lei 9.755, de 16 de dezembro de 1998, que pre- viu a criação, pelo Tribunal de Contas da União (TCU), de uma homepage para divulgação de dados e informações fiscais referentes a todos os entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).
Em suma, a lei em tela conferiu ao TCU a tarefa de criar uma página eletrônica denominada “Contas Públicas”, com fins de prestar informações a respeito da arrecada- ção tributária dos diversos entes federativos, bem como a execução dos diversos gastos.
Em 26 de abril de 2000, sob o argumento de ofensa ao princípio federativo, o então governador do Estado da Paraíba ajuizou, perante o Supremo Tribunal Federal, Ação Di- reta de Inconstitucionalidade (ADIN 2.198). Foi ponderado que as determinações da Lei 9.755, como mera lei federal, não poderiam estender efeitos a entes diversos da União, sendo necessária, portanto, a edição de lei complementar. No julgamento final, ocorrido em 11 de abril de 2013, a maioria dos Ministros componentes do STF decidiu pela impro- cedência da ADIN 2.198, com a seguinte ementa:
35 A galáxia da internet. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 8. Segundo o autor (idem, p. 10), infelizmente “cerca de 50% da humanidade mal sobrevive com menos de dois dólares por dia”. Assim, as mais promis- soras perspectivas da Sociedade de Informação ainda são apenas miragem para muita gente. De qualquer forma, é inegável que, após a difusão mundial da internet, o conhecimento vem ficando cada vez mais acessível e a informação, por seu turno, passou a poder ser transmitida em tempo real para quase todos os países.
36 Op. cit., p. 33.
EMENTA Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Federal nº 9.755/98. Autorização para que o Tribunal de Contas da União crie sítio eletrônico denominado Contas Públicas para a divulgação de da- dos tributários e financeiros dos entes federados. Violação do princí- pio federativo. Não ocorrência. Prestígio do princípio da publicidade. Improcedência da ação.
- O sítio eletrônico gerenciado pelo Tribunal de Contas da União tem o escopo de reunir as informações tributárias e financeiras dos diver- sos entes da federação em um único portal, a fim de facilitar o acesso dessas informações pelo público. Os documentos elencados no 1º da legislação já são de publicação obrigatória nos veículos oficiais de imprensa dos diversos entes federados. A norma não cria nenhum ônus novo aos entes federativos na seara das finanças públicas, bem como não há em seu texto nenhum tipo de penalidade por descum- primento semelhante àquelas relativas às hipóteses de intervenção federal ou estadual previstas na Constituição Federal, ou, ainda, às sanções estabelecidas na Lei de Responsabilidade Fiscal.
- Ausência de inconstitucionalidade formal por ofensa ao art. 163, inciso I, da Constituição Federal, o qual exige a edição de lei comple- mentar para a regulação de matéria de finanças públicas. Trata-se de norma geral voltada à publicidade das contas públicas, inserindo-se na esfera de abrangência do direito financeiro, sobre o qual compete à União legislar concorrentemente, nos termos do 24, I, da Cons- tituição Federal.
- A norma não representa desrespeito ao princípio federativo, ins- pirando-se no princípio da publicidade, na sua vertente mais espe- cífica, a da transparência dos atos do Poder Público. Enquadra-se, portanto, no contexto do aprimoramento da necessária transparência das atividades administrativas, reafirmando e cumprindo, assim, o princípio constitucional da publicidade da administração pública (art. 37, caput, CF/88).
- Ação julgada improcedente.
Posteriormente, o art. 48 da LC 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) deter- minou que os instrumentos de transparência da gestão fiscal (v.g., os planos, orçamen- tos, leis de diretrizes orçamentárias, prestações de contas, relatórios de gestão, etc.) deveriam ter também divulgação por meios eletrônicos. Tratando-se de “lei nacional”, cujos preceitos obrigam a todos os entes federativos, não mais caberia a alegação de suposto desrespeito ao princípio federativo. Nesse sentido, as lições de Regis Fernandes de Oliveira37 e Adauto Viccari Júnior et al.38.
Mais recentemente, a LC 131/2009 modificou a redação original do art. 48 da LC 101/2000 para determinar que a aludida divulgação pelos meios eletrônicos passasse a ocorrer em “tempo real”, ou seja, deixou de ser suficiente a mera disponibilização es- tática de dados financeiros.
37 Responsabilidade fiscal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 24.
38 Op. cit., p. 183.
Desse modo, após a LC 131/2009, os vários governos devem promover constante atualização nas informações referentes à arrecadação e à execução dos orçamentos, de modo que a realidade dinâmica das finanças públicas possa ser apreendida do modo mais fidedigno possível pelas pessoas em geral. Nesse tópico, resta fora de dúvida o relevante papel de redes de comunicação como a internet.
Fica evidenciado, pois, que a LC 101, com a redação dada pela LC 131, busca “a materialização, em especial, dos princípios da transparência, da ampla publicidade, da gestão pública eficiente e eficaz e da mais vasta participação da sociedade”. É o que afirmam Maria Cristina Cesar Oliveira e Octávio Cascaes Dourado Júnior.39
Na mesma linha, a chamada Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) conferiu atenção especial aos meios eletrônicos como ferramenta de divulgação de dados públi- cos, devendo os diversos governos criar, a teor do § 2º do art. 8º, dentro do âmbito de suas competências, os denominados Portais da Transparência, que devem atender aos requisitos previstos no § 3º do citado art. 8º.
A norma em tela prevê que as informações prestadas devem ser objetivas, trans- parentes, claras e conterem linguagem de fácil compreensão (inciso I). Em adição, a estrutura desses Portais deve possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos, inclusive abertos e não proprietários, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise das informações (inciso II) e, ainda, o acesso automatizado por sis- temas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina (inciso III).
Igualmente, são obrigações dos Portais da Transparência: garantir a autenticidade e a integridade das informações disponíveis para acesso (inciso V), manter atualizadas as informações disponíveis para acesso (inciso VI), indicar local e instruções que permitam ao interessado comunicar-se, por via eletrônica ou telefônica, com o órgão ou entidade detentora do sítio (inciso VII) e adotar as medidas necessárias para garantir a acessibili- dade de conteúdo para pessoas com deficiência (inciso VIII).
Atualmente, em prol da efetivação da transparência estatal, é possível encontrar diversos sites especializados em analisar a gestão e o estado das finanças públicas, o que é bastante positivo. São páginas eletrônicas que contêm, na maioria das vezes, in- formações claras e explicativas que, efetivamente, facilitam a compreensão do cidadão comum acerca do tema.
Apenas a título de exemplos, cita-se: www.impostometro.com.br; www.sonegome- tro.com; www.ibpt.com.br; www.transparencia.org.br; www.osbrasil.org.br; www.con- tasabertas.com.br; www.movimentoac.com.br/deolhonoimposto; www.meumunicipio. org.br/meumunicipio/home.
- Notas finais e conclusões
Recursos públicos são escassos e, por isso, devem ter uma gestão que privilegie o bem comum, ou seja, devem ser aplicados de modo impessoal, parcimonioso para evitar o desperdício e sob as premissas republicanas.
39 Op. cit., p. 142.
Todavia, para que isso possa efetivamente ocorrer, é indispensável que haja trans- parência na gestão pública, notadamente por meio de fácil acesso a dados e informações governamentais que, além de confiáveis, devem ser compreensíveis às pessoas comuns.
Há uma relação simbiótica entre a transparência estatal e o regime democrático, uma vez que a primeira, ao permitir que os cidadãos melhor se inteirem acerca do real estado das finanças públicas, deixa os eleitores melhor capacitados para escolher seus representantes, o que, de certa forma, é considerado por governantes e parlamentares.
Tanto isso é verdade que estudos apontam haver ligação entre o nível de consciên- cia fiscal de determinado país e o seu estágio de desenvolvimento. Nessa linha, segundo tais estudos, quanto mais elevada for a consciência fiscal, mais desenvolvido deverá ser o país e vice-versa.
A partir dos dados e das informações fornecidos ao público é que se torna possível controlar com seriedade a gestão e o estado das finanças públicas. Ao lado dos já exis- tentes controles interno e externo, a Constituição de 1988 inovou ao prever o chamado controle social, exercido por cidadãos, partidos políticos, sindicatos, entidades não go- vernamentais, etc., que podem denunciar diretamente ao Tribunal de Contas e ao Mi- nistério Público irregularidades ou ilegalidades cometidas por ordenadores de despesa, para que se apliquem as devidas penalidades.
O controle social foi fortemente robustecido na era da Sociedade da Informação, principalmente pela facilidade na obtenção, através de meios eletrônicos, dos dados financeiros dos diversos governos e suas autarquias e fundações. Atualmente, as contas de todos os entes públicos devem ser prestadas também de modo eletrônico, por meio de páginas disponibilizadas na internet, com atualização constante.
A obrigação de divulgar as contas no formato eletrônico, pioneiramente determina- da pela Lei 9.755/98, foi considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIN 2.198. Essa obrigação passou a constar também de dispositivo de lei complementar, no caso o art. 48 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), com a redação dada pela LC 131/2009, sendo por fim igualmente objeto da Lei 12.527/2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação, que consolidou a existência dos chamados Portais da Informação no âmbito da Administração Pública.
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comentada. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
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As mudanças das decisões do plenário do Supremo Tribunal Federal e o enfraquecimento do Estado de Direito
Maria Ednalva de Lima1
Advogada
- O direito do contribuinte de somente pagar tributo criado por lei constitucional
Ao instituir um Estado de Direito, a Constituição Federal atribui ao contribuinte o direito de ter sua conduta disciplinada por meio de lei prévia, com o escopo de conferir certeza ao modo de portar-se diante da Administração Fazendária e de como ela deve portar-se diante dele.
Mas a Constituição Federal não só atribui ao contribuinte o direito de pagar tributos instituídos por meio de lei prévia, além deste direito, outorga-lhe o de pagar tributo instituído por lei prévia constitucional.
Em razão da presunção de constitucionalidade, lei nenhuma nasce inconstitucional. A inconstitucionalidade é atributo conferido à lei por decisão judicial, como deter-
minam os artigos 102 e 97 da Constituição Federal.2
O legislador da pessoa política competente para criar o tributo deve desempenhar sua atividade dentro dos limites prescritos pela Constituição Federal, para que seu com- portamento não seja qualificado como inconstitucional e o produto de sua atividade como não válido.
Assim, ao dever jurídico de o legislador produzir textos compatíveis, formal e ma- terialmente, com a Constituição Federal corresponde o direito subjetivo material do contribuinte de exigir que assim proceda.
Se o legislador descumprir seu dever, nascerá para o contribuinte o direito subje- tivo processual de acionar o Poder Judiciário para pedir que seja tutelado seu direito
1 Advogada especialista em Direito Tributário e Educacional. Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP.
2 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente:
- a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucio- nalidade de lei ou ato normativo federal;
[…].
III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
- contrariar dispositivo desta Constituição;
- declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
- julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.
Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.
de não recolher o tributo, como lhe assegura o inciso XXXV do artigo 5º da Consti- tuição Federal.3
- O direito de o contribuinte acionar o Poder Judiciário para não pagar tributo criado por lei inconstitucional
Publicada a lei criadora de um tributo, se constatar inconstitucionalidade, o con- tribuinte depara-se com uma violação ao seu direito, o que é suficiente para configurar um conflito de interesses.
Do conflito de interesses surge o direito subjetivo de o contribuinte acionar o Poder
Judiciário para postular um pronunciamento que o solucione.
O pronunciamento solucionará o conflito, ao dizer qual dos direitos subjetivos, afir- mados em juízo (na petição inicial e na contestação), deve ser satisfeito.
O pronunciamento poderá dizer o direito do contribuinte de não pagar o tributo, se constatada a incompatibilidade formal ou material entre a lei que o criou e a Constitui- ção Federal, ou o direito de a Fazenda Pública receber o tributo, verificada a constitu- cionalidade da lei.
Pois bem, como o direito submetido à apreciação do Judiciário é conferido pela Constituição Federal, o último pronunciamento poderá ser do Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de recurso extraordinário interposto pelo contribuinte ou pela Fazenda Pública, em conformidade com o artigo 102, III, da Constituição Federal.
Interposto recurso extraordinário, seja pelo contribuinte ou pela Fazenda Pública, o STF, fazendo o controle difuso de constitucionalidade, pronunciar-se-á dizendo se a lei criadora do tributo é ou não constitucional.
Desse pronunciamento do Supremo Tribunal Federal brotará a certeza de qual dos direitos subjetivos em conflito deverá ser satisfeito e, assim, no caso concreto, al- cança-se a segurança jurídica.
Alcança-se a segurança jurídica porque esse pronunciamento é acobertado pela coisa julgada e, por isso, nem mesmo lei poderá atingi-lo, como ordena o inciso XXVI do artigo 5º da Constituição Federal.4
Sucede que, nessa situação, como o controle de constitucionalidade é difuso, o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal produz efeitos apenas entre as partes envolvidas no processo, mesmo tendo sido proferido pelo Plenário, o que equivale a
3 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…];
- – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; […].
4 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…];
- – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; […].
dizer: a declaração de inconstitucionalidade ou constitucionalidade atinge somente o contribuinte que ajuizou a ação perante a Fazenda Pública.
Daqui para frente, a atenção dirige-se apenas ao pronunciamento do Plenário do STF, que declara a inconstitucionalidade de lei ou de dispositivo legal e, por conseguin- te, reconhece o direito do contribuinte de não pagar o tributo, no caso concreto, para averiguar se há possibilidade de mudança da decisão em outro caso.
- Possibilidade de alteração do pronunciamento do Plenário
do Supremo Tribunal Federal que declara a inconstitucionalidade de uma lei em sede de Recurso Extraordinário
O Recurso Extraordinário é um dos instrumentos utilizados para o STF cumprir sua missão precípua de guarda da Constituição Federal.
Acontece que, por meio desse instrumento, a provocação para o STF exercitar sua missão dá-se por ação do contribuinte que tem seu direito violado com a publicação da lei presumida constitucional.
Assim, o pronunciamento desse órgão, afastando a presunção de constituciona- lidade, consiste em resposta à ação de um contribuinte específico perante a Fazenda Pública, responsável pela aplicação da lei, ainda que emane do Plenário. Ou seja, a inconstitucionalidade é declarada no caso concreto. Por essa razão, os efeitos desse pronunciamento não podem transcender o caso concreto e atingir outros contribuintes.
A transcendência dos efeitos somente poderá advir de ato do Senado Federal que suspenda a execução, no todo em parte, da lei declarada inconstitucional no caso con- creto, consoante estatuído no inciso X do artigo 52 da Constituição Federal.5
O efeito inter partes conduz à necessidade de analisar se uma lei declarada in- constitucional, desde sua publicação, por pronunciamento do Plenário do STF no caso concreto (controle difuso), poderá ser, em outro caso, qualificada como constitucional.
Para o desenvolvimento da análise, toma-se como referência um caso concreto.
Em sessão realizada no dia 8 de agosto de 2014, o Plenário do STF sublinhou que não julgaria simultaneamente o Recurso Extraordinário nº 240.785/MG e a ADC 18/DF, por ter ocorrido mudança substancial na composição da Corte no período transcorrido entre a interposição do aludido recurso e o julgamento.
Nessa sessão, o Plenário do STF decidiu, nos autos do aludido recurso extraordiná- rio, que a inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS viola a alínea b do inciso I do artigo 195 da Constituição Federal. Entrementes, fez uma ressalva que abre a possibili- dade de, em outro caso, a nova composição da Corte alterar esse pronunciamento.
A simples possibilidade de a nova composição poder alterar o pronunciamento do Plenário e considerar constitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS gera instabilidade nas relações entre os contribuintes e a Fazenda Pública Federal e instala tratamentos diferentes para contribuintes que se encontram na mesma situação.
5 Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
[…];
X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal
Federal; […].
- As decisões do Plenário do STF e a estabilidade da ordem jurídica
Por ser órgão detentor da função precípua de guarda da Constituição Federal, a decisão do Plenário do STF que declara inconstitucional uma lei ou um dispositivo legal deveria conferir conforto aos contribuintes, ainda que proferida em sede de recurso extraordinário.
O conforto sobreviria do fato de, a partir da decisão do STF, os demais contribuintes tomarem conhecimento de que teriam reconhecido o direito de não recolher o tributo porque criado por lei inconstitucional desde sua publicação, se fosse acionado o Poder Judiciário.
Não se pode olvidar que um dos efeitos da decisão proferida pelo Plenário do STF em sede de recurso extraordinário é a retroação à data de publicação da lei. Ou seja, a lei é predicada inconstitucional desde sua publicação.
No entanto, o que de fato tem ocorrido, no caso do reconhecimento da inconstitu- cionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS, é que os demais contri- buintes acionam o Poder Judiciário e recebem como resposta que a decisão do Plenário do STF não deve prevalecer, em razão da mudança dos seus integrantes ocorrida no período de tramitação do recurso extraordinário até seu julgamento, que foi de aproxi- madamente 15 (quinze) anos.
Se a decisão do Plenário declara inconstitucional uma lei ou um dispositivo legal, por violação a um comando da Constituição Federal, e não deve prevalecer em razão da mudança de seus integrantes depois de proferida, qual a serventia do Supremo Tribunal Federal como órgão de controle de constitucionalidade? Nenhuma, porque não se pode confiar em declarações de inconstitucionalidade emitidas sob a composição anterior.
Assinale-se que a decisão não é dos integrantes da Corte, é do órgão colegiado, por isso, há de ser estável, independentemente de mudança de sua composição.
Deveras, esse entendimento não encontra guarida na Constituição Federal. Pelo contrário, vilipendia-a.
Vilipendia-a porque, ao entregar sua guarda ao Supremo Tribunal Federal, a Constituição confia que suas decisões assegurem a estabilidade da ordem jurídica que inaugurou.
Não se pode esquecer por um só minuto que, apesar de as decisões do Plenário serem proferidas em sede de recurso extraordinário, o STF não está a exercitar a fun- ção de dizer o direito subjetivo do contribuinte no caso concreto, conquanto seja esse o resultado final. O Supremo está a exercitar a função de proteger o direito objetivo e, assim, impor o respeito pelo Estado de Direito.
De nada adiantaria ter a Constituição Federal inaugurado um Estado de Direito se não tivesse escolhido um órgão para velar por ele.
Velar pelo Estado de Direito equivale a não permitir que seus alicerces sejam vul- nerados e, com maior razão ainda, não ser o vulnerador justamente o órgão velador.
Os alicerces do Estado de Direito que não podem ser vulnerados são os princípios da legalidade, da segurança jurídica e da igualdade.
No caso de mudanças de decisões do Plenário, sem alteração do texto constitucio- nal ou legal, são feridos os princípios da segurança jurídica e da igualdade.
- As mudanças de decisões do Plenário do STF proferidas em sede de Recurso Extraordinário e a vulneração dos princípios da segurança jurídica e da igualdade
Nos autos do recurso extraordinário, o STF não se pronuncia diretamente sobre a violação ao direito subjetivo do contribuinte. Pronuncia-se sobre a violação à ordem jurídica pelo legislador ao dizer se é inconstitucional ou não a lei ou dispositivo legal impugnado.
Sendo assim, ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei ou dispositivo legal em sede de recurso extraordinário, o STF está a resguardar a ordem jurídica inaugurada pela Constituição Federal e, com isso, a garantir segurança jurídica.
O princípio da segurança jurídica, como um dos alicerces do Estado de Direito, é concretizado na medida em que os pronunciamentos do STF acerca da inconstitu- cionalidade ou constitucionalidade das leis, em sede de controle difuso, são está- veis e podem ser seguidos por todos os contribuintes que se encontram em situação semelhante.
O contribuinte necessita de certeza acerca de seus direitos e deveres. Só com essa certeza, pode planejar e orientar sua conduta para não infringir a ordem jurídica.
A mudança de composição da Corte não pode ser um argumento para abandonar o princípio da segurança jurídica e enfraquecer o Estado de Direito.
Se a mudança de composição do STF for motivo para que suas decisões sejam rece-
bidas como provisórias, o clima, ao invés de certeza, será de desconfiança.
Não é admissível, constitucionalmente, que, no terreno do direito tributário, no qual já se avultam conflitos entre o respeito pelos direitos subjetivos, valores e princí- pios e o interesse arrecadatório do Estado, o contribuinte tenha de conviver com a in- certeza do direito objetivo, por não poder confiar nas decisões proferidas pelo Plenário do STF sob determinada composição.
Revela-se evidente que o pronunciamento que considerou violado o direito objeti- vo pelo legislador, já acobertado pela coisa julgada, não poderá ser alterado por outro pronunciamento diametralmente oposto, por respeito ao inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal.
Se o pronunciamento prolatado por uma composição da Corte puder ser alterado, conviverão, sob a mesma ordem jurídica, duas categorias de contribuintes: a dos não devedores do tributo porque, em seu caso, a lei recebeu o atributo de inconstitucional, e a dos devedores do mesmo tributo porque, em seu caso, a mesma lei recebeu o atri- buto de constitucional.
Vê-se, pois, que as modificações dos pronunciamentos do Plenário em razão da mudança de composição da Corte ferem, afora o da segurança, o princípio da igualdade.
O fato de competir ao STF a tutela do direito objetivo é suficiente para afastar a possibilidade de mudança das decisões do Plenário em razão de modificação de sua com- posição, se o texto constitucional ou legal permanece o mesmo.
Quando conclui que o legislador desrespeitou a Constituição Federal e, por isso, declara o produto de sua atividade inconstitucional, o STF tutela o direito objetivo.
Direito objetivo é igual para todos os contribuintes que se encontram na mesma situação por ele disciplinada, pois, se de outro modo for, não poderá ser qualificado como direito objetivo.
Se o STF puder dizer que a lei ou o dispositivo legal é inconstitucional desde a publicação e, depois, rever seu entendimento para dizer que a mesma lei ou o mesmo dispositivo é constitucional, sem que tenha ocorrido alteração no direito objetivo, além de insegurança, ter-se-á um quadro injustificado de desigualdade entre contribuintes que se encontram na mesma situação.
Não se pode admitir que o órgão responsável por velar pela integridade do Estado de Direito, assentado no princípio da igualdade, instaure um quadro de desigualdade, por decidir, em um caso, que o dispositivo legal é inconstitucional e, em outro, que o mesmo dispositivo é constitucional.
O Estado de Direito não permite que a mutação da ordem jurídica decorra da mo- dificação da composição do órgão que deve velar pela sua integridade, se o texto cons- titucional ou legal não sofre alteração pelo Poder Legislativo.
A mutação da ordem jurídica em razão da modificação da composição do STF, sem alteração do texto constitucional ou legal, não confere certeza aos contribuintes acerca do direito objetivo válido e, por consequência, do modo como devem portar-se diante da Fazenda Pública e ela diante deles, bem como cria situações de desigualdade entre eles, o que, sem margem para dúvida, enfraquece o Estado de Direito.
Em um Estado de Direito, as pessoas têm o direito subjetivo de saber qual é o direi- to objetivo válido para todos que se encontrem na mesma situação. O direito objetivo não pode ser válido por um período e depois deixar de sê-lo, assim como não pode ser, ao mesmo tempo, válido para alguns e não válido para outros.
Os cidadãos não confiarão em pronunciamentos de um órgão, guardião da Constitui- ção Federal, que diz ser inconstitucional um dispositivo legal enquanto sua composição for a mesma que participou do julgamento.
Somente decisões estáveis do Plenário farão com que os contribuintes confiem no STF e não vivam sobressaltados, pois garantirão a previsibilidade e a certeza do direito objetivo.
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Execução fiscal e a penhora de faturamento: um critério objetivo do Imposto de Renda das empresas
Odmir Fernandes1
Advogado
Sumário: 1. Introdução; 2. Origem da penhora; 3. Penhora de faturamento; 4. Res- ponsabilidade patrimonial; 5. Faturamento x patrimônio; 6. Faturamento – Posição do STJ; 7. Demonstrações contábeis; 8. O Imposto de Renda das empresas – IRPJ. Presun- ção de lucros; 9. Fixação do percentual da penhora de faturamento; 10. Programas de recuperação fiscal; 11. Multiplicidade de execuções. Penhoras sucessivas; 12. Recupera- ção de empresas; 13. Penhora: garantia/pagamento. Embargos. Efeito; 14. Faturamen- to. Oferta. Fases processuais. Parcelamento; 15. Ato simples e ato complexo. Penhora provisória. Revisão; 16. Nomeação de depositário ou administrador; 17. Prova – cogni- ção sumária e exauriente; 18. Pagamento aos credores; 19. Conclusões.
- Introdução
O presente trabalho procura demonstrar a existência de critério objetivo, legal, fá- cil e seguro para fixar o percentual da penhora de faturamento, independente do crité- rio subjetivo adotado pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Código de Processo Civil de 2015 da (a) excepcionalidade da penhora; (b) não inviabilizar a atividade empresarial, e (c) não causar a gravosidade da execução. Cuida ainda das implicações dessa penhora na multiplicidade de execuções, credores e juízos distintos.
Realizar a penhora de faturamento exige, além da necessária prudência, noções de administração, finanças, contabilidade e do direito empresarial para fixar o percentual. Na execução com único credor, mesmo juízo, não há grandes dificuldades, mas com diversas execuções, credores, juízos, penhoras sucessivas, percentuais diferenciados, depósitos, fases processuais, revisão, entrega do dinheiro, preferências, as dificuldades serão maiores.
Na lei do imposto de renda das empresas – no sistema do lucro presumido, pode- mos encontrar critério legal e objetivo para fixar o percentual da penhora de fatura- mento sem inviabilizar a atividade empresarial, ofender a gravosidade da execução ou a excepcionalidade da penhora.
Esse mesmo critério pode ser útil às empresas em crise, com dívidas tributárias, com2 ou sem patrimônio para obter a certidão positiva com efeito de negativa e permitir o pedido de recuperação judicial.
1 Contabilista. Professor. Árbitro. Juiz de Direito (aposentado). Especialista em Direito Tributário, Empresarial e Arbitragem. Juiz do TIT/SP. Foi Conselheiro do CARF e do CMT/PMSP. Coautor do Código Tributário Nacional comentado e da Lei de Exe- cução Fiscal comentada, Revista dos Tribunais. Membro do IBDT/USP.
2 Patrimônio essencial não deve ser penhorado se o faturamento permitir solucionar a dívida com menor gravame ao devedor.
- Origem da penhora
A penhora de faturamento surge da construção jurisprudencial das penhoras de estabelecimento, usufruto e dinheiro, estas com previsão em lei. Com a reforma da execução do título executivo extrajudicial e o acréscimo do inciso VII ao art. 655 e o § 3º ao art. 655-A, ao CPC de 1973, pela Lei nº 11.382, de 2006, a penhora de faturamento passou a integrar o ordenamento positivo. O Código de Processo Civil de 2015 mantém a penhora de faturamento nos arts. 835, X, 866 e 905, com ligeiras modificações.
Na Lei de Execução Fiscal (LEF), a penhora de estabelecimento é constrição excep- cional,3 cabível quando esgotada a possibilidade da penhora de outros bens do devedor. O Código de Processo Civil de 1973,4 diferente da LEF, não estabeleceu a excepcionalida- de, enquanto o CPC de 2015 é expresso ao determinar: “A penhora de estabelecimento somente será determinada se não houver outro meio eficaz para a efetivação do crédi- to.” (art. 865), mas ambos admitem a substituição pelo usufruto, se menos gravoso ao devedor e eficiente ao pagamento da dívida.
Pela dificuldade de constrição, risco ao afastar os dirigentes da sociedade, exigên- cia dos arts. 717, 7275 e 728, do CPC de 1973, e o poder – dever de substituir pelo usu- fruto, a penhora de estabelecimento nunca alcançou a eficácia desejada para solução da dívida. À evidência, se o próprio empresário, conhecedor da atividade não consegue solucionar a dívida, dificilmente será o administrador nomeado pelo Juízo para gerir a empresa, manter confiança dos clientes e fornecedores, bancos, empregados e pagar a dívida sem o risco de levar a sociedade à falência.
No regime do CPC de 2015, a penhora de estabelecimento deixa de afastar os diri- gentes, mas substituída pelo usufruto o empresário também perde a administração dos bens constritos (art. 868, CPC 20156), daí a vantagem da penhora de faturamento que também é usufruto, mas sem afastar os dirigentes7.
O que diferencia a penhora de estabelecimento do faturamento é de este corres- ponder à parte da receita, usufruto do dinheiro e não à universalidade de bens e direitos que compõem o estabelecimento empresarial.8 Na penhora de dinheiro, é apreensão de quantia certa, determinada e disponível no patrimônio do devedor.
- Penhora de faturamento
O primeiro problema para a realização da penhora de faturamento consiste no critério subjetivo de a constrição (a) ser excepcional; (b) não inviabilizar a atividade empresarial, e (c) não ser gravosa à execução. Embora o Superior Tribunal de Justiça
3 LEF – Lei nº 6.830, de 1980: Art. 11. […]. § 1º – Excepcionalmente, a penhora poderá recair sobre estabelecimento[…]
4 Cf., Art. 1º, da LEF: O CPC aplica-se subsidiariamente às execuções fiscais, não precisava dizer, mas diz para não deixar
dúvidas.
5 Art. 727. Nomeado o administrador, o devedor far-lhe-á a entrega da empresa.
6 Correspondente ao art. 728, do CPC de 1973.
7 Outros bens servem ao usufruto, mas a dificuldade de constrição, avaliação, conservação e utilidade na produção de bens e
serviços conduzem à penhora de faturamento.
8 CC: Art. 1142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária; no CTN, arts. 126 e 127; no DL 406/68, arts. 8º e 12; na LC 87/96, art. 11, § 3º; na LC 116/03, arts. 3º e 4º; no STF, Pleno, RE 203.075-9/DF; Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, São Paulo, Saraiva.
utilize critério objetivo de penhorar 5% (cinco por cento)9 do faturamento, não explica se sobre o faturamento bruto, líquido ou lucro, com isso voltamos ao critério subjetivo.
No CPC de 2015, a penhora de faturamento à execução civil, também passou a exigir a excepcionalidade ao incorporar a regra da lei das execuções fiscais e da jurispru- dência, conforme vemos no “Art. 866: Se o executado não tiver outros bens penhoráveis ou se, tendo-os, esses forem de difícil alienação ou insuficientes para saldar o crédito executado, o juiz poderá ordenar a penhora de percentual do faturamento da empresa.” (grifo nosso).
Em seguida, o CPC de 2015 também positivou a construção jurisprudencial de não inviabilizar a atividade empresarial: “Art. 866: § 1º. O juiz fixará percentual que propi- cie a satisfação do crédito exequendo em tempo razoável, mas que não torne inviável o exercício da atividade empresarial.”
Ao lado da regra geral da menor gravosidade da execução ao devedor, prevista no art. 620, do CPC de 1973, repetida no art. 805, do CPC de 2015, o § 3º do art. 866 c/c o art. 867, o novo Código10 mantém a regra específica da menor onerosidade da execução.
Art. 866. […] § 3º. Na penhora de percentual de faturamento de em- presa, observar-se-á, no que couber, o disposto quanto ao regime de penhora de frutos e rendimentos de coisa móvel e imóvel.
Art. 867. O juiz pode ordenar a penhora de frutos e rendimentos de coisa móvel ou imóvel quando a considerar mais eficiente para o re- cebimento do crédito e menos gravosa ao executado.
Penhora de faturamento é: (a) excepcional; (b) não pode inviabilizar o exercício da atividade empresarial, e (c) pode (e deve) ser substituída pelo usufruto, se menos gravosa ao devedor. Deve, porque comprovada a onerosidade a substituição deixa de ser facultativa e se torna obrigatória.
O princípio da menor gravosidade da execução adquire novos contornos com o CPC de 2015. Deixa de ser exclusivamente subjetivo, de princípio – valor ao atribuir ao exe- cutado o dever de indicar, objetivamente, outros meios mais eficazes e menos onerosos da execução, conforme art. 805 e § 2º do art. 829:
Art. 805. Par. único. Ao executado que alegar ser a medida exe- cutiva mais gravosa incumbe indicar outros meios mais eficazes e menos onerosos, sob pena de manutenção dos atos executivos já determinados.
Art. 829. […] § 2º A penhora recairá sobre os bens indicados pelo exequente, salvo se outros forem indicados pelo executado e aceitos pelo juiz, mediante demonstração de que a constrição proposta lhe será menos onerosa e não trará prejuízo ao exequente. (grifo nosso).
9 STJ, 1ª T., AgRg na MC 19681/SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j., 11.12.2012. No mesmo sentido: STJ, AgRg no REsp. 1.320.996/RS; AgRg no Ag. 1.359.497/RS; AgRg no REsp. 1.328.516/SP; e AgRg no AREsp. 242.970/PR.
10 Corresponde ao art. 716 do CPC de 1973.
- Responsabilidade patrimonial
Conforme preceitua o art. 391, do Código Civil, e o art. 591, do CPC de 1973, repe- tido no art. 789, do CPC de 2015, o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para satisfação da dívida.
Execução é medida de força para apreender e expropriar bens do patrimônio do devedor e pagar o credor.
Em relação à empresa, o CPC de 2015 foi mais explícito na expropriação bens: “[…] frutos e rendimentos de empresa ou de estabelecimentos e de outros bens”, na forma do art. 825, III.
Em nosso sistema, apenas o Poder Judiciário detém o poder de força, de apreender e expropriar o patrimônio do devedor. Nem sempre foi assim. Na Antiguidade, a exe- cução se fazia pelo próprio credor mediante castigos físicos ao devedor, sua venda em feiras e praças públicas como escravo e até morto e entrega de suas partes aos credo- res.11 E decorre da Lei de Talião, do Código de Hamurabi (1.780 a.C.),12 reproduzida pela Bíblia: olho por olho, dente por dente.13
No Império Romano, a Lei das XII Tábuas – Tábua III (450 a.C.) estabelecia as normas contra inadimplentes e a execução também se fazia com sacrifícios físicos do devedor e se irradiou às ordenações portuguesas e à fase do Brasil Colônia e Império.14
Com a humanização das penas, desapareceram os castigos físicos, mas remanesce a prisão do devedor de alimentos e do depositário infiel como meio de coerção para obrigar o devedor cumprir a obrigação.15
Na fase da República, a garantia do credor passou a ser o patrimônio do deve- dor. Os bens, presentes e futuros – garantem e respondem pelo pagamento da dívida, seja qual for o devedor ou credor, embora o devedor de alimentos ainda tenha o castigo da prisão.16
- Faturamento x patrimônio
Vimos que o devedor responde pela dívida com o seu patrimônio presente e futuro.
Agora, faturamento é patrimônio? É sinônimo de patrimônio?
Faturamento não é patrimônio e nem é sinônimo de patrimônio,17 mas parte do faturamento integra o patrimônio empresarial, se a empresa produzir lucros18.
11 Alfredo Buzaid, Do concurso de credores no processo de execução, p. 42-44.
12 Primeira lei conhecida da humanidade, seus fragmentos numa lápide encontram-se no Museu do Louvre, em Paris, França. Hamurabi, um rei da Babilônia, nação que se situava no território onde se localiza o Irã e o Iraque.
13 Êxodo, 21/24.
14 ASSIS, Araken de. Manual da execução. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 132.
15 CF/88, art. 5º, LXVII. O STF vedou a prisão do depositário pela Súmula Vinculante 25: É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito. O STJ, no rito dos recursos repetitivos, REsp. 914.253-SP, Rel. Min. Luiz Fux, j, 04.12.2000, também vedou a prisão.
16 A prisão não paga a dívida, é apenas meio coercitivo para obrigá-lo ao pagamento.
17 STJ, 1ª T., REsp 604.329/SP, Rel. Min. Luiz Fux, j. 20.04.2004.
18 A empresa existe para produzir lucros e jamais pode experimentar prejuízos constantes por longos períodos sem aporte de
capital, financiamento, recuperação ou falência.
Os Tribunais reconhecem que faturamento não é patrimônio da empresa ao consi- derarem que a penhora não pode inviabilizar a atividade empresarial, conforme cente- nas de julgados do Superior Tribunal de Justiça no mesmo sentido:
Execução. Penhora de renda. As Turmas que compõem a Segunda Seção deste Tribunal têm admitido a penhora sobre o faturamen- to da empresa desde que, cumuladamente:
- o devedor não possua bens ou, se os possuir, sejam esses de difícil
execução ou insuficientes a saldar o crédito demandado;
- haja indicação de administrador e esquema de pagamento (CPC, artigos 677); e
- o percentual fixado sobre o faturamento não torne inviável o exercício da atividade empresarial. (STJ, 3ª T., REsp 866.382/RJ, Min. Nancy Andrighi, j. 11.11.2008).19
Com a exigência de não inviabilizar a atividade empresarial, os Tribunais reconhe- cem, por via oblíqua, que a penhora de faturamento alcança a receita líquida ou lucro da empresa, com exclusão dos gastos que são os custos e as despesas20 necessários ao exercício das atividades empresariais.
No REsp 557.294-SP, o Superior Tribunal de Justiça demonstrou clara preocupação com a penhora de dinheiro e faturamento em relação aos custos e despesas para não inviabilizar a atividade empresarial:
Permitir a penhora dos saldos bancários de uma empresa é o mesmo que decretar a sua asfixia, porque tal determinação não respeita os limites reais que deve ter todo credor: atendimento prioritário aos fornecedores para possibilitar a continuidade de aquisição da matéria-prima; pagamento aos empregados, prioridade absoluta pelo caráter alimentar dos salários. […] a penhora dos saldos em conta corrente não equivale à penhora sobre o faturamento, nem pode ser considerada de forma simplória como sendo penhora em dinheiro. Equivale à penhora do estabelecimento comercial e, como tal, deve ser tratada para só ser possível quando o juiz justificar a ex- cepcionalidade. (STJ, 2ª T., REsp 557.294/SP, Rel. Min. Eliana Calmon j. 06.11.2003). (grifo nosso).
No REsp 1.411.184-RN, o Superior Tribunal de Justiça, reafirmou essa mesma pre- ocupação:
- Registre-se, ainda, que é um dos mais insistentes e graves equí- vocos, esse de se pensar que o faturamento de uma empresa re- presenta, para o empresário, a disponibilidade completa de sua expressão financeira, porquanto – e isso nem sempre é lembrado –
19 No mesmo sentido: STJ, REsp 399.569/RJ; EREsp 311.394/PR, AgRg no Ag 777.351/SP; REsp 866.382/RJ.
20 Gasto é gênero, custos e despesas suas espécies. Custos são os gastos aplicados diretamente na produção de bens e serviços. Despesas são os gastos destinados à manutenção das atividades empresariais.
são variados e inúmeros os dispêndios para produzir os bens e/ou os serviços que compõem o faturamento: salários, fornecedores, tributos, aluguéis, encargos financeiros, matérias primas, secundá- rias e de embalagem; comissões, provisões para devedores duvidosos, FGTS, INSS, IRPJ, CSSL e muitos outros encargos; portanto, reter 15% do faturamento de qualquer empresa é o mesmo que decretar a sua derrocada. (STJ, 1ª T., AgRg no REsp 1.411.184/RN, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j., 06.02.2014). (grifo nosso).
A discussão de a penhora de faturamento não inviabilizar a atividade chegou ao Supremo Tribunal Federal por ofensa ao exercício de atividade econômica e à livre con- corrência, no seguinte julgado:
Penhora de faturamento. 20% da receita de empresa do ramo de distribuição de combustíveis e derivados.
- Esta Corte firmou uma série de precedentes fundados, entre outros pontos, no direito constitucional ao exercício de atividade econômica lícita e de livre concorrência, que impedem a adoção de medidas constritivas desproporcionais e indiretas destinadas a dar efetivi- dade a arrecadação tributária (sanções políticas).
- No acórdão-recorrido, o Tribunal de origem condicionou a penhora de faturamento ao esgotamento de outros meios menos gravosos de satisfazer a obrigação tributária, mas não examinou argumentação específica da parte-agravante, no sentido de que as margens de lu- cro próprias da indústria da distribuição de combustíveis eram muito pequenas, de modo a tornar a penhora verdadeiramente confiscatória. (STF, 2ª , AgRg no RE 370.202/RS. Rel. Min. Joaquim Barbosa, j., 19.10.2010).
Para faturar, a empresa necessita realizar diversos dispêndios – com fornecedores, produtos, matérias-primas, embalagens, material secundário, serviços, salários, alugue- res, tributos, comissões, propaganda, remuneração a dirigentes, provisões, entre tantos outros encargos necessários à produção de bens e serviços da atividade empresarial.
Sem a realização desses gastos, a empresa e o faturamento simplesmente não exis- tem e jamais é possível desconhecer essa realidade.
Com isso, é fácil observar que a expressão faturamento usada pela lei e pela juris- prudência não possui o sentido técnico da “receita bruta faturada”, mas o sentido vulgar de receita líquida ou lucro. Essa a razão da necessidade da integração com os critérios subjetivos da excepcionalidade da penhora, de não inviabilizar a atividade e da menor gravosidade da execução.21
Embora a penhora se denomine faturamento, cuja ideia é do faturamento bruto, ela corresponde ao faturamento líquido – receita bruta menos os gastos – custos e despesas, o real patrimônio – presente e futuro do devedor. Realizar a penhora de fatu- ramento sem as cautelas de excluir os custos e as despesas é ofender a gravosidade da execução e inviabilizar a atividade empresarial.
21 Menor gravosidade da execução específica, art. 716, do CPC de 1973, repetida no art. 866, § 3º e art. 867, do CPC de 2015;
geral – arts. 620 e 805, respectivamente.
- Faturamento – Posição do STJ
O Superior Tribunal de Justiça chegou a admitir a penhora de até 30% do fatura- mento, a exemplo da pensão alimentícia, no binômio: possibilidade – necessidade. Há certa semelhança no limite da possibilidade de a empresa suportar a penhora, mas a realidade é outra.
Execução fiscal. Penhora sobre faturamento de empresa. Penho- ra. Incidência sobre o faturamento de empresa (30%). (STJ, 1ª T., REsp 182.220/SP, Rel. Min. José Delgado, j. 05.11.98).
Execução fiscal. Penhora. Nomeação de fiscal de tributos para administrar a penhora do percentual 30% do faturamento. (STJ, 2ª T., MC 548-RS e REsp 163.402-RS, Rel. Min. Francisco Peçanha Mar- tins, j. 20.05.99).22
Em outra fase o Superior Tribunal de Justiça começa a reduzir o percentual da penhora de faturamento até chegar a 2% (dois por cento), mas sempre sem explicar se sobre o lucro ou a receita bruta ou líquida.
Penhora sobre o faturamento da empresa.
- Embargos de Declaração acolhidos, parcialmente, para reduzir o percentual da penhora sobre o faturamento para 10%. (STJ, EDcl no AgRg no Ag 453.703/RJ, Rel. Min. Luz Fux, j., 16.12.2003).
Habeas Corpus. Depositário judicial. Penhora incidente sobre 30% do faturamento diário da empresa. Percentual demasiado gravoso para o devedor. Aplicação do art. 620 do CPC. Redução para 6%. (STJ, 4ª T. RHC 15.058/SP, Rel. Min. Barros Monteiro, j., 25.11.2003).
Processual Civil. Agravo Regimental.
- O recurso especial que se proveu adveio de decisão interlocutória, em face de agravo de instrumento ofertado pela agravada contra de- cisório de primeiro grau que deferiu pedido de penhora de 4% do seu faturamento. (STJ, 1ª T., AgRg no REsp 326.307/SP, Rel. Min. Jose Delgado. j., 11.09.2001).
Penhora sobre o faturamento. Princípio da menor onerosidade.
No caso concreto, o Tribunal manteve a penhora do faturamento da empresa ora recorrente, no percentual de 2,5%, com base na aná- lise do conjunto fático-probatório dos autos, o qual não pode ser examinado por esta Corte em face da Súmula 7/STJ. (STJ, 1ª T, AgRg no REsp 1.307.707 RS, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j., 06.11.2014)
Execução Fiscal. Alegação da Empresa executada de Existência de diversas penhoras somando 20% do seu faturamento. Assertiva do acórdão impugnado de que a constrição de mais 2% desse fatura- mento, na presente execução fiscal, não inviabiliza o funcionamento da empresa. Agravo Regimental da empresa desprovido.
22 No mesmo sentido: STJ, 2ª T., REsp, 208.170/SP, j., 15.05.2001; REsp. 287.603-PR, j., 01.04.2003.
- A constrição sobre o faturamento da empresa, qualquer que seja o seu percentual, somente se mostraria ajustado às garantias da parte executada, se fosse demonstrada, previamente, a taxa de lucro (%) do empreendimento econômico e das suas operações, de sorte que a medida incidisse sobre essa parcela; sendo desconhecido esse ele- mento, a providência judicial parece trabalhar com a suposição (irrealística) de que o faturamento é igual ao lucro, quando para a sua obtenção há vários custos fixos e agregados; sem a análise da pla- nilha de custos, não é possível asseverar a margem de
- Contudo, tendo a penhora recaído sobre percentual do faturamen- to da empresa (art. 655, VII do CPC ) e o Tribunal a quo, levando em consideração as outras penhoras, reduzido o percentual defe- rido pelo MM. Juiz para 2%, […]. (STJ, 1ª T., AgRg no AgRg no Ag 405.460/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j., 03/05/2012).
Com a diversidade de percentuais o Superior Tribunal de Justiça acabou por definir o percentual de 5% (cinco por cento) do faturamento, mas sem desprezar o critério sub- jetivo de não inviabilizar atividade empresarial:
Corte (STJ) já se manifestou inúmeras vezes, sobre a possibilidade da penhora sobre o faturamento, em percentual razoável (normal- mente 5%) e desde que não prejudique as suas atividades. (STJ, 1ª T., AgRg na MC 19681/SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j., 11.12.2012).23
Portanto saber se o percentual fixado é sobre o lucro, faturamento líquido ou lucro, com ou sem a dedução dos custos e despesas, é necessidade nuclear e elementar para aferir se a penhora inviabiliza ou não a atividade empresarial.
- Demonstrações contábeis
A escrita contábil é obrigação do empresário e é o documento oficial da empresa para aferir o patrimônio empresarial, o faturamento, os custos, as despesas, os lucros e prejuízos da atividade empresarial, na forma do art. 1.179 do Código Civil:
Art. 1.179. O empresário e a sociedade empresária são obrigados a seguir um sistema de contabilidade, mecanizado ou não, com base na escrituração uniforme de seus livros, em correspondência com a documentação respectiva, e a levantar anualmente o balanço patri- monial e o de resultado econômico.
Os registros contábeis, o Balanço Patrimonial, as demonstrações financeiras e de resultados, são atividades exclusivas dos contadores com a profissão regulada pelo
23 No mesmo sentido: STJ, AgRg no REsp. 1.320.996/RS; AgRg no Ag. 1.359.497/RS; AgRg no REsp. 1.328.516/SP; AgRg no AREsp. 242.970/PR.
Decreto-Lei nº 9.710, de 1946, com força de lei, e pelos Conselhos de Contabilidade, que são os órgãos de registro e habilitação desses profissionais. Registros contábeis que gozam da presunção de veracidade, conforme art. 1.188, do Código Civil:
Art. 1.188. O balanço patrimonial deverá exprimir, com fidelidade e clareza, a situação real da empresa e, atendidas as peculiaridades desta, bem como as disposições das leis especiais, indicará, distinta- mente, o ativo e o passivo.
A legislação tributária também estabelece presunção expressa da veracidade da es- crita contábil a favor do empresário dos fatos nela registrados, na forma do § 1º, do art. 9º, do Decreto-Lei 1.598, de 1977 – com força de lei, repetido pelo art. 923, do RIR/99, aprovado pelo Decreto nº 3.000, de 1999.
Art. 9º […]
- 1º – A escrituração mantida com observância das disposições le- gais faz prova a favor do contribuinte dos fatos nela registrados e comprovados por documentos hábeis, segundo sua natureza, ou assim definidos em preceitos legais. (Decreto-Lei nº 1.598, de 1977 – com força de lei).
A responsabilidade tanto do contador quanto do empresário pelos registros contá- beis é objeto das disposições do arts. 1.177 e 1.178, do Código Civil,24 que trata o conta- bilista como preposto do empresário e define a responsabilidade individual de cada um deles, além da responsabilização penal nos arts. 342 e 343, do Código Penal.
Importante na penhora de faturamento, que sempre deveria vir para os autos da execução, sem prejuízo do exame aprofundado da escrita contábil pelo administrador ou depositário nomeado, é o Demonstrativo de Resultados do Exercício (DRE), documento da escrita contábil, mensal ou anual, em que se demonstra com muita clareza e objeti- vidade, a qualquer leigo na matéria, a receita bruta – o faturamento, e os gastos, custos e despesas da atividade empresarial desenvolvida.
- O Imposto de Renda das empresas – Presunção de lucros
O Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) tributa o Lucro Real, Presumido ou Arbitrado. Interessa no estudo da penhora de faturamento o sistema do Lucro Pre- sumido, em que não se exige a escrita contábil completa na apuração do efetivo lucro, custos e despesas. A lei presume o lucro, os custos e as despesas da atividade desenvol- vida, daí sua importância.
24 Art. 1.177. Os assentos lançados nos livros ou fichas do preponente, por qualquer dos prepostos encarregados de sua escri- turação, produzem, salvo se houver procedido de má-fé, os mesmos efeitos como se o fossem por aquele. Parágrafo único. No exercício de suas funções, os prepostos são pessoalmente responsáveis, perante os preponentes, pelos atos culposos; e, perante terceiros, solidariamente com o preponente, pelos atos dolosos.
Art. 1.178. Os preponentes são responsáveis pelos atos de quaisquer prepostos, praticados nos seus estabelecimentos e relativos à atividade da empresa, ainda que não autorizados por escrito.
A Lei nº 9.249, de 1995, no art. 15, repetido pelo art. 519, do Regulamento do Im- posto sobre a Renda, aprovado pelo Decreto nº 3.000, de 1999, mostra-nos, partindo do faturamento, os percentuais da presunção de lucro, custos e despesas de cada atividade empresarial. Vejamos:
Art. 15. A base de cálculo do imposto, em cada mês, será determi- nada mediante a aplicação do percentual de 8% (oito por cento) so- bre a receita bruta auferida mensalmente, […] (NR., Lei nº 12.973, de 2014).
- 1º Nas seguintes atividades, o percentual de que trata este ar- tigo será de:
- – um inteiro e seis décimos por cento, para a atividade de re- venda, para consumo, de combustível derivado de petróleo, álcool etílico carburante e gás natural;
- – dezesseis por cento:
- para a atividade de prestação de serviços de transporte, exceto o de carga, para o qual se aplicará o percentual previsto no caput deste artigo;
- para as pessoas jurídicas a que se refere o inciso III do art. 36 da Lei nº 981, de 20 de janeiro de 1995, observado o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 29 da referida Lei;
- – trinta e dois por cento, para as atividades de: (Vide MP nº 232, de 2004)
- prestação de serviços em geral, exceto a de serviços hospitalares e de auxílio diagnóstico e terapia, patologia clínica, imagenologia, anatomia patológica e citopatologia, medicina nuclear e análises e patologias clínicas, desde que a prestadora destes serviços seja orga- nizada sob a forma de sociedade empresária e atenda às normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa;(NR, Lei nº 727, de 2008).
- intermediação de negócios;
- administração, locação ou cessão de bens imóveis, móveis e direi- tos de qualquer natureza;
- prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria credi- tícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção de riscos, adminis- tração de contas a pagar e a receber, compra de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços (factoring).
- prestação de serviços de construção, recuperação, reforma, am- pliação ou melhoramento de infraestrutura vinculados a contrato de concessão de serviço público. (Incluído pela Lei nº 973, de 2014).
- 2º No caso de atividades diversificadas será aplicado o percentual
correspondente a cada atividade. (grifo nosso).
Este é um critério objetivo e legal de presunção de lucros, custos e despesas da lei do imposto de renda das empresas, com utilidade na fixação do percentual da penhora de faturamento e pode dispensar os critérios subjetivos de não inviabilizar a atividade e
a gravosidade da execução. Para algumas atividades25 não é possível desprezar o exame pelo menos do Demonstrativo de Resultados do Exercício (DRE) que auxilia a superar a dificuldade para fixar o percentual da penhora.
- Fixação do percentual da penhora de faturamento
Vimos que a lei do imposto de renda das empresas garante critério objetivo e se- guro de presumir o lucro, os custos e as despesas da atividade empresarial. Com base nesse critério é possível fixar o percentual da penhora de faturamento, sem inviabilizar a atividade empresarial, ofender a gravosidade ou a excepcionalidade da penhora.
Em resumo, a presunção de lucros e gastos – custos e despesas da lei do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), conforme a atividade desenvolvida:
- – Comércio, indústria e serviços transportes de cargas: 8,0% (lu- cros) e 92,0% (gastos);
- – Prestação de serviços em geral: 32,0% (lucros) e 68,0% (gastos);
- – Prestação de serviços de transporte, exceto de carga: 16,0% (lu- cros) e 84,0% (gastos);
- – Revenda de combustível derivado de petróleo, álcool etílico car- burante e gás natural: 1,6% (lucros) e 98,4% (gastos);
Presunção de lucros de 32,0%, 16,0% 8,0% e 1,6%, do faturamento bruto; presunção
de custos e despesas de 68%, 84%, 92% e 98,4%, do faturamento bruto.
Com esses elementos, basta examinar o Demonstrativo de Resultados do Exercício (DRE) para aferir o limite do percentual da penhora de faturamento.
Vimos que o Superior Tribunal de Justiça, sem afastar o critério subjetivo, fixa limite objetivo de 5%, mas sem explicar se é sobre o lucro, a receita bruta ou líquida. Essa falta de definição gera o grave equívoco de inviabilizar a atividade empresarial, conforme podemos ver com clareza nos exemplos a seguir:
- penhorar 5% (cinco por cento) do faturamento bruto de uma em- presa comercial ou industrial, com presunção de lucros de 8% e 98% de presunção de custos e despesas, é perfeitamente possível e razoá- vel, sem qualquer ofensa à gravosidade ou inviabilidade da empresa;
- penhorar os mesmos 5% do faturamento bruto de uma empresa prestadora de serviços, com presunção de lucros de 32% e 68% de presunção de custos e despesas, pode ser insignificante e é possível penhorar 10% ou 20% do faturamento bruto sem inviabilizar a ativi- dade ou ofender a gravosidade da execução;
- agora, penhorar os mesmos 5% (cinco por cento), do faturamento bruto de um revendedor de combustível derivado de petróleo, ál- cool etílico carburante e gás natural, com presunção de lucros de
25 As empresas prestadoras de serviços de limpeza e segurança, por exemplo, com elevados custos de mão de obra, superiores 68% da receita.
1,6% e 98,6% de presunção de custos e despesas, será, sem dúvida, inviabilizar por completo suas atividades. Mesmo a penhora de 1,5% (um e meio por cento) do faturamento bruto pode inviabilizar suas atividades;
- de outro lado, penhorar 5% do faturamento líquido ou do lucro de qualquer atividade, seja do prestador de serviços ou do revendedor de combustíveis, não inviabiliza a atividade e não ofende a gravosi- dade da execução.
Temos assim, com os elementos da lei do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), um critério objetivo para permitir a fixação, com segurança, do percentual da penhora de 70%, 80% ou 90% do faturamento líquido ou do lucro empresarial, percentuais jamais cogitados pelas decisões judiciais.
Adotar percentual sobre o faturamento bruto sempre vai exigir observar maior precisão com os custos e as despesas26 para não inviabilizar a empresa e não ofender a gravosidade da execução.
- Programas de recuperação fiscal – parcelamentos especiais
Outro parâmetro lógico e razoável para se fixar o percentual da penhora de fatu- ramento são os programas especiais de parcelamentos de dívidas fiscais, a exemplo dos programas de Recuperação Fiscal – Refis, Paes e outros, concedidos pela União, pelos Estados e pelos Municípios que se multiplicaram nos últimos anos e consideram o máximo do parcelamento mensal de 1,5% (um e meio por cento) da receita bruta – faturamento bruto do devedor.
O Refis exigiu até parcelas inferiores, de 0,3%, 0,6%, 1,2%, da Receita Bruta,27 con- forme a atividade do devedor. Além disso, o Refis I não fixou prazo para o devedor quitar a dívida, o que se mostra em conformidade com a penhora de faturamento e a recupera- ção da empresa em benefício da manutenção da atividade empresarial produtiva.
Nas leis que sucederam o Refis, fixou-se prazo de 15 anos ou 180 meses, enquanto a Lei nº 8.620, de 1993 e a MP nº 255 superaram esse prazo e permitiram parcelamento até 20 anos, ou 240 meses, para o pagamento da dívida. O longo prazo demonstra que a penhora, embora deva ser eficiente e com razoável duração do processo,28 é possível certa elasticidade na comprovação da efetiva dificuldade financeira e ausência de bens do devedor.
26 Despesas destituídas das necessidades da empresa devem ser excluídas (arts. 47 a 50, da Lei 4.506, de 1964, reproduzida pelos arts. 299 e segs., do RIR – Decreto nº 3000, de 1999).
27 Art. 1º É instituído o Programa de Recuperação Fiscal – Refis, destinado a promover a regularização de créditos da União, decorrentes de débitos de pessoas jurídicas, relativos a tributos e contribuições, administrados pela SRF e pelo– INSS, […]. Art. 2º […] § 4º O débito consolidado na forma deste artigo: […] II – será pago em parcelas mensais […], sendo o valor de cada parcela determinado em função de percentual da receita bruta (…): a) 0,3%, no caso de pessoa jurídica […]; b) 0,6% (seis décimos por cento), no caso de pessoa jurídica […]; c) 1,2%, no caso de pessoa jurídica […]; d) 1,5%, nos demais casos. […]
28 CF, art. 5º LXXVIII, a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.(EC nº 45, de 2004) e CPC de 2015: Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: II – velar pela duração razoável do processo (grifo nosso).
- Penhoras sucessivas
Nada impede a realização de diversas penhoras sobre o mesmo bem. Um imóvel pode ser penhorado várias vezes, notadamente se o valor da avaliação garantir as execuções objeto da constrição, isto é o ideal, mas não necessariamente. É o credor que deve saber se a penhora ou a soma delas interessa ou não, ou a alternativa de penhora mais eficaz.
Assim, na multiplicidade de execuções é perfeitamente possível a penhora suces- siva do faturamento, mas, cuidado, é sempre penhora sobre o mesmo e único bem – o faturamento.
Por isso, não é possível exigir o depósito em cada execução em que se fez a mesma penhora, mesmo decretada por diferentes juízes. O faturamento é único, mesmo que o devedor possua diversas filiais, a empresa é única.
Contudo, caso o percentual antes fixado permita ampliar, é perfeitamente possível exigir o depósito complementar da penhora, sempre com a nomeação de administrador para apresentar laudo sobre o limite da possibilidade de o devedor suportar a penhora, sem inviabilizar a atividade ou ofender a gravosidade da execução.
Não sendo cabível o depósito, a partir da segunda penhora a constrição somente se torna efetiva – para exigir o depósito – após garantir a primeira execução, e assim sucessivamente. Neste aspecto, a penhora de faturamento conforma-se com a penhora sobre direitos, realizada no rosto dos autos, de que cuida o art. 674, do CPC de 1973, repetido no art. 860, do CPC de 2015.
Na multiplicidade de penhoras sobre o mesmo bem, os credores disputam o dinhei- ro, conforme a preferência do crédito, adquirida pela anterioridade da penhora ou pelo título de preferência.
Credor com título de preferência não depende da anterioridade da penhora, mas precisa penhorar o mesmo bem para disputar o dinheiro da penhora. A execução fiscal municipal cede lugar à execução estadual e esta à execução federal, pela preferência do título executivo.29
A penhora de faturamento, por ser excepcional, deveria se conformar com a jus atrativa do juízo universal e com a prevenção do primeiro juiz que a decretou, mas não é assim, e mesmo o art. 28, da LEF, que permite a reunião de execuções, não soluciona a questão.
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar, sob o rito dos recursos repetitivos, o REsp 1.158.766-RJ, 1a Seção, Rel. Min. Luiz Fux, v.u., j., 08.09.2010, entendeu que esse dis- positivo do art. 28, da LEF encerra uma faculdade e não uma obrigação ao juiz.
- Recuperação de empresas
Para o processamento do plano de recuperação judicial é exigida, na forma do art. 6º, § 7º, da Lei nº 11.101, de 2005, dita, Lei de Recuperação e Falências (LRF), a certi- dão negativa ou positiva, com efeito de negativa de tributos,30 em razão de as dívidas tributárias não se subordinarem ao plano de recuperação:
29 Arts. 612, 711 e 709, do CPC de 1973, repetido nos arts. 797, 905 e 908, CPC de 2015.
30 CTN: Art. 205. A lei poderá exigir que a prova da quitação de determinado tributo, quando exigível, seja feita por certidão negativa […] Art. 206. Tem os mesmos efeitos previstos no artigo anterior a certidão de que conste a existência de créditos não vencidos, em curso de cobrança executiva em que tenha sido efetivada a penhora, ou cuja exigibilidade esteja suspensa.
Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.
[…]
- 7º As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo de- ferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de par- celamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica. (grifo nosso).
Exigência da lei desprovida de sentido lógico e razoável, em razão de muitas em- presas chegarem à situação de crise exatamente pelo endividamento tributário. Sem patrimônio ou com patrimônio essencial, caracteriza-se a menor onerosidade, excepcio- nalidade e autoriza a penhora de faturamento, daí sua semelhança com a recuperação de empresa, de que cuida o art. 47, da LRF:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a supe- ração da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à ativi- dade econômica. (grifo nosso).
Desse modo, a penhora de faturamento permite superar a exigência legal da certi- dão, ainda que positiva com efeito de negativa, e permitir ajuizar o pedido, sem invia- bilizar a empresa ou o plano de recuperação judicial.
O Superior Tribunal de Justiça, contrariando expressamente o art. 6º, § 7º, da LRF,
não permitiu a penhora que inviabilize o plano de recuperação judicial. Confira-se:
Recuperação Judicial. Transferência de valores levantados em cumprimento de plano homologado. Garantia de Juízo de Execu- ção Fiscal em trâmite simultâneo. Inviabilização do plano de Re- cuperação Judicial.
- As execuções fiscais ajuizadas em face da empresa em recuperação judicial não se suspenderão em virtude do deferimento do processa- mento da recuperação judicial ou da homologação do plano aprova- do, ou seja, a concessão da recuperação judicial para a empresa em crise econômico-financeira não tem qualquer influência na cobrança judicial dos tributos por ela
- Embora a execução fiscal, em si, não se suspenda, são vedados atos judiciais que inviabilizem a recuperação judicial, ainda que indiretamente resulte em efetiva suspensão do procedimento exe- cutivo fiscal por ausência de garantia de juízo. (STJ, 3ª T., REsp 166.600-RJ, Rel. Min. Nancy Andrigy, j. 04.12.2012 (grifo nosso).
Com essa decisão no REsp 1.166.600-RJ, o STJ, por via transversa, suspendeu a
execução fiscal, ao fixar: “são vedados atos judiciais que inviabilizem a recuperação
judicial, ainda que indiretamente resulte em efetiva suspensão do procedimento execu-
tivo fiscal por ausência de garantia de juízo.”
Embora se mostre inteiramente justa e atenda aos fins sociais, a excelência da
decisão não esconde a afronta ao expresso texto da lei.
Com a penhora de faturamento é possível observar a lei e viabilizar o plano de recuperação judicial, sem inviabilizar a atividade do devedor, e sem frustrar a Fazenda Pública de receber os seus créditos preferenciais.
Na acepção da excepcionalidade da penhora, temos uma espécie de parcelamento judicial da dívida, com rateio do dinheiro aos credores, conforme as preferências do crédito,31 com excelente resultado na recuperação de empresa em crise, ainda que o devedor não formalize o pedido de recuperação judicial.
- Penhora Penhora pagamento. Embargos. Efeito
Conforme a fase da execução, a penhora tanto pode ser garantia ou pagamento. Esse pode ser um problema em razão de o CPC de 1973, com a alteração da Lei 11.382, de 2006, mandar entregar o dinheiro ao exequente para imputar ao pagamento (art. 655-A, § 3º).
O CPC de 2015, com maior cautela, fez pequena correção e manda entregar o di- nheiro ao juízo e não ao exequente, assim:
O juiz nomeará administrador-depositário, o qual submeterá à apro- vação judicial a forma de sua atuação e prestará contas mensalmente, entregando em juízo as quantias recebidas, com os respectivos balan- cetes mensais, a fim de serem imputadas no pagamento da dívida.32
Entregar o dinheiro ao credor não é tarefa tão simples. Primeiro, pode haver outros credores com maior preferência; segundo, a penhora pode não ser pagamento, mas ga- rantia. Será garantia se feita no prazo dos Embargos do Devedor; será pagamento após a fase de Embargos, porque decididos ou não opostos.
Cuidando-se de pagamento e não de garantia, cabe de fato a entrega das impor- tâncias depositadas para “[…] serem imputadas no pagamento da dívida”33, isso com único credor. Com outros credores o pagamento depende da instauração do concurso de preferências.34
Tratando-se de garantia, não pode ser imputada ao pagamento, ainda que o juiz não atribua o efeito suspensivo aos Embargos, na forma do art. 739-A, do CPC de 1973, repetido pelo art. 919, do CPC de 2015. É que a penhora de faturamento, embora parcial e incompleta,35 possui o efeito de suspender a execução e a exigibilidade do crédito,
31 Arts. 612, 711 e 709, do CPC de 1973, repetido nos arts. 797, 905 e 908, CPC de 2015.
32 Art. 866, § 2º do CPC de 2015.
33 Cf. Art. 655 – A, § 3º, do CPC de 1973, repetido no art. 866, § 2º, do CPC de 2015.
34 Arts. 612, 711 e 709, do CPC de 1973, repetido nos arts. 797, 905 e 908, CPC de 2015.
35 O STJ entende que a penhora, mesmo parcial, inválida ou incompleta, admite a oposição dos Embargos. Realizada a penhora e começa a contagem do prazo de 30 dias para oposição deles: STJ, Ag 302.608-RS; REsp 236.685-ES; REsp 152.434-MG; REsp 240.682-PE; REsp 244.923-RS.
enquanto não transitarem em julgado os Embargos, a teor do arts. 151, II e 206, do CTN, e art. 32, § 2º, da LEF.
Art. 32. […]
[…]
- 2º Após o trânsito em julgado da decisão, o depósito, […] será devolvido ao depositante ou entregue à Fazenda Pública, […]. (grifo nosso).
Na execução fiscal, a penhora é requisito para admissibilidade dos Embargos do De- vedor, na forma do art. 16, da LEF. Na execução civil, esse requisito foi dispensado após a Lei nº 11.382, de 2006, que deu nova redação ao art. 736, do CPC de 1973, repetido no art. 914 do CPC de 2015.
O Superior Tribunal de Justiça após admitir em diversos julgados36 o efeito suspen- sivo da execução fiscal, com a oposição dos Embargos, independente de pedido, acabou por inverter a jurisprudência e exigir a necessidade de o juiz conceder o feito suspensivo ao julgar o Recurso Repetitivo, REsp, 1.272.827/PE, 1ª Seção, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, v.u., j., 22.05.2013.
Com essa decisão, em sede de Recurso Repetitivo do STJ, foi ajuizada a ADI nº 6165-DF no Supremo Tribunal Federal, depois de negada a Repercussão Geral no RE 626.468-RS, sobre o art. 739-A, do CPC de 1973, repetido no art. 919, do CPC de 2015 e o efeito dos embargos na execução fiscal.
- Faturamento: Fases processuais. Parcelamento
Embora não seja direito subjetivo do devedor impor o bem à penhora, confor- me pacificou o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Repetitivo REsp 1.337.790-PR, Rel. Min. Herman Benjamin, j., 12.06.2013,37 o faturamento por ser di- nheiro e penhora excepcional, diferente de outros bens, pode ser objeto de nomeação à penhora38 em qualquer fase da execução e não apenas no momento da citação, e servir à substituição de outros de que trata o art. 15, da LEF.39
Nada melhor do que o próprio devedor, conhecedor de suas necessidades em ofe- recer parte do faturamento à penhora, seja para garantia ou para pagamento da dívida.
36 Admitiam o efeito suspensivo da execução fiscal: STJ, 1ª T., REsp 1.291.923-PR; REsp.1.130.689-PR; AgRg no REsp 1.150.534-MG.
37 Nomeação de bens à penhora em Execução Fiscal. Recurso Repetitivo. Na execução fiscal, o executado não tem direito sub- jetivo à aceitação do bem por ele nomeado à penhora em desacordo com a ordem estabelecida no art. 11 da Lei 6.830/1980 e art. 655 do CPC na hipótese em que não tenha apresentado elementos concretos que justifiquem a incidência do princípio da menor onerosidade (art. 620 do CPC) […]. Precedentes. 1ª S., EREsp 1.116.070-ES; 2ª T., AgRg no Ag 1.372.520-RS (STJ, RR, REsp 1.337.790-PR, Rel. Min. Herman Benjamin, j., em 12.06.2013).
38 Art. 9º – Em garantia da execução, […], o executado poderá: […]. III – nomear bens à penhora, observada a ordem do artigo 11;
39 Art. 15 – Em qualquer fase do processo, será deferida pelo Juiz: I – ao executado, a substituição da penhora por depósito
em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia; e […] (NR, Lei nº 13.043, de 2014).
Com a aceitação do credor, pode haver dispensa de laudo sobre o limite da penho- ra, salvo com outros credores e juízos diferentes. Nesta situação, é sempre necessária a nomeação de administrador para estudo do limite da penhora e a vinda aos autos do Demonstrativo de Resultados (DRE) da executada.
- Ato simples e Penhora provisória. Revisão
A decisão que decreta a penhora de faturamento deveria sempre adotar o sistema de ato complexo da administração pública. Ato simples esgota-se na decisão singular destinada a produzir o resultado pretendido. Ato complexo depende de outro ato para produzir o resultado.
A decisão judicial, por definição, é ato simples, mas na penhora de faturamento a recomendação é primeiro decretar a penhora, sem fixar o percentual, ou se fixar, ser em caráter provisório, a exemplo da pensão alimentícia. Com a vinda aos autos do Demons- trativo de Resultados (DRE) ou parecer do administrador sobre o limite da possibilidade, fixar o percentual.
Possuindo desde logo os elementos da atividade empresarial, faturamento, custos e despesas, pelo Demonstrativo de Resultados é possível fixar desde logo o percentual da penhora.
Fixada em caráter provisório, com a vinda das informações contábeis fixa-se em “definitivo”. Definitivo em termos, a qualquer momento o percentual pode ser revisto e alterado, com mais uma semelhança da pensão alimentícia.
- Nomeação de depositário ou administrador
É necessária a nomeação de depositário ou administrador, qualquer que seja o bem penhorado, por se tratar de requisito de formalidade do auto ou do termo de penhora, na forma do art. 148 e 665, IV, do CPC de 1973, repetido no art. 159 e 838, IV, do CPC de 2015.
Art. 159. A guarda e a conservação de bens penhorados, arrestados, sequestrados ou arrecadados serão confiadas a depositário ou a admi- nistrador, não dispondo a lei de outro modo.
Art. 838. A penhora será realizada mediante auto ou termo, que con- terá:
[…]
- – a nomeação do depositário dos
Depositário ou administrador são auxiliares do juízo (art. 149), devem ser remu- nerados (art. 159) e o juiz pode nomear mais de um se houver necessidade (art. 160, Par. Único, todos do CPC de 2015). É costume não remunerar, mas na penhora de fatura- mento, pela necessidade de o administrador apresentar trabalho técnico contábil, ver- dadeiro laudo pericial, para permitir a fixação do percentual do faturamento, é comum remuneração desses profissionais incumbidos da função.
Na penhora de faturamento o depositário ou administrador assume muitas obriga- ções, não só de guarda e conservação do bem penhorado, conforme prevê o art. 655-A,
- 3º, do CPC de 1973, repetido pelo art. 866, § 2º, do CPC de 2015:
Art. 866. […]
- 2º O juiz nomeará administrador-depositário, o qual submeterá à aprovação judicial a forma de sua atuação e prestará contas mensalmente, entregando em juízo as quantias recebidas, com os respectivos balancetes mensais, a fim de serem imputadas no paga- mento da dívida.
O depositário ou administrador deve apresentar trabalho técnico contábil para de- monstrar e comprovar a situação do devedor e o limite do percentual da penhora de faturamento, sem inviabilizar a atividade empresarial.
Esses balancetes mensais, referidos pelo § 2º do art. 866 do CPC de 2015, é um trabalho técnico e pode se resumir ao Demonstrativo de Resultado do Exercício (DRE), subscrito pelo contador, pelo representante legal da empresa e pelo depositário.
O juiz pode nomear o credor ou o devedor para as funções de administrador ou depositário, se houver acordo entre eles. Não havendo acordo, deve nomear outro para o desempenho da função, na forma do art. 866, do CPC de 2015.40.
Art. 869. O juiz poderá nomear administrador-depositário o exequen- te ou o executado, ouvida a parte contrária, e, não havendo acordo, nomeará profissional qualificado para o desempenho da função.
Embora não exista a prisão pela infidelidade, após a edição da Súmula Vinculante no 25, do STF,41 o depositário ou administrador pode responder pela infidelidade civil e pelos danos causados, sem prejuízo da responsabilidade penal por crime contra a ad- ministração da justiça e sanção por ato atentatório à dignidade da justiça, na forma do art. 161, do CPC 2015.42
- Prova – cognição sumária e exauriente
Para o exercício do pleno direito de defesa e do contratório na comprovação de um fato, há necessidade de o acusado possuir a possibilidade da ampla dilação probatória para permitir ao julgador exercer o juízo de valor ou a cognição exauriente das provas coligidas do fato em análise.
40 Há diversas situações previstas nos Arts. 553; 730; 740, § 2º; 836, § 2º; 840; 856, § 1º; 862; 863; 868; 869, §§ 1º e 2º, todos do CPC de 2015, com exigência de nomeação de depositário ou administrador.
41 CF/88, art. 5º, LXVII. Súmula Vinculante 25: É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de
depósito. O STJ, RR, no REsp. 914.253-SP, Rel. Min. Luiz Fux, j, 04.12.2000.
42 Art. 161. O depositário ou o administrador responde pelos prejuízos que, por dolo ou culpa, causar à parte, perdendo a remuneração que lhe foi arbitrada, mas tem o direito a haver o que legitimamente despendeu no exercício do encargo. Parágrafo único. O depositário infiel responde civilmente pelos prejuízos causados, sem prejuízo de sua responsabilidade penal e da imposição de sanção por ato atentatório à dignidade da justiça.
Na penhora de faturamento não é diferente, mas costuma-se decretá-la sem o exame da situação patrimonial/contábil do devedor, seja com uma ou várias execuções, com um ou diversos credores. É essa falta de cautela judicial que pode inviabilizar a atividade empresarial, se o percentual for fixado sem estudo técnico da possibilidade ou na presunção de lucro, custos e despesas do imposto de renda das empresas.
A reforma dessa decisão que decreta a penhora e fixa o percentual desafia o recurso de Agravo de Instrumento com pedido de medida liminar para modificar a penhora ou o percentual fixado.
Essa apreciação da medida liminar costuma ocorrer em cognição sumária, com pouco ou nenhum elemento de prova e quase sempre sem o exercício do contraditório, daí a dificuldade na fixação do percentual ou modificação da penhora, sem elementos objetivos concretos da situação patrimonial do devedor.
Não existindo trabalho técnico do administrador nomeado, com o Demonstrativo de Resultados do Exercício (DER) da empresa é perfeitamente possível o exame desses fatos.
- Pagamento aos credores
Cuidando-se de única execução ou mais, mas com único credor, não haverá grande
dificuldade no levantamento do dinheiro para pagamento ao credor.
É necessário apenas saber se a penhora é pagamento ou garantia da execução. Tratando-se de garantia, será necessário aguardar o trânsito em julgado dos Embargos do Devedor para o levantamento do dinheiro e pagamento do credor, a teor do art. 32, da LEF. Se pagamento, com único credor, levanta-se o dinheiro até o limite do crédito e extingue a execução.
Na existência de múltiplas execuções, vários credores, seguir o texto frio da lei43 pode levar a grave equívoco no levantamento do dinheiro, em razão do § 3º, do art. 655-A, do CPC de 1973, acrescentado pela Lei nº 11.382, de 2005, que positivou a penhora de faturamento mandar entregar ao exequente as quantias recebidas, a fim de serem im- putadas no pagamento da dívida.
O CPC de 2015 melhorou a redação ao determinar a entrega do dinheiro ao juízo
da execução. Confira-se:
Art. 866 […]
[…]
- 2º O juiz nomeará administrador-depositário, o qual submeterá à aprovação judicial a forma de sua atuação e prestará contas mensal- mente, entregando em juízo as quantias recebidas, com os respec- tivos balancetes mensais, a fim de serem imputadas no pagamento da dívida (Destacamos).
O art. 709, do CPC de 1973, repetido no art. 905, CPC de 2015, faz expressa refe- rência ao levantamento do dinheiro da penhora de faturamento:
43 Direito não é o texto de lei, é o sistema normativo construído pelo interprete e aplicador da lei.
Art. 905. O juiz autorizará que o exequente levante, até a satisfação integral de seu crédito, o dinheiro depositado para segurar o juí- zo ou o produto dos bens alienados, bem como do faturamento de empresa ou de outros frutos e rendimentos de coisas ou empresas penhoradas, quando:
- – a execução for movida só a benefício do exequente singular, a quem, por força da penhora, cabe o direito de preferência sobre os bens penhorados e alienados;
- – não houver sobre os bens alienados outros privilégios ou prefe- rências instituídos anteriormente à
Tratando-se de pagamento a vários credores e a penhora de faturamento ser o único bem, o dinheiro depositado, objeto da penhora, será pago aos credores pela pre- ferência do crédito, na forma dos arts. 612, 613 e 711, do CPC de 1973, repetidos nos arts. 797 e 908, do CPC de 2015:
Art. 797. Ressalvado o caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o concurso universal, realiza-se a execução no interesse do exe- quente que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados.
Parágrafo único. Recaindo mais de uma penhora sobre o mesmo bem, cada exequente conservará o seu título de preferência.
Art. 908. Havendo pluralidade de credores ou exequentes, o dinheiro lhes será distribuído e entregue consoante a ordem das respectivas preferências.
- 1º No caso de adjudicação ou alienação, os créditos que recaem so- bre o bem, inclusive os de natureza propter rem, sub-rogam-se sobre o respectivo preço, observada a ordem de preferência.
- 2º Não havendo título legal à preferência, o dinheiro será distri- buído entre os concorrentes, observando-se a anterioridade de cada penhora.
O concurso de preferência ocorre pela anterioridade da penhora ou pela preferên- cia do título executivo, na forma dos arts. 18644 e 187, Par. Único45, do CTN c/c art. 29, da LEF, ou seja, pagam-se primeiro os créditos trabalhistas, depois os acidentários, em seguida o tributário, nesta ordem: fazenda nacional, estadual e municipal, e as respec- tivas autarquias.
Os demais credores, sem título de preferência, observam a anterioridade da pe- nhora, mas sempre com a penhora sobre o mesmo bem, para instauração do concurso de preferências do art. 712, do CPC de 1973, repetido no art. 909, do CPC de 2015.
44 Art. 186. O crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for sua natureza ou o tempo de sua constituição, ressalva- dos os créditos decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente de trabalho (NR, LC nº 118, de 2005).
45 Art. 187. Parágrafo único. O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem: I – União; II – Estados, Distrito Federal e Territórios, conjuntamente e pro rata; III – Municípios, conjunta- mente e pro rata.
Art. 909. Os exequentes formularão as suas pretensões, que versarão unicamente sobre o direito de preferência e a anterioridade da pe- nhora, e, apresentadas as razões, o juiz decidirá.46
Na falência, essa ordem de pagamento aos credores sofre ligeira alteração em rela- ção aos créditos extraconcursais, trabalhistas, com limitação de 150 salários mínimos,47 com garantia real e os créditos subordinados passam a obedecer à ordem do art. 186, Par. Único, do CTN.
O CPC de 2015 trouxe ainda importante inovação ao vedar durante o plantão judi- ciário, a concessão de pedidos de levantamento de dinheiro ou valores ou de liberação de bens apreendidos, na forma do Par. Único, do art. 905, do CPC de 2015, sem corres- pondência com o CPC de 1973.
- Conclusões
- A penhora de faturamento, no lugar de causar preocupação e temor ao devedor e ao mercado, revela-se excelente instrumento para a solução da dívida tributária às empresas em dificuldades financeiras, sem patrimônio ou com patrimônio essencial às suas atividades, numa espécie de parcelamento judicial da dívida.
- Embora os Tribunais adotem um critério objetivo para penhorar 5% do fatura- mento, nas decisões não explicam se o percentual corresponde ao lucro, à receita lí- quida ou bruta, com isso continua a necessidade de observar o critério subjetivo de não inviabilizar a atividade
- O imposto sobre a renda das empresas, independente do regime de tributação adotado pelo devedor, fornece critério objetivo e seguro para fixação do percentual da penhora de faturamento, pela presunção dos lucros, custos e despesas de cada atividade
- Comércio, indústria e transportes de cargas: 8,0% de presunção de lucros e
92,0% de presunção de custos e despesas.
- Prestação de serviços em geral: 32,0% de presunção de lucros e 68,0% de presunção de custos e
- Prestação de serviços de transporte, exceto de carga: 16,0% de presunção de lucros e 84,0% de presunção de custos e
- Revenda de combustível derivado de petróleo, álcool etílico carburante e gás natural: 1,6% de presunção de lucros e 98,4% de presunção de custos e
- O exemplo
- Penhorar 5% (cinco por cento) do faturamento bruto da empresa com ou in- dustrial, com presunção de lucros de 8% e 98% de presunção de custos e despesas, é perfeitamente possível e razoável, sem ofensa à gravosidade ou inviabilidade da
46 Corresponde ao art. 712, do CPC de 1973.
47 Art. 83, da Lei nº 11.101, de 2005.
- Penhorar o mesmo 5% do faturamento bruto de uma empresa prestadora de serviços, com presunção de lucros de 32% e 68% de presunção de custos e despesas, poderá ser insignificante, sendo possível penhorar 10% ou 20%, do faturamento bru- to, sem inviabilizar as atividades ou causar a onerosidade da execução.
- Penhorar o mesmo 5% (cinco por cento), do faturamento bruto de um reven- dedor de combustível derivado de petróleo, álcool etílico carburante e gás natural, com presunção de lucros de 1,6% e 98,4% de presunção de custos e despesas, será inviabilizar suas atividades empresariais; mesmo a penhora 1,5% (um e meio por cento) da receita bruta pode inviabilizar a atividade
- De outro lado, penhorar o mesmo 5% do faturamento líquido ou do lucro de qualquer atividade, seja do prestador de serviços ou do revendedor de combustí- veis, não inviabiliza a atividade nem ofende a gravosidade da execução.
- Está assim resumido um critério objetivo, legal, fácil e seguro para os juízes fixa- rem o percentual da penhora sobre o faturamento bruto ou líquido, diante da presunção de lucros, custos e despesas do imposto de renda das empresas, conforme a atividade empresarial
- Na multiplicidade de execuções, as penhoras sucessivas do faturamento se dão sobre o mesmo bem – o faturamento. O depósito de uma execução comprova-se na outra, até o limite da dívida, ainda que em juízo diverso. Cuidando-se de percentuais diferenciados, sem estudo do limite, pode tornar-se necessária a complementação.
- Cuidando-se de garantia da execução, o prazo de 30 dias para oposição dos Em- bargos do Devedor conta-se da data da intimação da penhora, ainda que nada tenha sido
- Quando a penhora de faturamento corresponder a pagamento, por ultrapassada a fase dos Embargos, seja porque julgados ou não opostos, o levantamento do dinheiro, na existência de outros credores, deve observar a preferência do crédito, seja pela an- terioridade da penhora ou pelo título legal de preferência.
- Recomenda-se decretar a penhora de faturamento e não fixar o Com a nomeação de administrador e a vinda aos autos das informações contábeis do devedor, fixar o percentual, completando a decisão, a exemplo do ato complexo.
- Deve-se facultar às partes a indicação de assistentes técnicos na realização do
trabalho técnico necessário à fixação da penhora de faturamento.
- A penhora de faturamento, por ser excepcional e se tratar de dinheiro, pode ser oferecida em qualquer fase da execução e não apenas na fase inicial da citação do
- O Demonstrativo de Resultados do Exercício (DER), subscrito pelo empresário e pelo contador, é documento contábil de extrema importância, goza da presunção de veracidade e faz prova a favor do executado na realização da penhora de
São Paulo, fevereiro de 2015.
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A base de cálculo do ISS e os descontos incondicionados
Paulo Ayres Barreto1
Advogado
- Introdução
A chamada tributação indireta, ou tributação sobre o consumo, vem sendo objeto de importante uniformização, notadamente na União Europeia. Com efeito, o manda- mento de padronização da tributação sobre o consumo já constara da redação original do art. 99 do Tratado de Roma, que criou a Comunidade Europeia, em 1957.2 Atualmen- te, vige no bloco um Imposto sobre Valor Agregado (IVA), cuja base de cálculo e elemen- tos fundamentais são uniformizados por meio de normas comuns, editadas por órgãos da União Europeia.
Como leciona Heleno Taveira Torres, a uniformização do IVA, na Europa, tem por fundamentos: a neutralidade tributária; a transparência no tráfego internacional de bens e serviços; a garantia de livre-concorrência; a liberdade de circulação de bens, capitais e serviços; a racionalização das estruturas de produção, circulação e consumo; o controle fiscalizatório; e a necessidade de formação do orçamento comum da União Europeia.3
No Brasil, em contraste, verifica-se uma pluralidade de competências para a ins- tituição de tributos sobre o consumo, tanto em sentido vertical (concorrência entre União, Estados e Municípios) como em sentido horizontal (concorrência entre Estados-
-Membros e entre Municípios). Comparado com o sistema tributário brasileiro, o IVA europeu equivaleria à soma do Imposto federal sobre Produtos Industrializados (IPI), do Imposto estadual sobre operações de Circulação de Mercadorias e Serviços de transporte intermunicipal e interestadual e comunicação (ICMS) e do Imposto municipal Sobre Ser- viços (ISS)4, sem falar nas contribuições que ostentam incidências muito similares a estes impostos, como a Contribuição ao PIS, a COFINS e a CIDE-Combustíveis.
Para José Souto Maior Borges, trata-se de uma “irracional convergência de com- petências tributárias”, que funciona como “obstáculo à integração comunitária e à racionalização do sistema constitucional tributário”5. Por um lado, a atribuição de
1 Professor Associado ao Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Universidade de São Paulo – USP. Livre-Docente pela USP. Doutor em Direito pela PUC/SP. Professor dos Cursos de especialização do IBET, da PUC/SP e do IBDT.
2 Determinara o artigo: “Le Conseil, statuant à l’unanimité sur proposition de la Commission et après consultation du Parle- ment européen et du Comité économique et social, arrête les dispositions touchant à l’harmonisation des législations relati- ves aux taxes sur le chiffre d’affaires, aux droits d’accises et autres impôts indirects dans la mesure où cette harmonisation est nécessaire pour assurer l’établissement et le fonctionnement du marché intérieur dans le délai prévu à l’article 7 A.”
3 TORRES, Heleno Taveira. O IVA na experiência estrangeira e a tributação das exportações no direito brasileiro. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, n. 16, jul./ago. 2005, p. 48.
4 DERZI, Misabel Abreu Machado. A necessidade de instituição do IVA no sistema constitucional tributário brasileiro. Revista Sequência, Florianópolis, v. 13, n. 31, p. 64, 1995.
5 BORGES, José Souto Maior. O imposto sobre o valor acrescido. In: SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário – homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 348.
competências tributárias legislativas próprias para Estados e Municípios concretiza o ideal de autonomia financeira que advém do princípio federativo e da autonomia dos municípios. Trata-se de forma de garantir que os Estados e Municípios possuam fontes de renda própria.6
Por outro lado, entretanto, não se pode negligenciar que a divisão dos impostos sobre o consumo (sem falar nas contribuições) entre três diferentes níveis federativos, dezenas de Estados e centenas de Municípios, gera, inevitavelmente, distorções e dis- crepâncias relativamente à base de cálculo e demais elementos da incidência de cada um dos tributos.
Em que pese o papel uniformizador da legislação complementar (CF/88, art. 146, III) e o delineamento constitucional da forma de concessão de benefícios fiscais em relação ao ICMS (CF/88, art. 155, § 2º, XII, “g”), algumas dessas discrepâncias entre im- postos diferentes e entre o mesmo imposto, quando instituído por diferentes entes fede- rados, são decorrências naturais da dispersão de competências legislativas para instituir cada um dos impostos, bem como de seu diferente delineamento a nível constitucional e de lei complementar.
Todavia, em relação a determinados aspectos da incidência do IPI, do ICMS e do ISS, há semelhanças relevantes que não podem ser descuradas pelo legislador ou pelo aplicador do direito. Com efeito, tais semelhanças por vezes decorrem da estruturação constitucional dos referidos tributos. Nesse passo, devem ser apartadas: a) as descone- xões entre o IPI, o ICMS e o ISS, que figuram como consequências quase inevitáveis da escolha do legislador constituinte originário por atribuir competência para tributação do consumo a três entes federativos, e b) as semelhanças entre estes tributos, derivadas de sua estruturação constitucional enquanto tributos sobre o consumo.
Nesse contexto, percebe-se que a base de cálculo do IPI, do ICMS e do ISS somente poderá ser composta pela receita decorrente das atividades que compõem o critério ma- terial da Regra-Matriz de Incidência destes tributos. Essa circunstância gera um impera- tivo de aproximação entre estes três tributos no que respeita à necessidade de exclusão dos chamados descontos das suas bases de cálculo.
Para adereçar esse tema, com especial foco na base de cálculo do ISS, iniciar-se-
-á por expor a forma como convergem as bases de cálculo possíveis do IPI, do ICMS e do ISS, em torno do conceito de receita, em razão de sua estruturação constitucional, iluminada pelo primado da capacidade contributiva (CF/88, art. 145, § 1º). Em seguida, será definido o conceito de receita para fins de tributação por meio desses tributos e será demonstrada a forma como descontos com ele se relacionam.
Nesse contexto, será exposta a forma como a intributabilidade dos descontos in- condicionados foi construída ao longo do histórico de positivação do direito tributário brasileiro em relação ao IPI e ao ICMS, introduzindo-se a dicotomia entre descontos condicionados e descontos incondicionados. Nessa linha, sustentar-se-á que a mesma dicotomia (reinterpretada) aplica-se ao ISS.
6 Para Roque Antonio Carrazza, a autonomia dos entes federativos pressupõe a capacidade para prover as necessidades de seu governo e administração, para o que a Constituição reserva competências exclusivas e privativas para a instituição e arrecadação de tributos próprios. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 160.
- A delimitação constitucional da base de cálculo dos “impostos sobre valor adicionado” no Brasil: IPI, ICMS, ISS
Ao delimitar o âmbito da competência dos três entes tributantes para instituir impostos sobre o consumo, o Texto Constitucional de 1988 fez referência expressa às materialidades que poderiam ser gravadas por cada um destes tributos. Com efeito, prescreveu a competência da União para tributar “produtos industrializados” (art. 153, IV), a competência dos Estados e do Distrito Federal para tributar “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação” (art. 155, II) e a competência dos Municípios e do Dis- trito Federal para instituir imposto sobre “serviços de qualquer natureza” (art. 156, III).
Os referidos termos foram utilizados no Texto Constitucional para circunscrever competência tributária, devendo ser interpretados na condição de conceitos certos e determinados. Com efeito, em face de conceitos constitucionais como os de “mercado- ria”, “serviços de qualquer natureza” e “produtos industrializados”, deve o intérprete perquirir se houve incorporação do termo com base em sua acepção jurídica preexisten- te ou a positivação de um conceito autônomo.7 Como assevera Riccardo Guastini, signifi- cações específicas no discurso jurídico devem ser obtidas a partir dos textos normativos ou do uso de juristas, e não dos dicionários.8
Relativamente os três conceitos referidos acima, é induvidosa a recepção das acep- ções já correntes no uso comum dos juristas prévio à promulgação da Constituição Fe- deral de 1988. Com efeito, trata-se de conceitos que foram objeto de uma construção sedimentada pela doutrina a partir dos textos de direito positivo, não havendo qualquer fundamento no Texto Constitucional para supor que tenham sido objeto de alteração pelo constituinte de 1988.
As referências constitucionais às materialidades tributáveis pelos impostos em tela consubstanciam limitação substancial à competência tributária dos entes federados. Essa limitação, entretanto, não se resume ao critério material da Regra-Matriz de Inci- dência desses tributos, mas reflete também em sua base de cálculo.
Conforme define Paulo de Barros Carvalho, a base de cálculo consiste no conjun- to de notas constante do consequente da Regra-Matriz de Incidência Tributária que se destina, primordialmente, a “dimensionar a intensidade do comportamento inserto no núcleo do fato jurídico produzido pela norma individual e concreta”9. Ainda conforme as lições do autor, a base de cálculo exerce três funções, quais sejam: a) mediar as propor- ções do fato tributável; b) compor a determinação do crédito tributário, em conjunto com a alíquota, e c) confirmar, infirmar ou afirmar o elemento material da incidência.10 A essas três funções, Aires F. Barreto acresce, ainda, a função de determinar a presença de capacidade contributiva.11
7 Assim nosso: BARRETO, Paulo Ayres. Conceitos constitucionais e competência tributária. In: SANTOS, Nélida Cristina dos.
Temas de direito tributário: estudos em homenagem a Eduardo Bottallo. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 337-339.
8 GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo: estúdios de teoria e metateoría del derecho. Tradução de Jordi Ferrer i Beltrán. Barce- lona: Gedisa, 1999. p. 229.
9 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 247.
10 Idem, p. 244.
11 BARRETO, Aires Fernandino. Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. p. 83.
Nesse passo, especificamente no que respeita ao IPI, ao ICMS e ao ISS, para confir- mar a materialidade constitucionalmente permitida desses tributos, sua base de cálculo deverá consubstanciar grandeza economicamente apreciável que indique capacidade contributiva relacionada à industrialização de produtos, à circulação de mercadorias ou à prestação de serviços. Em outras palavras, conjugando os impositivos constitucionais que prescrevem competência para instituição desses impostos com o princípio da capa- cidade contributiva (CF/88, art. 145, § 1º), conclui-se que a Constituição exige que sua base de cálculo consubstancie grandeza que denote capacidade econômica relacionada às materialidades de industrializar produtos, circular mercadorias ou prestar serviços.
Trata-se do resultado da conjugação entre materialidade possível desses impostos e a capacidade contributiva, conforme a qual somente podem ser tributadas atividades relacionadas à renda, patrimônio ou consumo que indiquem expressão econômica12. Nos tributos sobre consumo, cujo ônus econômico é repassado aos chamados “contribuintes de fato”13 por meio do preço dos produtos e serviços adquiridos, a capacidade contribu- tiva é aferida de forma indireta, uma vez que o consumo individualizado não necessa- riamente indica capacidade de contribuir, ao contrário do que ocorre no imposto sobre a renda, por exemplo, como esclarece Mauricio Alfredo Plazas Vega.14 Por esse motivo, autores como Kirchhof negam aplicabilidade ao princípio da capacidade contributiva no que respeita aos tributos indiretos, do que discordam Klaus Tipke e Joachim Lang.15
Com efeito, considerando-se a perspectiva do contribuinte de fato, o consumo não indica capacidade contributiva, senão mediatamente. Ocorre, todavia, que o princípio da capacidade contributiva, ao ser positivado como mandamento constitucional, com- porta diversas limitações em relação a uma acepção ideal de capacidade de contribuir com os dispêndios públicos, analisada da perspectiva subjetiva de cada contribuinte. Entre essas limitações, Alfredo Augusto Becker destaca a necessidade de análise da ca- pacidade contributiva, em relação a cada tributo (quando o ideal seria analisá-la em relação à carga tributária globalmente considerada de cada contribuinte) e a impossibi- lidade de considerar-se, para cada incidência, a totalidade da riqueza do contribuinte, mas apenas um “fato-signo presuntivo de riqueza”.16
Essas limitações resultam na chamada regressividade dos impostos sobre consumo, que acabam por gravar com maior intensidade a população com renda global menor. Conforme estudos desenvolvidos nos anos de 2002 e 2003, as famílias cuja renda não ultrapassava dois salários mínimos tinham 45,8% de sua renda gravada por tributos indi- retos, enquanto as famílias que ganhavam mais de trinta salários mínimos eram gravadas em apenas 16,4% por este tipo de tributo.17
12 ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p 166.
13 A dicotomia entre contribuinte de direito (aquele que figura no polo passivo da obrigação tributária e efetivamente recolhe o tributo) e contribuinte de fato (aquele a quem o ônus econômico do tributo é repassado por meio do preço) é muito criticada em sede doutrinária, sendo corrente a afirmação de que o último não seria conceito jurídico. Não obstante, em pelo menos um dispositivo, o direito tributário positivo brasileiro positivou essa diferenciação, ao tratar da repetição de tributos indire- tos, no art. 166 do CTN: “Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.”.
14 VEGA, Mauricio Alfredo Plazas, La classificación de los impuestos en directos e indirectos y el derecho tributario comunita- rio. In: UCKMAR, Victor (Org.). Corso di diritto tributario internazionale. 2. ed. Padova: CEDAM, 2002. p. 1.007.
15 TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário (Steuerrecht). 18. ed. Tradução de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 203.
16 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 6. ed. São Paulo: Noeses, 2013. p. 532.
17 ZOCKUN, Maria Helena. Aumenta a regressividade dos impostos no Brasil. Informações – FIPE, n. 297, p. 11-13, 2005.
Tais limitações da capacidade contributiva em relação aos tributos indiretos, mor- mente quando considerado o contribuinte de fato, contudo, não podem servir como fundamento para esvaziar o conteúdo desse princípio constitucional no que tange a essas exações. Com efeito, a Regra-Matriz do IPI, do ICMS e do ISS, deve ser construída pelo legislador infraconstitucional e pelos aplicadores, de forma a privilegiar um fato-signo presuntivo de riqueza do contribuinte de direito (diretamente afetado pela exação), mormente quanto à eleição da base de cálculo.
Nessa linha, a única base de cálculo possível em relação aos três suprarreferidos impostos consistirá na receita do contribuinte de direito relacionada às materialidades de industrializar produto, realizar operações de circulação de mercadorias e prestar ser- viços. Rigorosamente, a obtenção de receita, por si só, não consubstancia fato suficiente para presumir capacidade contributiva. O mesmo índice (receita bruta) poderá indicar realidades radicalmente distintas em relação à efetiva capacidade de contribuir com o custeio do Estado. Haverá empresas com receitas significativas e baixa margem de lucro, bem como empresas com receita reduzida e alta lucratividade. Nesses casos, a receita auferida pela empresa não configurará índice de sua capacidade contributiva.18
Em que pesem essas imperfeições e consideradas as limitações da tributação sobre o consumo, a receita relacionada à atividade que compõe a materialidade dos impostos sobre consumo consubstancia o melhor índice de capacidade contri- butiva para compor sua base de cálculo. Por esse motivo, convergem as bases de cálculo do IPI (CTN, art. 4719), do ICMS (LC 87/96, art. 1320) e do ISS (LC 116/03,
18 BARRETO, Paulo Ayres. Tributação sobre o consumo: simplicidade e justiça tributária. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de.
Tributação e desenvolvimento: homenagem ao professor Aires Barreto. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 544.
19 Art. 47. A base de cálculo do imposto é:
I – no caso do inciso I do artigo anterior, o preço normal, como definido no inciso II do artigo 20, acrescido do montante:
- do imposto sobre a importação;
- das taxas exigidas para entrada do produto no País;
- dos encargos cambiais efetivamente pagos pelo importador ou dele exigíveis; II – no caso do inciso II do artigo anterior:
- o valor da operação de que decorrer a saída da mercadoria;
- na falta do valor a que se refere a alínea anterior, o preço corrente da mercadoria, ou sua similar, no mercado atacadista da praça do remetente;
III – no caso do inciso III do artigo anterior, o preço da arrematação.
20 Art. 13. A base de cálculo do imposto é:
I – na saída de mercadoria prevista nos incisos I, III e IV do art. 12, o valor da operação;
II – na hipótese do inciso II do art. 12, o valor da operação, compreendendo mercadoria e serviço;
III – na prestação de serviço de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, o preço do serviço;
IV – no fornecimento de que trata o inciso VIII do art. 12;
- a) o valor da operação, na hipótese da alínea a;
- b) o preço corrente da mercadoria fornecida ou empregada, na hipótese da alínea b; V – na hipótese do inciso IX do 12, a soma das seguintes parcelas:
- a) o valor da mercadoria ou bem constante dos documentos de importação, observado o disposto no 14;
- b) imposto de importação;
- c) imposto sobre produtos industrializados;
- d) imposto sobre operações de câmbio;
- e) quaisquer despesas aduaneiras;
- e) quaisquer outros impostos, taxas, contribuições e despesas (Redação dada pela Lcp 114, de 16.12.2002)
VI – na hipótese do inciso X do art. 12, o valor da prestação do serviço, acrescido, se for o caso, de todos os encargos relacionados com a sua utilização;
VII – no caso do inciso XI do art. 12, o valor da operação acrescido do valor dos impostos de importação e sobre produ- tos industrializados e de todas as despesas cobradas ou debitadas ao adquirente;
VIII – na hipótese do inciso XII do art. 12, o valor da operação de que decorrer a entrada;
IX – na hipótese do inciso XIII do art. 12, o valor da prestação no Estado de origem. […]
art. 7º21) em torno do conceito de receita relacionada à atividade que compõe seu crité- rio material, referida por termos como preço ou valor da operação.
- O conceito de receita para fins de composição da base de cálculo dos
“impostos sobre consumo” e os descontos sobre o preço
Exposta a convergência das bases de cálculo do IPI, do ICMS e do ISS, em razão de sua estruturação enquanto impostos sobre o consumo e da necessária confluência do princípio da capacidade contributiva, importa circunscrever o conceito de “receita” para fins da composição da base imponível destes impostos.
O signo “receita”, mesmo dentro do contexto do direito tributário positivo, padece de ambiguidade,22 em razão das diferentes funcionalidades que se lhe empresta. Com efeito, no direito tributário, a “receita” é utilizada, entre outros fins, para: a) em cotejo com custos e despesas, compor o resultado, de forma a determinar a base de cálculo do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL); b) individualmente considerada, compor a base de cálculo da contribui- ção ao PIS e da COFINS; c) quando referente a determinadas atividades (industrialização de produtos, circulação de mercadorias e prestação de serviços), determinar a base de cálculo do IPI, do ICMS e do ISS.
No primeiro caso, a “receita” surge como realidade delineada pela legislação in- fraconstitucional, sempre contraposta a custos e despesas, para a formação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Esses tributos que não incidem sobre fatos isolados, mas sobre um fato referente à confrontação entre enunciados referentes a receitas e enunciados relacionados com custos e despesas. Nesse contexto, a referência à “receita” pela legis- lação infraconstitucional, sempre contraposta a despesas e custos, representa forma de respeitar o conceito constitucional de renda, que pressupõe a aquisição de disponibili- dade econômica ou jurídica (CTN, art. 43).
Situação diferente verifica-se no que respeita à tributação da receita isoladamente considerada, seja pela Contribuição ao PIS e pela COFINS (conforme regra de competên- cia do art. 195, I, “b”, da CF/88), seja quando compõe a base de cálculo dos “impostos sobre consumo”, a saber, IPI, ICMS e ISS. Nesse caso, a “receita” não funciona como elemento a ser contraposto a despesas e custos para formação da base de cálculo, mas como fato necessário e suficiente para: a) deflagrar a incidência das regras-matrizes da Contribuição ao PIS e da COFINS e determinar sua base de cálculo; b) determinar a base de cálculo do IPI, do ICMS e do ISS, quando atrelada ao seu critério material.
21 Art. 7º A base de cálculo do imposto é o preço do serviço.
- 1º Quando os serviços descritos pelo subitem 3.04 da lista anexa forem prestados no território de mais de um Município, a base de cálculo será proporcional, conforme o caso, à extensão da ferrovia, rodovia, dutos e condutos de qualquer natureza, cabos de qualquer natureza, ou ao número de postes, existentes em cada Município.
- 2º Não se incluem na base de cálculo do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza:
I – o valor dos materiais fornecidos pelo prestador dos serviços previstos nos itens 7.02 e 7.05 da lista de serviços anexa a esta Lei Complementar;
[…]
22 Conforme preleciona Tércio Sampaio Ferraz Junior, ambiguidade é fenômeno semântico de ordem conotativa, que diz res- peito à impossibilidade de estabelecer-se, de forma uniforme, conceito que abranja todos os elementos necessários para que um objeto pertença à classe dos objetos representados por uma palavra específica. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 15-16.
Em face dessas diferentes funcionalidades, verifica-se uma discrepância entre o conceito de “receita” para fins do IRPJ e da CSLL e o conceito de “receita” no contexto de incidências tributárias que a consideram isoladamente. Em atilado estudo sobre o tema, José Antonio Minatel23 analisa e confronta os conceitos de “receita” construídos em diferentes linguagens. Com isso, identifica que o conceito de receita utilizado em sede da lei societária, da Ciência Contábil, da economia e mesmo da legislação tribu- tária referente ao IRPJ e à CSLL está sempre contraposto aos conceitos de despesas e de custos, para formação de um resultado. Nesse contexto, enquanto meio para apura- ção do resultado, admite-se que a receita seja contabilizada de acordo com o regime de competência, independentemente de efetivo recebimento, quando realizada, desde que os custos e despesas também sejam reconhecidos quando incorridos, independente- mente de efetivo pagamento.
Em contraste, ao tratar de receitas de maneira isolada, a Constituição Federal de 1988, identifica o autor, sempre faz referência à efetiva disponibilidade de recursos (arts. 34; 157; 165, IV; 167, § 4º; 195, III; 212 e 56 do ADCT). Tanto é assim que a circuns- tância de a Contribuição ao PIS das instituições financeiras ter como base de cálculo a receita “como definida na legislação do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza” precisou de exceção constitucional expressa (art. 72, V, do ADCT, com redação alterada pela EC 17/97).
Dessa forma, conclui José Antonio Minatel que, para as incidências isoladas sobre receita, representadas pela Contribuição ao PIS e pela COFINS, o conceito de “recei- ta” pressupõe efetivo e definitivo ingresso no patrimônio do titular. Em suas palavras, “ingresso definitivo é aquele que adentra o patrimônio do vendedor em contrapartida da mercadoria transferida ao comprador […] sem qualquer outra condição que possa vincular a eficácia das operações”24. Ademais, a causa do ingresso deve estar relacio- nada à contraprestação de um negócio jurídico, que envolva a venda de mercadorias, a prestação de serviços, a cessão de bens e direitos ou a remuneração de investimentos.25
Sendo assim, uma vez que nos “impostos sobre o consumo” ora analisados, e espe- cialmente no ISS, a receita decorrente da atividade de prestação de serviços compõe a base de cálculo deste tributo, considerada de maneira isolada, tem-se por necessária a conclusão de que “receita”, para estes fins, será ingresso definitivo e efetivo, decor- rente da atividade de prestação de serviços. Nessa linha, leciona Aires F. Barreto que a base de cálculo do ISS é o preço do serviço, entendido como a receita bruta decorrente da prestação do serviço ou a “espécie de entrada (ou de ingresso) que integrando positi- vamente o patrimônio de alguém, vem acrescê-lo, como elemento novo e positivo, sem que haja contrapartida no passivo”.26
Dessa maneira, pode-se afirmar que a base de cálculo do ISS somente pode ser com- posta por valores que: a) representem efetivo ingresso, a título definitivo, no patrimônio do contribuinte; b) advenham da efetiva prestação de um serviço (a base de cálculo do ISS somente pode ser a perspectiva dimensível da prestação de serviço).
23 MINATEL, José Antonio. Conteúdo do conceito de receita e regime jurídico para sua tributação. São Paulo: MP, 2005. p. 63-86.
24 Ibidem, p. 101.
25 Ibidem, p. 124.
26 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2009. p. 375.
Em face dessas características do conceito de receita da prestação de serviço apta a compor a base de cálculo do ISS, é evidente a conclusão de que descontos que dimi- nuam o montante de ingresso efetivo, em razão da prestação de serviços, devem ser excluídos de sua base de cálculo.
Até mesmo na contabilidade societária, que trabalha com conceito de receita atre- lado ao regime de competência que, conforme se procurou demonstrar, não é adequado para compor a base de cálculo dos tributos que incidem sobre receitas isoladamente consideradas, é plena a necessidade de deduzir os valores de descontos. Com efeito, conforme o Pronunciamento Técnico CPC 30 (R1), aprovado pela Deliberação CVM nº 692/12, o montante de receita de uma transação “é mensurado pelo valor justo da con- traprestação recebida, ou a receber, deduzida de quaisquer descontos comerciais (trade discounts) e/ou bonificações (volume rebates) concedidos pela entidade ao comprador”.
Se assim é em relação ao regime de competência, com muito mais razão os descon- tos devem ser deduzidos quando considerados apenas os ingressos efetivos (como deve ser no caso ISS e dos demais “impostos sobre consumo”), já que os descontos diminuem o preço do serviço. Com efeito, o desconto representa um valor que não ingressará no patrimônio jurídico do prestador de serviço. Logo, não se trata de receita da prestação de serviços, pelo que não poderá ser objeto de tributação pelo ISS.
- A exclusão dos descontos da base de cálculo do IPI e do ICMS e a aplicabilidade dos mesmos fundamentos ao ISS
Conforme exposto acima, os “impostos sobre consumo” (IPI, ICMS e ISS), em razão de sua estruturação constitucional, atrelada ao princípio da capacidade contributiva, necessariamente devem ter como base de cálculo a receita relativa às atividades que compõem suas materialidades. Em relação ao IPI e ao ICMS, os descontos vêm sendo historicamente excluídos de sua base de cálculo, tendo sido introduzida dicotomia entre descontos condicionados e descontos incondicionados.
A Lei Complementar 87/96 (“Lei Kandir”), que disciplina o ICMS, de modo a uni- formizá-lo dentre os diversos estados da federação (conforme as regras de competência de que tratam os arts. 146, III, “a” e 155, § 2º, XII, da CF/88), em seu art. 13, § 1º, II, “a”, determina que compõe a base de cálculo do imposto o valor referente a “seguros, juros e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas, bem como descontos conce- didos sob condição”. Interpretado a contrario sensu, esse dispositivo determina que os descontos incondicionados não devem ser incluídos na base de cálculo do ICMS. O argu- mento a contrario, como ensina Tércio Sampaio Ferraz Júnior, nem sempre tem status lógico, pois uma consequência verdadeira pode resultar de um princípio falso. Todavia, esse argumento, explica o autor, deve ser aceito nos mesmos casos em que é vedada a analogia,27 que é justamente o que ocorre no Direito Tributário, seja em função do prin- cípio da legalidade e da supremacia da Constituição, seja em razão da expressa previsão do CTN (art. 108, § 1º).
Nesse passo, o Superior Tribunal de Justiça vem interpretando o art. 13, § 1º, II, “a”, da LC 87/96, como proibição de que o ICMS venha a incidir sobre os valores de
27 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 313-314.
descontos incondicionados (e.g., RESP 200802253334, Min. Eliana Calmon, DJE: 17/08/2010; AGA 200800866903, Min. Mauro Campbell Marques, DJE DATA:12/04/2010), por vezes com fundamento expresso no argumento a contrario (RESP 63838, Min. Nancy Andrighi, DJ 05/06/2000). Em igual sentido, a Lei do Estado de São Paulo 6.374/89, em seu art. 24, § 1º, I, prescreve que da base de cálculo do ICMS devem ser “excluídos os descontos ou abatimentos incondicionalmente concedidos”.
Situação análoga verifica-se em relação ao IPI. A lei complementar referente a esse tributo, a saber, o próprio CTN, apenas estipula que sua base de cálculo será o “valor da operação” (art. 47, II, “a”). Entretanto, o § 2o do art. 14 da Lei nº 4.502/64, com redação determinada pela Lei no 7.798/89, prescreve que “não podem ser deduzidos do valor da operação os descontos, diferenças ou abatimentos, concedidos a qualquer títu- lo, ainda que incondicionalmente”. Em razão de tudo quanto já exposto, a determinação de que descontos incondicionados integrem a base de cálculo do IPI viola não somente a Constituição Federal (art. 145, § 1º c/c art. 153, IV), que não permite que componha a base de cálculo do tributo importância que não configure receita do contribuinte, atre- lada à industrialização de produto, como também o suprarreferido dispositivo do CTN. Essa inconstitucionalidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, sob repercus- são geral (CPC, art. 543-B), nos autos do RE 567.935 (Relator Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/2014, Tribunal Pleno, DJe 04-11-2014)28.
As razões de decidir adotadas pelo Ministro Relator, Marco Aurélio Mello, nesse caso, dizem respeito justamente à circunstância de que os descontos incondicionados não compõem o preço do produto, já que não serão pagos ao contribuinte. Nas palavras do ministro: “uma vez concedido, o valor correspondente não será pago pelo adquirente do produto, não fazendo parte do preço praticado em definitivo”.
Percebe-se que os fundamentos para a exclusão de descontos incondicionados da base de cálculo do ICMS e do IPI são idênticos. Tais valores não integram o preço da operação de circulação de mercadoria ou industrialização de produto, logo não indicam capacidade contributiva atrelada ao critério material dos referidos tributos, portanto não podem compor sua base de cálculo. Como afirmou o Ministro Luiz Fux, em julgado ainda no STJ, é comum a “ratio essendi dos precedentes quer quanto ao IPI, quer quanto ao ICMS” (REsp nº 477.525/GO, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 23/06/2003).
- O ISS e a Lei Complementar 116/03
Diferentemente do que ocorreu em relação ao ICMS, a Lei Complementar nº 116/03, ao cumprir o papel de uniformização das normas sobre o ISS (CF/88, art. 146, III), não prescreveu qualquer limitação em referência a descontos condicionados ou incondicio- nados, mas somente determinou que a base de cálculo do tributo é o preço do serviço (art. 7º). Conforme se procurou demonstrar, esse dispositivo, interpretado em confor- midade com a Constituição Federal, conduz à inafastável conclusão de que somente a
28 IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS – VALORES DE DESCONTOS INCONDICIONAIS – BASE DE CÁLCULO – INCLUSÃO
– ARTIGO 15 DA LEI Nº 7.798/89 – INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL – LEI COMPLEMENTAR – EXIGIBILIDADE. Viola o artigo
146, inciso III, alínea “a”, da Carta Federal norma ordinária segundo a qual hão de ser incluídos, na base de cálculo do Im- posto sobre Produtos Industrializados – IPI, os valores relativos a descontos incondicionais concedidos quando das operações de saída de produtos, prevalecendo o disposto na alínea “a” do inciso II do artigo 47 do Código Tributário Nacional.
receita decorrente da atividade de prestação de serviços pode compor a base de cálculo do tributo.
Sendo assim, a base de cálculo do ISS somente poderá ser formada por ingressos efetivos e definitivos no patrimônio do contribuinte, decorrentes da atividade de pres- tação de serviço. Se um desconto diminui o valor que vem a ser efetivamente recebido pelo contribuinte do ISS (ingresso efetivo e definitivo), então este montante deve ser excluído da base de cálculo do tributo. Em face da absoluta ausência de prescrição cons- titucional ou mesmo de lei complementar que autorize que o ISS incida sobre valores que não consubstanciam receita da prestação de serviços, como os descontos, estes não poderão, de maneira alguma, compor a base de cálculo do imposto. Como ensina Aires
- Barreto, “desconto concedido implica automaticamente diminuição da receita. Con- sequentemente, não se pode cobrar ISS, onde não houver receita”.29
Nesse passo, o Superior Tribunal de Justiça, em pelo menos uma oportunidade, re- conheceu que “os descontos incondicionados concedidos em nota fiscal não integram a base de cálculo do ISS” (RESP 200702934489, Min. Denise Arruda, 1ª T., DJE 09/12/2009). Percebe-se que a decisão do tribunal, seguindo a linha dos julgados sobre o IPI e sobre o ICMS, restringiu a exclusão aos “descontos incondicionados”. A mesma circunstância se mostra presente na legislação do Município de São Paulo (Lei nº 13.701/03, art. 14), que prescreve que “a base de cálculo do imposto é o preço do serviço, como tal considerada a receita bruta a ele correspondente, sem nenhuma dedução, excetuados os descontos ou abatimentos concedidos independentemente de qualquer condição”.A dicotomia en- tre os descontos condicionados e incondicionados, para fins de composição da base de cálculo do ISS, merece análise mais atilada, a que se destina o tópico seguinte.
- A exclusão dos descontos da base de cálculo do ISS:
a dicotomia “descontos incondicionados” e “descontos condicionados”
Demonstrada a total impossibilidade de que descontos que diminuam o valor da re- ceita da prestação de serviços venham a compor a base de cálculo do ISS e a referência recorrente da legislação do IPI e do ICMS, bem como dos precedentes sobre o tema, aos “descontos incondicionados”, em oposição aos “descontos condicionados”, os referidos conceitos merecem ser elucidados.
Em princípio, pode-se afirmar que “desconto condicionado” seria aquele submetido a uma condição. O conceito de “condição”, por sua vez, poderia ser buscado no Códi- go Civil, cujo art. 121 prescreve que se considera “condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto”. No Direito Civil, percebe-se que a existência de uma condição se refere a um evento futuro e incerto em relação à celebração do negócio jurídico, que subordina seus efeitos. É dizer, o marco temporal determinante para a verificação do caráter futuro e incerto do evento que configurará a “condição” consiste no tempo da celebração do negócio jurídico.
29 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na lei. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2009. p. 389.
No que respeita ao Direito Tributário, e em especial à formação da base de cálculo do ISS e dos demais impostos sobre consumo, todavia, não se pode importar, acrítica e indistintamente, o conceito do Direito Civil. Como já tivemos a oportunidade de sa- lientar, “reconhecer a unicidade do direito não autoriza o baralhamento de princípios específicos que regem cada um de seus ramos”30. Se o caráter futuro e incerto atrelado ao conceito de “condição”, para o Direito Civil, está vinculado à data da celebração do negócio jurídico, isto não significa que o mesmo conceito deva, necessariamente, ser aplicado ao Direito Tributário.
Como se buscou demonstrar, a base de cálculo do ISS somente poderá ser composta pela receita decorrente da atividade de prestação de serviço, entendida como os in- gressos efetivos e definitivos decorrentes do fato da prestação de serviço. Sendo assim, qualquer desconto que efetivamente diminua o efetivo ingresso de dinheiro decorrente da atividade de prestação de serviços importará em diminuição da base de cálculo do tributo. Logo, um desconto sujeito à condição futura em relação à data da celebração do contrato, mas que já tenha se implementado quando da prestação do serviço, efetiva- mente reduzindo o preço, não pode ser considerado “condicionado” para fins de compor a base de cálculo do ISS. Como ensina Aires F. Barreto, “o imposto nunca pode alcançar valores que não se traduzam em receita auferida pelo sujeito passivo”31.
Tratando do ICMS, Roque Antonio Carrazza identifica três exemplos de descontos incondicionais, a saber: a) abatimento no valor das mercadorias adquiridas por meio da aplicação de percentual fixado no próprio contrato; b) abatimentos previstos contratual- mente, quando da realização de certos eventos, como o aniversário ou a inauguração da empresa compradora das mercadorias; c) abatimento em razão do volume de compras realizado pela empresa compradora em período pretérito. Nessa linha, conclui o autor que “nas três modalidades de desconto acima sumariadas as condições para sua outorga são sempre prévias à celebração das operações sobre as quais ele incide”.32
Percebe-se que, nos três exemplos referidos, a existência de uma condição futura e incerta não se verifica em relação à data da celebração do negócio jurídico, mas em relação ao efetivo ingresso de receita em razão da prática do critério material do tributo (no caso do ICMS, a operação mercantil). Essa conclusão se impõe, também, ao ISS, uma vez que a base de cálculo do tributo somente poderá ser composta por ingressos efetivos e definitivos decorrentes da atividade de prestação de serviços. Sendo assim, quaisquer descontos que diminuam o efetivo ingresso no patrimônio do prestador de serviços dimi- nuirão a base de cálculo do tributo. Logo, devem ser considerados incondicionados todos os descontos que importem em redução da receita de prestação de serviços efetivamen- te percebida pelo contribuinte do ISS.
Em outras palavras, se o fato que dá ensejo ao desconto é anterior ao pagamento, não há que se falar em condição. Nesse sentido, afirmou o Ministro Luís Roberto Barroso, nos autos do RE nº 567.935, referido supra, que “os descontos incondicionais são redu- ções no preço de venda do produto, os quais não dependem da ocorrência de evento posterior à emissão da nota fiscal”. Trata-se de conclusão extremamente precisa, vez
30 BARRETO, Paulo Ayres. Ordenamento e sistema jurídicos. In: CARVALHO, Paulo de Barros (Coord.); CARVALHO, Aurora Toma- zini de (Org.). Constructivismo lógico-semântico. São Paulo: Noeses, 2014. v. I, p. 267.
31 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na lei. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2009. p. 389.
32 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 150-151. (Nota de rodapé nº 150).
que deixa claro que descontos incondicionados são os abatimentos que não dependem de fato posterior ao pagamento. Com efeito, conclusão diversa importaria em desnatu- ramento da base de cálculo do tributo, em violação à Constituição Federal (art. 145,
- 1º c/c art. 156, III) e à Lei Complementar 116/03, art. 7º.
- Considerações finais
Como se buscou demonstrar, os três impostos que compõem o IVA brasileiro (IPI, ICMS e ISS) apresentam uma significativa convergência em sua base de cálculo, que so- mente poderá ser composta pela receita decorrente das atividades que constituem o cri- tério material da Regra-Matriz de Incidência destes tributos. Essa conclusão é alcançada por meio da conjugação dos dispositivos constitucionais, que prescrevem competência para instituição desses impostos com o princípio da capacidade contributiva (CF/88, art. 145, § 1º).
A receita apta a compor a base de cálculo do ISS, a exemplo do que ocorre na incidência das contribuições sobre a receita, pressupõe efetivo e definitivo ingresso no patrimônio do titular. Ademais, a causa do ingresso deve estar relacionada à contrapres- tação do fato da prestação de serviços.
Relativamente ao ICMS, a legislação de regência (LC 87/96, art. 13, § 1º, II, “a” e Lei do Estado de São Paulo 6.374/89, art. 24, § 1º, I) determina que não compõem a base de cálculo do tributo os descontos concedidos incondicionalmente. O mesmo foi decidi- do em relação ao IPI, tendo sido declarada a inconstitucionalidade do § 2º do art. 14 da Lei nº 4.502/64, com redação dada pela Lei nº 7.798/89, na parte em que determinava que descontos incondicionais compunham a base de cálculo do tributo (RE 567.935). Em respeito ao ISS, o art. 14 da Lei do Município de São Paulo 13.701/03 determina que os descontos incondicionados não compõem sua base de cálculo.
A LC 116/03, ao instituir normas gerais sobre o ISS, não fez qualquer referência a des- contos condicionados ou incondicionados, mas somente determinou que a base de cálculo do imposto é o preço do serviço (art. 7º), que deve ser entendido como a receita bruta decorrente da atividade de prestação de serviço. Desse modo, considerada a dicotomia entre descontos condicionados e incondicionados, referida em precedentes judiciais e na legislação dos três impostos em tela, em contraste com o regramento do ISS nos âmbitos constitucional e de lei complementar, tem-se por inarredável a conclusão de que devem ser considerados incondicionados todos os descontos que importem em redução da receita de prestação de serviços efetivamente percebida pelo contribuinte do ISS.
A recorrente distinção entre descontos condicionados e incondicionados não pode ser interpretada de modo a desnaturar a base de cálculo dos impostos sobre consumo. A Constituição somente permite que o ISS tenha por base de cálculo o preço do serviço, ou seja, o valor efetiva e definitivamente recebido em razão da prestação do serviço. Logo, quaisquer descontos que diminuam a receita do contribuinte não podem adicionados à base de cálculo do ISS, devendo ser considerados incondicionados.
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Impostos causa mortis e doação e as transmissões do exterior
Regina Celi Pedrotti Vespero Fernandes1
Procuradora do Estado de São Paulo
Sumário: 1. Introdução; 2. Adequação do tema; 3. Transmissões internas; 4. Trans- missões externas; 5. Legislação dos Estados; 6. A questão nos tribunais; 7. Conclusão.
- Introdução
O presente trabalho busca demonstrar possuírem os Estados-Membros e o Distrito Federal competência para a instituição dos Impostos sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), nos casos específicos em que o doador tiver domicílio ou residência no exterior e naqueles em que o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior, na ausência de lei complementar determinada pelo inciso III, do par. 1º, do art. 155, da Constituição Federal.
A questão é saber se a ausência de Lei Complementar específica a que alude o art. 155, par. 1º, III, da Constituição Federal teria o condão de impedir a instituição dos im- postos pelos Estados-Membros e Distrito Federal, detentores da competência tributária, e se este impedimento ofenderia os Princípios Federativo e da Igualdade, veiculados nos arts. 1º, 5º, caput e 150, II, da Constituição Federal, e também os comandos emanados dos pars. 3º e 4º, do art. 34, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e pars. 3º e 4º, do art. 24, da Constituição Federal.
- Adequação do tema
Os Impostos sobre Transmissão Causa Mortis e Doação estão disciplinados no artigo 155, I, da Constituição Federal, a saber:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; […]
1 Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professora de Direito Tributário e Processo Tributário. Autora do livro Impostos sobre Transmissão Causa Mortis e Doação e coautora do livro Código Tributário Nacional Comentado, ambos pela Editora Revista dos Tribunais. Conselheira eleita para o Conselho da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo no biênio 2007/2008. Membro da Comissão do Advogado Público na OAB/SP, triênio 2013/2015.
- 1º O imposto previsto no inciso I:
- – relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal;
- – relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Esta- do onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;
- – terá competência para sua instituição regulada por lei comple- mentar:
- se o doador tiver domicílio ou residência no exterior;
- se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior;
- – terá suas alíquotas máximas fixadas pelo Senado Federal; […]
Em síntese, cuidam-se de impostos sobre transmissões de bens a título gratuito, motivados por falecimento (causa mortis) ou por doações (inter vivos), de quaisquer bens ou direitos (móveis e imóveis), de competência dos Estados-Membros e do Distrito Federal.
A competência, portanto, foi fixada pelo legislador Constitucional aos Estados e ao Distrito Federal. Importa saber se na ausência de elaboração da lei complementar pelo Congresso Nacional para regular a competência dos entes tributantes, nos moldes estabelecidos no inciso III, do par. 1º, do art. 155, para as transmissões internacionais, estaria obstada a instituição dos impostos pelos entes competentes.
Com base na determinação contida no par. 1º, do art. 155, da Constituição Federal, o estudo da questão deverá partir da análise do aspecto espacial da hipótese de inci- dência dos impostos, ou seja, do lugar onde acontece a ação e, não sendo fixado lugar exclusivo, do lugar onde se pode efetivar o evento, o que implicará diretamente na competência dos entes tributantes.
- Transmissões internas
Para as transmissões internas, ou seja, para as ocorridas dentro do território na- cional, as regras estabelecidas pela Constituição Federal nos incisos I e II, do par. 1o, do art. 155, distinguem-se pela natureza dos bens, de forma que as relativas a bens imóveis e respectivos direitos competem ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal, enquanto as relativas a bens móveis, títulos e créditos competem ao Estado onde se pro- cessar o inventário ou o arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal.
Assim, tratando-se de bens imóveis ou seus direitos, nas transmissões a título gra- tuito (causa mortis e doação), os impostos caberão sempre ao Estado da localização do bem, ou ao Distrito Federal.
Todavia, a regra se altera quando se tratar de transmissões a título gratuito de bens móveis, títulos e créditos. Se a transmissão se der em razão da morte, competirá ao Estado onde se processar o inventário ou o arrolamento ou ao Distrito Federal. Se a transmissão se der inter vivos, competirá ao Estado onde tiver domicílio o doador ou ao Distrito Federal.
Podemos concluir, então, que o legislador adotou para os bens imóveis, em am- bas as transmissões, o critério da localização do bem para a definição da atribuição de competência.
Mas para as transmissões de bens móveis, ocasionadas por falecimento, o legislador adotou o critério do domicílio civil, nos termos da legislação processual civil – art. 96 do CPC/19732, parcialmente alterada pelo art. 48 do CPC/2015 – e civil – art.1.785 do Código Civil3 –, que estabelecem que a sucessão abre-se no lugar do último domicílio do falecido, levando-se em conta não a residência, mas, sim, a sede principal dos interesses e negócios do falecido, e para as realizadas inter vivos (doação), adotou o critério do domicílio fiscal.
Na pluralidade de domicílios (CC/2002, art. 714), o inventário pode ser aberto no foro mais conveniente aos interesses do cônjuge sobrevivente e herdeiros ou onde ocor- reu o falecimento. Caso se requeiram múltiplos inventários em cada um desses vários domicílios, a competência determinar-se-á pela prevenção.5
Na falta de domicílio certo, o Código de Processo Civil de 1973 determina seja com- petente o foro da situação dos bens (art. 96, parágrafo único, I), ou do lugar do óbito, se situados os bens em lugares diferentes (inciso II).
Contudo, essas regras foram parcialmente alteradas pelo Código de Processo Civil de 2015 que, no parágrafo único do art. 48, estabelece:
Art. 48. O foro de domicílio do autor da herança, no Brasil, é o com- petente para o inventário, a partilha, a arrecadação, o cumprimento de disposições de última vontade, a impugnação ou anulação de par- tilha extrajudicial e para todas as ações em que o espólio for réu, ainda que o óbito tenha ocorrido no estrangeiro.
Parágrafo único. Se o autor da herança não possuía domicílio certo,
é competente:
- – o foro de situação dos bens imóveis;
- – havendo bens imóveis em foros diferentes, qualquer destes;
- – não havendo bens imóveis, o foro do local de qualquer dos bens do espólio.
Portanto, na ausência de domicílio civil certo, o inventário deve ser aberto no foro da situação dos bens, primeiramente onde se situarem os imóveis e, na ausência destes, no local de qualquer dos bens do espólio.
2 Art. 96. O foro do domicílio do autor da herança, no Brasil, é o competente para o inventário, a partilha, a arrecadação, o cumprimento de disposições de última vontade e todas as ações em que o espólio for réu, ainda que o óbito tenha ocorrido no estrangeiro.
Parágrafo único. É, porém, competente o foro:
- – da situação dos bens, se o autor da herança não possuía domicílio certo;
- – do lugar em que ocorreu o óbito se o autor da herança não tinha domicílio certo e possuía bens em lugares
3 Art. 1.785. A sucessão abre-se no lugar do último domicílio do falecido.
4 Art. 71. Se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu
qualquer delas.
5 Cf. MONTEIRO, Washington de Barros. Direito das sucessões. p. 29.
No caso de o óbito ocorrer no estrangeiro, tornar-se-á competente o foro do último domicílio do de cujus no Brasil (art. 96 do CPC/73, alterado pelo art. 48, do CPC/2015 c/c o art. 1.785 do CC/2002), pois o fato de o óbito ter ocorrido no exterior não impede a abertura de seu inventário no Brasil, na forma da lei adjetiva.
E para as transmissões de bens a título de doação, a Constituição Federal fixou ser de competência do Estado-Membro ou do Distrito Federal onde tiver domicílio o doador, de forma que fez prevalecer o domicílio fiscal.
O Código Tributário Nacional prescreve o domicílio fiscal em seu art. 127, verbis:
[…] Na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável, de domicí- lio tributário, na forma da legislação aplicável, considera-se como tal:
- – quanto às pessoas naturais, a sua residência habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o centro habitual de sua atividade;
- – quanto às pessoas jurídicas de direito privado ou às firmas in- dividuais, o lugar de sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento;
- – quanto às pessoas jurídicas de direito público, qualquer de suas repartições no território da entidade
- 1º Quando não couber a aplicação das regras fixadas em qualquer dos incisos deste artigo, considerar-se-á como domicílio tributário do contribuinte ou responsável o lugar da situação dos bens ou da ocor- rência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação.
- 2º A autoridade administrativa pode recusar o domicílio eleito, quando impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização do tributo, aplicando-se então a regra do parágrafo anterior.
O domicílio fiscal tem conceito objetivo e foi regulado pelo Código Tributário Nacio- nal, por razões de conveniência administrativa de fiscalização e arrecadação do tributo.
A principal distinção entre domicílio civil e fiscal consiste no fato de, para este, o Código Tributário Nacional admitir que possa o contribuinte ou o responsável escolher o domicílio para nele responder pelas obrigações de ordem tributária, enquanto para aquele, o local é fixado pelo Código Civil, independentemente da vontade da pessoa.
Contudo, na parte final do art. 127 do CTN, o legislador complementar vincula a falta de eleição à forma da “legislação aplicável”, abrindo, assim, a possibilidade para o legislador ordinário, ao não aceitar a eleição do domicílio fiscal pelo contribuinte, regular a matéria de forma diversa.
A Lei paulista n. 10.705/2000, alterada pela Lei n. 10.992/2001, que dispõe sobre os Impostos incidentes sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD), em conformi- dade com o comando constitucional, estabeleceu, de forma semelhante, ser o domicílio do autor da herança e o do doador os definidores da regra de competência. Confira-se o disposto no par. 2º, do art. 3º:
Artigo 3º – Também sujeita-se ao imposto a transmissão de: […]
Par. 2º – O bem móvel, o título e o direito em geral, inclusive os que se encontrem em outro Estado ou no Distrito Federal, também
ficam sujeitos ao imposto de que trata esta lei, no caso de o inventá- rio ou arrolamento processar-se neste Estado ou nele tiver domicílio o doador.
Pois bem, em relação às transmissões de bens a título gratuito dentro do território nacional, a legislação regulamentou de forma exaustiva. As questões a necessitar de exegese são as transmissões internacionais, tanto causa mortis como doação.
- Transmissões externas
Para as transmissões externas ou internacionais, nas hipóteses de o doador ter domicílio ou residência no exterior e para aquelas em que o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior, a Constitui- ção Federal, no inciso III, do par. 1º, do art. 155, estabeleceu que a competência dos Estados-Membros e do Distrito Federal para a instituição dos tributos será regulada por lei complementar.
Para esses casos, importa saber se os Estados-Membros e o Distrito Federal podem se utilizar da competência que lhes foi outorgada pela Constituição Federal para insti- tuir e cobrar os impostos enquanto não editada a Lei Complementar Nacional. Ou seja, enquanto o Congresso Nacional não legislar sobre a matéria, estabelecendo normas ge- rais, podem os entes competentes efetuar a exigência dos impostos?
A própria Constituição Federal, por meio da interpretação sistemática de seus dis- positivos, aliada ao que consagra os seus princípios norteadores, especificamente o fe- derativo e o da igualdade, apresenta solução para a questão.
Como se sabe, o Brasil é uma república federativa, onde os Estados-Membros são entidades públicas territoriais, dotadas de autonomia legislativa e constitucional.
O princípio federativo repousa sobre duas leis: a lei da participação e da autono- mia. De acordo com esta última, os Estados-Membros têm a capacidade de auto-organi- zação, autolegislação, autogoverno e autoadministração (artigos 1º6, 2º7, 188, 25 a 289 da Constituição Federal).
6 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […]
7 Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
8 Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
9 Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Cons- tituição.
- 1º São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição […] Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: […]
Art. 27. O número de Deputados à Assembleia Legislativa corresponderá ao triplo da representação do Estado na Câmara dos Deputados e, atingido o número de trinta e seis, será acrescido de tantos quantos forem os Deputados Federais acima de doze […]
Art. 28. A eleição do Governador e do Vice-Governador de Estado, para mandato de quatro anos, realizar-se-á no primeiro domingo de outubro, em primeiro turno, e no último domingo de outubro, em segundo turno, se houver, do ano anterior ao do término do mandato de seus antecessores, e a posse ocorrerá em primeiro de janeiro do ano subsequente, observado, quanto ao mais, o disposto no art. 77. […]
O princípio da federação é regra supraconstitucional, princípio super-rígido, pedra basilar de todo o sistema. Somado ao princípio republicano, são tratados constitucio- nalmente da mesma forma, assim como protegidos pela mesma rigidez (art. 60, § 4º10), e obrigam os intérpretes a submeterem às suas exigências todos os demais princípios e regras constitucionais e, com maior razão, infraconstitucionais.
Por isso, a interpretação de todos os demais comandos constitucionais é condicio- nada aos seus imperativos. De sua especial e qualificada eficácia decorre principalmente a orientação que fixa os critérios a serem adotados pelo intérprete e aplicador da lei.
Toda lei há de se submeter às balizas e limites contidos na Constituição e, sobretu- do, buscar realizar os princípios constitucionais, dos quais a Federação comparece em posição singularmente relevante.
Logo, para cumprir os seus encargos e satisfazer as necessidades coletivas, em decorrência da qualidade de entidades federativas autônomas, dotadas de competên- cia exclusiva, comum e concorrente, os Estados-Membros precisam de meios pecuniá- rios para a realização de seus fins. Por isso, a Carta Magna conferiu-lhes competência financeiro-tributária exclusiva. Por conseguinte, cabe-lhes instituir os tributos que lhes foram discriminados.
A partir de tal permissivo constitucional, as Unidades Federadas e o Distrito Federal receberam competência para instituir os Impostos sobre Transmissões de bens a título gratuito – mortis causa e doação.
Resulta claro que só ao legislador estadual e ao distrital compete a fixação de regras próprias sobre impostos cuja instituição seja de sua competência, respeitadas à evidência, as limitações ao poder de tributar (arts. 150 a 152 da Constituição Federal) e os princípios gerais (arts. 145 a 149, da Constituição Federal).
Misabel Derzi é categórica ao dispor que “a norma atribuidora da competência le- gislativa é originária (não derivada) e goza de eficácia imediata, não podendo o exercício dessa competência depender da edição de uma lei federal infraconstitucional prévia, sob pena de se abalarem as bases do federalismo.” (Aliomar Baleeiro; atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi, Limitações Constitucionais ao poder de tributar, p. 507).
Ademais, deixar de exigir os impostos nas situações previstas no inciso III, do par. 1º, do art. 155, da Constituição Federal, implica em direta afronta ao Princípio da Isono- mia, uma vez que dentro do território nacional as transmissões de bens a título gratuito (doação e “causa mortis”) estão sujeitas à tributação, enquanto as estrangeiras não, o que cria odiosa desigualdade entre contribuintes com os mesmos direitos, sem contar que as transmissões internacionais são, em sua grande maioria, de vultosos valores.
Como se sabe, o princípio da igualdade é fundamental e imediatamente decorrente dos princípios republicano e federativo. É direito público subjetivo o tratamento igual de todos os cidadãos.
10 Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: […]
- 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
- – a forma federativa de Estado;
- – o voto direto, secreto, universal e periódico;
- – a separação dos Poderes;
- – os direitos e garantias
A superioridade do princípio da igualdade está evidenciada no caput do art. 5º da Constituição de 1988, com a seguinte afirmação: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residen- tes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, […]”.
Sobre o princípio da igualdade, preceitua o professor Celso Antônio Bandeira de
Mello:
O preceito da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma vol- tada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. De- veras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas a própria edição dela assujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas.11
A igualdade é, assim, a primeira base de todos os princípios constitucionais dos Estados democráticos e condiciona a própria função legislativa, que é das mais nobres, alta e ampla de quantas funções o povo, republicanamente decidiu criar. A isonomia há que se expressar, portanto, em todas as manifestações do Estado, as quais, na sua maio- ria, se traduzem concretamente em atos de aplicação da lei, ou seu desdobramento. Não há ato ou forma de expressão estatal que possa escapar ou subtrair-se às exigências da igualdade.
Daí a íntima e indissociável relação entre legalidade e isonomia. Esta se assegura
por meio daquela. A lei é instrumento da isonomia.
A igualdade é, portanto, princípio nuclear de todo o sistema constitucional e básico do regime democrático. Sem ela não há República, não há Federação, não há democra- cia, não há justiça. É cláusula pétrea por excelência.
Especificamente para o direito tributário, o princípio da igualdade vem consagrado
no art. 150, II, da CF:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contri- buinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[…]
II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encon- trem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão da ocupação profissional ou função por eles exercida, independente- mente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
[…]
Como se vê, defesa é a instituição de tratamento desigual entre contribuintes que se encontram em situação equivalente. Não se trata de equivalência de fatos diante da hipótese legal. Isso seria a igualdade perante a lei, já consagrada no caput do art. 5º. Trata-se de igualdade de situações práticas, que não podem ter valoração diversa pelo legislador ao erigir tais fatos em hipóteses normativas.
11 O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. p. 13.
Não é por outra razão que o texto constitucional prescreve, de modo claríssimo, que os tributos se classificam segundo determinado critério, exatamente em atenção às exigências do princípio da isonomia: obtém-se a igualdade diante dos impostos, pelo respeito à capacidade contributiva; nas contribuições, pelo critério do benefício; nas taxas, pelo da compensação do custo.
A par dessas assertivas, assegura o saudoso Professor Geraldo Ataliba que:
[…] deve o legislador disciplinar as atividades do Estado e dos cida- dãos, a fim de tornar a isonomia um valor vivo e concreto, a ser inces- santemente perseguido pela sociedade, pelo poder público, por todos os cidadãos. A simples atitude de abstenção do Estado diante das gri- tantes desigualdades sociais e do uso do poder econômico pelos grupos que o detêm termina por operar como fator de desigualação, com con- seqüências – até políticas – alarmantes. Daí o impor-se ação positiva e concreta do Estado na promoção efetiva da igualdade, ao lado de legislação compensatória das desigualdades. Nessa linha estão inúme- ros preceitos constitucionais concernentes à ordem econômica e social. Tal postura, porém, tem se revelado manifestamente insuficiente.12
Aliados a esses fundamentos, consigne-se também que a própria Constituição Fe- deral, no artigo 34, §§ 3º e 4º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), reafirma a autonomia das pessoas políticas para exercer sua competência legislativa tribu- tária necessária à aplicação do sistema tributário nacional, consoante pode ser verificado:
Art. 34. O sistema tributário nacional entrará em vigor a partir do primeiro dia do quinto mês seguinte ao da promulgação da Constitui- ção, mantido, até então, o da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda n. 1, de 1969, e pelas posteriores.
[…]
Par. 3º. Promulgada a Constituição, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão editar as leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional nela previsto.
Par. 4º. As leis editadas nos termos do parágrafo anterior produzirão efeitos a partir da entrada em vigor do sistema tributário nacional previsto na Constituição.
Par. 5º. Vigente o novo sistema tributário nacional, fica assegurada a aplicação da legislação anterior, no que não seja incompatível com ele e com a legislação referida nos pars. 3º e 4º. […]
A autorização para a edição de leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional é regra expressa na Constituição Federal, podendo ser efetivada a partir de sua promulgação, ocorrida em 05.10.1988, para entrada em vigor com o sistema tributário nacional em 01.03.1989.
Com base nessa autorização constitucional, a União, os Estados, o Distrito Fede- ral e os Municípios podem legislar na omissão do Congresso Nacional, editando as leis
12 República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 163.
necessárias à aplicação do sistema tributário nacional, por serem detentores da compe- tência impositiva plena.
Observe-se que o art. 34 do ADCT/CF em nenhum momento limita ou condiciona essa competência. Ao contrário, garante aos entes tributantes poderes para editarem as leis necessárias para que o novo Sistema Tributário Nacional nela previsto entre em vigor.
Além da autorização constitucional expressa, os Estados-Membros e o Distrito Fe- deral podem legislar, instituindo os impostos de sua competência, para atender a suas peculiaridades, com fundamento na competência concorrente, prevista no art. 24, I e parágrafos, da CF.
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urba- nístico;
[…]
- 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
- 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
- 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
- 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a
eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.
A própria Constituição Federal outorga competência concorrente à União, aos Esta- dos e ao Distrito Federal, entre outros, para legislar sobre direito tributário, com o pro- pósito de não ficar um ente tributante a mercê de outro para implementar sua outorga constitucional.
O Supremo Tribunal Federal já manifestou entendimento no sentido de os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, na ausência de lei complementar, poderem editar as leis necessárias para a instituição do imposto em seu território, utilizando-se da com- petência legislativa excepcional que receberam do constituinte de 1988, na forma do artigo 24, § 3º, da CF/88 e do artigo 34, § 3º, do ADCT/CF.
Foi assim que decidiu a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal quando da análise do Impostos sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), em que abordou a proble- mática em face do art. 146, da CF:
Tributário. Estado de São Paulo. Imposto sobre Propriedade de Veí- culos Automotores. Lei n. 6.606/89, com as alterações das Leis ns. 7.002/90 e 7.644/91. Pretensa incompatibilidade com as normas dos arts. 24, § 3º, 150, II e IV e 146, III da Constituição.
Descabimento da alegação, tendo em vista que o contribuinte de 1988, como revela o art. 34 do ADCT, autorizou a edição, pelos Esta- dos, das leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional nela previsto (§ 3º), que entrou em vigor em 1º de março de 1989 (caput).
Ficaram os Estados, portanto, legitimados a ditar as normas gerais indispensáveis à instituição dos novos impostos, o que foi cumprido, em relação ao IPVA, no exercício da competência concorrente previs- ta no artigo 24 e em seu § 3º, da Carta, com vigência até o advento da lei complementar da União (§ 4o), ainda não editada […] (STF-RE
- 236.931/SP, rel. Min. Ilmar Galvão, DJU, de 29.1.1999. Nesse sen- tido, ver também os acórdão proferidos nos Agravos Regimentais ns. 279.645/MG, rel. Moreira Alves e 167.777, rel. Min. Marco Aurélio).
Esse também o entendimento de Roque Carrazza13:
Com que, então, as pessoas políticas, mesmo ante eventuais omissões do legislador complementar, não podem ser inibidas de virem a usar, em toda a sua latitude, suas competências tributárias.
Idêntico raciocínio foi utilizado para a instituição dos Impostos sobre Transmissão Causa Mortis e Doação sobre bens móveis ante a ausência de lei complementar, como expusemos na obra Impostos sobre Transmissões Causa Mortis e Doação – ITCMD.14
Assim, inevitável a conclusão de poderem os Estados-Membros e o Distrito Federal instituírem os impostos sobre as transmissões internacionais de bens a título gratuito, na ausência de lei complementar.
- Legislação dos estados
Na omissão do legislador nacional, os legisladores estaduais concretizaram a com- petência e instituíram os impostos, valendo-se para tanto do critério do domicílio da pessoa que teve acréscimo em seu patrimônio em razão da benesse, localizado em terri- tório nacional, legitimando, assim, o Estado-Membro ou o Distrito Federal onde o dona- tário ou os herdeiros ou legatários estiverem domiciliados no Brasil.
Desta maneira, a Lei n. 10.705/2000, alterada pela Lei n. 10.992/2001, do Estado
de São Paulo, dispôs em seu artigo 4º:
Artigo 4º – O imposto é devido nas hipóteses abaixo especificadas, sempre que o doador residir ou tiver domicílio no exterior, e, no caso de morte, se o “de cujus” possuía bens, era residente ou teve seu inventário processado fora do país:
- – sendo corpóreo o bem transmitido:
- quando se encontrar no território do Estado;
- quando se encontrar no exterior e o herdeiro, legatário ou donatá- rio tiver domicilio neste Estado;
- – sendo incorpóreo o bem transmitido:
- quando o ato de sua transferência ou liquidação ocorrer neste Es- tado;
- quando o ato referido na alínea anterior ocorrer no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste
13 Curso de direito constitucional tributário. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 798.
14 FERNANDES, Regina Celi Pedrotti Vespero. Impostos sobre Transmissões Causa Mortis e Doação – ITCMD. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais: Thomson Reuters, 2013.
Da mesma forma dispôs o art. 3º, da Lei n. 8.821/89, do Estado do Rio Grande do Sul:
Art. 3º – O imposto de que trata esta Lei é devido a este Estado quando:
- – os bens imóveis localizarem-se no seu território;
- – os bens móveis, títulos, créditos, ações, quotas e valores, de qualquer natureza, bem como dos direitos a eles relativos, forem transmitidos em decorrência de inventário ou arrolamento proces- sado neste Estado; (Redação do inciso dada pela Lei nº 14.741 de 24/09/2015).
- – o herdeiro ou legatário for domiciliado neste Estado, no caso de transmissão de bens móveis, títulos, créditos, ações, quotas e valo- res, de qualquer natureza, bem como dos direitos a eles relativos, e: (Redação dada pela Lei nº 741 de 24/09/2015).
- o inventário ou arrolamento tiver sido processado no exterior;
- o “de cujus” era residente ou domiciliado no exterior, ainda que o inventário ou arrolamento tenha sido processado no País.
- – os bens móveis, títulos, créditos, ações, quotas e valores, de qualquer natureza, bem como dos direitos a eles relativos, forem transmitidos em decorrência de doação em que o doador tiver do- micílio neste Estado; (Redação do inciso dada pela Lei nº 14.741 de 24/09/2015).
- – os bens móveis, títulos, créditos, ações, quotas e valores, de qualquer natureza, bem como dos direitos a eles relativos, forem transmitidos por pessoa sem residência ou domicílio no País e o dona- tário for domiciliado neste Estado. (Redação do inciso dada pela Lei nº 741 de 24/09/2015).
Parágrafo único – O disposto neste artigo aplica-se, também, à trans- missão de direitos.
Também a Lei n. 3.804/2006 do Distrito Federal, em seu art. 2º:
Art. 2º O ITCD incide sobre a transmissão de quaisquer bens ou direi- tos havidos:
- – por sucessão legítima ou testamentária, inclusive por sucessão decorrente de morte presumida e por sucessão provisória, nos termos da lei civil;
- – por doação.
- 1º Para efeitos deste artigo, presume-se doação o excesso não-one- roso na divisão de patrimônio comum ou partilhado, em virtude de dissolução da sociedade conjugal por separação judicial ou divórcio, de extinção de condomínio ou sociedade de fato e de sucessão legíti- ma ou testamentária.
- 2º No caso de sucessão provisória, aparecendo o ausente, fica asse- gurada a restituição do imposto recolhido.
- 3º A incidência do Imposto alcança:
I – as transmissões causa mortis:
- de propriedade ou domínio útil de bens imóveis e de direitos a eles relativos, situados no território do Distrito Federal, ainda que o res- pectivo inventário ou arrolamento seja processado em outra unidade da Federação ou no exterior;
- de bens móveis, direitos, títulos e créditos, inclusive os que se encontrem em outra unidade da Federação ou no exterior, no caso de o inventário ou arrolamento processar-se no Distrito Federal, ainda que o de cujus fosse residente ou domiciliado no exterior;
- de bens móveis, direitos, títulos e créditos, inclusive os que se encontrem em outra unidade da Federação ou no exterior, no caso de o inventário ou arrolamento processar-se no exterior e o herdeiro ou legatário possuir domicílio no Distrito Federal, ainda que o de cujus fosse residente ou domiciliado no exterior;
- – as doações:
- de bens imóveis e de direitos a eles relativos, situados no terri- tório do Distrito Federal, ainda que doador, donatário ou ambos não tenham domicílio ou residência no Distrito Federal;
- de bens móveis, direitos, títulos e créditos, inclusive os que se encontrem em outra unidade da Federação ou no exterior, quando o doador for domiciliado no Distrito Federal, ainda que tenha residên- cia no exterior;
- de bens móveis, direitos, títulos e créditos, inclusive os que se encontrem em outra unidade da Federação ou no exterior, quando o doador for domiciliado no exterior e o donatário no Distrito
- 4º O doador ou donatário que tiver mais de um domicílio será consi- derado domiciliado no Distrito Federal, para os efeitos deste artigo, quando:
- – sendo pessoa natural, tiver no Distrito Federal o centro habitual de suas ocupações;
- – sendo pessoa jurídica de direito privado ou empresário indi- vidual, se localizar no Distrito Federal o estabelecimento em que ocorrer o fato ou for praticado o ato que der origem à obrigação tributária;
- – sendo pessoa jurídica de direito público, estiver a repartição em que ocorrer o fato ou for praticado o ato que der origem à obrigação tributária localizada no Distrito
Do mesmo modo a Lei n. 13.136/2004, do Estado de Santa Catarina, no art. 3º:
Art. 3º O imposto é devido:
- – em se tratando de bens imóveis e respectivos direitos, quando situados no território deste Estado; e
- – em se tratando de bens móveis, direitos, títulos e créditos, quando:
- o inventário judicial ou extrajudicial se processar neste Estado;
- o doador for domiciliado neste
“c” a “ e” – ACRESCIDAS – Art. 16 da Lei nº 14.967/09 – Efeitos a partir de 07.12.09:
- o doador ou cedente residir ou tiver domicílio no exterior e o dona- tário ou cessionário for domiciliado neste Estado; (NR)
- o herdeiro ou legatário for domiciliado neste Estado, o “de cujus” possuía bens, era residente ou domiciliado exterior ou teve o seu inventário processado no exterior; e (NR)
- se os transmitentes residirem ou forem domiciliados no exterior e o ato de transferência do bem ou direito ocorrer neste
Parágrafo único. O imposto não incide sobre frutos e rendimentos havidos após o falecimento do transmitente, no caso de transmissão causa mortis.
Esses são alguns exemplos. Pelas datas de algumas das alterações legislativas esta- duais pode ser verificado que os Estados e o Distrito Federal aguardaram tempo precioso para a edição da Lei Complementar a que alude o inciso III, do par. 1º, do art. 155, da Constituição Federal, considerando-se que a Magna Carta é de 1988.
- A questão nos tribunais
No Estado de São Paulo, o Tribunal de Justiça estadual, por meio de seu Órgão Espe- cial, no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade n. 0004604-24.2011.8.26.0000, declarou a inconstitucionalidade da alínea “b”, do inciso II, do art. 4º, da Lei Estadual n. 10.705/2000, em incidente suscitado pela C. 7ª Câmara de Direito Público, na ocasião do julgamento da apelação n. 0046442-50.2009, tirado do mandado de segurança impetrado contra atos dos senhores Coordenador da Administração Tributária e Delegado Regional Tri- butário – DRTC – III, da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, para o fim de obstar o lançamento do imposto sobre transmissão causa mortis incidente sobre a transmissão sucessória de quotas societárias que o de cujus possuía de empresa sediada no exterior.
Entendeu o E. Tribunal de Justiça estadual:
O Legislador Constituinte atribuiu ao Congresso Nacional um maior debate político sobre os critérios de fixação de normas gerais de com- petência tributária para a instituição do imposto sobre transmissão de bens, justamente com o intuito de evitar conflitos de competência geradores de bitributação entre os Estados da Federação e entre paí- ses com os quais o Brasil possui acordos comerciais, mantendo unifor- me o sistema de tributos.
Atualmente, a matéria se encontra em análise no Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso Extraordinário n. 851.108-SP, interposto pelo Estado de São Paulo, sen- do objeto de Repercussão Geral, Tema 825, com o seguinte verbete:
Possibilidade de os Estados-membros fazerem uso de sua competên- cia legislativa plena, com fulcro no art. 24, par. 3º, da Constituição
e no art. 34, par. 3º, do ADCT, ante a omissão do legislador nacional em estabelecer as normas gerais pertinentes à competência para ins- tituir o Imposto sobre Transmissão Causa mortis ou Doação de quais- quer Bens ou Direitos – ITCMD, nas hipóteses previstas no art. 155, par. 1º, III, “a” e “b”, da Lei Maior.
Referido Recurso Extraordinário aguarda julgamento com parecer da D. Procura- doria-Geral da República pelo seu desprovimento, sob o fundamento de inexistência de competência plena dos Estados e do Distrito Federal nas situações previstas no inciso III, do par. 1º, do art. 155, e também de se autorizar a fragmentação legislativa em contex- to complexo, uma vez que a lei complementar prevista especificamente no dispositivo tem incumbência maior do que apenas dirimir potenciais conflitos, e, por isso, diverge da previsão comum de normas gerais de caráter tributário contida no art. 146 da Carta Magna. Aduz também existir risco de bitributação internacional e baixa densidade nor- mativa da previsão constitucional.
Em que pese a complexidade das situações descritas nas alíneas “a” e “b”, do in- ciso III, do par. 1º, do art. 155, da CF e a preocupação com a bitributação internacional, não se pode admitir sofram os Estados-Membros e o Distrito Federal limitação em sua competência por tanto tempo, haja vista que a Constituição Federal foi promulgada em outubro de 1988 e ela própria traçou normas para a solução do impasse quando ocorrer demora na elaboração da lei complementar pelo Congresso Nacional.
Desse modo, uma vez não regulada pelo legislador nacional, nos termos determina- dos pelo legislador constitucional, não pode essa omissão representar limitação à com- petência tributária dos Estados-Membros e do Distrito Federal, que é plena, na dicção do disposto no caput e inciso I, do art. 155 da Constituição Federal.
Entender-se de outra forma significa assentir que outro ente possa manietar os Estados-Membros e o Distrito Federal em sua competência, o que em absoluto foi a von- tade do legislador constituinte.
Consigne-se, finalmente, que a matéria possui hodierna importância em razão da globalização financeira e econômica, além de representar forma de controle e fiscaliza- ção de transferências de divisas e, em última análise, mecanismo para coibir simulações e fraudes.
- Conclusão
Na ausência de lei complementar prevista no inciso III, do par. 1º, do art. 155 da CF, os Estados-Membros e o Distrito Federal podem instituir os impostos nas hipóteses descritas nas alíneas “a” e “b” do referido inciso III, resguardados que estão pelos prin- cípios da Federação e da Igualdade, insculpidos nos arts. 1º, 5º, caput e 150, II, da CF, e também na autorização Constitucional prevista nos arts. 34, pars, 3º e 4º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal e 24 e parágrafos da Constituição Federal.
São Paulo, fevereiro de 2016.
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Direito Financeiro e arte
Regis Fernandes de Oliveira
Desembargador aposentado e professor
Sumário: 1. O símbolo no direito. 2. O papel do Estado na arte. 3. Pode o Estado intervir na arte? 4. A denominada “coisa pública”. 5. O risco da arte. As paixões. 6. O Estado, o direito financeiro e a arte. 7. As previsões orçamentárias. 8. A cultura na Cons- tituição Federal. A imunidade tributária prevista na letra d, do inciso V do art. 150 da Constituição Federal. A visão de Adorno. Atividade que depende da presença de animais. Presença de menores. Tombamento e expropriação. 9. A lei “Rouanet” de incentivo à cultura (Lei n. 8313/91). 10. Da prioridade valorativa. 11. O Estado marchand? 12. As receitas com museus, teatros e casas de cultura. 13. Subvenção. 14. A competência concorrente. 15. A cultura como alteração revolucionária da sociedade. 16. Conclusões.
- O símbolo no direito
Jung, em texto notável (O homem e seus símbolos, 2. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008, p. 18) define o símbolo como “um termo, um nome ou mesmo uma ima- gem que nos pode ser familiar na vida cotidiana, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhe- cida ou oculta para nós”. O símbolo é um significado que provém de uma palavra. Ao falarmos em leão a palavra é ligada à força. O touro é a mesma coisa. Daí a ambiguidade dos símbolos. Mas, é um significado que não está na palavra, mas na conotação especial.
A falarmos leão, o que nos vem à mente é seu significado imediato, ou seja, o ani- mal. Paralela e automaticamente surge outro significado, como a força, o rei da selva, o vigor físico, etc. Este é a identificação do símbolo.
Prossegue Jung: “Por existirem inúmeras coisas fora do alcance da compreensão humana é que frequentemente utilizamos termos simbólicos como representação de conceitos que não podemos definir ou compreender integralmente” (op. cit., p. 19). Da- mos o nome ao trovão, mas sua ocorrência nos invoca o medo e, pois, estamos pensando em manifestações divinas.
Nossos sentidos identificam a percepção do que temos à nossa volta. Vemos edifí- cios, ruas, veículos, sinalizações, etc., numa via pública. Com instrumentos, aumenta- mos nossa possibilidade de conhecer as coisas. Mas, muito fica fora de nossa apreensão. Daí imaginarmos significados para explicar coisas que não conhecemos ou que queremos distinguir através de identificações.
É muito comum, então, surgirem o que Jung denomina arquétipos. São idealizações de figuras e comportamentos. São, como ele denomina, representações herdadas. São significados instintivos. Mas, o autor distingue o instinto – “impulsos fisiológicos perce- bidos pelos sentidos” (op. cit., p. 83) e o instinto manifestado por fantasias, “a revelar, muitas vezes, a sua presença apenas por meio de imagens simbólicas” (idem, ibidem).
O instinto significa o impulso de reação a qualquer provocação do mundo. É imedia- to e sem uso da razão. O arquétipo evoca sentidos formados. O herói ligado à cavalaria, o Hércules salvador, o deus inconsciente.
O direito se vale de tais símbolos. O juiz simboliza a justiça. O promotor o acusador e o advogado o defensor. A balança é o arquétipo simbólico da justiça. O advogado é o símbolo da defesa dos direitos.
A norma jurídica tem um ritual de aprovação que a sacraliza. Os fatos e as ações humanas estão produzindo efeitos todos os dias. Realizam-se a todo instante. Agressões a direitos, mudanças de comportamentos, litígios individuais e coletivos ocorrem. Tais fatos constituem o comum na vida das pessoas. O advento da norma retira tal fato do mundo dos homens e a sacraliza. Torna-a intocável e quem tiver o comportamento con- trário ao nela previsto, sofre as consequências de sua conduta, ou seja, é punido.
Diz Giorgio Agamben:
Os juristas romanos sabiam perfeitamente o que significa “profanar”. Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comér- cio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas em usufruto ou gravadas de servidão. […] (Profanações. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 65).
A norma e o sagrado, então, se equivalem. Aquele fato é retirado do mundo pro- fano. Aquele comportamento já não pode ser praticado. Ele se torna intocável e quem tiver aquela conduta será punido pelos instrumentos da justiça. “Puro, profano, livre dos nomes sagrados é o que é restituído ao uso comum dos homens” (AGAMBEN, op. cit., p. 65).
A justiça é simbolizada pela balança. A infração é simbolizada pelas grades.
O processo é o instrumento que apanha o fato e, através de um roteiro procedi- mental, chega a um resultado de aprovação ou não, do comportamento que movimenta a máquina do Estado. É feito de altos e baixos. Permite às partes utilizarem todos os recursos para ataque e defesa.
Todo processo judicial é formado de arquétipos cheios de significação. Há todo um rito mitificado. Os prazos significam a passagem do tempo. Este segue sendo a sinaliza- ção da morte para onde todos caminham. A morte, no processo, identifica os prazos. A perda dos direitos (revelia). Mas, também sua criação (usucapião).
O símbolo é a toga do magistrado. É o bater do martelo do leiloeiro nos leilões de bens penhorados. É o estrado onde está a cadeira do juiz para significar a autoridade. É o anel de rubi do advogado a identificar-lhe a profissão. É a beca do meirinho a apontar
o auxiliar da Corte. É a grade nos tribunais do júri a separar o profano do sagrado. É o conselho de sentença no júri a identificar o povo como julgador. É o pregão a significar a publicidade dos julgamentos.
O símbolo das artes mistura-se aos símbolos do direito. Cada objeto produzido por um artista traz um significado forte a ter um significado. Os códigos apontam o sagrado. O objeto de arte identifica o profano.
O jurista de hoje rompe o sagrado. Viola-o. Se o direito é sagrado, ele se distancia do povo. É a ele inacessível para que o Judiciário detenha as regras da sanção. É apenas ele que tem o acesso à leitura dos códigos para saber a “vontade” da lei. A arte rompe tais obstáculos. Não há o conhecedor privilegiado das leis da arte.
É verdade que o Estado se arvora a ter o conhecimento sagrado através do pa- trocínio de obras de arte que possam glorificá-lo. Na Antiguidade Romana, Augusto foi deificado por poetas e escritores (Ovídio e Horácio e mesmo Virgílio). Fazendo um salto na história: os Médici foram glorificados por pintores e escultores. O salão parisiense que barrou os impressionistas igualmente era dirigido pelo Estado. O Estado russo dirigiu as artes. Hitler decretou a arte degenerada. O controle, enfim, se infiltra no campo da criação artística.
Daí ser importante analisar qual o papel do Estado em relação à produção artística.
- O papel do Estado na arte
Clive Bell tem interessante texto sobre o Estado como comprador. Diz que é
[…] impensável que qualquer governo compre o que de melhor há na arte do seu tempo; não se sabe até que ponto a compra por parte do Estado de mesmo bons quadros antigos seja um benefício para a arte. Não é uma questão que precise de ser discutida; pois, apesar de um Estado poder ter entre os seus funcionários homens capazes de reconhecer uma boa obra de arte (desde que seja suficientemente antiga), um Estado moderno tomará as devidas medidas para travar e ridicularizar o seu perigoso bom gosto. A aquisição de boa arte antiga por parte do Estado pode ou não ser um meio para o bem – atrevo-me a dizer que seria. Mas a compra de mestres de terceira categoria e objets d’art não beneficiam ninguém exceto os negociantes (op. cit., p. 152).
O autor faz duras críticas ao papel do Estado na arte e sua incompetência na aqui- sição de obras de qualidade. Primeiro, começa pela falta de servidores capazes de apre- ciar o belo estético. Segundo, pela incapacidade pessoal deles em reconhecer e distin- guir o bom do ruim, o belo do feio.
Diz o autor que “quanto á arte contemporânea, o patrocínio oficial é o método mais seguro de incentivar tudo o que nela houver de mais estúpido e pernicioso” (idem, ibi- dem). Entende que os monumentos públicos, as estátuas e edifícios desgraçam as ruas.
Entendemos que o Estado pode ter papel relevante não especificamente na aqui- sição de obras de arte, mas no patrocínio de eventos, na preservação e conservação de museus, na seleção de peças teatrais, óperas, exibições, no incentivo da criação literária, cinematográfica, teatral, escultural, musical e de telas. O Estado não teria, então, papel de destruidor ou controlador, mas de incentivo. Papel de indutor. Jamais de interventor em tal campo de produção artística.
O inverso é verdadeiro. O papel da arte na sociedade é relevante. Inclusive, para alterar padrões culturais. O que pode ser comportamento preconceituoso no encarar, por exemplo, um nu, pode significar grande avanço em termos de mudança cultural.
O Estado, em definitivo, não pode interferir na produção artística. Ao contrário, deve ficar fora dela, para permitir que ela não retrate a ideologia oficial, com o que se perderia. Em tal passo, os denominados direitos negativos têm papel relevante. É a omissão do Estado que os consagra.
Sua função será unicamente de incentivo, de promoção de eventos, concursos, mas desde que todos sejam dirigidos pela iniciativa privada.
Ocorre que o Estado é dirigido por homens e estes são seres passíveis de todas as paixões, boas ou más. Estas foram estudadas por Cícero (Discussões tusculanas, Univer- sidade Federal de Uberlândia, 2014, Livro III, p. 215-303). Quando há o desvirtuamento da finalidade para que foi constituído o Estado, claro está que pode ser instrumento de perseguição aos artistas, de desconsideração pelo grande gênio e de falta de reconhe- cimento por sua produção artística. Pode, então, o Poder Público ser instrumento de privilégio ao medíocre em detrimento da obra genial.
Como o Estado pode tentar conduzir a arte para servir a seus misteres, seus de- sígnios, sua ideologia, deve ficar afastado dos artistas. A presença do Estado com seus tentadores patrocínios e sua sedutora promessa de compra de obras deve ficar alheia à intervenção direta.
- Pode o Estado intervir na arte?
Quem está envolvido com a arte, em todas suas manifestações, não pode dispensar a questão: até que ponto o Estado pode intervir na produção artística, em suas diversas expressões?
O homem tem sentimentos que não pode controlar ou, se os controla, dirige-os para determinadas atividades. O mundo interage com o ser humano a todo instante. O ser humano interage com outros a cada minuto. O homem não vive só. Pode ter a solidão como opção, mas não como hábito diário.
Toda essa efusão de afetos faz com que o ser humano seja um ponto de confluência de sentimentos contraditórios e seja um caldeirão de emoções. Estas são transmitidas em diversos sentidos na produção de obras.
Compositores elaboram textos musicais. Sentem em si os sons e os colocam em sintonia, criando músicas notáveis, sejam clássicos, sertanejos, rap, rock and roll, jazz, soul, samba, axé, boleros, valsas, tangos, enfim toda sorte de sinfonias possí- veis. Uma polifonia de sons emerge de almas especiais. Todos os grandes composi- tores clássicos foram homens especiais (Mozart, Wagner, Beethoven, Carlos Gomes, Tchaikovsky, etc.), o mesmo sucedendo com o mais humilde compositor de cantigas de roda.
Os intérpretes também são seres sensíveis que incorporam os sons como sua lingua- gem preferida.
O que não se dizer da pintura? Desde a Antiguidade os homens desenhavam animais em pinturas rupestres. Eram seres sensíveis que, sem embargo da luta da vida para sobreviverem, ainda tinham sentimentos para transmitir imagens. A evolução da arte pictórica dá bem a dimensão dos eflúvios da alma. A pintura grega e romana, e também da Idade Média, que se retrata em retábulos, mostra o desejo de todos na busca da ex- pressão estética.
Surgem os grandes pintores do pré-Renascimento. Obras monumentais foram pro- duzidas.
O que não se dizer da escultura que tem como representante antigo Fídias e Pra- xíteles? E a arquitetura que nos deixa notáveis exemplos da genialidade de então (O Partenon, o templo de Segesta, o Coliseu, etc.).
A literatura não fica atrás, e nos lega obras profundas, significativas e simbólicas de eras passadas. Grandes monumentos surgiram com Camões, Cervantes, Shakespeare, Dante, Machado de Assis e Goethe.
Enfim, a arte significa a explosão dos sentimentos do homem. Incontroláveis eles têm necessidade de vir à tona. O ser humano não consegue retê-los no recôndito. Fatal- mente, os homens trazem à luz aquilo que lhes vai na alma.
São situações, como se vê, de intimidade. É o homem se desnudando. É o homem trazendo a público aquilo que tem dentro de si. É a mulher retirando de si seus senti- mentos e os mostrando a todos.
Para Émile Zola “uma obra de arte é uma porção da criação vista através de um temperamento” (A batalha do impressionismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, p. 48). Afirma que “fazer arte não é fazer algo que está fora do homem e da natureza?” (op. cit., p. 33). Conclui que há dois elementos: a natureza e o homem. A primeira é real e o homem é infinitamente variável.
Entende bastante estranha a relação que se cria entre a Administração e o artista. Aquela acredita em seu papel de protetora. Como o Mecenas do período de Pompeu. Entre ambos há sempre o que ocorre em casamentos mal escolhidos: conflitos (ZOLA, op. cit., p. 278).
Sem dúvida, a arte não se encontra fora dos acontecimentos políticos. A obra pro- duzida sempre está em relação com determinado momento histórico. Neste, há o impon- derável da ideologia dominante ou das que estão em conflito. O artista não fica alienado dentro de tal processo. Ele é integrante da realidade que o cerca.
Bourdieu afirma que o Estado é o detentor da violência simbólica legítima (Manet – une révolution symbolique”, Paris, Raisons d’Agir/Seuil, 2013, p. 141). O Estado sempre quis legislar sobre a arte e busca interferir na produção. Mas, deve ser afastado de toda possibilidade de interferência.
Bourdieu refere-se ao Salão oficial de Paris, que organizava a exposição dos qua- dros, e um grupo de técnicos analisava-os para permitir a exposição. Assim, a arte aca- dêmica era uma arte de Estado (op. cit., p. 165). Era o Salão uma instituição fundada e validada pelo Estado. De qualquer maneira, havia uma direção sobre as obras produzidas e que seriam expostas. Inúmeras obras que foram produzidas na época, e hoje de grande valor estético, foram recusadas pelo Estado.
Daí surge o Salão dos Recusados e, mais tarde, denominado Salão dos Impressionistas.
O Estado exercia, então, o monopólio da “nominação”, isto é, da indicação das obras que seriam expostas e isto aplicado “ao campo artístico toma a forma de monopólio esta- tal da produção dos produtores e das obras legítimas” (BOURDIEU, op. cit., p. 214).
Em determinados momentos, a arte serve aos interesses dos governantes. Foi o que ocorreu na União Soviética. A arte ocidental era burguesa. A arte deveria servir ao regi- me. Popova, Rodchenko e Ekster estavam alinhados com o Estado. O interesse era claro: “criar uma identidade visual para o comunismo” (GOMPERTZ, op. cit., p. 197).
Esse é o problema que deve ser encarado: pode o Estado constranger a criação para instituir uma estrutura de amparo à sua ideologia? Não deve, mas pode. Todo governo é o reflexo de seu governante. Não há isenção. As emoções afloram. O Estado explicita suas ações por seus agentes. Daí a corrupção (ou eventual acerto).
Em suma, há verdadeiro confronto de interesses. Como sempre, a força do Estado busca interferir em tudo e impor-se, ainda que seja, em termos culturais, para fazer triunfar a mediocridade. Daí o conceito que buscam dar de “coisa pública”.
- A denominada “coisa pública”
De outro lado, como sua antítese, surge o Estado. Este tem que cuidar da coisa pública. Como dizia Cícero em “Sobre a República”, I, 39:
A coisa pública (res publica) é a coisa do povo (res populi). Povo não é qualquer aglomeração de homens reunidos de qualquer modo, mas o conjunto de uma multidão de homens associados pelo consenso do direito (iuris consenso) e da utilidade comum (utilitas communione). Quanto à causa primeira dessa associação, não é tanto a fraqueza, mas uma certa propensão natural dos homens a se congregar, pois os homens não são feitos para a solidão nem para uma vida errante.
Vê-se, pois, que o que cabe ao Estado é o cuidado da res publica, isto é, diz respei- to às coisas do povo. O direito romano bem explicitava: publicum ius est quod ad statum rei romanae spectat (direito público é o que diz respeito às coisas públicas romanas).
Assim sendo, ao Estado incumbe cuidar das coisas públicas. Descabe-lhe qualquer interferência nas coisas particulares. No mesmo direito romano vinha definido como: privatum, quod ad singulorum utilitatem. Isto é, o direito privado dizia respeito às coisas individuais.
Daí surge a sacralidade da propriedade privada, que era o âmbito íntimo da casa romana onde as famílias enterravam seus mortos (os lares).
Para invadir a esfera privada, os governantes falseiam a verdade e a deturpam. Dão conteúdo a palavras vagas. Como estas têm conteúdo fluido e aberto à realidade, os detentores do poder as manipulam de acordo com seus interesses.
De forma hábil elaboram discurso para o preenchimento dos conceitos de acordo com os interesses que pretendem impor à sociedade.
Se fôssemos seguir o raciocínio de Tomás de Aquino, a busca de justiça geral é o bem comum. Para alcançá-lo, deve-se seguir o justo em relação à ação dos particulares. Isso só ocorre em relação a outrem. A função da lei é o bem comum (Suma Teológica, Loyola,
- , v. VI, p. 67, questão 58, art. 7º). Nem todos os homens estão assim predispostos.
O Estado, então, assume atribuições que não eram originariamente suas. Como as pessoas passaram a não dar conta de suas atividades, foram buscar o Estado para ajudá-
-las em seus próprios interesses. Como, por uma série de razões, não logravam produzir, plantar, ter instrumentos para fazer arte, escolas, tratamentos de saúde, etc., iam em busca do Estado para que suprisse suas deficiências.
Daí nascem ignominiosas interferências do Poder Público no âmbito das pessoas. O Estado, por seus agentes, gosta disso. Vê oportunidade para ingerir na intimidade de todos e passa a assumir funções que não eram suas. Ultrapassa seus limites e avança no interior das atribuições privadas.
Com o evoluir dos tempos, a dificuldade de obtenção de coisas apenas com o esfor- ço particular tornou-se impossível. Os meios de comunicação servem bem de exemplo. As estradas demandavam um dispêndio de tal ordem que nenhum particular poderia su- portá-lo. Daí surgia a coletividade que destinaria recursos para sua construção. O ensino deixa de ser privativo e sob o cuidado de tutores, passando a ser universal. O mesmo em relação aos serviços de saúde. Aparelhos caros não podem ser adquiridos por indivíduos e, por vezes, mesmo por empresas. Intervém, então, o Estado.
De seu lado, os agentes gostam dos avanços políticos. Passam a cuidar de assuntos que eram privativos de particulares e invadem a esfera privada.
Surge, então, a pergunta angustiante: até que ponto pode avançar o Estado?
Na arte, os estabelecimentos públicos de grandes apresentações de músicas, de concertos, etc., por exemplo, são estatais. Diga-se o mesmo em relação às exposições de pinturas e esculturas. É o Estado que detém recursos para construção de grandes obras e produção de grandes eventos.
Na medida em que detém os locais de apresentação, busca intervir (os desejos humanos são insaciáveis) na exibição de obras de arte e, pois, os diretores do estabe- lecimento terão (ou pensarão ter) atribuições na seleção das próprias obras. Foi o que sucedeu com Manet e a escola impressionista. Os grandes pintores não logravam expor no Salão e passavam a expor suas telas no Salão dos recusados. O fato é histórico e bem representa a tentativa de o Estado intervir até mesmo na seleção das obras de arte.
Manet, Monet, Degas, Pissarro, Renoir, Cézanne, Syslei e Bazille fugiram da influência do Estado para fazer uma grande revolução. A resistência na exposição das obras outra coisa não significou que uma rejeição à interferência do Estado na produção de pinturas.
Em outro ponto, Rembrandt também procedeu da mesma forma.
Diga-se o mesmo em relação à música, em que diversos compositores sofreram com a interferência do Estado. Este exigia produção de determinada qualidade. Foi o que se fez com Bach.
As esculturas tinham que ser selecionadas em virtude da moral que podia ser atin- gida. O nu sofreu grande resistência em todos os setores. Obras agrediam a moral média da sociedade.
Em suma, o Estado não tem limites em seus desejos (de seus agentes) de interferir em todos os setores. É que os homens são desejantes e, como tal, seus apetites não têm limites. Apenas a sociedade é que pode a eles resistir e instituir os lindes de sua invasão.
O Estado manipula tudo e todos através dos sentimentos de seus governantes. Es- tes utilizam seu momentâneo domínio sobre o poder político para tentar manobrar os artistas em seu favor. Com discurso persuasivo e cheio de promessas jamais cumpridas, mas cativantes, os governantes buscam despertar no artista sentimentos utópicos de amparo à população carente. Dizem que através de sua arte podem ajudar na forma- ção de opiniões propícias para mudança da situação política do país. É através de sua música, de seus quadros, dos espetáculos teatrais, filmes, etc. que podem criar um sentimento patriótico.
O nazismo agiu assim. O comunismo também.
É correto manipular a arte em prol da propaganda do Estado? A pergunta é deslo- cada. O problema é falso. Arte é arte. É produção intelectual ou afetiva que representa momentos afetivos. Mas, com discurso fácil e de captação da vontade dos artistas, pode o governante fazer com que eles estruturem sua produção para seduzir, de seu turno, a população.
Não podemos nos esquecer de que os homens são movidos a paixões. Estas, no sentido que lhes dá São Tomás de Aquino, são padeceres, ou seja, as pessoas sofrem as paixões. Seguindo Aristóteles, a paixão se encontra mais na parte apetitiva do que na apreensiva (São Tomás de Aquino, Suma Teológica, v. III, “As paixões da alma”, questões 22 a 46).
Para Aquino, a alma é apetitiva, apreensiva e o corpo sensitivo. A apetitiva é o de- sejo e a apreensiva é a compreensão. Ora, os desejos envolvem o homem.
Todos os autores que trabalharam o problema das paixões entendem que o homem é um ser desejante e que a razão não pode controlar seus afetos. Pode, de duas manei- ras: ou dirige as paixões politicamente ou busca justificar os comportamentos depois da ação. Alguns entendem que é possível dominar as paixões através da mente.
Em verdade, o que se passa é que os sentimentos dos governantes é que dominam o Estado. Este age por seus governantes. Estes são repletos de paixões.
Diante disso, impõe saber o que é arte, como o Estado, por seus governantes, a manipula em prol de seus interesses.
- O risco da As paixões
Vê-se, pois, que a arte pode ser manipulada para servir a interesses de governan- tes. É que, por vezes, o discurso persuasivo de taumaturgos ilude a sociedade. Seduzem a tudo e a todos, tornando até mesmo intelectuais como instrumentos de ideias nobres ou não.
Heidegger, por exemplo, foi seduzido pelo nazismo. Artistas podem se filiar a parti- dos e se deixar entusiasmar por ideias que depois se veem superadas. Mas, de qualquer maneira, é o momento histórico que dita a ideologia, que seduz e desagrega. Mas, ho- mens são instáveis e se deixam levar por emoções instantâneas.
Há, pois, no processo de criação o risco de que artistas sirvam à ideologia do Esta- do, para celebrar os feitos e realizações deste. A arte, em tal hipótese, é adulterada, ainda que possa representar o belo. Os artistas escapam do que é racional e mecânico. Como diz Gombrich, “a arte parece ser o único refúgio onde a fantasia, a inconstância e as singularidades pessoais ainda são permitidas e até apreciadas” (A história da arte, Rio de Janeiro, LTC, 1995, p. 613).
A arte não pode, pois, sofrer peias. Devem os artistas ser livres para a criação. De qualquer tipo. Devem ter compromissos com seu tempo e jamais servir de instrumentos para ideologias momentâneas.
Wagner, por exemplo, ligou-se ao Império alemão e usufruiu o amparo de Ludwig enquanto pode. Tirante sua notável genialidade, amparou-se no governo e chegou a construir o teatro de Bayreut.
Na literatura, não faltam exemplos de grandes autores que se vincularam ao poder para usufruir a possibilidade de produção artística.
Alguns foram vivamente perseguidos pelo Estado (Soljenítsin, por exemplo, autor de Arquipélago Gulag). Castro Alves revoltava-se ao estuar o tráfico de escravos (Na- vio negreiro). A música não fica atrás: Mahler vivia grandemente ao compor o Opus 3. Beethoven vibrou ao compor a Heróica (Sinfonia n. 3). Verdi vivenciava profundamente suas óperas (Aída, Rigoletto).
As manifestações afetivas de homens notáveis não podem servir a quem quer que seja, salvo a eles próprios, como expressão de seus sentimentos. Mas, os governantes não deixam de tentar interferir em tal espaço. É o que se passa a analisar.
As paixões. A arte é, essencialmente, paixão. É impossível analisá-las de forma au- tônoma e desapegada de qualquer sentimento. Ninguém escreve uma poesia sem estar em êxtase. Ninguém pinta um quadro sem estar inspirado. Ninguém molda uma estátua sem pensar no grandioso. Ninguém constrói um edifício de valor artístico sem acreditar em deuses. Ninguém compõe uma música sem sentir o divino.
Logo, arte é paixão. Impossível dissociar a inspiração do artista de seus sentimen- tos. Interessante a investigação feita por Edmund Burke (Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo, Campinas, Unicamp, 2013). Parte dos sentimentos de dor e prazer (p. 52), para chegar ao deleite (eliminação da dor) e o prazer positivo. A cessação do prazer propicia indiferença (cessação após longo período de prazer), decepção (cessação súbita do prazer) e pesar (impossibilidade de nova sen- sação positiva).
Tudo se experimenta na arte. Burke afirma que há duas espécies de sociedade. Uma é a do amor que se mescla com a luxúria. A outra que não é ligada à luxúria “e seu objeto é a beleza” (op. cit., p. 72).
Sem dúvida alguma, estamos em território em que as paixões adquirem sua verda- deira sublimação. Nenhum objeto de arte é produzido sem paixão. Pode ser de maior ou menor intensidade, mas os sentimentos afluem à flor da pele. São eflúvios incontidos de afetos. São coisas inseparáveis: arte e paixão.
O direito tem sido visto, há tempos, como um conjunto de princípios e regras que disciplina o comportamento humano. Se fosse somente isso, qualquer conjunto seria direito e confundido com a lei. O estado de legalidade, mas não o de legitimidade. Tal acréscimo significa que se pode falar em norma boa ou má, de forma a garantir os di- reitos mais íntimos e sagrados do homem. Não se confundindo o conceito de legalidade (estrito advento de leis) com o de legitimidade (conjunto de leis que garante o estado de direito pelo enobrecimento e valorização do homem), a modernidade busca garantir a inviolabilidade dos denominados direitos individuais e sociais.
O que se busca agora, é uma ideia de direito adaptável ao nosso tempo. Não há ino- vação, uma vez que retirei de diversos autores a visão de que o direito como dimensão cultural só pode ser analisado à luz dos sentimentos humanos.
O homem é visto como um ser pulsional, isto é, cheio de sentimentos que vão do amor ao ódio. O homem não nasce à imagem do Criador. O homem é o que é. Cada qual é diferente do outro. A humanidade é, pois, absolutamente desigual. Tornar a todos iguais é irreal. Tratá-los de forma igual também não é real. Pode ser romântico ou cristão, mas não reconhece, em cada qual, as desigualdades de que são formados.
O id freudiano é um desconhecido que tem toda sorte de impulsos. Com a repres- são, nasce a civilização. A repressão recai sobre os impulsos, para permitir a convivên- cia. O homem que cede a seus sentimentos agride a moral média, que é fruto, dizem, de consenso. Daí a repressão para que se enquadre nos padrões éticos vigentes.
Como não se consegue reprimir os impulsos através de controle interno do próprio ser humano, a sociedade o faz. Daí nascem o recalcado e o neurótico. Para o equilíbrio, surgem códigos de valores e a crença em outro mundo. A comparação com valores ideais é que vai servir de contraste para o domínio dos humanos. A crença no transcendente promete a salvação.
Se pensarmos o ser humano apenas como humano, tem ele a substância igual a tudo na Terra. Tudo é substância. Cada animal, vegetal ou as demais coisas, cada uma tem sua substância. Assim, a evolução vai alterando as coisas e, inclusive, o homem. A natureza tem sua alteração constante e disforme. O mundo é o caos e prossegue com o caos. Cada coisa existe por si mesma.
Se é assim, o ser humano é tocado pelo mundo e o toca a todo instante. Vive, pois, em constante alteração. A cada minuto já não é mais o mesmo, como diria Heráclito, filósofo grego. Como veio ao mundo, tem de viver. Não pode renunciar à vida. Se acre- ditar em um mundo superior (de ideia, de deuses ou de deus, etc.), então passa a vida a buscar esse outro mundo e fazer por merecê-lo. Daí ser obediente a padrões de com- portamentos que lhe são ditados não por sua vida, mas pela vida dos outros. Estas são as normas editadas pela Igreja ou pelo Estado e que devem ser cumpridas.
Ao viver, busca manter-se cheio de vida. No entanto, é movido por seus apetites, desejos e vontades. É natural que o homem queira aquilo que manda seus sentimentos. O desejo é sua própria essência. Como não quer sofrer, busca alegria. Quando passa frio, busca o calor. Quando quer ter as coisas, assume o consumismo (próprio dos dias atuais).
De qualquer maneira, se não assumir um mundo ideal (alguma religião), vê-se mas- sacrado pela vida. Fica só (a vida lhe dá náusea – Sartre). Então, pode ter sentimentos contraditórios e sentir o pessimismo à Schopenhauer. É que o homem não consegue re- frear os afetos, como afirma Spinoza.
Diante de tal perspectiva (de se sentir só, de ter desejos que ficam reprimidos, de eventualmente não crer na religião e num mundo pós-morte) é que o homem se junta em sociedade. Não da maneira romântica pensada por Hobbes, Rousseau e Locke. O pacto social não decorre do movimento anímico de todos, em determinada ocasião, e efetuam uma renúncia de sua natureza para conviver em sociedade. O Estado não nasce de tal maneira. Ao contrário, o Estado nasce de conflitos, de conquistas, da guerra.
Não há uma ruptura do homem na natureza com o homem civilizado, de forma que um era o selvagem e passa a ser o civilizado em golpe estratégico de inteligência. Ao contrário, as tribos de outrora eram guerreiras e impunham a dominação sobre as outras. Quem era mais forte vencia e impunha seu modo de vida. Nascem estados, cos- tumes, morais, etc. É a lei do mais forte. Daí Hobbes ter dito que “o homem é o lobo do homem”. Grande verdade.
Como se pode entrever, o direito não mais é visto como mero conjunto de normas, mas como instrumento de dominação e de paixão. O poder, que no estado de natureza era o direito de matar, passa a ser o direito de manter vivo. O poder no estágio primário era a força bruta e passa a ser dominação disfarçada.
O Estado, em tal situação, não mais é apenas decomposto em seus elementos (ter- ritório, povo e governo), mas visto como o estado-governante, isto é, aquele que titula- riza interesses dos outros. Conquistou-os. A conquista pode ter ocorrido na Idade Média ou em decorrência das Grandes Guerras, pela força que se materializa em tratados. Modernamente, o Estado significa o domínio do vencedor que impõe suas regras. Ou é a mera imposição da vontade do vencedor ou a vontade dos fracos que se organizam para dominar o mais forte. É o que se vê nas grandes comunidades de países que se organizam (União Europeia, Alca, Tigres Asiáticos) para dominar ou resistir à força econômica dos outros (China).
O direito passa a significar a maneira “civilizada” de fazer a guerra. Daí porque o Estado é o titular da violência. Exatamente para impor seus valores (aqueles que a classe dominante quer). A lei não é a expressão da vontade comum e imposta à obediência de todos. É simplesmente a concretização da não violência.
O homem em estado natural tem seus impulsos, como se viu, e não abre mão de- les. Simplesmente se submete (pactum subjectionis) ao mais forte, ou o mais forte que sucumbe ante a união dos fracos. Clausewitz afirmou que a guerra não passa da política continuada por outros meios.
A relação jurídica hoje outra coisa não significa senão a relação de dominação-
-sujeição. Toda lei reflete uma dessas relações. Seja condominial, seja familiar, contra- tual, tributária, penal, etc. Todo relacionamento é impositivo e prevê sanções para o descumprimento do preceito.
Como é importante que a população não sinta tal sujeição, instituiu-se a violência simbólica (Bourdieu), isto é, as pessoas podem votar, ser votadas, sujeitam-se ao salário mínimo, recebem vencimentos incompatíveis, não têm saúde ou ensino de qualidade, mas pensam que serão satisfeitas e que seus filhos alcançarão tais bens. Vivem com li- berdade (ainda que a sociedade não seja democrática), pensam que as instituições estão funcionando a contento, mas não têm uma sociedade democratizada e de pleno amparo às necessidades públicas. Ficam na ilusão.
Ocorre que se não se mantiverem como rebanho (expressão de Nietzsche) sofrerão repressão. Se começarem a fazer passeatas de reivindicação, sentirão o peso dos cas- setetes. Se buscarem alterar a ordem política, serão reprimidas. Têm de se comportar.
Veja-se, pois, que a ordem é manter o rebanho unido através do direito. Nesse sen- tido, é que se diz que o direito é mera dominação através de códigos de persuasão. Nem por outro motivo é que a política outra coisa não significa senão a captação da vontade através de signos (liberdade, honestidade, direitos humanos, igualdade, etc.), ainda que estes nunca se realizem.
O poder, então, é alcançado por aqueles que possuem a melhor estratégia (valores, códigos, mensagens midiáticas, etc.) de conquista.
Como disse Marcuse, nossa civilização “em termos genéticos, está fundada na su- pressão dos instintos”. É verdade. É o homem que é reprimido e iludido com o valor de sua posição social, de sua família, de sua segurança, etc. É o homem que se deixa mar- car na porteira, com o ferro da igualdade para integrar o grande gado humano.
O direito é instrumento de dominação, porque mantém subjugados homens e mu- lheres que não venceram a guerra. O vencedor impõe sua verdade (Nietzsche) e suas regras bem como as sanções em caso de infração. As ideologias, neste passo, são fortes
modos de captação da vontade ou da sensibilidade das pessoas. Servem de estratégias para obtenção do poder.
Foucault ensinava que o problema é de estratégia.
O homem busca a alegria em contato com o mundo. Este nem sempre é amigo. Por vezes prepara decepções, dor, tristeza. O homem busca superar tais desencontros não pela fuga ou pela ilusão, mas pelo enfrentamento das tristezas, fazendo assim a intensa vida.
O direito é paixão. É o direito vivido nas ruas, nos cárceres, nos laboratórios, na família, no comércio, nas discussões, no parlamento, no executivo, no judiciário. O di- reito é tudo isso.
Da mesma maneira, dessacralizou-se o mito para a introdução de outro ente sagra- do, ou seja, o dinheiro. Este é que comanda a sociedade, hoje. Como deixar seu estudo, em todas as suas formas, de lado? Não sob o aspecto da leitura dos contratos, dos tra- tados, do direito cambial, mas da estrutura de dominação que está por trás. O dinheiro comanda as grandes corrupções. O dinheiro seduz a tudo e a todos. Como desconhecer, hoje, esse poderoso instrumento de dominação?
Veja-se como tudo é paixão (no sentido amplo da palavra em relação aos instintos), que deve imperar na análise do fato jurídico que enseja a incidência da norma. Não ape- nas do ângulo da subsunção, mas do aspecto do que está hipostasiado no fato empírico.
O direito, pois, não deve ser visto como mera forma. É guerra, dominação, poder e estratégia. O direito é regido pelas paixões humanas e de tal modo deve ser analisado.
Vê-se, pois, que as paixões, aqui tomadas em seu mais amplo sentido de todos os sentimentos que invadem o ser humano ou estão dentro dele. O ser humano é formado de maneira maniqueísta. Tem perante si o bem e mal. O bem nele se reflete através dos bons sentimentos; o mal, pelos maus afetos.
O ser humano não é racional. Não é a razão que nele decide, nem é ela um centro controlador de todos os afetos que dentro dele se digladiam.
Nele preponderam os sentimentos, bons ou maus. Na primeira ordem, podemos identificar: o amor, a solidariedade, a coragem, a temperança, a sobriedade, etc. Na segunda, temos a ira, a inveja, a cobiça, etc.
Não podemos rotular, como o fizeram autores do passado, de doenças. É que tais sen- timentos são o que são. Manifestam-se no interior do ser humano. Mas, não são doenças.
O amor, principal sentimento do bem, desdobra-se em outros, como a solidarie- dade, a compreensão, a bondade, a comiseração, etc. O amor é sempre em relação ao outro. O amor por si próprio é narcisismo. Tal afeto é sempre intersubjetivo.
O amor exacerbado converte-se em paixão (outro rótulo que significa a perda do bom senso e da modicidade). Esta, neste sentido, é fulgurante e efêmera. Explode em eflúvios de afetos e apaga-se com a mudança do humor.
O mal revela-se através de diversos comportamentos. A ira é o desejo da vingança. O ódio, a insânia, a raiva, o medo, a avareza, a cobiça, etc., são manifestações do mal.
Podemos contrapor o amor ao ódio. O bom e o mau sentimento. Ambos têm suas
variantes.
Para efeito deste estudo basta dizer que o homem não tem o controle de seus sentimentos. Podemos ficar na lição de Spinoza, que entende existir o que rotula de conatus, isto é, a vontade de viver. Esta seria a essência do homem. Ele balança entre a
esperança e o medo. A saber, a esperança é sentimento futuro de que nada de mau ocor- rerá. O medo pode se desdobrar em medo do futuro e do passado. O medo do passado assombra pela possível repetição do mal. O do futuro busca impedir que alguma coisa de ruim aconteça.
Entre os dois, o ser humano balança. A ação dependerá de que afeto prevalecerá no conflito interno do homem.
Esses sentimentos se refletem no direito e na arte. No governo, quando da tomada de decisões. Na arte, quando de sua elaboração e também no contato que pode ter o artista com a estrutura governamental.
A proteção ao artista, a subvenção de sua arte, o auxílio para aquisição de mate- riais, bem como para exposições, e a própria compra das obras fazem parte do emotivo. Depois de o nome do artista estar consolidado e suas obras forem aferidas pelo merca- do, já não haverá tanta margem de manobra para manipulação das compras. Antes, no entanto, tudo é possível. O patrocínio a um artista, por parentesco com governantes ou mera simpatia, pode levar não apenas à compra de obras, mas também da montagem de exposições.
Igualmente, servirá de criação de toda sorte de transtornos e prejuízos para a dignidade do artista. Perseguições, críticas duras na mídia por críticos vinculados ao governante, tudo pode ser deliberado em repúdio a alguém.
O que se quer deixar claro é que os sentimentos, mais que tudo, entram no relacio- namento humano para o bem ou para o mal. Depende do governo.
- O Estado, o direito financeiro e a arte
Ora, sabidamente, o Estado tem deveres com a cultura de um país. No Brasil, o art. 215 da Constituição Federal dispõe: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão de manifestações culturais” (redação dada pela Emenda Cons- titucional n. 48/2005). O mesmo texto garante a liberdade da “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (inciso IX do art. 5º). De outro lado, garante-se “o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão” (inciso XIII do art. 5º).
Toda atividade intelectual e artística está livre de qualquer cerceamento da produ- ção e da manifestação cultural. Inclusive, independe de censura ou licença. A saber, não têm os intelectuais e artistas que pedirem ao Estado que libere seus pendores intelectuais.
São os denominados direitos negativos, isto é, impõem ao Estado o deve de se abster de controle ou autorização para que haja manifestação. Os direitos positivos, ao contrário, exigem uma atuação do Estado (saúde, educação, etc.). A liberdade artística e cultura exigem do Estado sua omissão.
Sendo livre a manifestação intelectual, a Constituição impõe, ao mesmo tempo, como se vê do art. 215 de seu texto, o incentivo e a difusão das manifestações culturais. Ademais, “a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais” (parágrafo 3o do art. 216).
Fechando o cerco à exigência de participação do Estado no incentivo cultural, o art. 216-A (inserido pela Emenda Constitucional n. 71/2012) instituiu o Sistema Nacional
de Cultura e obrigou a realização de políticas públicas de cultura pactuadas entre entes da federação e a sociedade.
Mais não precisaria dizer o chamado pacto social para se discernir a obrigatorieda- de do Estado em propiciar condições para que os artistas e intelectuais possam, livre- mente, produzir cultura.
A política pública, aqui, significa apenas a participação incentivadora do governo, sem qualquer intervenção. Assim, deve dispor de edifícios próprios para exibições, con- ferências, concertos, reuniões, exposições e discussões sobre todo tipo de manifestação cultural. Política pública está, aqui, no sentido de que o Estado, não só se abstenha de controlar qualquer manifestação cultural (atribuição negativa), como também de incentivar, em todos os sentidos, a realização de atos que signifiquem cultura, na ampla acepção utilizada por Vargas Llosa.
A sociedade organizada, através de suas inúmeras entidades, busca interferir no Estado e delimitar sua atuação. Para tanto, obriga a manutenção de dispositivos orça- mentários para atingir seus objetivos.
- As previsões orçamentárias
Para que isso se realize, o Estado deve alocar, obrigatoriamente, verbas orçamen- tárias em tal sentido. Não apenas o Plano Plurianual deve conter previsão de incentivo à cultura, como também a Lei de Diretrizes Orçamentárias (anual) deve estabelecer a diretriz para o exercício financeiro seguinte. Caso não o faça, cabe às organizações não governamentais ou qualquer entidade ou associação de classe (de artistas) ingressar em juízo e pleitear a inserção de verba para as atividades previstas no art. 216-A da Consti- tuição da República. A Lei Orçamentária anual há de prever os recursos para efetivação dos direitos culturais.
Como se sabe, os dispositivos constitucionais não são normas de mera recomen- dação. Todas são eficazes, isto é, produzem efeitos no mundo jurídico. Como tal, os governos federativos são obrigados e não podem se omitir, sob pena de responsabilidade política, a inserir no texto da lei orçamentária anual, recursos para o exercício dos di- reitos culturais.
Exigência mínima é a inserção de recursos orçamentários para as finalidades estam- padas no dispositivo constitucional.
A omissão do Estado em não intervir na produção artística está na exigência consti- tucional. Logo, não pode incentivar a criação que sirva para agradar ao Estado, nem para elogiá-lo, nem para ressaltar seus feitos e suas políticas. Aí entram os deveres negativos.
De outro lado, deve construir teatros (como o Municipal de São Paulo e Rio de Ja- neiro, por exemplo), financiar a construção de outros, dar recursos para a realização de eventos culturais, como feiras literárias, exposições de pintura e escultura, patrocinar a vinda de obras e coleções de artes de todo o mundo, incentivar festivais de música (como o de Campos de Jordão, por exemplo) de toda qualidade. Inclusive de música gos- pel, embora não possa patrocinar eventos religiosos, mas a música se insere no conceito geral de cultura.
A quantia que será alocada para patrocinar tais eventos, ou incentivar sua realiza- ção, não cabe à doutrina estabelecer. Mas, não poderá ser de tal forma ínfima, de modo
a inviabilizar sua realização. O montante está inserido na competência discricionária do agente público e também na finitude dos recursos de que pode dispor a estrutura eco- nômica governamental. O que não pode é deixar de realizar a previsão orçamentária.
Estará sujeita, também, a alocação de recursos aos problemas de contingencia- mento, ou seja, cortes de verbas previstas diante da não realização de recursos orça- mentários.
O orçamento deve ser uma peça de equilíbrio entre os recursos arrecadados e as previsões de despesas. Logo, se os recursos não se realizam, opera-se um corte eventu- almente linear ou por planos governamentais. O que não se admite é a anulação total da receita prevista para tais atividades.
Importante é que se estabeleça certa previsibilidade para que os atores que intervirão em tais atividades saibam, de antemão, com o que poderão contar para estabelecer um esquema de realização. Por exemplo, os promotores de uma temporada de ópera devem saber de quanto disporão para contratar as companhias de tal tipo musical. Os tenores, barítonos, sopranos e demais cantores são requisitados no mundo inteiro e suas turnês de- vem ser programadas com grande antecedência. Uma companhia europeia, por exemplo, quando vem à América Latina conta com apresentações em Buenos Aires, Montevidéu, São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais latino-americanas. Logo, descabe improvisação.
Não apenas a música clássica, mas eventos como a Flip, que se realiza em Parati, devem ter disponibilidade suficiente para a vinda de grandes escritores e poetas de todo o mundo e também dos brasileiros. Nada se faz de repente e de inopino ou improvisado. Tudo tem de ser programado.
Não cabe amadorismo em tais produções. Logo, as verbas previstas na dotação or- çamentária devem estar disponíveis. A única surpresa será a não realização de recursos e, pois, em tal hipótese, cabe o contingenciamento.
Pode-se indagar, também, se cabe ao Poder Público negociar com obras de qualquer espécie. Antes, impõe-se indagar o que dispõe a Constituição sobre a cultura.
- A cultura na Constituição Desconstrução dos direitos.
A imunidade tributária prevista na letra d do inciso V do art. 150 da Constituição Federal. A visão de Adorno. Atividades que dependem da presença de animais. Presença de menores. Tombamento e expropriação
Dispõe o art. 215 que: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos cul- turais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difu- são das manifestações culturais” (redação dada pela Emenda Constitucional n. 48/2005).
O que é cultura? Na definição de Mario Vargas Llosa, cultura significa
[…] una suma de factores y disciplinas que, según amplio consenso social, la constituían y ella implicaba: la reivindicación de un pa- trimonio de ideas, valores y obras de arte, de unos conocimientos históricos, religiosos, filosóficos y científicos en constante evolución, el fomento de la exploración de nuevas formas artísticas y literarias y la investigación en todos los campos del saber” (La civilización del espectáculo, Montevideo, Alfaguara, 2012, p. 65).
Vamos problematizar um pouco. Há uma definição exata de cultura? Posso entender que a palavra cultura engloba conhecimentos de arte, de produção de arroz, da ciência da computação, da esfera celeste, da física quântica? Ora, se há tamanha incidência de um vocábulo, não se pode colocar no conceito inúmeras coisas e, pois, perder seu objeto?
Logo no início, o artigo fala em que o Estado garantirá pleno exercício dos direitos culturais. Fiquemos em tal expressão. Qual o conceito de Estado e o que significa garan- tir o PLENO exercício dos direitos culturais. Pleno é total? O termo é ambíguo? Pode-se exigir do Estado todo e qualquer acesso a bens culturais, independentemente de paga- mentos? E o que são direitos culturais? Qual sua extensão?
De outro lado, o que são fontes da cultura? Fonte pressupõe origem, princípio. O que significa isso na cultura brasileira? Identifica o período do descobrimento ou da co- lônia, do vice-reinado, do império ou daí para frente?
Como se dizer do pagamento de qualquer preço convertido em receita se alguém tem pleno acesso aos direitos culturais?
Compliquemos mais: o que é apoio e incentivo e valorização e difusão das manifes- tações culturais? Como se pode analisar, então, do abandono a que se acham relegados nossos museus, nossas casas de espetáculos, nossa cultura popular?
Podem-se ver quantas questões defluem apenas de um dispositivo legal.
Compete à União legislar concorrente sobre cultura (inciso IX do art. 24 da Cons- tituição Federal). A competência concorrente, como se sabe, não exclui a mesma ativi- dade legislativa por parte de Estados-Membros e Municípios só com as cautelas previstas nos §§ 1º a 4º da Constituição.
A definição do que é cultura não é simples. Pode ter diversas acepções. De qualquer modo, poderíamos começar a análise dizendo que é um plexo de conhecimentos sobre transcendente e imanente, representados por religiões, arte, lei, costumes, educação, etc., que projeta valores na sociedade. Confere-se significação a objetos. As pessoas buscam apreendê-los.
A Constituição Federal para em direitos culturais. Eles se identificam com tudo que pode merecer uma significação valorativa. Há um direito objetivo à cultura identi- ficado pelas normas que a ela digam respeito. O legislador exerceu sua opção. Escolheu e definiu o que entende por cultura, independentemente dos conflitos antropológicos, sociológicos e filosóficos a respeito.
De outro lado, há uma concepção ideológica sobre o significado de cultura. Este
remanesce em aberto.
É, também, um conjunto de atividades, obras e realizações humanas imitativas ou não, que dão representações a valores sociais, religiosos e filosóficos mediante criação humana.
A visão de Adorno. O mundo atual busca conformar o indivíduo nas sociedades. Para tanto, deve permitir sua realização. A sociedade não pode ser aniquiladora do indivíduo. Deve propiciar condições para que este busque sua satisfação. Deve procurar caminhos que o libertem do mito e da tradição (é o que vem dito em “Dialética do esclarecimen- to”, de Adorno e Horkheimer). Mas, não se pode também permitir que haja o uso desme- surado da razão. Esta, como afirmam os autores, pode levar ao autoritarismo. É que, na medida em que se afirma a total e absoluta preponderância da razão, eliminadas estão outras formas de conhecimento, especialmente o empírico.
A massa, de certa forma, está sempre alienada no usufruir os bens da vida. A eles não tem acesso. Recebem a cultura sobre forma de informação em massa. Não se fala na produção da cultura, mas em sua divulgação.
A tecnologia encontra-se em mãos de pequenos ou grandes conglomerados, que a manobram exclusivamente na busca do lucro. O que vale é o produto. Não a empresa. Quando se compra alguma coisa, no mundo da técnica, busca-se o produto. Por vezes, assume a marca. Evidente que o produtor busca criar uma identidade através da marca. Esta, igual aos produtos, adquire valor de mercado.
O nome serve, então, para a divulgação e venda dos produtos. Uma marca de ve- ículo vem associada à divulgação de chaveiros, miniaturas, broches, blusas, camisetas, etc. O subproduto adquire força própria.
Como assinala Francisco Rüdiger (Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural
- comunicação e teoria crítica da sociedade, ed., atual., Porto Alegre, PUC, 2004) “a produção cultural, noutros termos, deixa de ser sinônimo de criações artísticas e literá- rias, englobando a partir de então o conjunto da atividade econômica” (p. 26).
Não se pensa um filme, uma peça literária, um romance como mera explicitação de um conhecimento autônomo de criação ou produção cultural. Tudo é visto como produto.
Não se pode chamar de indústria cultural apenas no sentido de indústria. Não se refere à tecnologia. “Refere-se sobretudo ao emprego mercantil dos veículos de comu- nicação, ao manejo das técnicas de marketing (promoção) e à padronização dos bens artísticos e intelectuais” (op. cit., p. 27).
O termo indústria cultural vem em substituição à cultura de massa. Também não se confunde com a cultura nativa, isto é, própria da história de um povo. Não é a cultura tradicional que vem transmitida de geração em geração. Esta tem outro conceito, mas também pode ser absorvida pela indústria cultural, embora se distingam.
O produto cultural adquire o conceito marxista de fetiche. O fetiche tem três sen- tidos: a) objeto de culto animista; b) psiquismo sexual e c) o sentido especial de uma valorização ao objeto. O que nos interessa é o terceiro significado.
Toda mercadoria tem um valor de uso. Destina-se a alguma coisa. Tem certa fina- lidade. Um pedaço de madeira tem determinado uso ou é simplesmente um pedaço de maneira. Na medida em que se transforma em um objeto de arte, um santo, um vaso, um cinzeiro, etc., passa a ser mercadoria. Fica independente de seu produtor. Mas, pro- duzida por alguém, ela entra em contato com outro que a adquire. Pode tomar um sig- nificado especial para o adquirente. Passa o objeto a ter um valor e uma relação social. As pessoas ligam-se através dele. É o que se denomina fetiche (o feitiço que despertou em alguém). O fetiche é objeto relacionando pessoas. O objeto passa a ter outro valor que não o seu sentido original.
A sociedade busca fantasmagoria.
O movimento da indústria cultural coincide com o de publicidade. É a massificação que se fará do produto cultural. Quando falta criatividade, o próprio mercado gera valo- res culturais. Ou os valores culturais são gerados pela publicidade.
Não deixa de ser, a indústria cultural, também, um instrumento de dominação. A racionalidade assume a produção. A técnica controla.
Em verdade, a produção cultural passa a ter a forma de mercadoria.
A transformação da cultura em mercadoria, para ser compreendida, necessita estar contextualizada. O processo cultural não se desapega do momento histórico-social.
O homem passa a ser um instrumento. A cultura não é criada. É imposta. O capita- lismo forja os bens que serão oferecidos.
Ninguém foi mais sábio em usar o produto cultura como o nazismo. Valendo-se de forte comunicação, impôs determinada ideologia. Fez-se crer que a raça ariana era superior. O negro era a raça inferior. O judeu era a origem de todos os males. Os homos- sexuais eram pervertidos e os ciganos eram transviados. O povo acreditou. A informação brutal criou neles o fetiche.
Dentro de tal óptica, houve uma transformação dos bens culturais para se tornarem
bens mercantis.
Diferentemente do que se pensa, o desenvolvimento dos meios de comunicação, ao invés de propiciarem liberdade de opções e de opinião, passaram a significar o controle da vontade dos indivíduos. Pensa que é livre. No entanto, submete-se às informações que foram, de forma seletiva, passadas a eles. Houve a perda do conteúdo formativo das informações. O bem cultural passa a ser um entretenimento.
A cultura popular é transformada em artigo de consumo. Por consequência, o indi- víduo se submete à estrutura social.
Haveria a audiência passiva, isto é, a sujeição imediata da maioria ao jugo do que é produzido pela indústria, sem qualquer apreciação crítica? Não haveria a submissão me- cânica, mas depende da vontade em se deixar enganar. Carecem de juízo crítico. Adorno busca, então, o conceito de propaganda para compreender a submissão. Esta vem a ser a “manipulação ideológica das massas” (op. cit., p. 217).
Cria-se, então, a sujeição ao mercado. A propaganda desperta nas pessoas a ne- cessidade de consumo de determinados produtos. Joga-se, então, com os impulsos da natureza humana.
Em verdade, a crítica à indústria é uma crítica à sociedade em seu todo e também à cessão aos impulsos humanos. A mídia não pode ser estudada desapegada da sociedade e dos homens.
De qualquer modo, a cultura em seu sentido original de transmissão de conhe- cimentos, de despertar o prazer estético e de aprimorar os conhecimentos não mais prevalece. Passa a ser a indústria cultural e do entretenimento. Não mais a cultura para formar indivíduos, mas para manipulá-los.
A cultura passa a ser selecionada em função da sintonia dos expectadores. Progra- mas de difusão de conhecimentos são desdenhados em face de outros de cunho colo- quial, de auditório, de brincadeiras. Enfim, sobreleva a indústria do entretenimento. O problema é saber quanto dá o Ibope do dia. Quantos expectadores estão sintonizados no canal A ou B.
A cultura transformou-se, realmente, em mercadoria e se colocou sob a dependên- cia dos conceitos de consumo, informação e lazer devido à mídia. Opera-se a desinte- gração cultural.
Criar-se-á uma sociedade imbecilizada? A idiotização propagou-se de tal ordem que qualquer reversão é impossível? Não é bem assim que deve o problema ser analisado. Há inúmeros indivíduos que mantêm uma perspectiva crítica em torno dos acontecimentos. Há, cada vez mais, a universalização da cultura massificada. Pastelões são impostos
diariamente. Seriados que nada acrescentam ao indivíduo batem recordes de audiência. Livros sem qualquer conteúdo que desperte o pensamento crítico são os mais vendidos.
Não se pode dizer, de qualquer maneira, que a massificação tomou conta de todos. Há notáveis sobreviventes que brilham nos escaninhos acadêmicos e que se mantêm isolados dos padrões culturais impostos pela mídia.
As universidades, em tal sentido, buscam seus caminhos. A repetição automática de textos e a leitura de conhecimentos antigos são a regra. No entanto, não o antigo inovador à época, mas o antigo superado.
Há pequenos centros de subsistência contra a indústria cultural.
No parágrafo 1º do art. 215, protegem-se as culturas populares, indígenas e afro-
-brasileiras e de outros grupos que formaram o processo civilizatório brasileiro. Por aí já se vê que o conceito de cultura depende da época histórica em que as obras são criadas. Independe de conhecimento especializado ou técnico. A cultura rudimentar nasce ao longo do desenvolvimento das sociedades. O primitivo tem seu lugar na história. Re- presenta a simplicidade (o naïf), aquilo que é desprovido da técnica instrumental. Tais manifestações culturais devem ser cultivadas para preservação da história, o que se faz através de datas comemorativas (parágrafo 2º do art. 215).
O Estado brasileiro deve estabelecer um Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, objetivando defender e valorizar seu patrimônio cultural. Ademais, deve incentivar a produção, promoção e difusão de tais bens. A qualificação de pessoa para desempenhar tal atividade deve ser preocupação do governante. Se o patrimônio é bra- sileiro, a todos deve ser acessível com preservação das diversidades étnica e regional.
O patrimônio cultural brasileiro é formado pelos bens de natureza material e imate- rial que sejam referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formado- res da sociedade e que incluem: a) formas de expressão, b) modos de criar, fazer e viver,
- c) as criações científicas, artísticas e tecnológicas, d) as obras, objetos, documentos, edi- ficações e demais espaços destinados a manifestações artístico-culturais e d) os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. É o que contém o caput e incisos do 216 da Constituição Federal.
Tudo podia se resumir à preservação da memória do brasileiro. A saber, construções e documentos que passaram a ser únicos por força de fato externo à sua representação física. A casa de Rui Barbosa, a casa da Marquesa de Santos, o Palácio Imperial, todos são edifícios que se tornaram parte de nossa história, por força de ali terem vivido ou desempenhado qualquer atividade é que passaram a fazer parte do acerto que compõe a memória do povo brasileiro. Documentos escritos pelo Barão de Rio Branco, por Euclides da Cunha e manuscritos dos grandes escritores como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, etc. Diga-se o mesmo dos quadros notáveis de Anita Mal- fatti, Di Cavalcanti, etc.
Tudo compõe um panorama que deve ser preservado para as gerações futuras. Ele identifica a formação de nossa nacionalidade.
Tais fatos, documentos, prédios, etc. devem ser preservados por registros, tomba- mentos, vigilância, etc.
Nada pode ser privado ao exame de qualquer brasileiro. A universalização da cultu- ra é essencial. Pesquisadores podem buscar o detalhamento de qualquer fato histórico, pela análise dos documentos a que têm acesso.
Os antigos quilombos tiveram, por força do parágrafo 5o do art. 216 da Constituição Federal, determinada sua preservação. Tais sítios retratam triste episódio da história brasi- leira, em que negros fugiam da servidão e buscavam apoio em outros que também escapa- ram dos senhores e formaram aglomerações (o mais importante foi o Quilombo de Palmares, onde predominava Zumbi, vulto histórico) de resistência à escravidão. Esta foi decantada em versos por Castro Alves e hostilizada por abolicionistas como José do Patrocínio.
O parágrafo 6o do art. 216 autoriza Estados e Distrito Federal a criarem Fundos estaduais para o financiamento de projetos com o objetivo da preservação cultural.
O art. 216-A da Constituição Federal foi introduzido pela Emenda Constitucional n. 71/2012 e instituiu o Sistema Nacional de Cultura. Buscou-se estabelecer um processo de gestão e promoção de políticas públicas de cultura democráticas e permanentes, pac- tuadas entre os entes da federação e a sociedade, tendo por “objetivo promover o de- senvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais”.
Estabeleceu princípios que, em verdade já estavam estabelecidos, de forma im- plícita, nos artigos anteriores. Não se trata, no entanto, de norma meramente pro- gramática ou não produtora de efeitos. Exprimiu alguns comandos importantes para a preservação cultural, de forma que cada brasileiro individualmente ou pessoas jurídicas
- ONGs – que tenham em seus estatutos a defesa da cultura brasileira, a irem a juízo na preservação dos valores estabelecidos nos incisos do 216-A.
O texto determinou, também, no parágrafo 2º, os órgãos que devem cuidar da
matéria.
Normas existem e muitas. O que se percebe, no entanto, é que o patrimônio cul- tural é cada vez mais esquecido e abandonado. As verbas dirigidas à cultura diminuem a todo instante. Há um confronto evidente entre alguns objetivos imediatos e essenciais e aqueles que igualmente sendo essenciais não significam imediata subsistência física.
Evidente que não se pretende que todos os valores sejam iguais. Cada qual tem sua carga valorativa e até emotiva. A vida física e espiritual parece transcender a todos os demais valores que, embora importantes, podem ter seu atendimento postergado.
Ocorre que há hipóteses em que prédios históricos não podem prescindir de ime- diato socorro sob pena de ruírem, apagando-se a memória brasileira. Patrimônio paisa- gístico e ecológico igualmente pode ter fim imediato, com grave perda para a história do povo brasileiro.
Concorda-se que há uma série de valores que devem ter prioridade. Mas, em si- tuações emergenciais, o patrimônio cultural pode ter importância crucial e demandar imediato atendimento.
Para atingir suas finalidades, o Estado deve estabelecer planos de apoio à matéria cultural. Para tanto, necessita de recursos que serão previstos no orçamento. O Plano Plurianual é que ditará as regras. O orçamento disporá sobre os recursos para o pleno cumprimento dos preceitos constitucionais.
Da desconstrução dos conceitos. Ensaiemos uma releitura do texto do art. 215 da Constituição Federal. Lê-se ali que “[…] o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais […]”. Por aí já se vê que não há exclusão de qualquer pessoa. Todos, indistintamente, terão acesso aos direitos culturais.
Caberia, então, a qualquer pessoa ir a juízo caso lhe fosse bloqueado o acesso a um museu do Estado, por exemplo? Se a pessoa tem poucos recursos cabe a ida ao Judiciário
para ter livre ingresso? A nós, nos parece que sim. Em se tratando de direito constitucio- nal expressamente assegurado, não há como negar o comprometimento do Estado com os denominados direitos culturais. Está condicionado? Não no caput do artigo 215.
O que é o pleno exercício? É o exercício total e incondicionado do direito do acesso à cultura.
Em tal hipótese, o direito se identifica como negativo? Não. É direito que exige não só a omissão estatal como também sua ação no sentido de positivar a garantia.
Ademais, se o Sistema Nacional de Cultura irá afirmar políticas públicas de cultura democráticas (art. 216-A, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 71/2012) e que tem por objetivo “promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais”, o indivíduo tem inequívoco direito de exigir do Estado que lhe preste tal atividade.
Caracteriza-se a cultura como um serviço público do Estado? Ora, o serviço público identifica uma atividade que possa ser usufruída pelo indivíduo. Presta-se um conforto ou uma comodidade. Se assim é, inequívoco se poder dizer que qualquer do povo pode ir a juízo e postular que o Estado lhe garanta o usufruto da cultura, tal como foi por nós identificada.
O art. 215 não para por aí. Garante ainda o apoio e o incentivo da “valorização e a difusão das manifestações culturais”.
Há, aí, dois polos. O ativo, do indivíduo que busca as manifestações culturais, quer delas usufruir e busca acesso onde se realizam, e o lado passivo, ou seja, o prestígio daqueles que as realizam em benefício de todos. Para estes, igualmente há o lado ativo, ou seja, obter financiamento, benefícios fiscais de um lado, e, de outro, o passivo, qual seja, servir a terceiros o instrumento de sua cultura.
Há, pois, que se buscar uma releitura do dispositivo em questão para enquadrá-lo nos mais amplos direitos individuais. O fato de estar topicamente incluído em dispositivo que cuida da cultura não elimina sua condição de direito individual incluído no rol do art. 5º da Constituição Federal até e por força do § 2º do mesmo dispositivo.
Caberia uma leitura restritiva? Seria incompatível com o todo da Constituição da República. Veio para inserir e incluir os afastados das benesses dos direitos. Não apenas serve à elite, mas a todos os brasileiros. Pode-se pensar, então, em uma ópera que este- ja sendo exibida no Teatro Municipal de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Prédios suntuo- sos e clássicos que albergam espetáculos a rigor aristocráticos. Tem o povo acesso a ele?
Com certeza. Claro que as administrações podem e devem cobrar caro pelo ingres- so individual. Mas, para garantir o direito à cultura a todos (na forma da dicção do art. 215 da Constituição Federal) deve garantir entrada gratuita, ou a preços populares, ou garantir espetáculo com portas abertas para que todos possam usufruir o bel canto.
Observe-se que o texto constitucional não exclui qualquer manifestação cultural, pois fala em direitos culturais e estes possibilitam a formação ética e intelectual dos brasileiros, mesmo os da camada mais humilde.
Em tal passo, os direitos aí garantidos são altamente democráticos permitindo que todos tenham acesso aos bens ali mencionados.
Não se pode fazer, então, leitura simples e rápida de texto prenhe de conteúdo jurídico.
Um dos grandes incentivos para a propagação e difusão da cultura vem previsto na imunidade tributária sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impres- são” (letra d do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal). Embora o texto não alcance todas as manifestações culturais, mas a literatura, ao menos, é alcançada pela imunidade.
O dispositivo não faz qualquer ressalva em relação ao conteúdo da divulgação. Daí descaber ao agente tributário efetuar qualquer restrição. Não se avalia a qualidade cultural do produto. Nem seu valor pedagógico. O que vale é a mera incidência da regra sobre o material previsto no artigo.
Atividades culturais que dependem da presença de animais. Problema que deve ser apreciado diz respeito à exibição de espetáculos culturais com uso de animais que podem sofrer qualquer tipo de violência. Em primeiro lugar, indaga-se se podem prosseguir tais es- petáculos e, em segundo, como equilibrar o valor cultural com os maus-tratos aos animais.
A cultura pode retratar-se por manifestações meramente intelectuais ou mediante exibição de adestramento de peões. Em tais hipóteses há o uso de animais e para esti- mulá-los a saltar podem ser utilizadas esporas ou qualquer outro material de incentivo. Na Espanha, há as touradas, em que animais são inclusive sacrificados. Há confronto en- tre os ecologistas, defensores de animais e os que sustentam da continuidade das festi- vidades culturais. Os rodeios e as festas de peão, no Brasil, não podem ser prejudicados.
Nossa posição é bastante flexível. Entendemos que a cultura se desenvolve e se so- lidifica ao longo dos anos, séculos e mesmo milênios. São formas lúdicas do ser humano. Por vezes envolvem animais. Não nos parece que a modernidade elimina tais métodos de divertimento do ser humano. Uma das dimensões do homem é o envolvimento com animais. Nem por isso há que se proibir tais festas. O que se pode fazer para melhorar o confronto é buscar mecanismos de redução da violência.
Há casos dramáticos como o do fois gras que envolve a dilatação do fígado de patos e gansos. A delícia gastronômica francesa deve ser extinta? Pode-se impor a restrição dos prazeres da mesa para manutenção das aves? A medida está no meio. Não se pode extinguir a tradição milenar gastronômica. E manifestação cultural.
Presença de menores. É bastante comum que menores sejam chamados a desempenhar papéis, a representar em alguma peça, a tocar um instrumento, a expor sua pintura ou es- cultura. Até que ponto o direito entra em conflito com a formação do caráter de menores?
A Lei n. 8.069/90 trata do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e disciplina o trabalho infantil. O trabalho infantil não é permitido até 13 anos. Evidente que o texto merece análise e balanceamento. Em se tratando de trabalho artístico depende de auto- rização do juiz. Não se forma um artista do dia para a noite. Especialmente em matéria interpretativa. O ator há de ser preparado desde cedo. Há papéis que a eles é reservado.
Cabe à cuidadosa análise do juiz permitir o trabalho, avaliando as condições em que se dará, o conteúdo da obra, o desenvolvimento da personalidade do menor ou do adolescente e sua vida futura.
Impõe-se flexibilidade na interpretação para que carreiras não se trunquem nem sejam prejudicadas por ideias conservadoras e que prejudiquem a formação do menor ou adolescente.
Tombamento e expropriação. Outra forma de preservação do patrimônio cultural é o procedimento de tombamento. Materiais, prédios, esculturas, obras de arte, toda e qualquer manifestação pode ser objeto de preservação por parte do Poder Público.
Pode haver a expropriação de alguma coisa física ou intelectual. Obras literárias, por exemplo, podem ser desapropriadas, sem embargo de caírem no domínio público depois de determinado período. Se houver utilidade de seu uso antes do prazo de domí- nio público, pode haver a desapropriação dos direitos (o tombamento é uma forma de desapropriação, em tal hipótese).
- A Lei “Rouanet” de incentivo à cultura (n. 313, de 23/12/1991)
Em cumprimento a preceito constitucional, foi editada a Lei n. 8.313/91 que insti- tuiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC). O advento de tal diploma norma- tivo veio a estruturar os incentivos fiscais para a produção cultural de qualquer espécie. A lei fala em direitos culturais, repetindo dicção constitucional.
Instituiu-se um Fundo Nacional de Cultura (FNC) e Fundos de Investimento Cultural e Artístico (FICARTs), o que implica na criação de incentivos a projetos culturais desde que tenham acesso a qualquer pessoal, se gratuitos ou se o público for pagante, median- te cobrança de ingressos (parágrafo 1º do art. 2º, com a redação da Lei n. 11.646/2008). Fica vedado o auxílio para exibições que tenham acesso limitado.
Os incentivos podem ser mediante bolsas de estudo, pesquisa e trabalho. Aqui é que entra o possível protecionismo, porque apenas poderão ter acesso aos benefícios se filiados a partido político ou se demonstrarem simpatia ao governo. Prêmios podem igualmente ser dirigidos desde que a composição de bancas examinadoras seja escolhida pela estrutura governamental. Cursos igualmente podem ser dirigidos. Toda produção decorrente da exibição artística igualmente pode ser manipulada, o mesmo se dizendo da edição de obras, realização de exposições, espetáculos cênicos, músicas, etc.
Pode-se imaginar que algumas entidades sejam ligadas por qualquer vínculo ou dirigidas por pessoas com vínculo a partido político, a agremiação representativa da ideologia dominante, etc. Fica fácil detectar que o apoio está sendo dado não em função da criatividade ou da potencialidade da obra, mas em função de pessoas que a estão amparando.
Estando o Ministro da Cultura vinculado a um partido ou compondo a base de sus- tentação do governo, todos os incentivos, por óbvio, serão dirigidos aos que estiverem sintonizados com os ideais divulgados ou vinculados, de alguma forma, à ideologia ou mesmo aos interesses dos governantes.
Em relação aos Fundos instituídos, pior ainda. São constituídos por recursos do Te- souro Nacional e de entradas particulares, ao lado de subvenções que possam advir de organizações internacionais. De qualquer maneira, são ingressos públicos que compõem o todo orçamentário de tais Fundos. O FNC financia, a partir daí, a produção de obras, espetáculos, realizações culturais de quaisquer formas.
Tanto o FNC como os Fundos do FICART são administrados por pessoas indicadas pelo governo, com a participação de membros da sociedade civil. Estes, de igual forma e por força de manipulação, são indicados dentre simpáticos ao governo ou militantes a ele vinculados.
Neste passo, é importante ressaltar os incentivos que são dados para que pessoas físicas ou jurídicas possam fazer doações e patrocínios (art. 18 da lei em comento). As doações e patrocínios são dirigidos, na forma do parágrafo 3º do art. 18 a artes cênicas,
livros de valor artístico, literário ou humanístico, música erudita ou instrumental, expo- sições de artes visuais, doações de acervos a bibliotecas, museus, arquivos, cinemate- cas, produção de obras cinematográficas e videofonográficas, preservação do patrimônio cultural material e imaterial e construção de salas de cinema e teatro (conteúdo do art. 18 da lei em tela).
O art. 25 explicita quais os projetos que podem ser apresentados, alcançando, aí, todas as manifestações culturais e artísticas.
Vê-se que a lei é altamente louvável. No entanto, há que se ressalvar a manipulação que pode sofrer, não apenas na constituição de órgãos orientadores dos fundos mencio- nados, mas também na destinação dos recursos. Aqueles que mantiverem fina sintonia com os governantes receberão as benesses e recursos de toda ordem. Os que afrontarem a estrutura governamental nada receberão. É da lógica das coisas do governo.
- Da prioridade valorativa
O que se deve colocar em discussão é: tendo em vista o contido no caput do art. 5º da Constituição Federal que garante, quero crer, preferencialmente, a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade se outros valores, como o cultural, por exemplo, não são destinados a ocupar um lugar menos importante na or- dem de valores.
Sabidamente, a Constituição Federal retrata um determinado momento histórico em que os valores existentes na sociedade, naquele espaço físico e no tempo em que as coisas ocorrem, são tratados de maneira diversa. Possuem força jurídica diversa. Não apenas na posição topológica na Constituição, mas também por força do posicionamento dos brasileiros diante dos problemas do dia a dia.
A sociedade reage de forma diferente a provocações diversas. Se ocorrer de não ser exibida qualquer ópera, em certo exercício financeiro, ou se o prédio do MASP ficar fechado por algum período de tempo, não haverá qualquer comoção social. O mesmo não ocorre diante de um massacre, em que a vida de centenas de pessoas tiver tido fim. A mesma reação terá lugar em flagrante ocasionado por policiais que agridem e matam a uma multidão desesperada por busca de alimentos.
Em suma, situações e comportamentos são valorados de forma diferente em certos
momentos.
A preservação de um prédio em ruínas parece não preocupar muito a maioria dos brasileiros, ainda que se saiba que ali viveu um vulto da Independência ou da República. Não faz muita diferença, dizem ou reagem assim.
O que se quer dizer é que os sentimentos mudam a cada situação histórica. A so- ciedade reage com maior ou menor intensidade tendo em vista o grau de agressividade com que é atingida.
Na medida em que a Constituição da República optou por declinar alguns direitos, opôs-se a outros, não no sentido de conflito, mas no sentido de estabelecer prioridades. Deixou claro que há alguns valores mais importantes que outros. Não exclui outros, mas não os inclui com a mesma significação e força.
É legítimo que o governante escolha, de forma discricionária, onde alocar recur- sos? Pode dar preferência à despesa na aquisição de obras de arte ao invés de propiciar
à população o fornecimento de água e efetuar saneamento de córrego que corre a céu aberto?
Qual o critério legítimo de discriminação?
Daí é possível indagarmos se o Estado pode negociar com obras de arte. Seria cabí- vel a compra de obras de arte em leilão da Sotheby’s por valores caríssimos e relegar a segundo plano a construção de escolas e creches?
Analisemos se o Estado pode negociar com obras de arte.
- O Estado marchand?
Seria legítimo (legal sabe-se que é) que o Estado, diante de determinada crise sociopolítica adquirisse obras de arte para seus museus? Cabe a ele negociar com arte?
Como se viu, cabe ao Poder Público cuidar da cultura de seu povo. Logo, cabe-lhe adquirir obras de artes, não apenas antigas e famosas que se encontrem disponíveis, como também modernas, de autores nacionais e estrangeiros. O grande problema em tal mercado é a existência de obras disponíveis. Muitas são levadas a leilões. Famílias que as adquiriram há tempos e, por situação de crise, se vêm na contingência de vendê-las. Em tais hipóteses, deve o Poder Público licitar e adquirir a obra.
Em verdade, a obra é única, o que dispensa licitação. Celso Antonio dela trata como bem singular (Curso de direito administrativo, Malheiros, 30. ed., IX, 24, p. 552). Trata-
-se de bem reconhecido no mercado cultural em razão de evento externo. Pressuposto lógico da licitação é que exista pluralidade de objetos intercambiáveis. Se apenas um único objeto existe, não há como licitar.
Assim, um autor dá ao objeto sua característica inalienável, típica, própria, espe- cífica. “Le déujeuner sur l’herbe”, de Manet, quadro com o qual se destacou e que foi recusada pelo famoso Salão oficial, está marcada definitivamente como de reconheci- mento universal.
Evidente que não há se falar em licitação para aquisição de tal obra ou de ou- tras tantas reconhecidas como artísticas no mundo plástico. Músicas, livros de edição princeps, manuscritos de grandes autores, escritos de sonatas únicas, etc., dispensam qualquer concorrência para aquisição. Logo, o Estado se dispensa de todo procedimento pré-licitatório para adquirir tais objetos.
Ocorre que a pergunta ao início é mais complicada. E se o Estado vive situação de crise econômica? Deve o governante optar na aquisição de uma obra de arte única ou destinar recursos financeiros para aquisição de casa própria ou construção de creches, escolas ou hospitais? A escolha não é fácil. Dir-se-á, sem qualquer dialética, que o ser humano está em primeiro lugar e, pois, o destino dos recursos prioritariamente é social.
Não temos dúvida quanto à afirmativa. Só que as oportunidades na aquisição de obras de arte são raras. Ademais, é dever do Estado a preservação da memória de sua história e de seu povo, bem como de seus grandes artistas. Obras célebres de Mário de Andrade, de Carlos Drummond, de Machado de Assis, de Guimarães Rosa não podem deixar de ser adquiridas para manutenção da celebridade de tais autores. As gerações futuras ficarão satisfeitas em olhar tais obras em nossos museus. Estudantes futuros que possam se debruçar sobre uma obra dessas para realizar pesquisa darão o valor intrín- seco que elas têm.
Sem comparar valores, mas a aquisição de uma obra dessas, de grande nomeada, é imprescindível para a cultura brasileira. Diga-se o mesmo de famosos quadros de Tarsila, de Di Cavalcanti, etc.
Em suma, será de boa política a preservação cultural e a aquisição de obras de arte para que possam ser olhadas, vistas, estudadas por gerações futuras.
De igual maneira, cabe ao Estado negociar obras que possam valorizar o acervo de nossos museus. Sempre tendo em vista o benefício público, tal como previsto na Consti- tuição. Mas, o que fazer com as receitas advindas da exploração da cultura?
- As receitas com museus, teatros e casas de cultura
As receitas públicas (entradas definitivas de bens e dinheiro nos cofres pú- blicos) são constituídas de: a) cobrança de tributos e b) exploração do patrimônio do Estado. No primeiro caso, cuidam-se das receitas tributárias e, no segundo, de receitas patrimoniais.
As segundas, que nos interessam no momento, advêm da exploração do patrimônio público. Os royalties pela exploração do petróleo são um bom exemplo. A cobrança de preço dos ocupantes de prédios públicos, por exemplo, mercados municipais, estação rodoviária, aeroportos e portos, são recursos importantes para os diversos entes estatais.
Em aeroportos, inúmeros espaços públicos são ocupados por particulares. Não apenas as companhias aéreas, mas área de venda de revistas e jornais, veículos que são exibidos ao público, farmácias, restaurantes, bares e cafés, todos estão utilizando bens pertencen- tes ao patrimônio do Estado. Pagam, em consequência, determinado valor para ocupá-los.
Outra forma de exploração patrimonial são os ingressos que se cobram para entrada em teatros, museus, casas de espetáculos, centros culturais, etc. O Teatro Municipal de São Paulo, a Sala São Paulo, o Teatro São Pedro, todos em São Paulo, mas há salas notáveis como o teatro do Rio de Janeiro, o de Manaus e do Pará, construídos na época da borracha e, enfim, salas de espetáculos devem cobrar, e bem, para apresentação de óperas, concertos, peças e exibições de qualquer espécie. Não podem deixar de ter lucro. Este não está ausente na atuação do Poder Público.
Dizia-se, no passado, que descabia ao Estado lucrar por força das atividades que pres- ta. Ideia superada. O bom administrador deve fazer com que suas atuações resultem em re- ceita para o Estado. Evidente está que tem ele sua parcela de benemerência, de ajuda, de suportar custos para propiciar, por exemplo, transporte barato para a população carente.
Há o que se denomina preço político, que propicia à população de baixa renda que utilize os bens públicos (metrô, ônibus e trens, por exemplo) imprescindíveis para sua sobrevivência. No entanto, aquelas atividades prestadas a pessoas de alta renda (apre- sentação de ópera, por exemplo) podem e devem ser cobradas por preços que resultem em receita para o Poder Público.
É que o Estado pode agir como Robin Hood, príncipe das florestas de Sherwood, isto é, tirar dos ricos e dar aos pobres. Assim, as receitas auferidas pela exibição de peças musicais clássicas podem propiciar a apresentação de obras teatrais na periferia das grandes cidades.
Propicia-se, então, demonstrações culturais para a população de baixa renda, en- quanto as exibições mais custosas são cobradas por preços de mercado.
Daí chega-se ao museu, teatros, centros culturais e casas de cultura. O Estado não pode e não deve suportar custos negativos na manutenção de sua estrutura cultural. Deve cobrar bem pela exibição de óperas, por exemplo, reservadas a pessoas que as compreendam e uma mínima parcela da população, enquanto deve, com a receita aí obtida, propiciar apresentações culturais em regiões carentes da cidade e do Estado.
Museus, teatros e casas de cultura cobram ingresso para que a pessoa possa usu- fruir os momentos maravilhosos de visualização de obras de arte, de ouvir músicas, etc. Pode realizar cursos, visitas guiadas, manter escola de arte, etc., o que é comum em museus oficiais.
Deve cobrar, pois. Pode, de outro lado, liberar a entrada em determinado dia da semana, exatamente para aquele que queira, e dentro de determinado horário, nada pagar para ter o mesmo prazer estético daquele que pode pagar.
Em assim procedendo, o Estado aufere recursos, adquire receitas para aquisição de outras obras de arte e, ao mesmo tempo, exerce política saudável de propiciar a todos, mas especialmente aos mais pobres, que usufruam os prazeres.
A cultura é uma forma de nivelar a sociedade. Se população de baixa renda tem acesso a bens culturais, sente-se esperançosa de dias melhores. Não apenas para si, mas para seus filhos.
Uma dificuldade coloca-se diante do que se vem dizendo. Como exigir qualquer receita se os arts. 215 a 216-A silenciam sobre a possibilidade de se poder cobrar algum valor para que a população tenha ingresso e acesso a qualquer manifestação cultural? O pleno exercício dos direitos culturais a que alude o art. 215 caput da Constituição da República é inibidor da cobrança de qualquer valor?
Se o inciso II do art. 216-A fala em universalização do acesso aos bens e serviços culturais, estaria aí um impeditivo para a cobrança de qualquer preço?
Observemos como a dicção de um capítulo pode levar a dificuldades interpreta- tivas. Pode até ser que o objetivo do constituinte derivado tenha sido o de instituir a gratuidade na participação de todo e qualquer espetáculo ou apresentação cultural.
Assim não nos parece. Embora uma interpretação açodada possa dar margem a que se chegue a tal conclusão, em verdade, se o Estado tem despesas com a produção, divulgação, difusão e circulação de bens culturais, pode exigir contrapartida. Não está obrigado a propiciar o acesso a todos os bens e manifestações culturais de forma gra- tuita. As políticas públicas de cultura não estão imunes a qualquer tipo de cobrança por parte do Estado.
A ideia de Tomás de Aquino da proporcionalidade é bastante útil em tal contexto. A ação ocorre entre pessoas e os direitos devem guardar proporção para que se garanta dar a cada um o seu direito.
É que o Estado, embora possa e deva facilitar a universalização do acesso aos bens e serviços culturais, não pode isentar do pagamento de preços tal acesso.
- Subvenção
Subvenção é transferência de recursos a terceiros. Destinam-se a suportar ativida- des sociais ou econômicas. Podem auxiliar a prestação de serviços de assistência social, médica ou educacional.
O Estado pode ter interesse em subsidiar determinadas entidades para que prestem certas atividades. Decide-se ser conveniente ajudar a indústria brasileira de cinema para que ela possa concorrer com a indústria mundial. Logo, decide-se aportar recursos em seu desenvolvimento. O mesmo pode ocorrer com a produção literária, musical, teatral, etc.
É bastante interessante o destino de verbas orçamentárias para as atividades cul- turais, ao lado daquelas previstas no orçamento anual.
As subvenções econômicas podem ajudar, e muito, a produção intelectual.
Evidente está que o destino de recursos deve amparar a empresa, mas tendo em vista o desenvolvimento cultural da população.
A Lei Rouanet, nesse passo, é forte instrumento para a destinação de subvenções.
- A cultura como instrumento de alteração revolucionária de uma sociedade
Uma sociedade inculta é dócil e servil. Não pode compreender a estrutura de do- minação nem os caminhos de que se valem os governantes para mantê-la sob controle permanente. Imita a estrutura da Igreja, que com seu alegado conhecimento do trans- cendente e da interpretação dos livros, ditos sagrados, sabe manipular a coletividade.
Politicamente, a sociedade culta dificilmente é levada a arroubos de enlevação com líderes carismáticos. Ela, com conhecimento da literatura e da leitura que efetua de livros de política, de sociologia, etc., pode melhor compreender o fenômeno da se- dução por discursos gratuitos e de promessas jamais cumpridas.
Em sendo assim, um povo culto não serve de massa de manobra. Dir-se-á que o alemão do pré-guerra era culto e podia se defender do mito do nazismo. Para quem lê a história, sabe que o alemão estava embrutecido com o Tratado de Versalhes, sentia-se acusado, humilhado, porque, além de perder a guerra, se viu privado de exército, terras e obrigado a pagar indenização milionária aos povos vencedores. O discurso hitlerista foi facilitado, então, pela carência de um líder e do desejo de sobrepujar os adversários, que lhe impuseram condições humilhantes de derrota. Logo, o exemplo não serve.
Em verdade, o analfabetismo é que deixa as pessoas carentes de qualquer infor- mação e, pois, mais fáceis de serem manipuladas. E o inculto é passível de sedução de discursos fáceis.
Daí a essencialidade da cultura. Não apenas da educação, em que as pessoas saibam ler e escrever. Mas, as informações que possam aproveitar as tornam menos suscetíveis de ilusão. Ao saberem quem são seus governantes, ao estarem instruídas sobre as formas de acesso ao poder, ao conhecerem os mecanismos de produção das leis e da tomada das resoluções administrativas, estão mais aparelhadas para defesa de seus interesses e dos coletivos e públicos.
Cultura é, pois, forma de defesa que possuem as pessoas para se imunizarem con- tra o canto da sereia. Saberão, como mostra a Odisseia, utilizar cera nos ouvidos para impedir a sedução ou se fazerem amarrar no mastro do navio para ouvir o canto e não se deixar seduzir por ele.
Daí a importância de se questionar o Estado para realizar boas dotações orçamentá- rias no atendimento do problema cultural. É essencial para a formação do povo.
Vê-se que todas as denominadas Belas Artes, que englobamos no conceito de cul- tura, modificaram-se ao longo do tempo. Como não muda o direito? Ele se atualiza permanentemente. Ainda que possa utilizar conceitos antigos, se não houve modificação do texto legal, impõe-se, tal como se viu ao longo do trabalho, a modernização da com- preensão do fenômeno jurídico.
O direito incide sobre uma dada realidade, que se modifica a todo instante. Os costumes se alteram, a moral é flexível e assume sentimentos diversos a todo momento. Como não modificar o direito. A norma pode ter uma estrutura fixa: hipótese e precei- to. A saber, a norma capta um determinado comportamento na sociedade, subsome-o a uma regra preceptiva, o que lhe dá a consequência, que se pode rotular de sanção. A saber, a norma exige um comportamento (modais deônticos: é obrigatório, é proibido e é permitido – outra hipótese não se dá) e a ele dá uma consequência. Essa estrutura normativa pode ser considerada inalterável. É verdade que a norma pode se valer de entimemas ou polissilogismos para captar determinada conduta, mas o preceito será um só. A consequência jurídica não pode deixar dúvida.
Ocorre que o direito não é forma. Ao contrário, é vida, é pulsão, é vontade, é ins- tinto, é sentimento e paixão. Tudo se encontra nele. Como buscar esvaziar a norma para apenas ficar em suas formas?
Daí porque o direito se modifica a todo instante e segue a sociedade para qual se destina. Muda a sociedade, muda a interpretação jurídica.
- Conclusões
Como se vê, descabe ao Estado a produção de obras de arte, nem lhe cabe dirigir recursos para que haja incentivo na realização de obras que o enalteçam. Seria hipocri- sia que o Estado apenas liberasse a produção artística para autores que criem elogios à sua própria imagem. O narcisismo estatal seria objeto de estudo psiquiátrico.
Ocorre que, dentro das modalidades de licitação, cabe ao Estado realizar concurso para obras de reestruturação urbanística. Há pouco, o Município do Rio de Janeiro contra- tou obra do arquiteto espanhol Calatrava para embelezar a cidade e montar o Museu do Futuro. Em tal hipótese, o Estado está contratando, mas não produzindo uma obra de arte.
Fixando limites: a) é obrigatória a previsão de recursos orçamentários para incen- tivo à cultura; b) esta deve ter compreensão a mais ampla possível, sem restrições de visão; c) descabe o contingenciamento, salvo a não realização de receitas; d) descabe o dirigismo estatal na produção artística; e) os equipamentos públicos devem estar à dis- posição para a realização de eventos culturais, sem preferência ou privilégios odiosos;
- todas as manifestações artísticas merecem a destinação de recursos; g) não se exige prévia licença nem cabe a censura na produção
Respeitadas tais balizas, cabe a participação do Estado. Restringe-se aos incenti- vos, sem poder interferir na criação artística sob qualquer modalidade cultural.
Descabe ao Estado dirigir a arte. Esta tem de ser livre na criação de literatos, poe- tas, pintores, escultores, músicos e toda e qualquer outra produção intelectual. Não se pode admitir, em qualquer hipótese, a intervenção estatal.
A única possibilidade de interferência do Poder Público é no financiamento da criação artística. Estímulo à liberdade do artista. Nada mais. O mecenato deve ser particular.
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Orçamento público e dívida pública
Ricardo Cunha Chimenti1
Juiz substituto em segundo grau do TJSP
- Orçamento Público
José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 17. ed., São Paulo, Malheiros, 2000, p. 711) esclarece que a Constituição de 1988 instituiu o orçamento como um sistema de planejamento estrutural (todos os planos e programas têm suas estruturas estabelecidas segundo o plano plurianual), integrando a política econômica (intervencionismo direto) e a política fiscal (intervencionismo indireto). “Essa integra- ção, agora bem caracterizada na sistemática orçamentária da Constituição, é que dá configuração à concepção de orçamento-programa.”
Na sua dimensão política o orçamento explicita as prioridades de uma determinada gestão, enquanto a dimensão econômica do orçamento se revela como um plano de ação governamental com poderes de intervenção sobre as atividades econômicas e fiscais.
Na sistemática da CF/1988, a iniciativa do Projeto de Lei do Plano Plurianual, da Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Lei Orçamentária Anual é do Chefe do Poder Exe- cutivo (iniciativa reservada), nos termos dos arts. 84, XXIII, e 165, ambos da Constitui- ção Federal. Temos, portanto, um orçamento do tipo misto (Executivo + Legislativo). Em nossa história, tivemos a criação do erário régio por Decreto de 11-3-1808 (modelo centralizado no Poder Executivo), ocasião em que se inicia a organização e fiscalização contábil das receitas e despesas. A primeira Constituição do Brasil (1824) estabelece o orçamento do tipo misto. A segunda Constituição de nossa história, e primeira da forma republicana de governo (1891), estabeleceu o modelo exclusivamente legislativo de or- çamento. A CF/34 retoma o modelo misto. A CF/37 (Estado Novo – Era Vargas) adota o modelo executivo, também denominado administrativo, com a implementação do orça- mento por Decreto Presidencial. As CFs de 1946, 1967 e 1988 retomam o modelo misto, embora na CF/67 houvesse maiores restrições às emendas que os parlamentares podiam apresentar quanto ao Projeto de Lei de iniciativa do Poder Executivo.
Conforme leciona José Maurício Conti (Orçamentos públicos, 3. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014, p. 130),
O sistema orçamentário adotado pelo Brasil confere significativo po- der e participação do Legislativo no processo de elaboração e execu- ção dos orçamentos públicos, cabendo-lhe deliberar sobre a proposta orçamentária apresentada pelo Poder Executivo, podendo alterá-la na forma e limites previstos na Constituição e na legislação infracons- titucional, e sendo o responsável final pela votação do projeto, após votação no plenário, em apreciação conjunta por ambas as casas do Congresso Nacional.
1 Mestre em processo civil e professor do Complexo Educacional Damásio de Jesus e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Em seu art. 24, I e II, a Constituição Federal estabelece que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre direito tributário, direito financeiro e orçamento.
Aos Municípios compete legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e a legislação estadual no que couber (art. 30, I e II, da CF). Assim, diante da ampla autonomia que lhes foi conferida pela atual Constituição, os Municípios também legislam sobre direito financeiro, tributário e orçamento, observando as dire- trizes nacionais e regionais.
O processo legislativo orçamentário observa normas próprias (art. 166 da CF), apli- cando-se subsidiariamente as regras do processo legislativo em geral (arts. 64 e 69 da CF).
- As três leis orçamentárias, o déficit, os conceitos de superávit nominal e primário e o equilíbrio fiscal
Há três espécies de leis orçamentárias que se devem compatibilizar de forma a integrar a política econômica e a política orçamentária. A lei do Plano Plurianual (PPA
– com duração de quatro anos), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orça-
mentária Anual (LOA), ambas com vigência para um ano.
A lei do PPA estabelece, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública para as despesas relativas aos programas de duração continu- ada e para as despesas de capital (que aumentam o patrimônio público ou amortizam o principal das dívidas de longo prazo) e as delas decorrentes, nos termos do § 1º do art. 165 da Constituição Federal.
A LDO estabelece as metas e as prioridades para o exercício financeiro subsequente (incluídas as despesas de capital), orienta a elaboração da Lei Orçamentária Anual (§ 2º do art. 165 da CF) do ano seguinte, dispõe sobre alterações na legislação tributária e es- tabelece a política de aplicação das agências oficiais de fomento. Deve, ainda, estipular regras sobre o equilíbrio entre receitas e despesas e metas fiscais para o exercício a que se refere e também para os dois exercícios seguintes.
Integrará o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias, conforme determina o § 1º do art. 4º da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC n. 101/2000), o “Anexo de Metas Fis- cais”, que estima a arrecadação, despesas e sobras (superávit primário) para o exercício a que se refere e para os dois seguintes (triênio móvel).
O equilíbrio fiscal deixou de ser o único objetivo das finanças públicas, que pelo princípio da programação passou a conjugar contabilidade e planejamento. Contudo, subsiste o Princípio Orçamentário do Equilíbrio e assim a “Regra de Ouro” do Orça- mento Público continua válida e está amparada no art. 167, III, da Constituição Federal, o qual estabelece ser vedada “a realização de operações de crédito que excedam as despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou es- peciais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”. A finalidade da Regra de Ouro é impedir que para suprir uma política de governo (tran- sitória, como devem ser os governos) os governantes endividem o Estado para custear despesas correntes (despesas de custeio), cujos valores não trazem contraprestação per- manente para a sociedade (são as despesas de capital que agregam valor, conhecimento e infraestrutura permanente em favor do Estado).
Há superávit primário quando o volume de receita que efetivamente ingressou nos cofres públicos supera o montante das despesas empenhadas, desconsiderados os juros e as parcelas do principal da dívida pública. Quando são consideradas as despesas com a amortização da dívida e os juros (devidos ou mesmo recebidos), encontra-se o resultado nominal, que pode indicar déficit ou superávit. Em 2014, o Brasil enfrentou o primeiro déficit primário de sua história, conforme se extrai do gráfico abaixo:
Considera-se responsável a gestão fiscal que evita déficits e reduz estoque da dívida
pública.
A Lei Orçamentária Anual (LOA) é a peça legal (tem natureza jurídica de lei for- mal) que autoriza despesas e estima receitas. A dotação prevista no orçamento para a satisfação de uma despesa autorizada é denominada crédito orçamentário.
A Lei Orçamentária Anual consigna dotações próprias para cada Unidade Orçamentária nela prevista, para que os programas de trabalho de cada uma possam ser executados.
A execução orçamentária se dá por meio da arrecadação da receita prevista na LOA e pelo processamento da despesa autorizada na mesma lei (por meio do empenho, liquidação e pagamento).
Empenho é o ato administrativo emanado da autoridade competente que antece- de a despesa e confirma as obrigações da administração em relação ao contratado. O empenho cria para o Estado a obrigação do pagamento, pendente ou não de condição. Com o empenho faz-se a reserva (anotação contábil) no item orçamentário respectivo do montante necessário ao pagamento. Para cada empenho, em regra, é extraída a “nota de empenho”, que será entregue ao contratante e consignará os principais elementos da contratação (art. 61 da Lei n. 4.320/64).
- Créditos adicionais (extraorçamentários)
Os princípios orçamentários da Unidade (art. 165, § 5º, da CF/1988 e art. 2º da Lei
- 4.320/1964) e da Universalidade (art. 6º da Lei n. 4.320/1964), conforme destacamos em nossa Sinopse Jurídica de Direito Tributário (18. ed., São Paulo, Saraiva, 2015, p. 282), não vedam os créditos adicionais (extraorçamentários), que autorizam a realização de despesas não computadas ou insuficientemente fixadas na Lei Orçamentária Anual.
Os créditos adicionais costumam ser divididos em suplementar, especial e extraor- dinário.
Conforme ensina Luiz Emygdio F. da Rosa Junior (Manual de direito financeiro e direito tributário, 16. ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 84), “A Constituição a eles se refere no art. 167, V, e seus §§ 2º e 3º, e a sua regulamentação encontra-se nos arts. 40 e 46 da Lei 4.320, de 1964, e no art. 72 do Decreto-lei n. 200, de 1967”.
O crédito suplementar visa reforçar uma dotação orçamentária prevista na Lei Orça-
mentária Anual, mas que se mostrou insuficiente para satisfazer as despesas necessárias.
O crédito especial visa satisfazer necessidades novas, para as quais não havia qual-
quer dotação orçamentária específica.
Os créditos suplementar e especial são autorizados por lei específica ou pela pró- pria Lei Orçamentária Anual, e abertos por ato do Executivo, devendo indicar os recursos disponíveis correspondentes (arts. 165, § 8º, e 167, V, ambos da CF, c/c o art. 43 da Lei n. 4.320/64).
Os recursos disponíveis podem ser decorrentes de superávit financeiro do exercício anterior, excesso de arrecadação, anulação por lei de outras dotações ou ainda de ope- rações de crédito, observadas as limitações do art. 38 da Lei de Responsabilidade Fiscal.
O crédito extraordinário destina-se a atender despesas urgentes e imprevistas, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, podendo ser aberto por medida provisória (arts. 62, § 1º, I, d, e 167, § 3º, ambos da Constituição Fe- deral, c/c o art. 44 da Lei n. 4.320/64 e a Resolução n. 1/2002 do Congresso Nacional) ou mesmo por Decreto do Poder Executivo (nos casos de Estados e Municípios nos quais o Chefe do Executivo não possa editar MP).
Os créditos extraordinários independem de recursos específicos para a sua abertura e não podem ser empregados em despesa diversa da que justificou sua instituição.
Salvo expressa disposição legal em contrário, os créditos adicionais terão vigência adstrita ao exercício financeiro em que foram abertos (art. 167, § 2º, da CF, c/c o art. 45 da Lei n. 4.320/64).
Os créditos suplementares não podem ser prorrogados para o exercício seguinte, já que a insuficiência porventura caracterizada em determinado item deve ser objeto de superação pela LOA do ano seguinte. Os créditos especiais e os créditos extraordinários autorizados nos últimos quatro meses do ano podem ser reabertos, por simples decreto, no ano seguinte.
- O contingenciamento
Em seu art. 4º a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) estabelece que a Lei
de Diretrizes Orçamentárias disporá sobre o equilíbrio entre receitas e despesas, disci-
plinará o critério e a forma para a limitação de empenhos quando a arrecadação não atingir o patamar previsto (o denominado contingenciamento – congelamento – de des- pesas), fixará regras de controle operacional relativas ao controle de custos e à avalia- ção dos resultados dos programas financiados com recursos do orçamento e disciplinará as demais condições e exigências para transferências de recursos a entidades públicas e privadas. Assim, caso a receita se mostre inferior à programada (a avaliação é feita a cada dois meses), os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública contingenciarão (congelarão) parte de suas verbas. O controle deve ser bimestral (art. 9º da LRF).
O § 3º do art. 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal, que autorizava o Poder Executi- vo a suprir eventuais omissões dos demais poderes ou do Ministério Público na efetivação do contingenciamento (congelamento de despesas), foi suspenso por força de medida liminar concedida na ADIn 2.238-5, de 22-2-2001 (DOU, de 21-5-2002), pois teria afron- tado o princípio da separação dos poderes e da autonomia do Ministério Público. Não se extrai da decisão qualquer risco de descontrole das contas do Poder Judiciário, já que a administração financeira do Poder Judiciário é regularmente submetida à análise dos Tribunais de Contas e, à exceção do STF, estão permanentemente sujeitas à fiscalização do CNJ – art. 103, B, § 4º, da CF/1988). Ademais, também os presidentes de Tribunais e os demais gestores das verbas orçamentárias estão sujeitos a julgamento por crime de responsabilidade (art. 10 da Lei n. 1.079/50, que trata dos crimes contra a lei orçamen- tária e contra a Lei de Responsabilidade Fiscal).
- A autonomia financeira do Poder Judiciário
O artigo 99 da CF/1988 dita que “Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia ad- ministrativa e financeira”.
Demonstrando a importância de os gestores do Poder Judiciário acompanharem as diversas leis orçamentárias desde o encaminhamento dos respectivos projetos de lei, o
- 1º do art. 99 da CF/1988 dita que “Os tribunais elaborarão suas propostas orçamen- tárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias”. Ou seja, ao Poder Judiciário incumbe, observado o que es- tabelece a LDO, encaminhar a sua proposta orçamentária ao chefe do Poder Executivo, a fim de que este anexe ao Projeto da Lei Orçamentária Anual (repita-se, de iniciativa exclusiva do chefe do Poder Executivo), a proposta do Poder Judiciário (assim como a proposta do Poder Legislativo, do Ministério Público e da defensoria Pública).
Respeitados os limites do § 1º do art. 99 da CF, o Poder Executivo não pode efetivar cortes nas propostas orçamentárias que recebe dos Tribunais, da Defensoria Pública ou do MP, devendo limitar-se a anexá-las ao Projeto de Lei de sua iniciativa exclusiva (art. 165, § 5º, I, da CF), sem prejuízo de junto ao Poder Legislativo buscar as alterações que entender cabíveis. Nesse sentido, as liminares concedidas em 30-10-2014 nos MS/STF n. 33.186 e 33.193.
- Os duodécimos
De acordo com o art. 168 da Constituição Federal, os recursos correspondentes
às dotações destinadas aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério
Público e da Defensoria Pública deverão ser-lhes entregues até o dia 20 de cada mês. O mínimo mensal deve corresponder ao duodécimo (1/12 – doze partes em que pode ser dividido um todo) das respectivas dotações orçamentárias e não está sujeito ao fluxo da arrecadação, conforme decidiu o pleno do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mandado de Segurança 21.450, j. 8-4-1992.
- A dívida pública
A dívida pública é formada por empréstimos captados no mercado pelo Poder Públi- co, após prévia autorização legislativa. Quanto ao instrumento de sua assunção, a dívida pública pode ser mobiliária (caracterizada em regra pela emissão de títulos da dívida que geram remuneração aos seus compradores) ou contratual (a exemplo de um contra- to de empréstimo). Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da Repú- blica, estabelecer o montante da dívida mobiliária federal (art. 48, XIV, da CF/1988).
A Lei Complementar n. 101/2000, que trata da dívida pública em seus arts. 29 a 42,
traz os seguintes conceitos:
[…] I – dívida pública consolidada ou fundada: montante total, apu- rado sem duplicidade, das obrigações financeiras do ente da Federa- ção, assumidas em virtude de leis, contratos, convênios ou tratados e da realização de operações de crédito, para amortização em prazo superior a doze meses; II – dívida pública mobiliária: dívida pública representada por títulos emitidos pela União, inclusive os do Banco Central do Brasil, Estados e Municípios; e III – operação de crédito: compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, re- cebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações asseme- lhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros.[…]
Empréstimos de curto prazo (para resgate em até doze meses) costumam ser deno- minados dívida pública flutuante.
Compete ao Senado Federal autorizar operações financeiras externas de interesse da União, dos Estados e dos Municípios (art. 52, V, da CF/1988). Também cabe ao Senado Federal fixar, por proposta do Presidente da República, limites globais para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados, do DF e dos Municípios.
A verificação ao final de um quadrimestre de que houve inobservância dos limites do montante estabelecido para a dívida consolidada exige a recondução da dívida ao seu limite até o fim dos três quadrimestres seguintes (art. 31 da LRF), sob pena do ente político infrator sofrer as seguintes sanções institucionais:
- vedação de novas operações de crédito interna ou externa (exceto para refinan- ciar principal atualizado);
- limitação dos empenhos (contingenciamento) até a obtenção do superávit primá-
rio necessário à recondução da dívida ao limite;
- suspensão do recebimento de transferências voluntárias da União ou dos Estados
(não há suspensão dos repasses constitucionais – art. 157/159 da CF/1988).
Observe-se, porém, o princípio da intranscendência subjetiva das sanções, no sen- tido de que ilícitos cometidos pelo gestor antecedente não devem penalizar a gestão posterior, sobretudo quando se verifica que o novo gestor é diligente e busca sanar as irregularidades constatadas (AC/STF n. 2614, j. de 23/06/2015).
As instituições financeiras que contratarem operação de crédito com ente da fe- deração (exceto quanto à dívida mobiliária e externa) deverão exigir comprovação de que a operação atende às condições e limites estabelecidos, sob pena de a operação ser considerada nula e de os valores serem devolvidos sem quaisquer juros ou outros encar- gos financeiros (art. 33 da LRF).
Os recursos decorrentes de transferências voluntárias ou empréstimos não podem ser utilizados para o pagamento de pessoal ou despesas de custeio (art. 167, X, da CF, c/c os arts. 35 a 37 da Lei de Responsabilidade Fiscal).
- Os limites impostos às instituições financeiras estatais
O caput do art. 36 da LC 101/2000 dita que “É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo”.
A utilização de numerosas verbas de bancos públicos e do FGTS por diversos meses para o pagamento de despesas públicas, com reposição meses depois, foi batizada de “pedalada fiscal” e utilizada como um dos fundamentos que levou à abertura de um processo de impeachment contra a Presidente da República em 2016, sob o argumento de que teria ocorrido atentado à Lei Orçamentária (art. 85, VI, da CF de 1988) e que os atrasos dos repasses por longo prazo implicaram em maquiagem das contas públicas (pois as despesas eram contabilizadas com atraso na contabilidade do governo fede- ral). Os atrasos fundamentaram o acórdão unânime do Tribunal de Contas da União com parecer pela rejeição das contas da Presidente da República do ano de 2014 (TC 005.335/2015-9), posição que se encontra precedente no parecer emitido pelo TCU, em 1937, pela rejeição das contas de Getúlio Vargas. As contas dos Presidentes da República são julgadas anualmente pelo Congresso Nacional (art. 49, IX, da CF/1988).
De acordo com matéria publicada pelo site G1 em 6/4/2016, “As chamadas ‘pe- daladas fiscais’ – atraso de repasses a bancos públicos pela execução de despesas do governo – existiam no governo Fernando Henrique
Cardoso, mas assumiram proporções maiores na ges- tão da presidente Dilma Rousseff, segundo números do Banco Central (BC). Na comparação, elas soma- ram R$ 1 bilhão e R$ 948 milhões, respectivamente, no fim dos anos de 2001 e 2002, no governo FHC. No fim de 2013 e 2014, no governo Dilma, os valores chegaram a R$ 36,07 bilhões e R$ 52 bilhões, respec- tivamente”.
O jornal Estado de São Paulo divulgou o seguinte gráfico sobre a questão:
Além de crime de responsabilidade (tipificado para parte dos agentes públicos), contratações irregulares de operações de crédito, prestação indevida de garantia, ofer- ta pública ou colocação de títulos da dívida pública no mercado financeiro sem a obser- vância das regras legais podem tipificar crime comum (art. 359–A, E e H do Código Penal) e improbidade administrativa (art. 10, VI, da Lei n. 8.429/1992).
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A tributação de incentivos fiscais de ICMS pelo PIS/ COFINS. A não caracterização destes incentivos como receitas tributáveis pelo PIS/COFINS
Susy Gomes Hoffmann1
Advogada
- Histórico e contexto
Os Estados da Federação, apesar de toda a discussão acerca da Guerra Fiscal, pos- suem, em sua maioria, legislação que cria benefícios fiscais relativos ao ICMS para as empresas que se estabelecem em seu território e cumprem os requisitos previstos em lei, isto é, o incentivo somente pode ser concedido às empresas que se enquadrem nas características e requisitos – normalmente denominados “contrapartidas”.
De uma maneira geral e apenas para trazer o tema para o debate, esses incentivos fiscais são apresentados pelo Estado por meio de crédito presumido de ICMS, que ingres- sa na pessoa jurídica apenas de forma escritural. Esse crédito, por óbvio, reduz o valor do ICMS a ser pago ao final de cada mês ou período.
Normalmente, esse incentivo fiscal do ICMS obtido pela fruição dos créditos presu- midos é tratado como redutor do Passivo com ICMS (Passivo) e, em contrapartida, como uma redução dos custos de produção (lançamento a crédito no resultado, redutor da conta de custos).
Para fins deste breve estudo, vamos considerar que esse benefício se caracteriza como subvenção de custeio (não vamos entrar no debate sobre caracterização como subvenção de custeio ou de investimento, porque não é objeto deste estudo), de modo que o montante de ICMS economizado acaba por ser incluído para fins de apuração do IRPJ/CSLL.
A questão ora analisada está em saber se esse montante economizado, relativo ao crédito presumido do ICMS, pode ser considerado receita para fins de incidência do PIS e da COFINS.
- Objeto deste artigo
Com base nessa questão apresentada, este breve estudo tem como objetivo:
- apresentar, brevemente, o conceito de receita para fins de incidência do PIS/ COFINS, pela ótica da legislação e da
- detalhar, de forma teórica, a interação desse conceito no caso dos benefícios fiscais de ICMS conforme a jurisprudência administrativa, judicial e a nossa in- terpretação.
1 Doutora em Direito pela PUC/SP.
- Conceito de receita para fins de incidência do PIS/COFINS – legislação, doutrina e a aplicação deste conceito no caso dos benefícios fiscais de ICMS
O fundamento constitucional das contribuições para custeio da seguridade social
encontra-se no art. 195 da Constituição Federal (CF):
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos prove- nientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (vide Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: (redação dada pela Emenda Constitu- cional no 20, de 1998)
- a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (incluído pela Emenda Constitucio- nal no 20, de 1998)
- a receita ou o faturamento; (incluído pela Emenda Constitucio- nal nº 20, de 1998)
- o lucro; (incluído pela Emenda Constitucional no 20, de 1998)
[…]
- 12. A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não-cumulativas. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
Nota-se, portanto, que a Constituição autoriza a instituição de contribuições sobre “receita” ou “faturamento”. De forma a aplicar o disposto no art. 195 da CF, os artigos 1os das Leis 10.833/2003 e 10.637/2002 instituíram as contribuições para o PIS/COFINS, definindo o fato gerador destes tributos da seguinte forma (transcrevemos a redação da Lei 10.637/2002, para fins de simplificação):
Art. 1º – A contribuição para o PIS/Pasep tem como fato gerador o faturamento mensal, assim entendido o total das receitas auferi- das pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil.
- 1º Para efeito do disposto neste artigo, o total das receitas com- preende a receita bruta da venda de bens e serviços nas opera- ções em conta própria ou alheia e todas as demais receitas aufe- ridas pela pessoa jurídica.2
2 Transcreve-se abaixo a redação da Lei 10.833/2003, sendo que, no que se refere ao conceito de receita, não existem diver- gências relevantes entre as duas leis (10.833 e 10.637):
Art. 1º A Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS, com a incidência não-cumulativa, tem como fato gerador o faturamento mensal, assim entendido o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil.
- 1º Para efeito do disposto neste artigo, o total das receitas compreende a receita bruta da venda de bens e serviços nas operações em conta própria ou alheia e todas as demais receitas auferidas pela pessoa jurídica.
É notório que o conceito legal de receita e de faturamento é ambíguo, tanto que foi – e é – alvo de inúmeros estudos doutrinários e de questionamentos judiciais. Por- tanto, faz-se necessário apoio na jurisprudência e na doutrina para se extrair balizas mais seguras para segregar quais receitas devem ou não ser submetidas à tributação pelo PIS/COFINS.
Na estrita redação das leis, o fato gerador das contribuições para o PIS-Pasep e para a COFINS é o faturamento mensal, entendido este como sendo a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica.
Portanto, o fato gerador não está limitado ao fato de emissão de faturas, mas, sim, na receita auferida. Claramente, na maioria das situações, a emissão da fatura coincide com o fato de se auferir a receita, mas não sempre.
Receita, primeiramente, denota um elemento patrimonial, ou seja, revela, sem dúvida, um acréscimo ao ativo da pessoa jurídica. Quando tal acréscimo advém da venda de produtos ou prestação dos serviços trata-se de faturamento, que é espécie do gênero receita relacionado à atividade específica de determinada empresa.
Ao lado do faturamento, outros ingressos de recursos remuneram as empresas, como os royalties pela cessão de direitos, ou aluguéis, as receitas financeiras, entre ou- tras, que não se relacionam especificamente à venda ou prestação de um serviço.
Nota-se, desta maneira, que o faturamento equivale à equação elaborada pela empresa para que os recursos de venda cubram os seus custos e lhes permitam obter o lucro julgado adequado – remuneram a atividade operacional das empresas.
Ao passo que a receita equivale ao faturamento e a qualquer outro acréscimo pa- trimonial que remunera a empresa.
Resta nítido, com o acima, que o fato gerador do PIS e da COFINS deve envolver um ingresso ou potencial ingresso de recursos para a empresa, que a remunera pelo em- penho de seus recursos nas atividades operacionais (i.e., faturamento), ou a remunera pela perda ou indisponibilidade de um direito (do dinheiro, em uma aplicação financeira, de um imóvel, no aluguel ou de um direito imaterial com os royalties, etc.).
Ademais, não se pode confundir o conceito de receita para PIS/COFINS com as hipóteses de ganho patrimonial. O ganho patrimonial é verificado como um acréscimo ao resultado da empresa, claramente tributável pelo IRPJ/CSLL, seja em função de um aumento de ativos ou uma redução de passivos.
Portanto, não consideramos correto, como tem feito a Receita Federal do Brasil e algumas decisões do CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda), em aproximar o ganho patrimonial, que representa “lucro”, à receita tributá- vel pelo PIS/COFINS, sob pena de exigir PIS/COFINS sobre “lucro” e não sobre “receita”.
Um exemplo de tal linha interpretativa, com a qual não concordamos, encontra-se
no acórdão da Delegacia Regional de Julgamento abaixo transcrito:
EMENTA: SUBVENÇÃO PARA INVESTIMENTOS. Descaracterização. In- centivos Fiscais. Crédito Outorgado de ICMS. Inexistência de Vincu- lação. Descaracterização. Os valores correspondentes ao benefício fiscal do Crédito Outorgado de ICMS que não possuam vinculação com a aplicação específica dos recursos em bens ou direitos referentes à implantação ou expansão de empreendimento econômico não se
caracterizam como subvenção para investimentos, devendo ser com- putados na determinação do lucro real. Os recursos fornecidos às pes- soas jurídicas pela Administração Pública, quando não atrelados ao investimento na implantação ou expansão do empreendimento pro- jetado, constituem estímulo fiscal que se reveste das características próprias das subvenções para custeio, não se confundindo com as subvenções para investimento, e devem ser computados no lucro operacional das pessoas jurídicas, sujeitando-se, portanto, à in- cidência da Cofins.
[…]
Ano-calendário: 01/01/2008 a 31/12/2008, 01/01/2009 a 31/12/2009, 01/01/2010 a 31/12/2010 (MINISTÉRIO DA FAZENDA SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL 2a TURMA ACÓRDÃO Nº 03-51938 de 26 de Abril de 2013)
O que se deve afastar para o conceito de receita tributável de PIS/COFINS são as hipóteses em que não há um ingresso de recursos que remuneram a empresa, mas, sim, mero reconhecimento contábil de uma receita que, em verdade, revela um ganho patrimonial.
Notamos que em algumas hipóteses existe uma linha tênue entre o que deve ser considerado como receita para fins de PIS/COFINS e o que revela mero ganho patrimo- nial (tributável pelo IRPJ/CSLL), como, por exemplo, no perdão de dívida.
No perdão de dívida, a pessoa que teve sua dívida perdoada tem uma redução de seu passivo, o que gera um ganho (se antes devia 100 e passa a dever 50, há um ganho de 50, claramente). Esse ganho afeta o resultado da empresa (lucro), porém, certamente não é um ingresso de recursos e não remunera a empresa pelas suas atividades, portan- to, não pode ser considerado como receita tributável.
Outra hipótese é o recebimento de uma indenização. Na indenização há mera re- composição patrimonial, tornando indene (sem dano) o patrimônio de quem a recebe, portanto, não aumenta o ativo da empresa, mas apenas ajusta ao que era antes do dano. Assim, não se deveria sequer cogitar de um ganho patrimonial, mesmo para apuração do IRPJ/CSLL, e menos ainda de receita tributável para PIS/COFINS.
Em face dos dois exemplos acima, consoante o nosso entendimento, a receita tri- butável para PIS/COFINS deve representar um ingresso, que remunera a empresa e que tem potencial de aumentar o seu ativo.
Pelo exposto, pode-se dizer que a receita tributável pelo PIS/COFINS apresenta as seguintes características:
- é ingresso de recursos, ou seja, uma entrada positiva de recursos;
- remunera a empresa pelo empenho de materiais, mão de obra, conhecimento, , utilizados para vender produtos/serviços (caso do faturamento propria- mente dito); ou
- remunera a empresa pela indisponibilidade de um direito (caso dos royalties, da receita financeira e do aluguel);
- representa um potencial de aumentar o ativo da empresa.
Presentes todas as características acima, haverá receita ou faturamento tributável
pelo PIS/COFINS.
Contudo, o conceito de receita é utilizado, até mais acentuadamente, pela ciência contábil e, pelos diferentes objetivos em relação à ciência tributária; adota-se, na con- tabilidade, outro conceito para o termo, diferente do conceito exposto.
Em conformidade com o Manual de Contabilidade Societária da FIPECAFI3, receita
pode ser definida de várias formas para a contabilidade, como se nota abaixo:
No “Pronunciamento Conceitual Básico Estrutura Conceitual para a Elaboração e Apresentação das Demonstrações Contábeis” emitido pelo CPC, a receita é definida no item 70 (a) como “aumentos nos benefícios econômicos durante o período contábil sob a forma de entrada de recursos ou aumento de ativos ou diminuição de pas- sivos que resultam em aumentos do patrimônio líquido e que não sejam provenientes de aporte dos proprietários da entidade”. No item 74 do mesmo CPC há a menção de que “as receitas englobam tanto as receitas propriamente ditas como os ganhos. A receita surge no curso das atividades ordinárias de uma entidade é designada por uma variedade de nomes, tais como vendas, honorários, juros, divi- dendos e royalties”. Este capitulo trata apenas das receitas de vendas de bens e de serviços, as demais receitas estão tratadas nos Capítulos 27 e 30 deste manual.
O Pronunciamento Conceitual Básico CPC 30 – Receitas, em seu item 7 define a receita como sendo “O ingresso bruto de benefícios econô- micos durante o período proveniente das atividades normais de uma entidade que resultam no aumento do Patrimônio Líquido, porém não se relacionam ao aumento de capital promovido pelos acionistas”. O mesmo CPC no item 8 menciona que “a receita inclui somente os ingressos brutos de benefícios econômicos recebidos e a receber pela entidade quando originários de suas próprias atividades. As quantias cobradas por conta de terceiros – tais como tributos sobre vendas, tributos sobre bens e serviços e tributos sobre valor adicio- nado – econômicos que fluam para a entidade e consequentemente não resultam em aumento do patrimônio liquido”.
Inicialmente, nota-se que há uma diferença fundamental entre o conceito que bus- camos construir para fins de PIS/COFINS e o conceito contábil de receita, a saber: en- quanto o conceito tributário, para fins de incidência das contribuições, não envolve as situações em que há um ganho patrimonial, o conceito contábil, por buscar apresentar o resultado (lucro) da empresa, aproxima-se das regras de apuração do lucro do IRPJ/CSLL e envolve quaisquer benefícios econômicos.
Portanto, para a contabilidade, a entidade deve reconhecer uma receita mesmo nos casos em que ocorrer um ganho econômico pela diminuição de um passivo e mesmo nos casos que não representem um efetivo ingresso positivo de recursos que remunerem a empresa.
3 Manual de contabilidade societária – FIPECAFI. Atlas, 2010. p. 485.
Logo, vê-se que em dois pontos há divergências fundamentais entre o conceito de receita para PIS/COFINS e o conceito contábil, a saber:
- na contabilidade, mesmo eventos econômicos que não representem um efetivo ingresso de recursos, podem ser registrados como receita, ao passo que a carac- terização de uma receita tributável para PIS/COFINS exige primeiramente um efetivo ingresso positivo de recursos;
- ademais, na contabilidade, mesmo os casos em que ocorre a mera diminuição de um passivo pode ser objeto do reconhecimento de uma receita, e no tratamento tributário para fins da apuração do PIS/COFINS apenas se reconhece como recei- ta os ingressos que tenham potencial de aumentar um
Esse posicionamento teórico, como será visto adiante, tem encontrado respaldo na jurisprudência, principalmente nos casos já julgados pelo Superior Tribunal de Justiça, nos quais se reconheceu, expressamente e de forma reiterada, que os incentivos fiscais de ICMS na forma de créditos presumidos, por representarem reduções do passivo a pa- gar de ICMS, não devem ser oferecidos à tributação do PIS/COFINS.
Como descrito, diversos Estados brasileiros optam por conceder benefícios fiscais de ICMS a fim de incentivar atividades produtivas em seus territórios, gerando emprego e fomentando a economia.
Uma das moedas de concessão de tais incentivos é o ICMS, concedendo a certas empresas, elegíveis de acordo com diversos critérios, a possibilidade de pagar menos a título de imposto estadual ou de pagá-lo em condições mais favoráveis.
Assim, a prática dos governos estaduais tem-se voltado à concessão de diferimen- tos, suspensões, créditos presumidos e financiamentos em condições mais favoráveis para que, ao fim e ao cabo, a empresa que se instalar em seu território obtenha redução do custo tributário.
Ocorre que a redução do passivo com ICMS, em função de incentivos fiscais, pode ser contabilizada como ganho patrimonial na contabilidade, tendo em vista o objetivo de representar o resultado da empresa efetivo, em linha com as exigências da Lei das S.As.
Porém, não há que se permitir que a regra contábil influencie a natureza jurídica do conceito de receita para PIS e COFINS.
Em resumo, em termos contábeis podemos afirmar que:
- a contabilidade busca evidenciar aos destinatários das demonstrações financei- ras o resultado efetivo das companhias, como se os benefícios fiscais não fizes- sem parte do resultado operacional da entidade, a não ser após o reconheci- mento de um direito líquido e certo à subvenção.
- nas subvenções condicionais, a empresa somente deverá registrar uma receita, pela redução do passivo tributário a pagar (que, no caso dos benefícios em tela, há uma redução do ICMS a pagar), quando preenchidas todas as condições para usufruir o benefício.
- nas subvenções incondicionais, a empresa deverá registrar a receita imediata-
- Por fim, apontamos algumas diferenças entre o conceito tributário de recei- ta, para fins da apuração do PIS/COFINS e o conceito contábil:
- primeiramente, como foi visto, a contabilidade reconhece receitas em fun- ção de meros ganhos patrimoniais, o que não é suficiente para a caracteriza- ção de uma receita tributada para PIS/COFINS.
- ademais, enquanto a legislação tributária exige um efetivo ingresso (positi- vo) para a incidência do PIS/COFINS, a norma contábil determina o registro de receitas independentemente de um ingresso
- e, por fim, a contabilidade determina, assim, que reduções do passivo (como, por exemplo, do ICMS a pagar) sejam contabilizadas como recei- Como foi visto, a lei tributária exige a potencialidade da receita em aumentar o ativo da empresa para que seja atingida pela incidência das contribuições.
Logo, o reconhecimento da receita nos casos acima elencados é mero instrumento contábil para ajustar o resultado das entidades em função da necessidade específica da ciência contábil (i.e., evidenciação dos resultados operacionais das empresas) e não poderia ser utilizado para embasar a aplicação de normas tributárias em ofensa ao prin- cípio da legalidade (C.F. art. 150, I).
Contudo, o Fisco tem-se empenhado em utilizar o tratamento contábil do reconhe- cimento das subvenções (i.e., receita) para embasar autuações de PIS/COFINS. O enten- dimento da Receita Federal do Brasil, em verdade, consolidou-se de forma contrária às empresas:
EMENTA: BENEFÍCIO FISCAL DE ICMS. SUBVENÇÃO. Incentivos fiscais,
como reduções do ICMS devido, são considerados como subvenções, nos termos do Parecer Normativo CST nº 112, de 1978. Por não esta- rem inseridos no rol das exclusões da base de cálculo da Cofins pre- vistas na legislação de regência, mantém-se a autuação dos valores relativos a esse benefício fiscal. NÃO CUMULATIVIDADE. DESCONTO DE CRÉDITOS. ENERGIA ELÉTRICA. A pessoa jurídica pode descontar créditos sobre os valores das despesas e custos incorridos relativos a energia elétrica consumida nos estabelecimentos da pessoa jurídica. Período de apuração: 01/01/2005 a 31/12/2007 (MINISTÉRIO DA FA- ZENDA SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL DELEGACIA DA RECEITA FEDE- RAL DE JULGAMENTO EM SALVADOR 4ª TURMA ACÓRDÃO Nº 15-29730
de 07 de fevereiro de 2012)
ASSUNTO: Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social
– Cofins
EMENTA: CRÉDITO PRESUMIDO DE ICMS. Os valores de subvenções, inclusive para investimentos, correspondentes a crédito presumido do ICMS, integram a base de cálculo da COFINS não cumulativa. Não existe previsão legal para a exclusão do crédito presumido de ICMS da base de cálculo da Cofins. Período de apuração: 01/02/2004 a 30/11/2006 (MINISTÉRIO DA FAZENDA SECRETARIA DA RECEITA FE- DERAL DELEGACIA DA RECEITA FEDERAL DE JULGAMENTO EM POR-
TO ALEGRE 2ª TURMA ACÓRDÃO Nº 10-42492 de 21 de Fevereiro de 2013).
Entretanto, entendemos que esse posicionamento fiscal, que já é consolidado4, não pode prosperar, pois afronta o conceito jurídico de receita, porque a Receita Federal do Brasil adota uma interpretação demasiadamente extensiva do conceito de receita e, com isso, acaba por impor tributação de PIS/COFINS sobre elementos que representam meros ganhos patrimoniais, tributáveis apenas pelo IRPJ/CSLL.
Ao adotar esse procedimento, o Fisco age, conforme nosso posicionamento, de forma ilegal, tendo em vista o disposto no art. 1º das leis 10.833/2003 e 10.637/2002, na medida em que fundamenta a tributação das receitas com base meramente na clas- sificação contábil, o que é vedado:
Lei 10.833/2003:
Art. 1º A Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social
– COFINS, com a incidência não-cumulativa, tem como fato gerador o faturamento mensal, assim entendido o total das receitas auferi- das pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil.
Lei 10.637/2002
Art. 1º A contribuição para o PIS/Pasep tem como fato gerador o fatu- ramento mensal, assim entendido o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classifi- cação contábil.
Vale repetir que o primeiro passo para analisar se determinada receita deve ou não ser tributada pelo PIS/COFINS não é a verificação de sua classificação contábil, mas, sim, o ingresso da receita.
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), parcialmente, e o Egrégio Superior Tribunal de Justiça de forma pacífica têm confirmado o nosso entendimento, no sentido de que os ganhos advindos dos incentivos fiscais, que impliquem em redução do custo com ICMS, não devem compor a base de cálculo do PIS e da COFINS.
A seguir apresentamos uma análise jurisprudencial sobre o tema.
- Da jurisprudência no âmbito do
Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
No âmbito do Tribunal Administrativo, destacamos o Processo nº 11065.000320/2007- 14, que foi objeto de análise pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (Instância Espe- cial Administrativa). Nesse caso, o contribuinte aproveitava créditos presumidos de ICMS dos Estados do Rio Grande do Sul e da Bahia. A empresa registrava os incentivos na forma da lei societária, ou seja, como reservas de capital.
4 Vide neste sentido as seguintes manifestações da RFB em processos de consulta: Processo de Consulta nº 135/12, Processo de Consulta nº 41/12, Processo de Consulta nº 324/12, Processo de Consulta nº 17/12, Processo de Consulta nº 58/09.
A decisão de 1a Instância desse caso no CARF restou assim ementada:
BASE DE CÁLCULO. INCENTIVO FISCAL. CRÉDITO FISCAL DO ICMS. NÃO
INCLUSÃO. Não compõe o faturamento ou receita bruta, para fins de tributação da Cofins e do PIS, o valor do incentivo fiscal concedido pelo Estado sob a forma de crédito fiscal, para redução na apuração do ICMS devido.
(Acórdão nº 203-13.634, 2º Conselho de Contribuintes, Terceira Se- ção, Sessão de 2 de dezembro de 2008).
No voto vencedor do conselheiro relator designado do caso, Conselheiro EMANUEL CARLOS DANTAS DE ASSIS, releva destacar o seguinte trecho:
[…] Para o deslinde da controvérsia, não dou qualquer relevo à con- tabilidade da empresa. Tampouco adentro no debate sobre a tributa- ção (ou não) das subvenções em geral. O que me faz ver a impossibi- lidade de inclusão do incentivo na base de cálculo da Contribuição é a sua caracterização como crédito fiscal do ICMS, tal como estatuído nas normas estaduais concessivas do benefício.
No sistema de débitos e créditos de apuração do ICMS, os incentivos concedidos sob a forma de créditos fiscais servem à redução do im- posto estadual devido, sendo os valores correspondentes redutores do saldo devedor. Daí não serem computados como faturamento ou receita bruta, mesmo nos termos do alargamento promovido pela Lei nº 9.718/98 (reputado inconstitucional porque anterior à PC nº 20/98) e Leis nºs 10.637/2002 e 10.833/2003 (posteriores à citada Emenda e plenamente eficazes).
Seria diferente, e ensejaria a tributação mediante o cômputo na re- ceita bruta, tal como definida nas três leis retrocitadas, se o incen- tivo fosse estabelecido como crédito em moeda corrente (em vez de crédito escritural), e servisse para pagamento do imposto. Do mesmo modo, também seria tributado se o incentivo se desse por meio de desconto no valor de empréstimo concedido ao contribuinte, mas que em função do benefício Estadual é pago a menor.
Já na Câmara Superior de Recursos Fiscais, o caso restou ementado da seguinte forma:
ASSUNTO: CONTRIBUIÇÃO PARA O PIS/PASEP Período de apuração: 01/01/2002 a 31/12/2005 INCENTIVO FISCAL. CRÉDITO FISCAL DO
ICMS. BASE DE CÁLCULO. NÃO INCLUSÃO. Não compõe o faturamento ou receita bruta, para fins de tributação do PIS, o valor do incentivo fiscal concedido pelo Estado sob forma de crédito fiscal, para redução na apuração do ICMS devido.
(Acórdão nº 9303-002.618 – 3ª Turma, CSRF, Sessão de 12 de novem- bro de 2013, Cons. Rel. Maria Teresa Martínez López).
O processo nº 11065.000320/2007-14, que relata um caso dos benefícios fiscais do FUNDOPEM e do PROBAHIA e também envolvia o crédito presumido escritural, restou assim decidido:
BASE DE CÁLCULO. CRÉDITO PRESUMIDO DO ICMS. NÃO INCLUSÃO. A
mera apuração de crédito presumido do ICMS, decorrente da aplica- ção da legislação que disciplina o pagamento do imposto não reúne as características necessárias para inclusão no conceito de receita e, como tal, não se sujeitam à incidência da Cofins e da contribuição para o PIS/Pasep.
(Acórdão nº 3102-001.989 – 1ª Câmara/2a Turma Ordinária, Sessão de 22 de agosto de 2013, Cons. Rel. Luis Marcelo Guerra de Castro)
Identificamos, contudo, que existem casos julgados de forma desfavorável no tema. Veja-se, a propósito, o julgamento objeto da ementa transcrita a seguir, em que o crédito presumido era contabilizado pela Empresa como uma conta redutora do custo e este ponto foi relevante na argumentação constante do voto vencedor. Observa-se que o julgamento foi ultimado pelo voto de qualidade, isto é, houve um empate entre os julgadores Conse- lheiros, e nos termos regimentais, o desempate foi feito pelo Conselheiro Presidente da Turma, que é um Conselheiro representante da Fazenda. O Acórdão restou assim ementado:
BASE DE CÁLCULO DA CONTRIBUIÇÃO PIS. REGIME DA NÃO-CUMULA-
TIVIDADE. CRÉDITO PRESUMIDO DE ICMS. As receitas decorrentes de crédito presumido de ICMS compõem a base de cálculo da contri- buição PIS no regime da não-cumulatividade, tendo em vista que o faturamento mensal corresponde ao total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independente de sua denominação ou de sua classi- ficação contábil.
(Acórdão nº 3801-002.668 – 1ª Turma Especial, Sessão de 29 de janei- ro de 2014, Cons. Rel. Flávio de Castro Pontes, por voto de qualidade).
Enfim, este é um tema que ainda deve ser objeto de muitos julgados no âmbito administrativo e, espera-se, que a tendência seja a de o Tribunal Administrativo não admitir que tais incentivos fiscais possam fazer parte da receita como base de cálculo para PIS e COFINS, na esteira do que foi aqui defendido e da pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça como será analisado a seguir.
- Da jurisprudência no âmbito do Superior Tribunal de Justiça
O Egrégio Superior Tribunal de Justiça vem entendendo, de forma uníssona e pa- cífica, por suas duas Turmas da Primeira Seção, que os valores relativos aos créditos presumidos de ICMS, oriundos dos incentivos fiscais estaduais, não devem compor a base de cálculo do PIS e da COFINS pelo fato de serem meros redutores de custo e não efetivo ingresso de recursos para os contribuintes, como se pode verificar pelas ementas transcritas abaixo.
TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL.
ART. 557 CPC. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO MONOCRÁTICO. EX- CLUÍDA ALEGAÇÃO DE CERCEAMENTO DE DEFESA. POSSIBILIDADE DE
APRESENTAÇÃO DE MEMORIAIS. CRÉDITO PRESUMIDO DE ICMS. NÃO INCIDÊNCIA NA BASE DE CÁLCULO DO PIS E DA COFINS. AGRAVO NÃO PROVIDO.
[…]
- De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o crédito presumido do ICMS configura incentivo voltado à redução de custos, com a finalidade de proporcionar maior competitividade no mercado para as empresas de um determinado Estado-membro, não assumindo natureza de receita ou
- Agravo regimental não
(AgRg no REsp 1329781/RS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/11/2012, DJe 03/12/2012).
TRIBUTÁRIO – SÚMULA 126 DO STJ – CRÉDITOS PRESUMIDOS DE ICMS
– EXCLUSÃO DA BASE DE CÁLCULO DO PIS/PASEP E DA COFINS.
- Nos termos da Súmula 126 do STJ, não se admite o recurso especial quando, por não se haver interposto recurso extraordinário, perma- necer incólume o fundamento constitucional do acórdão
- Créditos presumidos de ICMS, por se tratarem de mero ressarci- mento, não representam ingresso de valores aos caixas da empresa e, portanto, não são tributáveis.
- Agravo regimental não
(AgRg no REsp 1274900/SC, Rel. Ministra DIVA MALERBI (DESEMBAR- GADORA CONVOCADA TRF 3ª REGIÃO), SEGUNDA TURMA, julgado em 26/02/2013, DJe 11/03/2013).
TRIBUTÁRIO. PIS E COFINS. BASE DE CÁLCULO. CRÉDITO PRESUMIDO DE ICMS. NÃO INCLUSÃO. NATUREZA JURÍDICA QUE NÃO SE CONFUNDE COM RECEITA OU FATURAMENTO. PRECEDENTES.
- O crédito presumido de ICMS configura incentivo voltado à redu- ção de custos, com vistas a proporcionar maior competitividade no mercado para as empresas de um determinado Estado-membro, não assumindo natureza de receita ou faturamento, motivo por que não compõe a base de cálculo da contribuição ao PIS e da
Precedentes de ambas as Turmas de Direito Público.
- Agravo regimental não
(AgRg no REsp 1319102/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/03/2013, DJe 12/03/2013).
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO 535/CPC. NÃO OCORRÊNCIA. INCLUSÃO DO CRÉDITO PRESUMIDO DE ICMS NA BASE DE CÁLCULO DO PIS/COFINS. IMPOSSIBILIDADE. ENTENDIMENTO PACÍFICO DO STJ. CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO. NÃO VIOLAÇÃO.
- Não houve ofensa ao 535 do CPC, na medida em que o Tribunal de origem dirimiu, fundamentadamente, as questões que lhe foram submetidas, apreciando integralmente a controvérsia posta nos pre- sentes autos.
- A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que o crédito presumido referente ao ICMS não tem natureza de receita ou fatura- mento, razão pela qual não pode ser incluído na base de cálculo do PIS e da COFINS. Precedentes: AgRg no REsp 1319102/RS, Rel. Minis- tro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/03/2013, DJe 12/03/2013, AgRg no REsp 1274900/SC, Rel. Ministra DIVA MALERBI (DESEMBARGADORA CONVOCADA TRF 3ª REGIÃO), SEGUNDA TURMA, julgado em 26/02/2013, DJe 11/03/2013, AgRg no REsp 1329781/RS, Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/11/2012, DJe 03/12/2012.
- Não há falar em ofensa à cláusula de reserva de plenário (art. 97 da CF) e ao enunciado 10 da Súmula vinculante do Supremo Tribu- nal Federal quando não haja declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos legais tidos por violados, tampouco afastamento desses, mas tão somente a interpretação do direito infraconstitucional apli- cável ao caso, com base na jurisprudência desta
- Agravo regimental a que se nega
(AgRg no AREsp 6343/RS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 06/09/2013)
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PIS E COFINS. BASE DE CÁLCULO. CRÉDITO PRESUMIDO DE ICMS. NÃO INCLUSÃO. INCENTIVO FISCAL. NATUREZA JURÍDICA DIVER- SA DE RECEITA OU FATURAMENTO.
- Segundo a jurisprudência desta Corte os valores provenientes do crédito presumido do ICMS não ostentam natureza de receita ou fatu- ramento, mas de recuperação de custos na forma de incentivo fiscal concedido pelo governo para desoneração das operações, razão pela qual não integra a base de cálculo da contribuição ao PIS e da CO- Precedentes: AgRg no AREsp 626.124/PB, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 6/4/2015; AgRg no REsp 1.494.388/ ES, Rel. Ministra Marga Tessler (Juíza Federal convocada do TRF 4ª Região), Primeira Turma, DJe 24/3/2015; AgRg no AREsp 596.212/PR, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 19/12/2014; AgRg no REsp 1.329.781/RS, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 3/12/2012.
- Agravo regimental não
(AgRg no REsp Nº 1.247.255 – RS, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/11/2015).
Ao analisar tais decisões, não restam dúvidas de que o Superior Tribunal de Justiça, pelas duas turmas da Primeira Seção, fechou o entendimento sobre a não inclusão destes incentivos – créditos presumidos de ICMS – na base de cálculo do PIS e da COFINS. Os julgados acima são apenas exemplos dos inúmeros Acórdãos que tratam do tema e todos com o mesmo teor.
- Da análise do tema pelo Supremo Tribunal Federal
O tema do conceito de receita e a questão sobre a inclusão do crédito outorgado de ICMS, neste conceito de receita para fins de PIS e COFINS, é objeto de Recurso Extraor- dinário que tramita pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal e para o qual foi determinado o rito da Repercussão Geral.
O tema está sendo tratado no Recurso Extraordinário 835.818-PR, pela relatoria do Ministro Marco Aurélio.
Ainda não há data prevista para julgamento, mas o parecer do Ministério Público
Federal foi favorável à tese ora defendida, no sentido de que
[…] devem ser excluídos da base de cálculo do PIS e da COFINS os valores correspondentes a créditos presumidos de ICMS decorrentes de incentivos fiscais concedidos pelos Estados e pelo Distrito Federal, sob pena de ofensa aos princípios da capacidade contributiva, da iso- nomia e da proporcionalidade. […]
Insta destacar outro trecho do citado Parecer:
[…] Os créditos presumidos de ICMS, estabelecidos por legislação lo- cal, consistem em benefícios fiscais concedidos por alguns estados a determinados contribuintes. Embora ingressem como se receita fos- sem, nada mais são esses valores do que alívio de custos de produção concedido pelo Estado.
Desse modo, tais créditos não constituem expressão de riqueza sobre a qual devam incidir tributos, pois seu ingresso no caixa do contri- buinte não promove efetivo acréscimo à sua esfera patrimonial. […]
Aguardamos a decisão do Supremo Tribunal Federal, que encerrará a questão, e a perspectiva é que o Egrégio Tribunal entenda pela exclusão de tais receitas da base de cálculo do PIS e da COFINS, inclusive, em razão do I. Parecer citado e dos precedentes da Corte.
- Conclusões
Em face dos diversos acórdãos no tema perante o Egrégio Superior Tribunal de Justiça e o Parecer do Ministério Público Federal favorável à tese ora defendida, en- tendemos que no âmbito judicial a questão da não tributação dos incentivos fiscais que consistem em crédito presumido de ICMS encontra-se ainda mais avançada e madura quando comparada à jurisprudência do CARF.
Claramente, o Tribunal Administrativo, até pela sua composição, tende a aprofun- dar-se mais nos detalhes contábeis dos benefícios, muitas vezes sendo relevante a con- tabilização como receita ou a existência de contrapartidas pela empresa para o deslinde do caso.
De outro lado, o Superior Tribunal de Justiça, pela farta e pacífica jurisprudência favorável, tem seguido uma linha mais ajustada aos conceitos jurídicos de receita para fins de tributação de PIS/COFINS, consoante expusemos no início deste estudo.
E, por fim, aguarda-se que o Egrégio Supremo Tribunal Federal confirme o entendi- mento do Superior Tribunal de Justiça, bem como, siga o Ilustre Parecer da Procuradoria-
-Geral da República, no sentido de que não há base constitucional ou legal para inclusão de tais valores – dos créditos presumidos de ICMS – na base de cálculo do PIS e da COFINS, sob a justificativa de se enquadrarem no conceito de receita.
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Apontamentos sobre o domicílio tributário
Wanderley José Federighi1
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Sumário: 1. Fins e importância da noção de domicílio. 2. O domicílio no Direito Ro- mano. 3. Do domicílio civil; breves considerações. 4. Notas sobre o domicílio tributário no direito estrangeiro. 5. O domicílio tributário no Brasil; o art. 127 do CTN. 6. Breve notícia sobre o domicílio eletrônico.
- Fins e importância da noção de domicílio
É de cabal importância a noção de domicílio, em virtude das múltiplas relações ju- rídicas que os sujeitos de direito travam entre si. Como lembra Silvio Rodrigues, vivendo o homem em sociedade,
[…] mantendo relações jurídicas com outros homens, é necessário que haja um lugar onde possa ele oficialmente ser encontrado, para responder pelas obrigações que assumiu. Todos os sujeitos de direito devem ter, por livre escolha ou por determinação da lei, um lugar certo, no espaço, de onde irradiem sua atividade jurídica. Esse lugar é o seu domicílio.2
De fato, tão importante é o referido conceito, que, como lembram Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, o próprio sistema do Direito Civil reconhece ser o domicílio um instituto jurídico que compõe o que se entende como atributo da pessoa, complementando:
Pode-se dizer, inclusive, que o domicílio tem um sentido metafísico, isto é, o local onde a pessoa vive passa a integrar o próprio sentido de sua personalidade. Geralmente, as pessoas se apegam ao local onde vivem e onde possuem seu centro de interesses, quer por motivos de ordem moral e afetiva, quer por motivo de ordem econômica (Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil – Teoria Geral, cit., p. 155). Domicílio é, em suma, a sede jurídica da pessoa.3
Tal conceito é também fornecido por R. Limongi França, que qualifica o domicílio como um dos atributos da personalidade jurídica. O venerado mestre lembra, ainda, que é de
1 Professor Assistente da Escola Paulista da Magistratura – EPM. Membro da Academia Paulista de Magistrados. Bacharel e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP.
2 Direito Civil. v. 1, Parte Geral. p. 103.
3 Código civil anotado e legislação extravagante. p. 182.
[…] grande importância a relação entre a pessoa e a respectiva sede jurídica, por que é esta o ponto de referência no que concerne à localização, no espaço, para a prática da generalidade dos atos ju- rídicos. Assim, o devedor deve, em princípio, ser demandado no seu domicílio; o casamento deve ser celebrado no domicílio dos nubentes; a sucessão se abre no domicílio do “de cujus” etc.4
Por seu turno, Washington de Barros Monteiro traz à baila as seguintes ponderações:
O direito é um complexo de relações que se estabelece entre os homens. É indispensável, porém, que estes estejam presentes em determinado lugar, de antemão conhecido, para que se exerçam normalmente as relações jurídicas. É uma necessidade social, uma necessidade de ordem geral, fixar a pessoa a determinado lugar. Se não houvesse essa fixação, se não existisse um ponto de referência onde a pessoa pudesse responder pelos seus deveres jurídicos, pre- cário e instável se tornaria o direito. Esse ponto de referência, esse local prefixado pela lei, é o domicílio (do latim domus, casa ou mora- da), sede jurídica, sede legal da pessoa, onde ela se presume presen- te para efeitos de direito.5
Importantíssimo no estabelecimento da solidez dos laços jurídicos, o domicílio do sujeito de direito – seja este pessoa física ou jurídica – é tratado em vários ramos do Direito, seja do Direito Internacional ao Direito Tributário, passando pelo Direito Admi- nistrativo, Eleitoral, Processual e vários outros.
No Direito Processual Civil, por exemplo, vê-se que no CPC de 1973 há disposições referentes ao domicílio da mulher, para fins de estabelecer-se a competência para o desquite e a ação de anulação de casamento (art. 100, inciso I), tendo o novo CPC, de 2015, trazido à baila regra nova, no art. 53, I, ao estabelecer a competência do deter- minados foros “para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento e reconheci- mento ou dissolução de união estável”; do autor da herança, para o estabelecimento da competência territorial (art. 96); do autor da ação, quando o réu não tiver domicílio fixo no Brasil (art. 94, § 3º); do réu, para estabelecimento da competência territorial (art. 94 e parágrafos), além de disposições referentes à sua inviolabilidade (art. 172, § 2º).
Também a própria Constituição Federal traz disposição referente à inviolabilidade do domicílio (art. 5º, inciso XI), além de estabelecer regras sobre o domicílio e a vigên- cia do estado de sítio (art. 139, inciso V) e as condições de elegibilidade (art. 14, § 3º, IV), no que toca à tal questão.
Por fim, não é ocioso lembrar-se a lição de Hugo de Brito Machado, que, fa-
zendo novamente remissão ao autorizado escólio de Angel Baeta Aguilar, em sua obra
4 Instituições de Direito Civil, p. 86. A propósito, também é nesse sentido a lição de Silvio de Salvo Venosa, que lembra que o nomadismo é exceção na história da humanidade, sendo poucas as pessoas que não se fixam em um determinado local (vide Direito Civil, v. 1, Parte Geral, p. 225).
Também esse é o enfoque dos tributaristas, lembrando Hugo de Brito Machado a lição de Angel Baena Aguilar, para trazer à baila a afirmação de que a ideia “de domicílio é inseparável da idéia de pessoa, de sua dimensão espacial, tanto que há quem o defina como circunstância da personalidade” (Comentários ao Código Tributário Nacional, volume II, p. 486).
5 Curso de direito civil. v. 1, Parte Geral. p. 156.
El domicilio tributário en derecho español, afirma que, não obstante seja o domicílio
uma circunstância da personalidade,
[…] ou talvez por isso mesmo, o domicílio pode ser visto como âmbi- to físico da vida privada; como dado determinante da nacionalidade das pessoas jurídicas; como circunstância geradora de direitos polí- ticos, independentemente da nacionalidade; como lugar do exercício de direitos e cumprimento de obrigações; e também como critério espacial de aplicação das normas jurídicas.6
- O domicílio no Direito Romano
Lembra Silvio de Salvo Venosa que o conceito de domicílio, no antigo Direito Roma- no, “aparece já nas antigas tribos do Lácio, originalmente limitado àqueles que possuem propriedade fundiária”.7
Vem a palavra domicílio do latim domus, cujo significado é “casa” ou “morada”. O Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas oferece o conceito de “lugar onde a pessoa natural estabelece sua residência com ânimo definitivo. Sede legal da pessoa natural ou jurídica”, trazendo a informação de que tal termo advém do latim domicilium8. Já Silvio de Salvo Venosa é quem, novamente, esclarece que tal termo, domicilium, é mais recente na história, derivando etimologicamente de domus9.
Serpa Lopes, discorrendo a respeito do tema, lembra que o termo domicílio
[…] deriva de “domum”. Serve para designar o lugar em que o ho- mem estabeleceu o seu lar doméstico e concentrou o conjunto de seus interêsses. Assim o definia o direito romano: ubi quis laren sua- rum summan constituit; onde rursus non sit discessurus, si nihil avo- cet, unde, cum profectus est, peregrinari videtur, quodsi rediit, pere- grinari iam destitit (L. 7 Cód., de inclois, etc., 10,39)10.
Partindo do mesmo ponto, Caio Mário da Silva Pereira aduz que, malgrado seja bastante clara a noção de domicílio que nos é legada pelo direito romano, a referên- cia é incompleta, na medida em que a teoria romana partia da ideia de casa (domus), cingindo-se a formular uma noção elementar,
[…] aliando a ideia de lar ou residência à de interesse ou fortuna. Como definição, é incompleta, por abranger tão-somente o domicílio voluntário, deixando de lado o domicílio decorrente de determinação legal. Mas é segura, por traduzir a concepção exata dos elementos que o constituem.11
Novamente é Silvio de Salvo Venosa que aduz que o conceito de domicílio con-
6 Comentários ao Código Tributário Nacional. p. 488.
7 Direito Civil. v. 1, Parte Geral. p. 226.
8 Dicionário Jurídico. p. 209.
9 Direito Civil…, loc. cit.
10 Curso de direito civil. v. I, Introdução e Parte Geral. p. 214.
11 Instituições de Direito Civil. v. I, p. 229.
trapõe-se ao de origo, ou origem, termo que determina a cidadania do indivíduo, sua participação na cidade ou na municipalidade de origem, posto que domicílio é entendido como “o local onde a pessoa vive estavelmente”12.
Há incontáveis textos do direito romano que trazem menções ao domicílio, como a Tábua VI da Lei das Doze Tábuas, que se refere ao domicílio conjugal (IV); na mesma Tá- bua, o número 6 refere-se à “mulher que residiu durante um ano em casa de um homem como se fora sua esposa, é adquirida por esse homem e cai sob o seu poder, salvo se se ausentar da casa por 3 noites”.13
Já existe no Direito Romano o conceito de domicílios especiais, como o do soldado domiciliado no local onde presta serviço, ou o dos senadores, que, apesar de, por prin- cípio, deverem se domiciliar em Roma, acabavam por mantê-lo como um domicilium dignitatis, ficando, outrossim, livres para se domiciliarem em outro local.14
- Do domicílio civil; breves considerações
- O domicílio é o lugar em que a pessoa, física ou jurídica, atua na vida jurídica.
O art. 31 do Código Civil de 1916 estabelecia que o domicílio civil da pessoa natural “é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo”. No Código Civil de 2002, disposição praticamente idêntica vem no art. 70.
A residência, outrossim, não se confunde com o domicílio. É ela uma relação de fato entre uma pessoa e um lugar, envolvendo a ideia de habitação. Já o domicílio com- preende a residência, acrescida do ânimo de aí fazer o centro de sua atividade jurídica. É a equação corpus + animus.
Se a pessoa natural tem várias residências ou vários centros de negócios, considera-
-se seu domicílio qualquer destes ou daquelas (art. 32 do Código Civil de 1916). No Có- digo Civil de 2002, disposição idêntica é encontrada no seu art. 71.
- Espécies de domicílio. O domicílio civil apresenta duas espécies; ou seja, quanto à pessoa e quanto ao modo de seu estabelecimento.
Quanto à pessoa, o domicílio pode ser da pessoa natural e da pessoa jurídica, e, neste último caso, subdividindo-se entre a pessoa jurídica de direito privado e a de direito público.
12 Direito Civil…, loc. cit. Pertinente trazer-se à baila, ainda aqui, a lição de Sílvio de Salvo Venosa, que afirma que o domi- cílio constitui, nas fontes romanas, “o lugar onde o indivíduo se estabelece com estabilidade, constituindo aí o centro de suas próprias atividades, conquanto temporariamente se distancie desse lugar ou tenha interesses patrimoniais em locais diversos” (op. e loc. cits.).
É interessante observar-se que mesmo para sistemas legais diferentes do nosso, como o direito norte-americano, tal concei- to, derivado do direito romano, é igualmente aplicável nos dias atuais. O Blacks’s Law Dictionary define o termo domicile como “the place at which a person has been physically present and that the person regards as home; a person’s true, fixed, principal and permanent home, to which that person intends to return and remain even though currently residing elsewhe- re”; ou, ainda, no que tange a pessoas jurídicas, “the residence of a person or corporation for legal purposes” (p. 223).
13 João Batista de Souza Lima, As mais antigas normas de Direito, p. 59. Interessante anotar-se, a propósito, que a mulher, “com o casamento, adquire o domicílio do marido e o conserva mesmo se viúva, até que contraia novas núpcias (Tedeschi, 1968, v. 6:192)” (Sílvio de Salvo Venosa, op. cit., p. 227).
14 Sílvio de Salvo Venosa, op. e loc. cits.
Quanto ao modo de seu estabelecimento, o domicílio pode ser voluntário; legal ou
necessário e de eleição.
É o mesmo voluntário, quando estabelecido livremente pelo indivíduo, sem sofrer
outra influência que não a de sua vontade ou conveniência.
É legal ou necessário aquele que a lei impõe a determinadas pessoas, que se encon- tram em dadas circunstâncias.
É de eleição o domicílio defluente do ajuste entre as partes contratantes.
- Domicílio de eleição ou A respeito de tal tema, dispunha o art. 42 do Código Civil de 1916 que: “Nos contratos escritos poderão os contraentes especificar domicílio onde se exercitem e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes”. No Código Civil de 2002, disposição assemelhada é encontrada no art. 78, de idêntica redação.
- Domicílio voluntário. Sob a égide do Código Civil de 1916, a questão era tratada nos 31 a 34. No Código Civil de 2002, a matéria é abordada nos artigos 70 a 74, com pequenas modificações.
As espécies de domicílio voluntário são: o geral, fixado livremente; e o especial, ou de eleição.
O domicílio pode ser ocasional ou aparente, como ocorre, por exemplo, no caso do
viajante. Seu domicílio é o do lugar onde for encontrado.
No caso de mudança do domicílio, deve a mesma ser comunicada à autoridade municipal competente.
- Domicílio necessário da pessoa natural. Pelas disposições do anterior Código Civil, havia casos em que as pessoas naturais tinham domicílio necessário, estabelecido pela Ou seja:
- do incapaz: é o domicílio de seu representante legal, nos termos do art. 36 do Código Civil de 1916 (o chamado domicílio de origem);
- da mulher casada: é o domicílio do marido, exceto: quando estiver desquita- da; 2. quando lhe couber a administração dos bens do casal (art. 291 do Código Civil de 1916);
- do funcionário público: onde exercerem, em caráter permanente, as suas fun- ções (art. 37 CC/16);
- do militar em serviço ativo: o lugar onde servir, com praça na armada, na estação naval ou sede do emprego que estiver exercendo em terra (art. 38 CC/16);
- dos oficiais e tripulantes da Marinha Mercante: o do lugar onde estiver matricu- lado o navio (art. 39);
- do preso ou desterrado: do lugar onde cumpre a sentença ou o desterro (art. 40);
- do ministro ou agente diplomático: se estiverem no exterior, sem designar onde tem no País o seu domicílio, será o do Distrito Federal ou o do último lugar onde o tive- ram (art. 41 CC/16).
Pertinente anotar-se que disposições semelhantes se encontram no parágrafo único do art. 76 do novo Código Civil. Com algumas exceções: o caso do desterrado, não mais referido, na medida em que inexiste atualmente a pena de desterro; e o caso da mulher casada ou “desquitada”, já não mais se aplicando as vetustas normas a elas referentes, constantes do Código Civil de 1916.
- Domicílio da pessoa jurídica de direito público. Este tópico cuida do domicílio da União, dos Estados e dos Municípios.
- Da União: é o Distrito
- Dos Estados: são as respectivas
- Dos Municípios: onde funcione a Administração Municipal (art. 35 do CC/16).
- Causas propostas pela União ou contra ela: devem as mesmas ser propostas na Capital do Estado em que for domiciliado o réu ou o autor (art. 99 do Código de Processo Civil). Ver, também, 125, §§ 1º e 2º, da CF/67.
No novo CC, tais disposições estão no art. 75.
- Pessoa jurídica de direito O domicílio destas é onde funcionarem as res- pectivas diretorias e administrações, isto quando dos seus estatutos não constar eleição de domicílio especial (art. 35, IV, do CC/16).
No caso da referida pessoa jurídica ter vários estabelecimentos, cada um é consi- derado domicílio, para os atos nele praticados (§ 3º do art. 35). No Código Civil de 2002, são encontradas disposições a respeito no art. 75, IV e §§ 1º e 2º.
- Domicílio da pessoa jurídica estrangeira. É o lugar do estabelecimento, sito no Brasil, a que ela
- Notas sobre o domicílio tributário no Direito estrangeiro
É de se observar que em diversos ordenamentos jurídicos, no exterior, a questão é tratada semelhantemente ao que se verifica no Brasil. Em outros, contudo, já se verifica a existência da diversidade cultural e jurídica.
- Em Portugal, por exemplo, vê-se um tratamento jurídico bastante parecido com o que a legislação brasileira dá ao
A referida matéria é objeto do art. 19º da LGT15, cuidando-se, em verdade, de critério espacial de determinação da jurisdição tributária do Estado. Como aduzem Jó- natas E. M. Machado e Paulo Nogueira da Costa, a partir dessa determinação delimita-se o “universo de sujeitos passivos da relação jurídica tributária”16.
15 A sigla em questão, encontrada em diversos livros estrangeiros referentes à matéria, significa Lei Geral Tributária. Em Por- tugal, é objeto do Decreto-Lei n. 398/98, de 17 de dezembro de 1998.
16 Curso de Direito Tributário. p. 96.
Os mesmos autores lembram estar a questão bem vinculada ao denominado prin- cípio da residência, que tem como fundamento material “a ideia de que a residência concede um estatuto jurídico e uma proteção especial, por parte do Estado a que se refere, susceptível de justificar a tributação”.17
Também lembram os mencionados autores que o domicílio fiscal é “essencial, além do mais, para que o contribuinte possa beneficiar dos direitos de informação de que goza diante da administração tributária”.18
- Na Espanha, vemos uma situação também parecida com aquela do sistema bra-
O art. 48 da LGT19 estabelece que “o domicílio fiscal é o lugar onde se localiza o
obrigado tributário em suas relações com a Administração tributária”.
Lembra José Juan Ferreiro Lapatza que o domicílio das pessoas físicas “será – como regra geral – o de sua residência habitual”,20 podendo tal regra ser excepcionada pela Administração quanto às pessoas que desenvolvam principalmente atividades econômi- cas, caso em que a referida Administração pode considerar que seu domicílio é determi- nado “de acordo com as normas relativas às pessoas jurídicas”21.
Quanto a estas, a regra geral é a de que o domicílio será o “seu domicílio social, sempre que nele esteja efetivamente centralizada sua gestão administrativa e a direção de seus negócios”22. Caso contrário, “será considerado o lugar em que se realize tal gestão ou direção”23.
Tais são as regras referentes às pessoas físicas e jurídicas residentes na Espanha. Diferentemente, outrossim, do que ocorre no Brasil, a LGT remete os não residentes na Espanha à lei de cada tributo; na falta desta, aponta como domicílio
[…] de seu representante na Espanha, quando a pessoa não residen- te atua no território espanhol sem manter nele um estabelecimento permanente. Se atua com um estabelecimento permanente, aplicam-
-se a este as regras que determinam o domicílio das pessoas jurídicas,
fixando-se, assim, o domicílio de seu titular na Espanha.24
- Na Itália, a situação é diferente, não havendo coincidência obrigatória com a noção do Direito Civil referente ao domicílio como centro de interesses ou sede principal dos próprios negócios (art. 43 do Codice Civile). O jurista Gian Antonio Micheli lembra
17 Curso de Direito Tributário. p. 95.
18 Curso de Direito Tributário. p. 96.
19 Vide a nota n. 5, acima, referindo-se, por certo, a sigla à Lei Geral Tributária da Espanha.
20 Direito Tributário – teoria geral do tributo, pág. 203. Outrossim, o mesmo autor lembra que a lei não oferece, entretan- to, o conceito de “residência habitual”, afirmando ser necessário avaliar, caso a caso, “já que a Lei de cada tributo não o determina, diversos dados (lugar onde vive a família, padrão municipal (esclarecendo ser este um registro administrativo onde figuram os habitantes de cada município) etc.) e elementos; entre outros, os dois que a doutrina geral aponta como implícitos na ideia de domicílio; o fato de habitar um lugar (elemento material, corpus) e o propósito de fazê-lo de modo permanente (elemento espiritual, animus)” (op. e loc. cits.).
21 Autor, op. e loc. cits.
22 Autor, op. e loc. cits.
23 Idem, ibidem.
24 Direito Tributário. p. 204.
que a existência da noção de domicílio fiscal decorre da necessidade de facilitar-se o accertamento do tributo, estabelecendo-se que, “para fim da aplicação dos impostos, todo indivíduo é considerado como domiciliado numa Comuna do Estado”25; e, como lembra o autor referido, “precisamente os cidadãos italianos, que têm o domicílio fiscal na Comuna em que são inscritos para o fim do censo”26.
Procura ainda o legislador italiano atentar para os casos em que os italianos resi- dam no exterior, caso em que o domicílio fiscal continuará a ser aquele da Comuna de sua última residência; à sua falta, será o referido domicílio estabelecido na cidade onde nasceu.
Também atenta o legislador italiano ao caso do estrangeiro que resida na Itália, aduzindo ser o seu domicílio fiscal o mesmo de sua residência; ou, à sua falta, será tal domicílio fixado na cidade onde viveu pelo menos um ano.
A legislação tributária italiana ainda faz uma curiosa referência aos casos dos sujei- tos “diferentes das pessoas físicas”, expressão com a qual, como afirma Gian Antonio Mi- cheli, “se pretende indicar não só as pessoas jurídicas de qualquer tipo, mas todo sujeito passivo tributário que não tenha plena e própria subjetividade jurídica (…) – é à sede so- cial, quando existe, que se deve fazer referência (v. art. 46, alínea 1ª do Código Civil)”27.
Também atenta o legislador para o caso de tais sociedades serem constituídas no
exterior e não terem sedes secundárias na Itália, caso em que o domicílio fiscal
[…] é fixado na Comuna onde estabeleceram a sua sede administra- tiva. Na falta desta, o critério subsidiário, o domicílio fiscal de todos os sujeitos, por último considerados, será na cidade em que desenvol- vem, de modo continuado, a sua principal atividade.28
Há, ainda, a possibilidade de não ser o domicílio determinável pelos aspectos refe- ridos; ou, ainda, quando o silêncio da lei torna impossível a sua aplicação, hipóteses em que, como lembra Gian Antonio Micheli,
[…] é estabelecido na Comuna em que se produziu a renda e, se a renda se produziu em mais de uma cidade, naquela em que é produ- zida a mais alta renda; ou então, à falta desse critério de referência, na Comuna em que a renda foi gozada.29
Verifica-se tanto a possibilidade de o sujeito passivo requerer a mudança do domicílio fiscal, como, também, de ser tal domicílio impugnado pela Administração, perante o juiz administrativo, mostrando, ainda neste ponto, semelhanças com o nosso sistema.
25 Art. 9. TU Impostos Diretos.
26 Curso de Direito Tributário. p. 153.
27 Op. cit., p. 154.
28 Novamente Gian Antonio Micheli, Curso…, p. 154.
29 Op. e loc. cits.
- Na Alemanha, veem-se algumas diferenças do sistema
Albert Hensel aduz que o importante, no que toca a esse tópico, é o vínculo pessoal-territorial que representa o domicílio no território nacional; ou, em sua falta, a residência habitual. A legislação tributária alemã considera domicílio fiscal a manu- tenção de uma moradia em circunstâncias que permitam presumir a intenção do sujeito passivo de conservá-la.30
Para a definição do domicílio fiscal das pessoas jurídicas, no que se refere aos di- versos impostos, deve-se recorrer ao domicílio social ou ao local de efetiva localização no território nacional alemão.31
- O domicílio tributário no Brasil; o 127 do CTN
A matéria, como já referido, também é tratada no âmbito do Direito Tributário, havendo diversos pontos de contato com o Direito Civil e as disposições constantes do antigo e no novo Códigos Civis. A propósito, lembra Luciano Amaro: “As normas sobre domicílio tributário no Código Tributário Nacional não se afastam dos critérios usualmen- te empregados pela legislação privada para o efeito de situar, no espaço, os sujeitos de direitos e obrigações”32.
Se, em sede de Direito Civil, o domicílio é definido como o lugar em que a pessoa, física ou jurídica, atua na vida jurídica, como observado linhas atrás, no Direito Tributá- rio tem-se que o domicílio tributário é, segundo o escólio de Eduardo Sabbag, “o local, determinado pela legislação tributária, onde o sujeito passivo é chamado para cumprir seus deveres jurídicos da ordem tributária”33.
É o mesmo ligado intrinsecamente a um dos aspectos do Direito Tributário e aos vários tributos que compõem a carga tributária imposta ao sujeito passivo; ou seja, ao denominado aspecto espacial do tributo.
A importância da exata determinação do domicílio tributário é cabal. Aliás, a res- peito, exalta Celso Ribeiro Bastos essa importância, afirmando que “é nele que o contri- buinte deverá ser cobrado, sofrer fiscalização ou mesmo execução fiscal”34.
Em sede de Direito Tributário, a referida matéria é objeto do art. 127 do Código tributário Nacional, que assim dispõe:
30 Citando o § 81 da Ordenanza Tributaria, Albert Hensel afirma que “Una persona tiene su residencia habitual, a efectos tributarios, en aquel lugar en el que permanece, en circunstancias que permiten presumir su intención de residir en esa localidade o país de forma no esporádica” (Derecho tributario, p. 171).
31 Novamente Albert Hensel, que cita o “§ 2, núm. 2, de la Ley del Impuesto sobre el Patrimonio; § 2 de la Ley del Impuesto
sobre Sociedades; § 2.II de la Ley del Impuesto sobre los Movimientos de Capitales” (Derecho tributario, p. 172).
32 Direito tributário brasileiro, p. 314.
33 Manual de direito tributário, p. 703. Semelhantemente, Eduardo Marcial Ferreira Jardim afirma que o domicílio tributário é o local “juridicizado pela norma-matriz de incidência como aquele em que o sujeito passivo haverá de responder pelo cumprimento da obrigação tributária” (Dicionário jurídico tributário, p. 112). Outrossim, José Eduardo Soares de Mello traz, também, a sua definição do que é o domicílio tributário: “Local das atividades e negócios dos contribuintes e responsáveis pelas obrigações fiscais (emissão de notas e escrituração de livros, apuração de impostos etc.). Aspecto espacial da hipótese de incidência tributária” (Dicionário de direito tributário, p. 130).
Também é cabível lembrar-se a lição do acatado Celso Ribeiro Bastos, para quem o domicílio “é o lugar onde a pessoa res- ponde pelas suas obrigações. Se quisermos, é o centro de suas relações jurídicas” (Curso de direito financeiro e de direito tributário, p. 200).
34 Curso... p. 201. A respeito do tema, Luciano Amaro afirma: “No plano tributário, a definição do domicílio é sobremodo im- portante, dado que tem reflexos na própria definição da legislação aplicável” (Direito tributário brasileiro, p. 314).
Art. 127. Na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável, de domicílio tributário, na forma da legislação aplicável, considera-se como tal:
- – quanto às pessoas naturais, a sua residência habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o centro habitual de sua atividade;
- – quanto às pessoas jurídicas de direito privado ou às firmas in- dividuais, o lugar da sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento;
- – quanto às pessoas jurídicas de direito público, qualquer de suas repartições no território da entidade
- 1º. Quando não couber a aplicação das regras fixadas em qualquer dos incisos deste artigo, considerar-se-á como domicílio tributário do contribuinte ou responsável o lugar da situação dos bens ou da ocor- rência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação.
- 2º. A autoridade administrativa pode recusar o domicílio eleito, quando impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização do tributo, aplicando-se então a regra do parágrafo anterior.
Verifica-se, portanto, que o dispositivo em questão delimita as regras destinadas ao estabelecimento do referido domicílio, trazendo à baila os elementos atinentes à sua definição.
São eles tirados mais do Direito Civil do que do Direito Tributário; ou seja, os refe- ridos elementos do domicílio são: a) residência efetiva e b) a intenção de nela residir definitiva ou permanentemente.
- A eleição do domicílio tributário pelo sujeito
O caput do art. 127 do CTN abre as disposições referentes à matéria aduzindo que, “na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável […]”.
Ou seja; a regra, in casu, é que o contribuinte tem o direito de escolher qual é o seu domicílio tributário. Apenas na falta deste domicílio “escolhido” pelo contribuinte é que serão aplicadas as alternativas constantes dos três incisos do art. 127 do CTN, para o efeito de suprir-se a ausência da escolha do referido domicílio pelo contribuinte.35
No Direito Civil, o domicílio de eleição é, como já observado linhas atrás, aquele defluente do ajuste entre as partes contratantes (art. 42 do Código Civil de 1916 e art. 78 do Código Civil de 2002). É, como constou do texto, considerado como domicílio especial, ao contrário do domicílio denominado geral. Já no Direito Tributário, como não se pode falar em relação contratual entre fisco e contribuinte, mas, sim, em uma
35 Ouso aduzir que a disposição constante desse artigo não configura mera tolerância para com que o devedor assim proceda, como pensam alguns doutrinadores, mas, sim, de estabelecer uma regra, cujas exceções vêm logo a seguir no texto do art. 127 do mencionado Código. Ou seja, como observado acima, a regra é a escolha do domicílio tributário pelo devedor.
Aliás, é importante observar-se, no que diz respeito ao tema em discussão, a posição de Regina Helena Costa, que, referin- do-se ao art. 127 do CTN, lembra que o mesmo “abriga regras supletivas para a determinação do domicílio tributário das pessoas físicas e jurídicas, porquanto atuam somente na falta de eleição do domicílio pelo sujeito passivo. No entanto, na prática, tal escolha não ocorre e, em consequência, tais regras é que têm aplicação” (Curso de direito tributário, p. 214). Destaque-se: regras supletivas, sendo a eleição de tal domicílio pelo contribuinte mais do que um mero permissivo.
Eduardo Sabbag igualmente afirma que a regra geral, no que diz respeito à questão do domicílio tributário, é a aplicação do “domicílio de eleição”, e que, na “impossibilidade de aplicação dos artigos citados ou na recusa fundada da Administração quanto ao domicílio de eleição, quando impossibilite ou dificulte a fiscalização, aplica-se o art. 127, § 1o, do CTN” (Direito tributário, p. 186).
relação de natureza impositiva, decorrente de normas de direito público, o que se veri- fica é que o domicílio de eleição é o local de preferência do contribuinte, pelo mesmo indicado para a autoridade fiscal, para o fim de ser cientificado de suas obrigações de natureza tributária, com o objetivo de dar cumprimento às mesmas.
Como se trata, outrossim, de relação de natureza impositiva entre fisco e contribuin- te, como referido, ao fisco é dado recusar o domicílio tributário apontado pelo devedor.
Em que condições pode se dar essa recusa?
A teor do disposto no § 2º do precitado art. 127 do CTN, já transcrito, pode a re- ferida recusa ocorrer quando a eleição em questão vier a dificultar ou impossibilitar a arrecadação ou a fiscalização, que consistem no objetivo final da própria atividade do sujeito ativo da obrigação tributária.
A partir desse momento, com a recusa em questão, cabível a fixação do domicílio
tributário de acordo com o disposto nos incisos I a III do mesmo artigo do CTN.
- Qual será o domicílio tributário das pessoas físicas?
Recusado (ou não apontado) o domicílio tributário pelo contribuinte pessoa física, prevalecerá o disposto no inciso I do art. 127, ou seja, considera-se tal contribuinte domiciliado no local de sua residência habitual. Pertinente lembrar-se que, nos termos do Código Civil, o domicílio da pessoa natural é “o lugar onde ela estabelece a sua re- sidência com ânimo definitivo” (art. 31 do CC/1916 e art. 70 do CC/2002). É o denomi- nado domicílio geral, em contraposição ao domicílio especial, também conhecido como domicílio de eleição.
Admite-se, a partir da redação do dispositivo em questão, que possa existir residên- cia não habitual, o que é facilmente compreensível, com o exemplo típico da casa de vera- neio, onde o sujeito passivo, pessoa física, recolhe-se em seus períodos de descanso, mas que não é utilizada durante boa parte do ano, em que o mesmo se encontra trabalhando.
A referida casa de veraneio, aliás, é um bom exemplo da necessidade de correta- mente estabelecer-se o domicílio fiscal do sujeito passivo. Figure-se a hipótese de pes- soa que, morando em São Paulo, possui casa de veraneio em cidade do litoral, utilizada esporadicamente. Indaga-se: onde deverá ser o sujeito passivo notificado, para fins de pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), incidente sobre a mencionada casa de veraneio? É de se supor que, como a dita casa pode ficar sem utilização durante meses, deva o sujeito passivo ser notificado na sua residência habitual; ou seja, na Ca- pital, onde reside a maior parte do ano. Tal fato é corriqueiro, aliás, e não implica em maiores dificuldades para o fisco, especialmente nos tempos atuais, de larga utilização da internet para fins bancários, tema que será objeto de análise mais adiante.
De outro lado, no que toca a tal imposto, necessário constatar-se que, se o sujeito passivo, no caso mencionado, não indicar o seu domicílio fiscal de eleição como sendo o da Capital, onde reside, poderá ser demandado no local onde se situa o imóvel de veraneio.36
36 Nesse sentido são os ensinamentos de Renato Lopes Becho: “O contribuinte que possua um terreno não edificado, terá no local onde está seu imóvel o critério espacial do tributo, mas pode e deve eleger como domicílio tributário sua residência, que pode ser ou não na mesma cidade, Estado ou país. O mesmo acontece com quem tenha um apartamento de veraneio em uma cidade e apresenta como domicílio tributário a fazenda onde reside, em outro Estado da Federação” (Domicílio tributário, in: Comentários ao Código Tributário Nacional, obra coordenada por Marcelo Magalhães Peixoto e Rodrigo Santos Masset Lacombe, p. 1.017).
O domicílio das pessoas naturais deve ter dois elementos, referidos linhas atrás: a residência efetiva e a intenção de nela residir de maneira permanente ou definitiva. É o que os antigos referiam como sendo o corpus e o animus; ou seja, a efetiva permanência física em determinado local, com a intenção de nele residir.
Lembra, a propósito, Hugo de Brito Machado:
[…] o domicílio das pessoas naturais é, em princípio, o lugar da resi- dência destas em caráter permanente. Com o ânimo de permanência. E nada mais lógico, porque o domicílio é onde a pessoa exerce os seus direitos e cumpre ou é chamada a cumprir suas obrigações, é aquela circunstância da personalidade, devendo, por isso mesmo, ter um ca- ráter permanente ou duradouro.37
E no caso de o local da residência habitual do contribuinte pessoa física ser desco- nhecido ou incerto?
Nesse caso, o seu domicílio tributário será o centro habitual de suas atividades, como consta, ainda, do inciso I do art. 127.38
É de se destacar, contudo, que, dependendo do tributo em discussão, poderão ocor-
rer variações, mesmo havendo domicílio fiscal devidamente fixado pelo sujeito passivo.
Traz-se à baila novamente o exemplo do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).
De cabal importância, outrossim, estabelecer-se onde é o referido domicílio fiscal da pessoa física, para o objetivo de ser a mesma demandada a cumprir as suas obri- gações tributárias, tanto de natureza principal (o pagamento de seus tributos) como acessória, tendo-se em vista que, malgrado haja recorrente (e procedente) queixa con- tra a excessiva carga tributária pela qual responde o povo brasileiro, de outra banda é bastante claro que o contribuinte nacional, pelo seu comportamento, está longe de merecer a beatificação…
A sonegação fiscal é correntia; é comum, outrossim, que determinados contribuin- tes busquem, de todas as maneiras, evitar (ou, no mínimo, protelar) o pagamento dos tributos que lhes são exigidos. E uma das maneiras mais comuns de se o fazer é, pura e simplesmente, ocultar-se, buscando evitar a ação de oficiais de justiça, além de declinar um domicílio tributário que, posteriormente, é alterado, sem qualquer notificação às autoridades tributárias constituídas.
37 Comentários ao Código Tributário Nacional, p. 493.
38 Sobre o tema, diz Hugo de Brito Machado: “Embora literalmente diversa, essa regra tem o mesmo sentido daquela albergada pelo Código Civil, segundo a qual ter-se-á por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência habitual, o lugar onde for encontrada, porque o lugar mais provável para encontrar-se a pessoa é precisamente aquele em que está o centro de suas atividades” (Comentários…, p. 494).
A propósito do tema em foco, merece lembrança a seguinte decisão: “Tributário. Imposto de Renda. Procedimento admi- nistrativo. Lançamento. Intimação do contribuinte. Via postal. Correspondência entregue em antigo escritório do contri- buinte. Ineficácia. I – A intimação do lançamento fiscal do Imposto de Renda contra pessoa física deve ser feita no local em que esta mantém seu domicílio. Não vale intimação dirigida a local onde o contribuinte manteve antigo escritório, nada importando a circunstância de a mudança do endereço profissional não ter sido comunicada ao Fisco. II – É improcedente a execução, se o crédito fiscal em cobrança resultou de lançamento nulo, por ineficácia da respectiva intimação” (STJ, 1ª T., 186815/DF, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 15.03.1999, p. 119).
Tais fatos são constatados diuturnamente por quaisquer magistrados que venham a atuar com o processamento e julgamento de ações de execução fiscal. Aliás, o número astronômico dessas ações, em andamento perante varas especializadas ou comuns, fala por si só.
Denota seriedade, portanto, o estabelecimento do domicílio fiscal com verdadeiro animus de nele permanecer, para o fim do cumprimento das obrigações fiscais do sujeito passivo, ainda que doloroso seja tal cumprimento.
Pertinente, ainda no que toca a esse tópico, observar-se que, como se vê no Direito Civil, há hipóteses em que a pessoa natural terá o denominado domicílio necessário. Serão os casos referidos no art. 76 do atual Código Civil; ou seja, o incapaz, o servidor público, o militar, o marítimo e o preso terão tal domicílio, assim referido no parágrafo único do mencionado art. 76 do CC/2002:
O domicílio do incapaz é o de seu representante ou assistente; o do servidor público, o lugar em que exercer permanentemente suas funções; o do militar, onde servir, e, sendo da Marinha ou da Aeronáu- tica, a sede do comando a que se encontrar imediatamente subordi- nado; o do marítimo, onde o navio estiver matriculado; e o do preso, o lugar em que cumprir a sentença.
Também o agente diplomático tem disposições específicas no Código Civil, no que
tange ao seu domicílio (vide art.77 do referido Código).
Ainda que silente o CTN a respeito desses casos específicos, parece não ser desar- razoado concluir-se que, nesses casos, em se tratando de pessoas físicas, aplicar-se-ão subsidiariamente as regras do Código Civil brasileiro, no que não conflitarem com as do Código Tributário Nacional.
- Qual é o domicílio tributário das pessoas jurídicas de direito privado ou das
firmas individuais?
Nesse caso, estabelece o art. 127, inciso II, que o domicílio tributário será, inicial- mente, o do lugar da respectiva sede.
Alternativamente, será, em relação a atos e fatos que derem origem à obrigação, o lugar de cada estabelecimento.39
A existência de um único estabelecimento não traz dificuldade, pois será este o
domicílio tributário da pessoa jurídica.
39 Vale citar-se, aqui, a seguinte decisão: “Processual civil e tributário. Competência. Domicílio fiscal. Súmula 40 do extinto TFR. 1. Considera-se como domicílio tributário da pessoa jurídica o lugar de sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento. 2. Não sendo a comarca do domicílio do devedor sede de Vara da Justiça Federal, o executivo fiscal deve ser proposto perante o respectivo Juiz de direito estadual (Súmula 40 do extinto TFR). 3. Recurso improvido, por unanimidade” (STJ, 1ª T., REsp 74082-95/PE, rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU 26.02.1996, p. 3.958).
Ou ainda: “Processo civil. Execução fiscal. Exceção de incompetência. Empresa com matriz em São Paulo e estabelecimento industrial em Pacatuba – SE. Aplicabilidade do dispositivo do art. 578, parágrafo único, do CPC. O domicílio tributário da pessoa jurídica, em relação aos atos ou fatos que deram origem a obrigação fiscal, é o de cada estabelecimento. Agravo improvido” (TRF – 5ª R., 2ª T., AGTR 22571/SE, rel. Des. Lázaro Guimarães, DJU 15.09.2000, p. 429).
Contudo, no caso de mais de um estabelecimento, a solução é diversa.40 A propó- sito, escreve Hugo de Brito Machado que, havendo vários estabelecimentos, a pessoa jurídica contribuinte
[…] pode escolher o domicílio, observando o seguinte:
- a escolha não pode recair em local fora do território da entidade tributante, por motivos óbvios;
- no que se refere aos tributos cujo fato gerador se verifica em relação a cada estabelecimento, como acontece, por exemplo, com o ICMS, a legislação específica geralmente exclui essa liberdade de escolha, determinando que o domicílio tributário é o local da sede de cada estabelecimento, que considera, para aquele efeito, contri- buinte isolado;
- quanto aos tributos dos quais, como no imposto de renda, o fato gerador é apurado em relação à empresa, em sua totalidade, preva- lece a liberdade de escolha, limitada, porém, pela regra do § 2º do 127 do CTN, adiante examinada.41
Existe, ainda, a possibilidade de considerar-se inaplicáveis quaisquer das regras sobreditas, constantes dos incisos I e II do art. 127 do CTN.
Hugo de Brito Machado coloca como exemplo de semelhante hipótese quando uma
pessoa jurídica
[…] possua bens, ou provoque a ocorrência de fatos relevantes do ponto de vista tributário, em lugar onde não tem a sua sede e nem qualquer de seus estabelecimentos, sendo inaplicável, portanto, a regra do inciso II. Em situações assim, a solução é a estabelecida pelo § 1º, segundo o qual considerar-se-á como domicílio tributário do contribuinte ou responsável o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos fatos”42.
Faz a ressalva, contudo, acertadamente, de que tal regra apenas é aplicável “se não tiver havido manifestação do sujeito passivo indicando o domicílio de sua escolha”43.
40 Sobre o tema, pertinente lembrar-se a seguinte decisão: “…-Não possuindo a executada um só domicílio fiscal, pode ser ajuizada a execução no foro do lugar onde fora praticado o ato ou ocorrera o fato que deu origem à dívida. […]” (TRF – 5ª Região. CC 92.05.00108/PB; relator o Juiz José Maria Lucena; j. 27.10.93; DJ de 15.04.94, p. 16.529).
Ou ainda: “EMENTA: […] 1 – A executada é uma pessoa jurídica de direito privado com estabelecimentos em lugares dife- rentes. Nesse caso, a Fazenda Pública tem a faculdade de ajuizar a execução fiscal no foro do lugar da agência ou estabele- cimento onde foi praticado o ato. 2 – Sendo o caso de incompetência relativa, não pode o juiz decretá-la ex officio. […]” (TRF – 5ª Região. CC 92.05.00107/PB; relator o Juiz Araken Mariz; j. 16.12.92; DJ de 26.03.93; p. 10.313).
41 Curso de direito tributário. p. 154. No que diz respeito a esse imposto, o mesmo autor, em outro escrito, lembra que “o acréscimo patrimonial, fato gerador desse imposto, diz respeito à pessoa jurídica independentemente de quantos estabele- cimentos ela tenha e do lugar de cada um deles” (Comentários…, p. 494).
42 Comentários… p. 495.
43 Comentários... loc. cit.
- Qual é o domicílio tributário das pessoas jurídicas de direito público?
É aquele referido no inciso III do art. 127 do CTN; isto é, qualquer das repartições no território da entidade tributante.
Ou seja, como lembra Alexandre Mazza, a
União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, assim como au- tarquias e fundações públicas, sendo pessoas jurídicas de Direito Pú- blico, têm domicílio tributário em qualquer de suas repartições no território da entidade tributante.44
Sobre o tema, é pertinente lembrar-se os ensinamentos de Hugo de Brito Machado e Luiz Alberto Gurgel de Faria, que são concordes no fato de que, jungidas tais pessoas ao princípio da legalidade, sendo integrantes da Administração Pública, dificilmente deixarão de eleger o seu domicílio tributário.45
Este último autor, outrossim, lembra que, apesar do que se afirmou a respeito da pessoa jurídica e da eleição de seu domicílio fiscal, no caso de ainda assim existir a omissão, “qualquer de suas repartições poderá ser considerada para fins de domicílio”46.
Há, no que toca a esse aspecto da questão, a dúvida referente à possibilidade de serem as pessoas jurídicas de direito público objeto de tributação, em especial em face das disposições da Constituição Federal referentes a esse tema, quando estabelecem a denominada imunidade recíproca.
Com efeito, descabido que se pense referir-se o CTN, em seu art. 127, inciso III, às empresas públicas e às sociedades de economia mista, na medida em que estas têm personalidade jurídica de direito privado, malgrado sua origem se encontre no Poder Público. Nesse sentido, é o ensinamento de Hugo de Brito Machado47.
Nem por isso, contudo, deixa a referida regra do CTN de ser pertinente e necessária.
Em verdade, ainda que haja a referida imunidade recíproca, constitucionalmente consagrada,48 o que se verifica – e já é pacífico, inclusive na jurisprudência de nos- sas Cortes – é que tal imunidade aplica-se aos impostos, mas não às taxas e a outros
44 Manual de direito tributário. p. 495.
45 Vide, a propósito, Comentários ao Código Tributário Nacional, p. 497, e Código Tributário Nacional comentado, coordenação de Vladimir Passos de Freitas, p. 585.
46 Código Tributário Nacional comentado, loc. cit.
47 Comentários…, p. 497. Aliás, é pertinente trazer-se à baila o entendimento do referido autor: “Com isso, porém, não está resolvida a questão de saber se as pessoas jurídicas de Direito público podem ser, ou não, sujeitos passivos de obrigações tri- butárias. O art. 127, inciso III, evidentemente não se refere às empresas públicas nem às sociedades de economia mista, que são pessoas jurídicas de Direito privado. Refere-se a pessoas jurídicas de direito público. Essas pessoas, portanto, nos termos do Código Tributário Nacional, podem ser sujeito passivo de obrigação tributária, ainda que isso seja, como realmente é, uma incoerência evidente” (op. e loc. cits.). Esta última observação, como logo adiante se verá, não é exatamente acertada.
48 Vide art. 150, inciso VI, letra “a”, da Constituição Federal de 1988, que estabelece que a União, os Estados, o Distrito Fede- ral e os Municípios não poderão instituir impostos sobre “patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros”. Enfatize-se, aqui, a palavra impostos, senão uma das diversas modalidades de tributos.
Aliás, a jurisprudência de nossas Cortes já se debruçou sobre o tema, merecendo lembrança a seguinte decisão: “IMUNIDADE RECÍPROCA – IMPOSTO – CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA – PROPRIEDADE PRIVADA. A imunidade recíproca, prevista pelo inciso VI, “a”, do artigo 150 da Constituição Federal, abrange apenas os impostos, não se aplicando portanto a outras espécies tributárias. A contribuição de melhoria somente incide sobre bens de propriedade privada. Apelação provida” (Apelação Cível n. 0066758-3; 3ª Câmara Cível do extinto Tribunal de Alçada Civil do Estado do Paraná; j. 13.09.1994; v.u.; relator o Juiz Pacheco Rocha).
tributos. De fato, é comum, em Varas especializadas, a existência, v.g., de ações de exe- cução fiscal movidas por Prefeituras contra a Fazenda do Estado, para o fim de cobrança de taxas municipais devidas por esta.
A propósito, pertinente lembrar-se, aqui, o entendimento de Aliomar Baleeiro so- bre o tema: “Qualquer repartição do Poder Tributante no território da Pessoa Jurídica de Direito Público está sujeita às taxas e contribuições, mas em princípio não está sujeita a impostos”.49
Daí porque, contrariamente ao afirmado por Hugo de Brito Machado, com a devida
vênia do grande tributarista, cuida-se de regra de grande importância.
Sobreleva, por consequência, ainda aí, a necessidade da fixação do domicílio fiscal da pessoa jurídica de direito público, ainda que, como já observado linhas atrás, este não chegue a representar grande problema.
- A eleição do domicílio tributário pelo sujeito passivo e a sua recusa pelo fisco
Como já observado alhures, o art. 127 do CTN estabelece a possibilidade de o contribuinte eleger o seu domicílio tributário. A regra, aliás, é justamente essa possibi- lidade de ser tal domicílio escolhido pelo sujeito passivo da obrigação tributária. Na au- sência dessa escolha, aplicam-se as demais normas constantes dos três incisos do mesmo artigo, estudadas linhas atrás.
Há possibilidade, segundo a legislação local, de cada entidade tributante, de ex- cluir-se o direito do contribuinte escolher o seu domicílio fiscal?
Hugo de Brito Machado entende que não. Aduz o referido professor:
Ao estabelecer normas apenas para a falta de eleição, o Código na verdade afirmou o direito de eleição, embora tenha deixado espaço para o legislador de cada entidade tributante tratar dos termos em que a eleição pode ser feita. No definir esses termos, porém, o legis- lador de cada entidade tributante não pode excluir, seja diretamente seja mediante a colocação de condições impraticáveis para a eleição.50
O que se deve entender, em verdade, é que não existe liberdade absoluta, por parte do contribuinte, para a escolha do domicílio tributário.
O extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo também analisou a matéria, como se pode ver pela se- guinte decisão: “Imposto. Imunidade. Predial e Territorial Urbano. Taxa de Limpeza. Autarquia estadual. Reconhecimento pelo disposto no art. 150, VI, parágrafo 2º, da CF, apenas no que tange ao IPTU. Benefício que abrange somente os impostos, excluídas as taxas e as contribuições de melhoria, ou demais tributos. Patrimônio que gera renda para a sua finalidade. Apelação parcialmente provida” (Apelação Cível n. 841.139-8; 3a Câmara; relator o Juiz Maia da Rocha).
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vem pensando da mesma forma: “EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL – Cobrança de taxa – Natureza jurídica do tributo não descaracterizada para imposto – Imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, letra “a”, da CF não aplicável à hipótese dos autos – Nulidade da citação não decretada devido ao comparecimento espon- tâneo da executada aos autos – Manutenção da r. sentença de primeiro grau – Recurso desprovido” (Apelação sem revisão
- 9138857-39.2001.8.26.0000; 14ª Câmara de Direito Público; relator este mesmo autor; v.u.).
49 Direito tributário brasileiro, p. 733. No mesmo sentido é o entendimento de Regina Helena Costa, como se vê em Código Tributário Nacional comentado, obra coletiva, coordenada por Vladimir Passos de Freitas, p. 41.
50 Comentários… p. 498.
Inadmissível, v.g., que o mesmo escolha como domicílio fiscal um local distante, onde não haja qualquer bem de sua propriedade; onde não pratique qualquer atividade econômica; onde o mesmo não tenha praticado qualquer fato gerador de obrigação tri- butária, para o fim exclusivo de dificultar a ação do fisco, visando procrastinar eventual ação de execução fiscal que contra ele seja movida.
(E a experiência demonstra, tristemente, que, no que tange à procrastinação do dever de pagamento dos tributos, o contribuinte muitas vezes chega a ser um verdadeiro artista…).
Ou, como lembra, ainda, o mesmo Hugo de Brito Machado:
De todo modo, é importante que se tenha bem clara a ideia de do- micílio de eleição, posto que na verdade não existe uma liberdade para o sujeito passivo eleger um domicílio tributário desligado da realidade das coisas. Sua liberdade se limita pelas possibilidades que a realidade oferece. Assim, se em face da realidade pode ter mais de um domicílio tributário, tem a liberdade de escolher um deles. O limite de sua liberdade é a não-criação de obstáculo à atividade de fiscalização tributária […].51
Verificando-se a existência de escolha de um domicílio tributário que impossibilite
ou, ao menos, dificulte a arrecadação e a fiscalização do tributo, aplica-se a regra do
- 2º do art. 127 do CTN – ou seja, a autoridade administrativa pode recusar o domicílio eleito, quando então se aplica a regra do § 1º do mesmo artigo; ou seja, “considerar-se-á como domicílio tributário do contribuinte ou responsável o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação”.
Fica, portanto, em face da incidência dessa norma, afastada a questão de saber-se a respeito de estar ou não o domicílio de eleição de acordo com a realidade. Como mais uma vez aduz Hugo de Brito Machado: “É uma fórmula inteligente de resolver a questão da razoabilidade da eleição. Preserva a liberdade do contribuinte ou responsável tribu- tário, e preserva igualmente os interesses da Fazenda Pública”.52
Por fim, pertinente afirmar-se que a recusa do domicílio fiscal pela autoridade ad- ministrativa não pode decorrer de mera discricionariedade por parte desta. Há de haver efetiva comprovação, por parte da referida Administração, de que o domicílio eleito inviabiliza os procedimentos de arrecadação e fiscalização tributária. Sem a menciona- da comprovação, corre-se o risco de se ter abuso por parte da Administração, substi- tuindo-se o comportamento deletério de uma das partes da equação fiscal pelo da outra.
51 Comentários…, loc. cit. A propósito do tema, cabível trazer-se à baila a seguinte decisão: “EMENTA: TRIBUTÁRIO. DOMICÍLIO FISCAL. DIFICULDADE DE ARRECADAÇÃO E/OU LOCALIZAÇÃO. POSSIBILIDADE DE ELEIÇÃO OU REVISÃO PELO FISCO. ART. 127,
- 2º, DO CTN. 1. O sujeito ativo tributante, enfrentando dificuldades para arrecadar ou localizar o domicílio tributário do contribuinte, poderá fixá-lo nos limites estabelecidos por lei (art. 127, § 2º, do CTN). 2. Esse princípio não afeta direito subjetivo do contribuinte. 3. Inexistência de prova de mudança de domicílio do contribuinte para Município que não o eleito pelo Fisco, cidade na qual se localiza a sua residência, a sede da pessoa jurídica da qual é sócio, e praticamente a quase totalidade de seu patrimônio, não tendo outra conotação, a eleição de outro domicílio para fins de arrecadação tributária, que a de criar embaraço à fiscalização. […] 4. Recurso não provido” (REsp 437.383/MG, 1a T., rel. Min. José Delgado, j. 27.08.2002).
52 Comentários... p. 500.
- Breve notícia sobre o domicílio eletrônico
Por derradeiro, resta analisar uma questão que a modernidade impôs à discussão entelada, ou seja, a existência do denominado domicílio eletrônico.
A localização dos sujeitos de direito, para o fim do cumprimento de suas obrigações na esfera jurídica, é imperiosa, e, no Direito Tributário, é imprescindível para que se possa efetuar a cobrança das obrigações fiscais, principais e acessórias.
No mundo moderno, outrossim, com a difusão do uso da informática, muitas das dificuldades mais antigas na localização de contribuintes mais resistentes acabam por encontrar soluções mais fáceis.53 Existe, nos dias atuais, a possibilidade de se efetuar a intimação do sujeito passivo por meio eletrônico, o que é objeto, inclusive, da Lei n. 11.196/2005, que alterou o art. 23 do Decreto n. 70.235/72. O inciso III desse art. 23 dispõe ser possível a intimação do sujeito passivo por meio eletrônico, com prova de re- cebimento, mediante: “a) envio ao domicílio tributário do sujeito passivo; ou b) registro em meio magnético ou equivalente utilizado pelo sujeito passivo”.
O parágrafo 1º desse mesmo artigo dispõe ser cabível a intimação por meio de edi- tal, quando resultar improfícuo um dos meios previstos no caput do artigo, sendo publi- cado o referido edital: “I – no endereço da administração tributária na internet; II – em dependência, franqueada ao público, do órgão encarregado da intimação; ou III – uma única vez, em órgão da imprensa oficial local”.
Lembra Leandro Paulsen, a propósito do tema, que “já restou inclusive regulamen- tada por instrução normativa a opção por domicílio tributário eletrônico para efeito de comunicação de atos oficiais”.54
Assim, torna-se mais fácil o exercício tanto da fiscalização como da cobrança dos tributos por parte do fisco, o que pode, também, facilitar a vida dos eventuais contri- buintes que, de boa vontade, queiram cumprir com as suas obrigações fiscais…
Cabível observar-se, no que tange ao tema, que a eleição de domicílio eletrônico por parte do contribuinte está sujeita às regras gerais referentes ao domicílio fiscal, po- dendo a Fazenda, portanto, recusar o referido domicílio eletrônico, fazendo-o, decerto, motivadamente.
Os desdobramentos do alvorecer dessa nova era serão, contudo, objeto de novos estudos, a serem oportunamente trazidos a lume.
53 Vide, a propósito, no que diz respeito ao domicílio civil, os ensinamentos de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery: “Do- micílio eletrônico. Muito embora a noção jurídica de domicílio dependa da identificação de um território onde se realizam fatos de interesse do sujeito de cujo domicílio se trata, a noção de espaço virtual (marcado justamente pela desterritorialização, ou seja, pela ausência de lugar no mundo físico sensível) vai emprestar para o conceito de domicílio eletrônico outros critérios de fixação lógica do conceito: a) domicílio que se estabelece num não lugar onde acontecem fenômenos jurídicos; b) um não lugar que – conquanto tenha existência apenas virtual – se destina ao encontro de pessoas e que se presta à realização de relações jurídicas como centro da atividade de alguém; c) um lugar de prestação de serviços que se oferece pela internet, centro das atividades de alguém (as atividades relacionadas com esse serviço prestado eletronicamente é que servem para fixar a compe- tência da Justiça a quem se devam encaminhar eventuais conflitos dela surgidos. Justiça essa que, no caso, seria prestada pelo Tribunal com competência nesse lugar central da atividade de alguém)” (Código Civil…, p. 282, comentário n. 11 ao art. 70).
54 Curso de direito tributário completo, p. 169. Não é inoportuno, a propósito do tema, lembrar-se que o novo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015), conquanto venha trazendo grande apreensão e desconfiança para um expressivo número de operadores do Direito, traz, em seu bojo, diversos dispositivos que tratam de regras do processo eletrônico, denotando uma marcha inexorável no sentido da modernização do processo judicial (não se podendo, contudo, afiançar se a mesma é boa ou ruim…). Há necessidade, por exemplo, de o advogado indicar o seu próprio endereço eletrônico (art. 287); a petição inicial deverá conter o endereço eletrônico das partes (art. 319, II e § 2º); a citação poderá ser feita por meio eletrônico (art. 246, V), certamente no endereço eletrônico do réu que for declinado; poderá haver intimação por meio eletrônico do devedor, para o cumprimento da sentença (art. 513, § 2º, III), entre outros dispositivos que tratam da matéria.
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